GERALDO HASSE
O bageense Nelson Rolim de Moura, que vive há quase 50 anos em Florianópolis, onde toca a sua própria Editora Insular, está engajado de corpo e alma num projeto sem precedentes na história literária brasileira: o de escrever sozinho 38 livros sobre jornalistas mortos ou desaparecidos pela ditadura de 1964-85.
Começando em 2022, já lançou os quatro primeiros volumes com as biografias de Alberto Aleixo, Alexandre Baumgarten, Antonio Benetazzo e Carlos Alberto de Freitas, este lançado em outubro último.
Promete para maio de 2025 o quinto — sobre Carlos Marighella. E seguirá em ordem alfabética até chegar a Vladimir Herzog, o número 36, e aos dois últimos: Walter de Souza Ribeiro e Wanio José de Mattos.
Com exceção de Alexandre Baumgarten, vítima de uma queima de arquivo, todos os biografados eram de esquerda.
Não são biografias focadas só na vida das pessoas; todas servem como pretexto para amplas contextualizações históricas. No caso de Alberto Aleixo, por exemplo, que foi o responsável pelo jornal Voz Operária, do PCB, o autor aproveita para juntar fragmentos da história da imprensa comunista no Brasil e no mundo.
Antes de iniciar em 2022 essa série denominada Coleção Ponto Final*, Rolim lançou em 2015 “Não Esquecemos a DITADURA – Memórias da Violência”, livro de 360 páginas em que conta a história do período mais agitado de sua vida entre seus 18/30 anos.
Nascido em Bagé em 1951, filho de um coronel do Exército, entrou em 69 na Faculdade de Engenharia em Porto Alegre e logo se envolveu nas lutas estudantis.
Entusiasmado com o “Diário de Che Guevara”, emprestado por um colega da Geologia, aderiu ao PCdoB. “Vagas para os excedentes dos vestibulares” foi uma das principais reivindicações em panfletos e passeatas.
Em 71/72, acabou respondendo pela direção do DCE após a expulsão de quatro líderes de centros acadêmicos da UFRGS.
Em setembro de 1973, sentindo-se isolado e em perigo no Rio Grande do Sul, decidiu escapar. A pé. Quem o levou à fronteira com a Argentina foi um tio.
“Ele me deixou na cabeceira da ponte em Uruguaiana. Pedi que ficasse na camioneta Rural Willys observando se eu chegaria ao outro lado do rio”, lembra Rolim, que temia ser pego na travessia para Paso de Los Libres.
De trem, chegou a Buenos Aires. Pensava em ir para Santiago confraternizar com a brasileirada lá acampada quando a capital argentina começou a receber fugitivos do golpe militar com que o general Pinochet derrubou o governo de Salvador Allende, eleito em 1970.
Acolhido por peronistas influentes, especialmente Jorge Abelardo Ramos, autor do clássico “História da Nação Latino-americana”, ficou na Argentina trabalhando em livrarias e gráficas da capital, de Tucuman e de Salta. Para todos os efeitos, era chamado de “Juan”, militante do Partido Socialista da Izquierda Nacional (PSIN).
Assim passou a sobreviver de livros numa época de grande efervescência em Buenos Aires, a cidade que possuía mais livrarias do que no Brasil inteiro, segundo se dizia.
Em fins de 1975, impressionado com a confusão política na Argentina, que caminhava para o golpe militar de março de 76, buscou refúgio no Uruguai, mas foi preso na entrada do país.
Ficou vários dias vendado em cadeias de passagem, no meio de tupamaros, mas se lembra de ter entrevisto por baixo da venda as palmeiras existentes na famosa prisão de La Rambla.
Um dia, foi embarcado num jipe militar em que viajou vendado de Montevideo a Rivera-Livramento. Soube depois que o objetivo da viagem era entregá-lo às autoridades militares brasileiras. Quem o levou foi um dos chefes do setor de informações do Uruguai.
