GERALDO HASSE/A volta do glorioso escriba farroupilha

Dois séculos atrás, atraídos pelos ventos da independência política do Brasil, chegaram ao Rio de Janeiro alguns europeus engajados em aventuras artísticas, pesquisas científicas e lutas políticas.

Eram Debret, Martius, Saint-Hilaire, Spix e outros, entre os quais até italianos fugitivos de monarcas raivosos. O mais famoso desses tipos extraviados nos trópicos foi Giuseppe Garibaldi, que guerreou no Rio Grande do Sul antes de se consagrar na terra natal, onde foi festejado como “o herói de dois mundos”.

Outro, muito amigo de Garibaldi, foi Luigi Rossetti, cuja trajetória como editor de O Povo, o bisemanário da
República Rio-Grandense do Sul, só recentemente veio à tona, graças sobretudo à pertinácia do jornalista-historiógrafo Elmar Bones, autor do livro “O Editor Sem Rosto” (JÁ Editores, 2024, 3ª ed), que está sendo
relançado neste sábado, 28, em Viamão, e deve ser vendido na Feira do Livro de Porto Alegre de 2024.
O título do livro se refere ao fato de que não há uma foto ou desenho de Rossetti.

Dele se perdeu até o túmulo. Morto em combate em Viamão em novembro de 1840, esse voluntário da revolução de 1835 toureou o conservadorismo dos chefes farroupilhas e saiu perdendo.

Entretanto, além de artigos no jornal oficial, deixou uma série de cartas reveladoras de seus ideais republicanos, motivo de suas diatribes com seu chefe direto, o charqueador Domingos José de Almeida, ministro que
cuidava das finanças da República Rio-Grandense.
Foi um editor sem rosto sim, mas com caráter, na luta inglória em defesa de princípios desprezados pelos detentores do poder.

Como tantos jornalistas ao longo da História, Rossetti engoliu sapos no esforço para colocar seu pensamento nos textos que escrevia no jornal que não lhe pertencia – pertencia, supostamente ao povo, que no frigir dos povos não vale um ovo.

Por aí se compreende como e porque Bones, editor do jornal Já há três décadas, se empenha na história do personagem esquecido nos mais de 500 livros escritos sobre a Grande Revolução do Sul.
É surpreendente como Rossetti foi encarregado de montar não só o jornal mas tocar a gráfica comprada em Montevideo.

Sua contratação mostra que os farrapos não tinham quadros para cargos importantes como o diretor do
seu jornal. Confiaram num aventureiro dedicado ao combate político.

Sem dúvida, ele tinha carisma e verve, tanto que trocava ideias com o coronel Corte Real e outros chefes. Depois de um tempo, no entanto, o escriba incômodo foi encarado como estrangeiro sem voz numa terra controlada por caudilhos prontos a negacear a promessa de
libertar os escravos.
Pouco se conhece da história pessoal de Rossetti. Nasceu em 1800 em Genova, onde frequentou a faculdade de Direito. Para não ser preso por fazer parte dos Carbonários antimonarquistas, fugiu da Itália, perambulou pela Europa e chegou ao Rio em 1827.

Não se sabe quais suas atividades antes de se associar a Garibaldi e outros italianos, em 1836, para explorar a navegação na costa fluminense.

Por boicotes e calotes, não lograram sucesso nessa empreitada mas tiveram a sorte de conhecer o
presidente Bento Gonçalves, a quem visitaram na cadeia da Fortaleza da Laje, no Rio – o general fora feito prisioneiro na batalha da ilha do Fanfa, no rio Jacuí, entre Porto Alegre e Triunfo, no primeiro ano da revolta.
Por incrível que possa parecer, em sua conversa no cárcere, os desventurados marinheiros italianos conseguiram do chefe farrapo uma carta de corso que os autorizava a pilhar embarcações no Atlântico em
benefício da República Rio-Grandense.

Deram-se bem nessa guerrilha naval até chegar ao Uruguai e à Argentina, onde Garibaldi foi encarcerado e
maltratado até conseguir ajuda da maçonaria para recuperar a liberdade e, daí em diante, engajar-se na revolução gaúcha (sua maior proeza foi
convencer Bento Gonçalves a organizar uma flotilha para embaraçar a marinha imperial na Lagoa dos Patos e chegar até o litoral catarinense, na louca manobra da tomada de Laguna em 1839).
Em Montevideo, onde tinha muitos correligionários italianos, especialmente o amigo Giovanni Cuneo, Rossetti trocou a vida de corsário pela de assessor do ministro Almeida.

Conseguiu o cargo por sua habilidade na articulação de negócios entre o governo farroupilha e os
amigos maçons de Montevideo. Carretas de couro e tropas de gado em pé eram os principais produtos exportados para o Uruguai pela república gaúcha, que recebia em troca armas, munições, uniformes para seus
soldados e sabe-se lá mais o quê.

Rossetti era portanto um agente duplo: trabalhava junto ao ministro farrapo como “procurador” dos amigos
contrabandistas sediados em Montevideo.

Nas horas vagas, cuidava do jornal farroupilha, que acabou se tornando seu xodó, depois de ficar
várias semanas na capital uruguaia para conseguir autorização oficial para tirar do país os equipamentos gráficos montados em Piratini, onde o jornal O Povo começou a ser feito.
Embora tivesse um perfil de jornalista combativo, panfletário até, a correspondência de Rossetti (sobretudo com o amigo Cuneo) não menciona nenhum jornalista ou intelectual com quem poderia ter tido contato no Brasil.

