Senhor e Escravo/ Casa Grande e Senzala

João Alberto Wohlfart – Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de Filosofia no IFIBE
A crise política brasileira e o golpe na Presidente Dilma Rousseff podem ser lidos a partir de muitos vieses teóricos advindos da Filosofia, da Sociologia, da Economia, das Ciências Políticas e de outras áreas do saber. Podem ser lidos a partir de textos referenciais que a história do pensamento nos legou. O objeto do presente artigo é uma aproximação entre o texto da Dialética do Senhor e do Escravo, exposto por Hegel (1770-1831) no começo da Fenomenologia do Espírito, e a crise política vivida pelo Brasil na atualidade. Pensamos que este seja um viés teórico adequado para analisar criticamente o que está acontecendo no Brasil, principalmente no sentido de explicitar a lógica interna do processo e a articulação dos seus componentes.
A Fenomenologia do Espírito, uma obra que Hegel publicou no ano de 1807, expõe uma série de figuras que costuram o caminho pedagógico e racional entre a certeza sensível e conhecimento filosófico, entre a sensibilidade e o processo histórico. Uma das figuras de destaque muito conhecida e de decidida influência histórica nas lutas sociais e na formação da consciência histórica é a Dialética do Senhor e do Escravo. É uma figura que pode ser aplicada à composição teórica do círculo relacional entre o senhor capitalista e o empregado trabalhador, entre professor e aluno, entre mestre e discípulo, entre necessidade e liberdade, entre capital e trabalho, entre dominador e dominado, entre Casa Grande e Senzala etc.
Senhor e escravo são duas figuras verticalmente relacionadas numa situação de dominação do escravo pelo senhor. Nesta exposição, o senhor figura como o sujeito absolutamente livre, imediatamente relacionado consigo mesmo, autoconsciente de sua independência absoluta e alguém que usufrui de uma vida material de altíssimo nível. É sujeito de uma conta bancária gorda, dono de um apartamento luxuoso, carrão do ano na garagem e proprietário de uma grande fazenda. A sua independência e a sua capacidade de gerenciamento material lhe proporcionaram esta fortuna que adquiriu por merecimento próprio. Em razão disto, o senhor ostenta a consciência de liberdade e autonomia e despreza a sua negação absoluta, o escravo radicalmente incompatível com a sua condição.
O outro termo da relação é o escravo. Não possui nenhuma intuição de sua liberdade, rejeita a sua própria subjetividade e trabalha para o seu senhor. O trabalho dele lhe esgota fisicamente e somente recebe como recompensa de seu trabalho o suficiente para permanecer vivo, manter a sua força física de trabalho e continuar com a atividade de produzir para o seu senhor. Não se trata apenas de um duro trabalho executado no limite das suas forças físicas, mas esvazia a sua autoconsciência, a sua liberdade interior e interioriza a consciência do seu senhor como modelo que jamais conseguirá alcançar. No exercício do trabalho, o escravo não exerce a sua própria atividade, como se ela fosse uma materialização da subjetividade, mas exerce a atividade do senhor.
Entre o senhor e o escravo não se estabelece uma relação direta, pois entre eles está interposta a natureza. Ela aparece em dois momentos diferenciados. O primeiro, na condição positiva, é a natureza imediata tal como ela se estruturou como universo material; e o segundo, na condição negativa, enquanto transformada pelo trabalho humano e destinada ao consumo. Neste processo, o escravo se relaciona diretamente com a natureza positiva, pois com ela se confronta no ato do trabalho e de transformação. O escravo se depara com a dureza do objeto natural que necessita de muita força para ser superado. O senhor, em contrapartida, não se relaciona com a natureza imediata, mas apenas com a negativa porque a consome. O escravo não se relaciona com a natureza negativa porque ele não a consome, e quando ela está trabalhada escapa por completo de suas mãos.
Na Dialética do Senhor e do Escravo, o escravo reconhece e o senhor é o reconhecido. O senhor atribui a si mesmo a liberdade e a autonomia absolutas, enquanto nega o escravo e o rebaixa à condição de coisa. O escravo se nega a si mesmo através do esgotamento de suas forças físicas e o esvaziamento de sua liberdade ao confirmar a absoluticidade do senhor. Porém, nesta relação assimétrica, o escravo trabalha e o senhor apenas consome. O alto grau de vida material do senhor se deve ao trabalho do escravo, e não aos méritos do senhor.
Conforme afirmamos, entre o senhor e o escravo está a natureza, assinalada com os sinais do positivo e do negativo. Há um espaço não diretamente dominado pelo senhor, o ato sistêmico de enfrentamento da dureza da natureza pelo trabalho do escravo. Na sua dura atividade, o escravo passa por um processo de aprendizagem no qual se dá conta de que a liberdade e o alto nível de vida material do senhor somente são possíveis mediante o seu reconhecimento e o seu trabalho. Nesta pedagogia da aprendizagem através do trabalho e da intuição da liberdade pessoal, o escravo passa da heteronomia para a autonomia, da dependência para a liberdade. Ao conquistar a liberdade, o escravo desmistifica e dissolve a pretensa absoluticidade do senhor que recai na condição de escravo e é rebaixado à animalidade.