Por incrível que possa parecer – naquele momento já se articulava a Operação Condor –, o preso não foi recebido.. A recusa brasileira foi veemente.
Alguns dias depois de voltar de Rivera, onde ficou trancado num caminhão-baú, Rolim foi escoltado até o aeroporto de Montevideo, onde o colocaram num avião comercial da Varig para Porto Alegre.
Era 15 de dezembro de 1975, o da em que foi recebido efusivamente por militantes que haviam feito campanha por sua libertação. Entre eles, encontravam-se familiares, estudantes e políticos do MDB, liderados na época por Pedro Simon.
De volta ao seu ninho estudantil, Rolim recontatou amigos e colegas de antes, mas não teve ímpeto para retomar a vida estudantil — faltavam dois anos para concluir o curso de engenharia.
Em busca de trabalho, um dos seus bicos mais gratificantes foi no Teatro de Arena, onde cumpriu tarefas na portaria e nos bastidores de peças como Mockinpott e nas Rodas de Samba das sextas-feiras à meia noite, sob a direção de Jairo de Andrade.
Durante o dia, o amigo Luiz Oscar Matzenbacher lhe arranjou um serviço na seção de fotocomposição do diário Zero Hora, onde ia tudo aparentemente bem até que, do sobsolo onde trabalhava, viu subir as escadas rumo à redação do jornal o delegado Pedro Seelig, que tinha contatos na direção do jornal. E agora?
Temendo ser ele, Nelson Rolim de Moura, o motivo da ilustre visita, abandonou seu posto e tomou o rumo de Florianópolis, onde já trabalhavam vários jornalistas saídos do Rio Grande do Sul.
Tudo isso e muito mais está contado detalhadamente no livro “Não Esquecemos a DITADURA – Memórias da Violência” (Insular, 2015). Como suas anotações do exílio haviam caído nas mãos da polícia uruguaia, ele recorreu à memória e buscou amparo em relatos alheios para recontar acontecimentos que fazem parte da história do Brasil.
Numa narrativa trepidante, combina fatos pessoais com informações em tom levemente panfletário de esquerda. “Esta é uma longa crônica na primeira pessoa, como quase todos os livros publicados sobre esse período…” (refere-se à ditadura militar brasileira).
“Não queria me colocar no papel central desta história, porém esta me pareceu a forma mais simples de desenvolvê-la, até porque meu testemunho pessoal é o fio condutor em quase toda a narrativa”, orientada explicitamente por quatro faróis históricos: as revoluções socialistas de 1917 na Rússia, de 1949 na China, de 1959 em Cuba e dos anos 1970 no Chile de Allende.
Como lanterna de popa, reconhece a Revolução Francesa de 1789, que consagrou os direitos universais do Homem. Nesse livro de memórias, escrito quando estava completando 60 anos, ele afirma ter pressa de escrever porque “o tempo está passando muito rápido”.
EM FLORIANÓPOLIS
Quando chegou à ilha de Santa Catarina, no final dos anos 70, Rolim começou como repórter no jornal O Estado, o mais importante diário catarinense.
Na redação se tornou amigo do gaúcho Mário Medaglia e do catarinense Cesar Valente, que havia estudado jornalismo em Porto Alegre. Naquele momento, vários jornalistas do Rio Grande do Sul chegavam para trabalhar no Diário Catarinense na capital e no Jornal de Santa Catarina em Blumenau, ambos criados pelo grupo RBS.
Alguns dos migrantes chegaram para dar aulas no curso de Jornalismo da incipiente UFSC.
Além de escrever, inclusive para sucursais de jornais de fora, Rolim se matriculou no curso de História, mas não foi adiante nesse intento estudantil. Manteve na universidade a namorada Iara Germer, que se tornaria a mãe de seus quatro filhos.
Na entrada dos anos 80, participou como sócio-fundador do mensário nanico Afinal, que não foi além de 13 edições. “Nós mudávamos de gráfica a cada edição para evitar a apreensão do jornal”, lembra ele.