Até agora não se descobriu se teve algum interlocutor carioca com quem possa ter recebido noções sobre a língua portuguesa, que manejava satisfatoriamente. O que se sabe é que participou de um jornal dirigido à colônia italiana da capital, onde havia vários comerciantes
de origem peninsular.

Na época em que viveu no Rio (1827-36), Rossetti
foi qualificado como “vagabundo” num relatório diplomático preparado por um emissário do Vaticano. A expressão era naturalmente preconceituosa por ser Rossetti um agitador político que não respeitava o clero, embora fosse temente a Deus.
Também não se sabe se fez contatos com jornalistas ou políticos na capital brasileira. Na imprensa carioca era muito ativo e influente nos anos 30 do século XIX o político Evaristo da Veiga (1799-1837), que publicava a Aurora Fluminense, jornal contra a escravidão dos negros.
Terá Rossetti trabalhado nesse veículo politizado? Em São Paulo se destacou Libero Badaró, nascido em 1798 em Genova e chegado a São Paulo em 1828.

Médico e liberal, Badaró editava O Observador Constitucional, no qual costumava atacar o imperador Pedro I, autor da primeira Constituição do Brasil, de 1823. Foi morto em 1830 numa tocaia a mando de um desafeto do seu periódico.
Rossetti era um republicano sincero que provavelmente se criou lendo e ouvindo sobre as teses iluministas que levaram à Revolução Francesa (1789) depois de ajudar a levantar a bandeira da independência dos EUA em 1776. Veio depois de filósofos franceses como Rousseau e Voltaire, e precedeu o alemão Marx, que inspirou o russo Lenin – todos europeus revolucionários.

Foi contemporâneo dos americanos Lincoln e Simon
Bolívar, mas seu guru era Mazzini, o revolucionário italiano. Também não há notícia de que tenha se sensibilizado com o trabalho do maçom Hipólito José da Costa, que publicou em Londres de 1808 a 1822 o jornal
Correio Brasiliense.
O que mais impressiona na leitura de O Editor Sem Rosto é o fato de que, há quase 200 anos, trabalhou anonimamente em Piratini um escriba que incorporou as vissicitudes dos fazedores de jornal diante dos interesses dos mandantes da hora, no caso, o ministro Domingos de
Almeida, Bento Gonçalves e outros chefes farroupilhas. Nada de novo no front farroupilha: aparentemente sem noção de hierarquia, o editor genovês se revoltou quando o todo-poderoso Almeida deu razão a um cadete
que cortara um texto seu.

Um cadete com a metade de sua idade! Rossetti pediu para sair, mas teve a petulância de indicar o amigo italiano Cuneo para o cargo que acaba de largar.

O indicado chegou a viajar de Montevideo para a província rio-grandense, mas nem chegou a pegar na
pena porque o jornal estava parado e a tipografia, desmontada por contingências da guerra.

A partir de 1840, com o governo farroupilha
obrigado a deslocar-se em carretas pelo pampa, sob perseguição do exército imperial, o jornal não circulou mais.

Depois de deixar o jornal, Rossetti não foi pedir emprego em outra gráfica ou redação; partiu Camaquã, onde passou a trabalhar com Garibaldi no estaleiro em que se construíam os lanchões da marinha farroupilha.

E continuou escrevendo para o ministro Almeida, de quem se declarava amigo. Cheio de opiniões, era um tipo inquieto e se reconhecia “fogoso”, o que remete ao exaltado Tiradentes enforcado em 1792 em Ouro
Preto e outros revolucionários brasileiros como Domingos Martins, fuzilado aos 37 anos em Pernambuco por se envolver em conspirações contra o jugo português (1816).

Enfim, Rossetti foi um lutador que pouco deixou para ser lembrado, ao contrário do amigo Garibaldi que, além da
lagunense Anita, levou do Sul como paga por seus serviços uma boiada de 900 cabeças vendida no Uruguai.

Enquanto há centenas de livros e vários filmes sobre Garibaldi e sua lenda, Rossetti inspirou três teses acadêmicas sobre como a revolução farroupilha foi vista por outros países.

Lembra o editor Bones: “Os escritos de Rossetti — cartas, artigo, proclamações — são a fonte principal para se estudar as relações dos farrapos com o exterior e
também para as divergências entre os chefes farroupilhas”.

Recorde-se que, após dez anos de luta, os chefes farrapos estavam divididos e não obtiveram o reconhecimento de nenhum país — nem do amigo Uruguai.

Com exceção de uma irmã deixada na Itália, não há referências familiares na história de Rossetti. Cabe pesquisar em busca de novidades, mas ele parece ter negligenciado a vida afetiva para se dedicar integralmente à causa política e aos ideais democráticos.

Foi umautêntico republicano entre caudilhos ciosos do mando.

 

GERALDO HASSE/ Lições e riscos da grande enchente de 2024

Foram aparentemente muito bons os encontros do presidente Lula e seus ministros com o governador Eduardo Leite na terça-feira, 2 de maio de
2024, em Santa Maria, e no domingo em Porto Alegre (aqui incluindo o prefeito da capital). O assunto que os unia era a defesa do Estado diante da devastação produzida pelas chuvas e pelo transbordamento
generalizado dos cursos d’água.