Para Hegel, o exercício do trabalho e a transformação da natureza constituem passos fundamentais para a humanização. Como o senhor não trabalha, apenas recebe pronto e consome o resultado do trabalho de outrem, ele vira animal e não dispõe da mediação fundamental de humanização. O que absolutamente desprezou e jamais quis para si mesmo, agora passa a ser a sua própria caracterização essencial. Neste nível, invertem-se as funções quando o senhor se torna escravo e o escravo se torna livre. Mas não é uma inversão simples na qual um assume a condição do outro e a relação social permanece exatamente a mesma, mas o senhor é desmistificado na sua posição de dominador absoluto e o escravo segue o seu caminho de humanização e libertação. É preciso destacar que o senhor aposta na incondicionalidade de seu domínio diante da qual o escravo não teria condições de esboçar qualquer caminho de liberdade e de consciência.
Parece-nos claro que o texto hegeliano aqui reconstruído em seus componentes fundamentais é um referencial para a leitura do cenário político atual. Na exposição dialética que aqui empreendemos, na História do Brasil identificamos a figura do Senhor com a Casa Grande e o Escravo com a Senzala. Na verdade, a Dialética do Senhor e do Escravo representa situações de relações historicamente situadas. Sob este viés, a História do Brasil é fortemente marcada pela presença de uma elite patriarcal, machista, patrimonialista, imperialista centrada no domínio e na acumulação capitalista. Por outro lado, temos uma massa de escravos impossibilitados de liberdade e excluídos das decisões, na condição de sujeitos sociais. Os escravos, atualmente os trabalhadores e o povo em geral, a massa de empobrecidos pelo sistema capitalista, sempre foram excluídos do processo político, das decisões e dos bens produzidos pela sociedade, e ainda rotulados de bagabundos, preguiçosos e objetos de assistencialismos por parte do Estado.
Ao longo da História do Brasil uma grande massa ficou excluída da fruição dos resultados econômicos e não participou dos rumos do país. A Economia, a Política, a Religião e o Direito estiveram voltados para a sustentação e a eternização de uma pequena elite patriarcal naturalmente considerada como dona do poder e das riquezas do país. O fenômeno que atravessa a História pode ser caracterizado a partir da oligarquia imperial que jamais abriu mão do domínio absoluto, invisivelmente sustentado por uma massa de escravos, trabalhadores e pela exclusão social. É toda uma base social que sustentou no topo da pirâmide uma elite dominadora, raivosa, autoritária, intolerante, ultraconservadora, branca e machista.
Dentro do grande contexto histórico de meio milênio houve um fenômeno no qual a grande maioria excluída e empobrecida se transformou em viés de políticas governamentais para tirá-las da miséria e incluí-las socialmente. Durante os governos de Lula e Dilma, talvez num fenômeno jamais visto na História da Humanidade, milhões de miseráveis foram resgatados e entraram na classe média. Diante desta constatação visível durante vários anos, a elite patriarcal não se conformou com os avanços e ficou furiosa e enraivecida diante dos desdobramentos deste fenômeno. Ela ficou incomodada como o aparecimento social de classes historicamente recalcadas à exclusão social porque começaram a ocupar os espaços exclusivamente deles, de sua propriedade. Ficaram brabos com a presença de negros e pobres nas Universidades, com os mais humildes que viajam de avião, com a necessidade de compartilhamento dos mesmos espaços como ruas, supermercados, bancos, praças públicas etc. A tradicional elite dominante, com diversas roupagens ao longo da História, raivosamente se posicionou diante de alguns acontecimentos estruturais que jamais se incluem em seus projetos e agendas temáticas. Com certeza, o golpe na Presidente Dilma Rousseff se deve muito mais em função dos avanços, das conquistas sociais e da nova posição do Brasil no cenário global das relações internacionais do que propriamente os erros.
O objeto do artigo é avaliar, dentro do contexto da crise e da atual configuração social brasileira, a relação entre a Casa Grande e a Senzala, entre a atual elite dominante e o povo da base à luz da Dialética do Senhor e do Escravo hegeliana, uma das fontes de inspiração de tantos movimentos sociais e de transformação social dos últimos dois séculos. Talvez, o problema maior dos governos petistas foi subir a rampa do Palácio do Planalto e afastar-se da grande base social e popular do país, cuja mobilização constitui a razão histórica de sua existência. Em palavras simples, substituiu-se a ligação política do Partido dos Trabalhadores com o povo pela governabilidade e pelo PMDB.