O primeiro número foi composto pela Coojornal de Porto Alegre. O último, por uma gráfica de São José (SC), cujo dono lhe cobrou caro e o entregou à polícia.
Na sequência, ele arranjou serviços como assessor de imprensa e trabalhou na editora da UFSC, o que lhe abriu caminho para a fundação de sua própria editora, a Insular, seu principal meio de sobrevivência a partir da década de 1990.
Coleção “Ponto Final”
Após o lançamento do seu livro de memórias, há nove anos, Rolim concluiu que estava na hora de desovar material acumulado ao longo de sua vida como editor de livros – a Insular tem um acervo de 1500 títulos.
Confessa então que, ao transpor os 60 anos de vida, decidiu se desfazer de suas quatro paredes de livros, ficando somente com material sobre “os crimes da ditadura”.
Sem um plano claramente delineado, escrevia freneticamente quando um de seus quatro netos lhe sugeriu que, em vez de fazer um catatau imensurável sobre as lutas contra a ditadura, dedicasse um livro a cada um dos seus personagens.
Chegou assim à lista de 38 nomes.
Ao se voluntariar como historiógrafo, não teve tempo nem recursos para colher depoimentos, atendo-se apenas ao acervo bibliográfico e à documentação disponível, além de imbuir-se da vontade de realizar o projeto, iniciado em pleno isolamento imposto pela pandemia do coronavirus.
Entretanto, a experiência como editor de livros lhe deu amplo acesso a consultas de arquivos de jornais, obras literárias e teses acadêmicas.
Além disso, ele tem conclusões próprias sobre a dinâmica da História. “A imprensa sempre foi a alma dos partidos e das organizações de esquerda”, escreveu na biografia de Alberto Aleixo, relembrando o nascimento do jornal A Classe Operária, lançado pelo recém-fundado PCB em 1º de maio de 1925, quando o mineiro Aleixo, nascido em Belo Horizonte em 1903, já trabalhava em jornal no Rio.
Para produzir tantos livros em tão pouco tempo – se lançar dois livros por ano, terminará sua tarefa dentro dos próximos 16 anos –, Rolim dorme cedo e acorda antes das 4h da manhã para escrever.
No início do horário comercial matutino vai para a Insular, empresa familiar onde se ocupa sobretudo de pesquisas para sua obra histórico-literária,
A rotina da editora está aos cuidados de dois eficientes funcionários: o filho Daniel e a secretária Renata.
*A LISTA DE BIOGRAFIAS DA COLEÇÃO PONTO FINAL:
-Alberto Aleixo
-Alexandre Von Baumgarten
-Antonio Benetazzo
-Carlos Alberto de Freitas
-Carlos Marighella
-Carlos Nicolau Danielli
-David Capistrano da Costa
-Edmur Péricles Camargo
-Elson Costa
-Flávio Ferreira da Silva
-Gerardo Magela da Costa
-Gilberto Olimpio Maria
-Hiran de Lima Pereira
-Ieda Santos Delgado
-Isarael Tavares Roque
-Jane Vanini
-Jayme Amorim de Miranda
-Joaquim Câmara Ferreira
-José Toledo de Oliveira
-Lincoln Cordeiro Oest
-Luiz Ricardo da Rocha Merlino
-Luiz Ghilardini
-Luiz Inácio Maranhão Filho
-Mariano Joaquim da Silva
-Mario Alves de Souza Vieira
-Mário Eugenio de Oliveira
-Mauricio Grabois
-Nestor Veras
-Norberto Armando Habegger
-Orlando Bonfim Junior
-Pedro Domiense de Oliveira
-Pedro Pomar
-Rui Pfutzenreuter
-Sidney Fix Marques dos Santos
-Thomaz Antonio Meirelles
-Vladimir Herzog
-Walter de Souza Ribeiro
-Wanio José de Mattos