Novidade, os dois encontros foram realizados em unidades militares. E quem foi colocado no comando das operações? Não um engenheiro civil ou um geólogo ou um médico, mas um general do Exército. Não um general
genérico, mas o atual vice-chefe do Estado Maior do Exército, general Hertz Pires do Nascimento, nascido em 1963 no Rio de Janeiro. Ora, se estamos sendo atacados – não de surpresa ou inesperadamente – por poderosas forças da Natureza, nada mais lógico do que empregar a logística militar. Afinal, o que está em jogo não é somente a vida das pessoas, mas a integridade dos recursos naturais do território nacional. Resta agora esperar os desdobramentos dessa mudança numa democracia periclitante e historicamente ameaçada pela insubordinação militar.

Entretanto, embora contenha riscos à luz de acontecimentos recentes e antigos, essa nova organização das coisas faz sentido, pois vivemos uma
situação equivalente a um ataque de guerra desfechado, no caso, por elementos tri-perigosos: a chuva em volume suficiente para bagunçar a vida de milhares de pessoas por meio de enchentes destruidoras de cidades, estradas, pontes, postes e lavouras. É certo que não temos aqui
incêndios, vulcões ou terremotos, mas podemos  comparar a situação atual a um tsunami ao contrário. Um tsunami que não veio do oceano, mas das nuvens, das cabeceiras dos rios. Um fenômeno natural turbinado pelo
desprezo humano pelo equilíbrio ambiental. De agora em diante, é preciso ficar em guarda.

E pensar que toda essa desastreira veio ocorrer no estado pioneiro na criação de leis ambientais. Penso em José Lutzenberger, desde 2002 sepultado no perímetro da Fundação Gaia, em Pantano Grande. Me pergunto
o que ele diria dessas enxurradas e de tudo que faz parte do quadro que estamos vivendo. Ele foi comparado a um profeta ecológico. É natural, agora, pensar que as mais recentes catástrofes climáticas no RS sinalizam a necessidade de encarar a emergência não como uma batalha eventual, mas como uma guerra permanente pela restauração do equilíbrio ambiental. Faz sentido, portanto, incumbir as Forças Armadas de coordenar os esforços para tirar a população do sufoco, sem deixar as
coisas ao deus-dará, com milhares de fios desencapados à mercê de ocorrências deletérias. Sou da mesma geração de Lula e logo não estaremos mais aqui, mas eu gostaria que fôssemos lembrados como aquele tipo de pessoa que lutou pelo bem comum e teve coragem de afrontar os poderosos que só pensam em dinheiro. Sim, Lula está tendo a rara oportunidade de enquadrar os malfeitores do meio ambiente. Pode alguém argumentar que ele se
aproveitou do momento para promover um grande lance de fundo eleitoral, mas não dá para duvidar de sua sinceridade ao ouvir o que ele disse ao prefeito de Faxinal do Soturno, no final da reunião de quinta em Santa Maria. Poderia ter deixado passar a queixa do gestor municipal, mas com poucas palavras o confortou e prometeu ajuda.
Estamos focalizando momentaneamente o Rio Grande do Sul, mas o ciclo das emergências climáticas está rolando em todo o planeta. É quase como um ataque alienígena. A tarefa de salvação é gigantesca e não se resume à pós-enchente. Há toda uma correção de rumos a fazer. É preciso identificar os vilões ambientais e processá-los para que não se perpetue esse estado de coisas. Falemos dos especuladores imobiliários urbanos. Dos administradores públicos lenientes. Dos praticantes da agricultura predatória, autora impune de desmatamentos e ocupação de banhados. Os agricultores não agem sozinhos ou isolados. Eles operam segundo uma lógica determinada pela indústria de insumos e máquinas. Seguem um modelo implantado desde o início do século XX, a partir dos EUA e da Europa e que vem incorporando grandes áreas da Ásia, da América e da África. O Brasil é caudatário e refém – prazeroso – dessas perversões
empresariais que incluem as revendas agropecuárias, a aviação agrícola, os bancos liderados pelo BB, os governos em geral e até instituições de pesquisa como a Embrapa. É um sistema poderoso que literalmente tratora os recursos naturais, destrói as matas ciliares, contamina os cursos d’água e os lençóis freáticos. Ninguém está imune às forças da natureza, mas o bom senso indica que é preciso dar um basta ao despautério ecológico. É um direito das novas gerações receber um ambiente limpo.

Por arriscada que seja, a gestão militar das operações de salvamento dá às Forças Armadas um bom motivo para trabalhar pela maioria da população ameaçada pelo “inimigo ambiental”. Que seja bem sucedida e não ceda a
tentações fora da ordem democrática constitucional. Essa situação que se agrava sem remédio deixa claro que está na hora de reformular o conceito de segurança nacional. Não faz sentido manter as Forças Armadas em quartéis à  espera de um improvável ataque militar inimigo. Está tudo sob controle, menos o vetor ambiental.

Estamos cansados de saber que as potências lutam para impor a dominação econômica, mas o verdadeiro inimigo agora é o risco de decomposição do equilíbrio ecológico via distúrbios climáticos, poluição desenfreada e outros problemas, entre os quais se alinham crimes praticados por brasileiros mancomunados com estrangeiros – para citar um caso extremo, o garimpo em reservas indígenas, a mineração na Amazônia e outros crimes ecológicos em todos os biomas nacionais, do Pampa ao Semiárido.

