Nesta semana, a gestão do presidente dos Estados Unidos (EUA), Donald Trump, aplicou punições previstas na lei Magnitsky, que desrespeita a soberania do Brasil, atingindo o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. As sanções econômicas implicam, entre outras, o bloqueio imediato de todos os bens e interesses em bens de Moraes que estejam em território estadunidense. “Ter como alvo um juiz em exercício em uma democracia em funcionamento é algo sem precedentes”, escreve em seu editorial a revista britânica “The Economist”.
Trump também anunciou a imposição de tarifas de 50% sobre produtos brasileiros a partir de 6 de agosto. No entanto, como geralmente ocorre nos tarifaços estadunidenses ao redor do mundo, houve um recuo, com quase 700 exceções para evitar mais pressões internas nos EUA. Foram excluídas 44,6% das exportações brasileiras em valores para os Estados Unidos, divulgou o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.
Esses 700 itens, entre os quais aviões, celulose, suco de laranja, petróleo e minério de ferro, continuarão a pagar a tarifa de até 10% definida em abril passado. As medidas incidirão apenas sobre 35,9% das exportações brasileiras para os Estados Unidos.
Durante a segunda administração Trump (até agosto de 2025), os Estados Unidos impuseram tarifas a cerca de 190 países e territórios, dos quais o Brasil recebeu a mais elevada. A padrão aos parceiros comerciais é de 10 % e aproximadamente 57 receberam taxas mais elevadas e individualizadas, conhecidas como “tarifas recíprocas”.
Essa mistura de tarifaço com pedido de anistia para Jair Bolsonaro, punição para o ministro Alexandre de Moraes e defesa das big techs (como Google, Amazon, Apple, Meta e Microsoft), deixa em segundo plano na mídia dois importantes motivos desses atos do governo Trump. O primeiro é fiscal. A administração estima que a arrecadação total de tarifas pode alcançar 300 bilhões de dólares até o final de 2025. É preciso ressaltar que essas tarifas são cobradas de importadores registrados nos EUA e geralmente repassadas a consumidores ou empresas estadunidenses. Portanto, embora gerem receita adicional, essas tarifas podem desacelerar o crescimento econômico e reduzir outras fontes de impostos, afetar consumo e investimentos.
O outro motivo, talvez o mais importante, é atingir o grupo do Brics, do qual o Brasil é um dos fundadores, e manter o domínio da moeda norte-americana no mundo Ocidental. A Índia, integrante do Brics do outro lado do mundo, terá uma tarifa de 25% sobre seus bens exportados. O Brasil é fundamental para o sucesso do Brics no continente americano, chamado depreciativamente do quintal dos Estados Unidos.
Os países do Brics – Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Indonésia, tendo como países parceiros a Belarus, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Malásia, Nigéria, Tailândia, Uganda e Uzbequistão – buscam exatamente estimular o uso de suas moedas nacionais em transações internas, visando reduzir a dependência do dólar e aumentar a autonomia financeira.
Na 17ª Cúpula do Brics, realizada no Rio de Janeiro nos dias 6 e 7 de julho, sob presidência do Brasil, houve avanços na identificação de caminhos para a integração dos sistemas de pagamento entre os membros do bloco, incluindo a criação de um ecossistema financeiro próprio, com apoio de instituições como o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), em substituição a plataforma Swift, que viabiliza transferências e pagamentos internacionais, controlada pelos Estados Unidos.
Trump vê o Brics não apenas como um bloco econômico, mas como uma coalizão estratégica contra a hegemonia estadunidense. Suas ameaças têm o objetivo de dividir o grupo, impedir sua consolidação e punir economicamente os que desafiam os EUA, especialmente no contexto de um mundo cada vez mais competitivo e multipolar.
Altas transações
O domínio do dólar nas transações cambiais no mundo foi definido no final da 2ª Guerra Mundial e tornou-se efetivo a partir da década de 1970. Na famosa reunião secreta em Camp David, no estado de Maryland, 15 agosto de 1971, o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, deu o golpe fatal e acabou com o padrão ouro-dólar do regime de Bretton Woods e decretou o fim do regime monetário do pós-guerra.
Surgia uma nova moeda totalmente fiduciária, sem lastros no ouro e com a possibilidade de emissão via decreto. A moeda fiduciária só possui valor porque o governo, empresas e pessoas em geral atribuem algum valor a ela. Portanto, seu valor é baseado na autoridade e confiança do emissor. A partir daí, os países compradores dos títulos públicos estadunidenses passaram a financiar a economia norte-americana.
A dívida pública dos EUA passa de US$ 70,2 bilhões (valor da época) em cinco anos do governo de Richard Nixon (1970-1974) para US$ 126,9 bilhões em dois anos do governo Gerald Ford (1975-1976), pulando para US$ 226,6 bilhões no governo de Jimmy Carter (1977-1980). Nos dois governos de Ronald Reagan (1981-1988) a dívida explode para US$ 1.338,7 bilhões, que representou algo em torno de 80% da circulação monetária total no mercado interbancário internacional da época.
No artigo “A retomada da hegemonia norte-americana”, de 1997, a economista Maria da Conceição Tavares já explicava que o componente do déficit dos EUA é crescente graças à mera rolagem da dívida pública. “Esta dívida é o único instrumento que os EUA têm para realizar uma captação forçada da liquidez internacional e para canalizar o movimento do capital bancário japonês e europeu para o mercado monetário americano…O preço desta ‘estabilidade’ tem sido a submissão dos demais países à diplomacia do dólar e ajuste progressivo de suas políticas econômicas, aspirando o ‘equilíbrio global do sistema’”.
Mundo multipolar
A transição de um mundo unipolar para multipolar começa no pós-Guerra Fria, mas ganha força a partir da crise financeira de 2008, que abalou o poder dos Estados Unidos e o prestígio do modelo econômico neoliberal liderado por Wall Street. Ao mesmo tempo, a China mostrou resiliência econômica, com marcos decisivos nos anos 2010 e 2020.
Atualmente, os juros que a principal potência econômica mundial precisa pagar para conseguir crédito nos mercados se encontram em níveis altos e os investidores passam a questionar a sustentabilidade da dívida estadunidense. Atualmente, a dívida do país está em US$ 36,2 trilhões (R$ 196 trilhões), o equivalente a 120% do PIB, segundo o Tesouro dos EUA. A maior parte está nos EUA, mas um terço da dívida pública está nas mãos de países estrangeiros, principalmente Japão, Reino Unido e China.
Desde 2020, após uma primeira guerra comercial entre China e EUA, os chineses estão se desfazendo da dívida estadunidense para adquirir ouro. Enquanto o ouro é atualmente negociado em valores recorde, o dólar desvalorizou mais de 10% no primeiro semestre, sua pior evolução nesse período desde 1973.
Douglas Macgregor, coronel aposentado do Exército dos EUA, veterano da Guerra do Golfo e renomado estrategista militar, utilizou em um artigo a metáfora de “Versalhes sobre o Potomac”, (uma referência ao curso de água que banha Washington) para mostrar como os EUA — assim como a França pré‑revolucionária — se encontram num ponto de ruptura: uma elite desconectada, contas públicas insustentáveis e êxodo de confiança popular. Ele adverte que, sem reformas reais e disciplina fiscal, os EUA caminham para um cenário de crise comparável ao de 1789.