A ascensão social de milhões de seres humanos e o mergulho do Brasil na crise econômica e política revela um fenômeno diferente da estrutura lógica da Dialética do Senhor e do Escravo, mas facilmente explicável a partir dela. O texto hegeliano aqui referido expõe a oposição radical entre duas figuras, a do Senhor e a do Escravo, em cuja lógica uma representa o inverso de si mesma, uma é a outra em si mesma e uma é ela mesma na outra. O fenômeno da ascensão social produziu um fenômeno contraditório cujo processo não foi acompanhado pela formação da consciência e desenvolvimento da inteligência. Com acesso ao consumo e ao conjunto de bens básicos, ao invés de formar uma visão crítica e uma consciência esclarecida, constituiu-se uma espécie de mentalidade burguesa afinada à lógica capitalista do consumo.
O notável fato do escravo de ter produzido a sua liberdade e quebrado a sua dependência em relação ao senhor, esta lógica não aconteceu desta forma na política brasileira. A ascensão social, as políticas públicas e a significativa participação dos mais pobres no processo de desenvolvimento econômico não produziu uma força política capaz de quebrar com a lógica da dominação imperial e com a classe dominante, mas a fortaleceu. Não aconteceu um processo de libertação social e um mergulho para dentro da consciência popular enquanto potencialidade transformadora, mas uma espécie de mentalidade burguesa generalizada que anestesiou a população diante dos ataques da mídia golpista, do judiciário, da classe dominante e do próprio congresso nacional. Não foi produzida uma força popular crítica capaz de superar o domínio imperial, mas emergiu uma grande massa popular alinhada aos interesses políticos da burguesia e com mentalidade capitalista, o que inviabiliza qualquer proposta de transformação social e histórica mais profunda. Pelo viés do senhor e do escravo, a Grande Senzala não foi politizada e conscientizada, mas massificada e aliada ao poder dominante. Ela, ao invés de politizar-se e fortalecer-se como um bloco histórico crítico e revolucionário, transformou-se numa massa indiferenciada que interiorizou a mentalidade da oligarquia colonial e engolida por esta.
A casa grande está viva e ativa. Reapareceu com toda a sua fúria dominadora, com a pose machista patriarcal, com uma organização absoluta e perfeita, com tudo incorporado à sua lógica. Todas as formas históricas de machismo, patriarcalismo, patrimonialismo, colonialismo e imperialismo estão integradas e plenamente atualizadas. As conversas entre as pessoas, a opinião pública de base, a lógica dos meios de comunicação, as forças políticas do congresso nacional, o grande capital, os alvos do judiciário e a criminalização dos movimentos sociais, o governo golpista, o criacionismo nas escolas, a escola sem partido, tudo concorre para o fortalecimento da casa grande. Estes componentes constituem gigantescos tentáculos do mesmo e único pandemônio que dissolveu a força transformadora do povo e tem como alvo direto devorar Lula e o PT. Quase não nos sobra nada além deste monstro que dos domina por todos os lados. Contra o monstro que se instalou, novos movimentos deverão ser construídos.
Uma crítica possível de ser formulada a partir da lógica da Dialética do Senhor e do Escravo, no conhecido paradigma social da Fenomenologia do Espírito, é o desaparecimento da força de contradição e de articulação destas instâncias no cenário social e político brasileiros. Inclusive muitas das manifestações pró-golpe amplamente articuladas pelos meios de comunicação social foram favorecidas pela ascensão social e conquistaram significativa qualidade de vida com os governos de Lula e de Dilma. Tornaram-se inimigos dos governos que lhes proporcionaram uma situação econômica privilegiada, com ruptura política de base e com alinhamento à grande burguesia dominante. Ao invés da oportunidade histórica de superação da grande oligarquia patriarcal presente ao longo de toda a História do Brasil, os meios de comunicação conseguiram manipular de tal maneira a população que boa parte da população vincula a corrupção ao PT.
É visível que o momento atual é de reviravolta conservadora em âmbito mundial e nacional. Parece que andamos na contramão das potencialidades revolucionárias e transformadoras inscritas na Dialética do Senhor e do Escravo tecnicamente formulada por Hegel há um pouco mais de dois séculos atrás. Parece que as forças transformadoras recolheram e cederam amplo espaço para todas as formas possíveis de conservadorismo econômico, político, religioso e ideológico. Estamos num conservadorismo tal que falar do Senhor e do Escravo, e de todas as produções inspiradas nela, poderá ser passível de condenação e prisão. Mas a farsa do golpe aplicado contra a Presidente Dilma Rousseff não terá vida longa e duradoura. O golpe não esmagará definitivamente a Democracia, as forças de resistência e os movimentos populares. Em breve hão de eclodir novas forças de resistência capazes de contrapor à oligarquia patriarcal dominante. Com a destituição da Presidente Dilma Rousseff, as esquerdas deverão se rearticular, produzir novas forças políticas e novos caminhos de transformação.

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