GERALDO HASSE/ Embolou o meio de campo

Geraldo Hasse

Apareceram recentemente na mídia alguns especialistas — antes pouco visíveis — no estudo das Forças Armadas, cujo humor costuma ser medido a partir de algum resmungo de um almirante, um brigadeiro ou um general.

Depois de alguma declaração atemorizante de um alto oficial sobre isso ou aquilo, sucede-se um jogo de “não foi nada disso” e (nem) tudo volta ao que era antes nos quartéis.

Sem nenhuma movimentação de tropas, somente com palavras, as FA se mantêm ultrapresentes no cenário político como apoiadoras, fiadoras, participantes e/ou beneficiárias do governo eleito em 2018.

Não surpreende que muitos analistas falem do risco de um golpe militar para manter Jair Bolsonaro e/ou Hamilton Mourão no poder a partir de 2023. Com ou sem eleições, o que estaria por trás desse jogo seria o chamado Partido Militar.

Tudo parece possível, mas está faltando uma análise sociológica do panorama político.

Ou, seja, como chegamos a isso que aí está: um ex-militar desclassificado na presidência, depois de um jurista (Temer), uma economista (Dilma), um dirigente sindical (Lula), um professor de sociologia (FHC), um playboy alagoano (Colllor), um político mineiro (Itamar), um prócer maranhense (Sarney)…

E ninguém sabe como sairemos dessa sinuca, já que os responsáveis pelo poder constitucional parecem amedrontados, como se não acreditassem na própria capacidade de reação.

A única possibilidade de extirpar o mal pela raiz está nas mãos do Senado, que pode encaminhar um processo de impedimento do presidente, mas a credibilidade do parlamento é tão baixa que, mesmo contando com o apoio do Judiciário, é possível que a proposta de impicho não seja aprovada.

Além disso, por cima de tudo, há a incógnita das Forças Armadas, que foram cooptadas e estão acumpliciadas ao governo em sua incrível marcha para detonar as bases da democracia e desmanchar os direitos das maiorias em benefício de detentores de privilégios históricos.

Falta ainda dimensionar a terrível aliança que se formou entre militares e políticos — o presidente Jair atua nas duas categorias, embora tenha sido expulso do Exército –, secundados por religiosos e milicianos atuantes em largas periferias urbanas.

Embora sejam recentes, essas parcerias sinistras têm raízes históricas e trazem até nossos dias um grau altíssimo de predisposição à violência contra os cidadãos indefesos e as comunidades desassistidas.

Na realidade, desde os tempos coloniais há uma tolerância com a violência dos coronéis rurais contra os camponeses, dos policiais contra o povo humilde.

O escritor Graciliano Ramos reclamou dos “amarelos” fardados em suas obras de ficção; João Ubaldo Ribeiro também mexeu nesse angu em seu romance Sargento Getúlio, mas a cultura da violência e a tolerância com a truculência se agravaram nos últimos 50 anos.

Uma ponta desse processo apareceu surpreendentemente no livro Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior,  premiado como o melhor romance brasileiro de 2020.  É uma história de quilombolas que se passa no interior da Bahia.

O Esquadrão da Morte mantido por policiais civis e o DOI-Codi militar aprofundaram a prática de crimes hediondos perdoados pela Anistia de 1979 até que a eleição de Bolsonaro veio para “legalizar” a exceção vigente. Aparentemente, estamos a um passo da baderna sob tutela militar.

É um quadro similar ao da ditadura, mas agravado pela ascensão do milicianismo.

Por falar em milícias, falta uma análise desse segmento armado e ativo à margem das leis ou em substituição a leis não observadas pelas autoridades competentes.

Até agora ninguém desvendou o alcance, a envergadura e a profundidade desse exército privado atuante abertamente no RJ e presente também em outros estados com assustadora liberdade.

Os milicianos são jagunços urbanos que passaram a trabalhar na ilegalidade e até na clandestinidade. Segundo consta, muitos dos seus quadros, especialmente os chefes, seriam egressos das Forças Armadas e das polícias militares e civis, das quais foram excluídos por mau comportamento – caso do atual presidente.

Esses ex-militares passaram a operar com serviços de proteção a comerciantes (nome brando do achaque trivial), da chantagem armada, incluindo distribuição de drogas, venda de GLP e sinal de TV. Assim se tornaram “donos” de bairros em que os serviços públicos não estão presentes ou funcionam mal.

Esse sistema de privatização montado à sombra de esquadrões da morte civis e militares reivindica os mesmos direitos operacionais de empreiteiros e outros empresários que manipulam concorrências, tocam obras públicas com sobrepreço e/ou aditivos escorchantes, sonegam impostos e praticam lobby, conchavo, propina, suborno e conspiração em conluio com funcionários públicos e parlamentares.

Se os grandes podem, por que os milicianos não poderiam impor regras e taxas às comunidades desservidas pelo Estado? Essa é a pergunta-base de suas operações. Lembram-se dos versos de Chico Buarque falando das “tenebrosas transações” feitas pelos “pigmeus do bulevar”?

Vai passar, dizia o poeta, mas o que se passou foi o aumento da impunidade. No fundo, os milicianos pretendem ser impunes como os empresários privilegiados do nosso capitalismo periférico protegido por um sistema político dominado pelo dinheiro.

Tornou-se lamentavelmente real a frase-piada do humorista Barão de Itararé: “Restaure-se a moralidade ou nos locupletemos todos”.

Tico-tico no radar da Águia

Geraldo Hasse
Toda vez que surge uma notícia como essa – “Boeing quer fazer acordo operacional com a Embraer” – vem à minha lembrança a frase de um empresário do interior paulista a propósito da abertura da economia brasileira aos capitais internacionais.
Por volta de 1982, quando eram fortíssimas as pressões para “entregar” ativos nacionais ao capital estrangeiro, aquele empresário disse: “Sou a favor da preservação das empresas brasileiras, mas o Brasil bem que pode seguir o caminho do Canadá, que adotou o dólar como moeda canadense e a bandeira dos Estados Unidos como símbolo nacional”.
Ele acreditava que o Canadá havia feito uma opção inteligente, tornando-se uma espécie de protetorado ianque com alto nível de vida – uma colônia moderna, por assim dizer, com muito mais peso econômico do que outros países anexados pelos EUA, como o Havaí e Porto Rico, para citar apenas territórios americanos. Além disso, o Canadá desfruta de alguns luxos, como a relativa autonomia da província francesa de Quebec. Com sua mania de bancar o independente, o governo canadense autorizou a indústria aeronáutica Bombardier a fazer uma aliança estratégica com a Airbus francobritânica. A Boeing não gostou e resolveu fazer uma proposta à Embraer, a grande concorrente da Bombardier no mercado de jatos comerciais de 100 a 150 assentos.
E daí?
Daí que não há muitos meios de escapar da voz de comando emitida por Washington. Mais de 30 anos atrás o mesmo empresário paulista dizia realisticamente que “tudo volta para Manhattan”, numa alusão direta ao poder do dólar não apenas sobre a economia mundial, mas sobre o poder político das nações, os movimentos ecológicos e todos os serviços (justiça, diplomacia, segurança, educação, saúde) tutelados pelo Império ianque com a cumplicidade de seus sócios em Bonn, Londres, Tóquio etc.
Infelizmente, já nos acostumamos com a ingerência ianque nos negócios internos de outros países como Afeganistão, Coreia do Sul, Cuba, Guatemala, Honduras, Iraque, México, Nicarágua, Síria, Turquia, Vietname etc. E a pergunta da hora é: nessa batida, onde vamos parar?
Estamos vendo agora que a governança norte-americana impõe seus valores (e interesses) até sobre o mundo da bola (FIFA), que sempre desfrutou de total liberdade.
Logicamente, faz parte do jogo enquadrar o Brasil, um dos dez maiores PIB do mundo e dono de uma das principais reservas de petróleo do planeta.
Assim, se a gigantesca Boeing deixou claro que está a fim de assenhorear-se da Embraer, a única coisa a estranhar é que o chefe de plantão no Palácio do Planalto tenha resolvido dar o contra.
Se o que caracteriza o governo-tampão presidido por Michel Temer é a submissão à vontade do(s) Mercado(s) – veja o que está acontecendo com a Embrapa, a Petrobras e a Eletrobras –, como se explica esse súbito NÃO?
Pode-se desconfiar que o NÃO dele seja um despiste ordinário para ganhar tempo — a clássica colocação de dificuldades para vender facilidades.
Mas há outra hipótese para a negativa presidencial: é que o meganegócio aeronáutico não agrada aos militares, já que a operação da Embraer tem a ver com a segurança nacional, ou seja, afeta de modo agudo a soberania nacional.
Em outras palavras, o negócio da Embraer foge à alçada do presidente em exercício.
Falta-lhe teto para esse voo.
Como na fábula célebre, o rei ficou nu.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Deveis ter sempre em vista que é loucura o esperar uma nação favores desinteressados de outra; e que tudo quanto uma nação recebe como favor terá de pagar mais tarde como uma parte da sua independência”.
George Washington, citado por Golbery de Couto e Silva na página 62 de seu livro “Geopolítica do Brasil” (Editora José Olympio, 3ª.edição, 1981)
 

Os pingentes 3 – Aprimorando a arte das panaceias populares

GERALDO HASSE

“O que é um peido pra quem está cagado?”, murmurou o senador, enquanto vasculhava os bolsos em busca de um trocado. Ele gostava dos ditados populares, desses que numa frase sintetizam uma situação ao mesmo tempo simples e complexa.

Por um momento, sentiu que faria bem para seu ego, seu id e seu superego ajudar aquela pobre criatura que se metera em sua frente com uma braçada de alvos panos de cozinha.
Nos quatro bolsos das calças e nos quatro bolsos no paletó, o bem votado não encontrou o que procurava.
Infelizmente para a pobre vendedora-pidona, ele só tinha notas graúdas, além dos cartões de crédito. O que fazer?
Dar-lhe uma nota de 50 pegaria mal. De 100, nem pensar.
“Compra pra me ajudar, Doutor”, exclamou a mocinha, já pressentindo o NÃO.
Seis panos por 10 reais: uma das maiores pechinchas do Brasil contemporâneo.
Desde o final do século XX proliferam nas ruas os vendedores dessa utilidade doméstica.
Das eleições de 2014 para cá, vender panos de cozinha se tornou uma sugestão metafórica para o país, como se esses humildes ambulantes estivessem a propor uma limpeza geral.
“Minha querida”, disse o senador, “infelizmente não tenho trocado”.
“Então me dá uma moeda, pelo amor de Deus…”
Penalizado, o político olhou para um dos seguranças que lhe abria a porta do carro e mandou:
“Cara, ajuda aí a mocinha que depois a gente acerta…”
“Dotô, também tô desprevenido…”, miou o hércules.
Então, virando-se para a vendedora de panos, o senador disse:
“Moça, infelizmente, não podemos ajudar. Fica para a próxima, está bem?”
“Desculpe, Doutor”, falou a moça. “Não vai ter próxima vez. Nem pra mim, nem pro senhor.”
Por essa fala o senador poderia ver o quanto está sujo no conceito popular mas tudo indica que ele perdeu a capacidade de se autoavaliar.
Fechada a porta do carro oficial, a imagem do político desapareceu atrás dos vidros fumê.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Mais cedo ou mais tarde todo político corresponde aos que não confiam nele”
Millôr Fernandes

Os pingentes 2 – o que fazer pelos desvalidos

GERALDO HASSE
Nos ônibus urbanos e intermunicipais não entram pedintes nem catadores. Pedestres pela própria natureza, eles não têm dinheiro para pagar a passagem.
Já nos trens dos metrôs circulam pedintes e vendedores de guloseimas que constrangem os passageiros com relatos sobre suas tragédias existenciais.
Nos shopping centers não há pedintes. Nem catadores.
A reciclagem de resíduos está embutida na rotina operacional dos mais de 500 shoppings centers existentes no Brasil.
Veja os funcionários da limpeza desses estabelecimentos comerciais: eles trabalham uniformizados, com luvas e crachás de identificação, sob o olhar vagamente ausente do público frequentador.
Por conseguinte, para os pedintes e catadores restam apenas as ruas, onde também atuam, bastante à vontade, assaltantes, trombadinhas, vigaristas, descuidistas e malandros em geral.
Ou, então, em último caso, sobra para os pobres desvalidos a chance remota de conseguir uma vaga em hospital público, após atropelamento, facada ou acesso de justa ira.
Devia haver um canal de consolo ou desafogo para essa gente sem eira nem beira.
Se aos índios foram outorgadas reservas naturais e aos quilombolas áreas de sobrevivência, aos demais desvalidos de meios de subsistência deveriam ser assegurados direitos semelhantes, por simples isonomia.
Abrigo para os sem teto.
Alimento para os famintos.
Escola para os órfãos da educação e cultura.
Postos de saúde para os enfermos do corpo e da alma.
Terra para os nostálgicos da vida rural.
E assim por diante, até zerar as carências dos caídos no acostamento das estradas da vida.
Nada mais justo do que operar em favor da equalização do bem estar.
Enquanto os governos continuarem se preocupando prioritariamente com a bonança das elites, a base da população vai sonhar com um redentor.
Piedade: direito do povo, obrigação do governo, missão do estado.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Na linha de extrema pobreza que leva em conta o percentual de brasileiros com renda inferior a R$ 70 por mês, valor adotado pelo Programa Brasil Sem Miséria, o aumento de brasileiros na extrema pobreza (…) elevou o percentual de miseráveis de 3,6% para 4% ou 8,05 milhões.”
Trecho de notícia de O Globo de 5 de novembro de 2014; os dados constavam do site do IPEA, órgão oficial

Os pingentes

Geraldo Hasse
De manhã cedo, antes das sete horas, o cidadão com um saco plástico às costas pede “dois real”.
“Só tenho um. Serve?”
Ele pega a moeda, agradece e segue seu caminho.
Com mais alguma doação ali adiante, talvez inteire o valor de um café-com-pão.
Enquanto caminha, vai procurando latas para encher o saco preto.
Precisa de 70 latinhas para fazer o quilo que lhe renderá R$ 1.
Há 20 anos, bastavam 40 latas para inteirar um quilo.
A tecnologia aliviou o peso dos recipientes de bebidas, obrigando os catadores a dobrar suas buscas para alcançar o mesmo resultado. Isso sem falar que o número de catadores mais do que dobrou.
Como disse em 1970 o general Medici em visita ao Nordeste, “a economia vai bem, mas o povo vai mal”.
São árduas e extenuantes as jornadas dos catadores, mas muitas pessoas os consideram “vagabundos”.
Na real, são pingentes caídos do trem da economia, o qual vai descartando e excluindo criaturas inaptas para a vida concorrencial.
A maioria nunca teve qualificação ou a perdeu em algum momento de transição tecnológica, como a atual. Os egressos da vida rural praticamente perdem o saber e a utilidade na vida urbana. Alguns se arranjam como jardineiros, mas faltam jardins para tantos marginalizados.
No desamparo, muitos se acomodam em casas de parentes, montam barracos ou vão para baixo de viadutos, onde passam a fazer parte de uma categoria crescente: os moradores de rua.
Não raro se afeiçoam a uma droga que acaba por lhes destruir a saúde, abreviando sua passagem pela vida – se a isso se pode chamar de vida.
Dos 13 milhões de desempregados da economia brasileira, quantos esmoreceram e foram catar lata, papelão e plástico?
E quantos simplesmente se acocoram nas proximidades de bancos e supermercados, à espera de uma ajuda, pelo amor de Deus?
Se a população sem emprego dobrou nos últimos três anos, é razoável supor que o número de catadores, moradores de rua e similares também se multiplicou por dois ou mais.
O fenômeno é constrangedor. Há um pedinte que passa algumas horas na porta de uma agência Caixa, onde se limita a interpelar cada pessoa que passa na calçada com um bordão ultraeconômico:
“Tem um real aí, amigo?!”
É um morador de rua, sem roupa limpa para trocar, embora saiba que, na pior das hipóteses, pode buscar abrigo num albergue público que além de cama, banho e roupa limpa, lhe oferecerá pela manhã, para que não saia à rua sem nada nas mãos, uma mamadeira contendo água e algum aditivo.
Na realidade, os serviços de assistência social das prefeituras ou de entidades beneficentes não dão conta dessa situação emergente. E cresce o número de políticos dispostos a ignorar o problema social que se tornou crônico.
São os doidos que vagueiam com um cobertor sobre os ombros, sem coragem de pedir.
É o portador de cartaz de papelão – Ajuda Para Comprar Comida – que fica corujando os motoristas nas esquinas.
O vendedor de drops nos sinais de trânsito.
Os malabares de esquina.
Os guardadores de vagas, os lavadores de carros e tantos outros.
O Brasil precisa incluir o espírito de solidariedade em sua política econômica para que, em algum dia do futuro, os filhos de todos esses pingentes tenham educação, saúde, emprego e demais benesses da civilização.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Quando cai a noite, nossa raiva fala liberdade!”
Frase pichada em muro de Porto Alegre e assinada pelo símbolo anarquista (um A dentro do O maiúsculo)
 

Os golpes se sucedem

Em plena era do GPS, a reforma trabalhista sugere multiplicar os “chapas” 
Todo mundo conhece os “chapas”, aqueles trabalhadores avulsos que fica(va)m na entrada das cidades à espera de caminhões carregados cujos condutores precisam de ajuda braçal e conhecimento de ruas de difícil acesso para fretistas temerosos de se perder em caminhos nunca dantes percorridos.
Ainda se veem “chapas” sentados à beira das estradas nas entradas das cidades mas a situação mudou de tal forma que, teoricamente, muitos desses trabalhadores avulsos podem ser convocados pelo telefone celular (para ajudar no descarregamento) enquanto o motorista chega facilmente ao seu destino usando o GPS.
Quando tem sorte, o “chapa” trabalha por algumas horas e volta para casa com uma féria semelhante à dos antigos estivadores contratados para executar tarefas avulsas em cais de portos alegres ou não. Com a diferença de que os estivadores são historicamente organizados em sindicatos, enquanto os “chapas” fazem parte do submundo dos trabalhos quase sem  amparo legal além dos direitos constitucionais quase sempre ignorados pelos empregadores.
Agora, com a flexibilização da legislação trabalhista, chegamos ao maior paradoxo da modernidade: enquanto os detentores dos meios de produção (e de transporte, no caso exemplar dos motoristas que ainda precisam dos “chapas”) desfrutam de crescentes facilidades para realizar seus objetivos, os trabalhadores sem recursos e sem qualificação ficam pendentes na beira do abismo que leva à servidão mais abjeta.
Eis o espírito que rege a reforma trabalhista: o governo, no afã de servir ao mercado – ou, seja, aos manobristas do dinheiro, que constituem uma minoria –, abre mão do exercício do seu dever constitucional de servir à maioria.
Que modernização é essa em que a maioria dos trabalhadores é obrigada a submeter-se a uma flexibilização degradante enquanto os ditos empreendedores são estimulados a realizar suas metas, ainda que passando por cima de normas ambientais, civis e até de bom senso?
Estes ganharão mais dinheiro que gastarão nos Estados Unidos e Europa, enquanto os trabalhadores, com a redução dos seus rendimentos, deverão se manter no consumo mínimo, o da sobrevivência pura e simples.
A construção da prosperidade das elites empresariais às custas das bases operárias é um retorno à era escravagista.  Não será assim que se construirá um país mais justo e igualitário, como está escrito na Constituição.
 LEMBRETE DE OCASIÃO
“Que dizer ainda do entusiasmo das empresas pós-industriais pelo telefone celular que permite suprimir, para os empregados, a distinção entre vida privada e tempo de trabalho?”
Paul Virilio no livro “A Bomba Informática”, de 1999

Solta a bola, Gilmar

geraldo hasse
Por acaso seria lícito um general atuar como empreiteiro de obras rodoferroviárias?
Poderia um agrônomo do Ministério da Agricultura atuar como vendedor de adubos?
Faria sentido um geneticista da Embrapa dar consultoria privada sobre sementes?
Teria cabimento um veterinário ou um zootecnista do serviço público de inspeção sanitária serem sócios de uma loja de produtos agropecuários ou darem plantão noturno em frigoríficos ou laticínios?
Como seria visto um professor da escola pública ou da universidade que aceitasse ser sócio de uma editora de livros didáticos por ele indicados?
Poderia um presidente da República manter-se no cargo quando são fortes as evidências de que tenha praticado atos vergonhosos antes e durante seu mandato?
Sim, responde o Senhor Bom Senso, nada disso teria cabimento num país normal ou, seja, um país que segue as normas, leis, códigos etc.
Pensando em todas as hipóteses acima aventadas, cabe perguntar diante de um caso concreto: deve o ministro Gilmar Mendes renunciar a seus postos no Judiciário para que possa exercer mais livremente suas atividades como empreendedor na área do ensino jurídico e/ou da “assistência técnica a tribunais”?
Sim, responde D. Norma, o ministro do Supremo deve largar a bola imediatamente a bem do serviço público, pois seu caso configura imoralidades como improbidade administrativa e tráfico de influência.
Resta saber quem vai lhe mostrar o cartão vermelho. O problema é que no Brasil a lei é para todos, menos para alguns eleitos pelos deuses.
Os bacanas se acostumaram a isentar-se das obrigações morais e das normas legais.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“A prisão ensina.”
Julio de Almeida, 87 anos, condenado a 60 anos de prisão na Ilha Grande, RJ, onde mora até hoje, mesmo depois da implosão em 1994 do prédio da penitenciária local.

Reforma trabalhista: retrocesso em dose dupla

Geraldo Hasse
Parece inacreditável mas, 130 anos depois do massacre dos trabalhadores de Chicago, episódio de 1886 que deu origem ao 1º de Maio e à jornada diária de oito horas de trabalho, nenhuma voz empresarial brasileira ousou condenar ou sequer questionar a reforma da legislação trabalhista proposta pelo governicho vigente e aprovada de cambulhada pelo Congresso. Das empresas e de seus órgãos representativos só vieram aplausos. Ou um silêncio cúmplice, nada mais.
Um século depois das greves operárias que sacudiram o Brasil em 1917, parece não haver neste país um único patrão progressista que esteja disposto a defender os direitos dos trabalhadores, esses que constituem a maioria da população…
Um século depois da revolução comunista de outubro de 1917 na Rússia, empreendedores, parlamentares e membros do Poder Executivo agem descaradamente a favor do desmanche do edifício social brasileiro, historicamente precário e instável.
Oitenta e cinco anos depois das primeiras leis sociais instituídas (a partir de 1932) por Getúlio Vargas, apenas sindicalistas e magistrados da Justiça do Trabalho se levantam contra o massacre trabalhista.
Empregados ou prestadores de serviços em regime cada vez mais precário, poucos jornalistas ousam denunciar, criticar ou condenar a temerosa sacanagem.
Dias atrás, em artigo no site 247, a jornalista Teresa Cruvinel, de Brasília, escreveu que o governo e seus aliados estão preparando o último passo de seu projeto antitrabalhador: acabar com a Justiça do Trabalho, cujos funcionários seriam transferidos para a Justiça Federal…
Parece que o projeto existe mesmo, tanto que juízes, procuradores e auditores fiscais do Trabalho se organizaram para resistir à aplicação da reforma que entra em vigor a partir de 11 de novembro.
Num encontro em Brasília, no final de outubro, cerca de 600 praticantes da JT criticaram vários pontos da reforma e terminaram por recomendar que os juízes interpretem as novas normas trabalhistas à luz da Constituição e demais balizas legais, inclusive os acordos internacionais de que o Brasil é signatário, para evitar que se perpetrem injustiças e que o retrocesso seja tão profundo quanto querem os reformistas bem representados no parlamento e no meio empresarial.
O Conselho Nacional de Justiça, que está sob controle de conservadores fieis ao comando neoliberal, prometeu enquadrar os magistrados “rebeldes”, que afinal constituem a última barreira legal contra o massacre dos trabalhadores.
Já se vê para onde caminhamos – para um duplo retrocesso:
1) o aviltamento do fator trabalho, se colocado em prática como autoriza a nova legislação, vai solapar as bases do mercado de consumo construído nos últimos 23 anos sobre a estabilidade da moeda brasileira e o crescimento da massa salarial.
2) a expansão das “relações trabalhistas informais”, como prevê a reforma, vai diminuir a arrecadação do FGTS, que não é apenas uma poupança dos trabalhadores, mas um fundo de fomento à habitação popular e à infraestrutura urbana. A cada ano, além de pagar resgates aos empregados demitidos, o FGTS custeia obras no valor de R$ 80 bilhões.
Ao mesmo tempo em que patrocina abertamente a causa antitrabalhista, a cegueira empresarial se alia ao governo antissocial para abrir brechas na legislação ambiental, de modo a facilitar empreendimentos potencialmente poluidores.
Atuando egoisticamente nas cabeceiras do processo econômico, os empresários praticam um crime duplo ao vilipendiar os recursos naturais e escrachar os recursos humanos. Operam assim para arruinar o que a geografia brasileira tem de melhor – os solos, os rios, a flora, a fauna e a população humana.
Mais do que uma enorme falta de espírito público, tudo isso significa cidadania zero, ausência de respeito humano, enfim, um genocídio.
Debite-se ao camaleão paulista Michel Temer tamanho atentado ao progresso da civilização brasileira.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Negrinho do Pastoreio,
acendo esta vela pra ti,
peço que me devolvas
a querência que perdi…”
Canção popular composta em 1957 pelo folclorista gaúcho Barbosa Lessa (1929-2002).
(Publicado originalmente no www.seculodiario.com)