Jorge Barcellos – Doutor em Educação
O desencontro entre a ética e a política pode ser observado na facilidade em com que a mentira impera na vida pública. Para o cidadão que busca o decoro e a compostura dos comportamentos dos seus representantes, dizer-a-verdade é um imperativo e a presença de práticas e comportamentos transgressoras desses valores e normas colabora para o desaparecimento do respeito à lei e às regras da sociedade.
A conclusão advém da análise de um fato que aconteceu no terceiro dia consecutivo de votação das medidas previstas no pacote do governo de José Ivo Sartori (PMDB) na Assembleia legislativa e que é um exemplo de que a mentira ainda existe na vida política. A história foi narrada pela jornalista Fernanda Canofre, do Jornal SUL21, que mostra que a mentira foi ingrediente estratégico para calar a oposição ao pacote que terminou com a extinção da Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde (FEPPS), extinta por 28 votos a favor e 25 contra. Ciro Simoni (PDT) viu ruir um acordo do PDT com o PTB pela manutenção da Fundação. Diz Canofre: ”. Pelas contas da oposição, o governo precisaria de um voto para aprovar o PL de extinção da FEPPS. Tinha 27, até então. Ciro acordou com o deputado Aloísio Classmann que a oposição abriria mão do tempo de falas na tribuna, apenas ele se manifestaria em defesa da Fundação, em troca de o PTB tirar o voto que o governo precisava para ganhar. O acordo foi fechado e nenhum deputado de oposição, fora Ciro, ocupou o espaço da tribuna”. Não foi o que aconteceu. O PTB mentiu para Ciro Simoni.
Por que os políticos mentem? A questão remete a um problema epistemológico e a um contexto no qual os políticos se debatem e se prolonga desde quando víamos na televisão ao final da CPI da Assembleia Legislativa a discussão sobre a legitimidade do Governo Yeda. Lá, depoimentos entrelaçarem-se em uma série de questões mal respondidas – se a casa de Yeda foi reformada com dinheiro do Caixa 2 da campanha, se sua equipe de governo tinha ou não conhecimento dos fatos envolvendo a governadora, etc., etc. Ao final fica para o observador, ao menos uma certeza: alguém está mentido. A história se repete: feito um acordo com base na palavra, dá-se a fé na honra política, isto é, na capacidade de cada político de honrar o acordado.
Acordos verbais são necessários a ordem política. Eles permitem que os indivíduos num curto espaço de tempo façam os acertos necessários para dar rumo a matéria legislativa. Combinações, acertos, negociações, troca, é disto que se fala na política. E para isso, é preciso ter fé na palavra do político, do colega, um artigo aparentemente em falta no PTB da Assembleia Legislativa. Se os políticos não puderem confiar no que combinam, como poderão fazer uma política com seriedade?
O argumento de que o governante teria o direito de mentir em benefício da comunidade se contrapõe ao direito a informação verdadeira por parte dos governados. Os trabalhadores da FEPPS que acompanharam a sessão foram enganados, acreditavam que seriam salvos, e silenciaram, mas terminaram extintos. Em qualquer situação, precisamos urgentemente proteger a verdade política. Não é evidente que a ilusão e a mentira dominem totalmente o espaço do poder. Ao contrário. Quando vemos que um acordo entre deputados de partidos diferentes que era decisivo para o futuro de um projeto ser quebrado, estamos diante de um dilema da legitimidade política que precisa ser debatido. Eu deposito meu voto num político honesto: como ele pode faltar com sua palavra em um momento de perigo (Benjamin)?
A verdade é que o acordo foi quebrado porque o placar combinado teve outro resultado. Alguém mentiu. Dos 5 parlamentares do PTB, 2 votaram contra extinção – Classmann e Ronaldo Santini – e 3 a favor – Luís Augusto Lara, Mauricio Dziedricki e Marcelo Moraes. O acordo do PDT com o PTB era de que apenas um voto sim seria não, o que derrotava a pretensão de Sartori de extinguir a fundação. Porque era importante manter a FEPPS? Para Maria do Rosário “A Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde (FEPPS) desenvolve funções exclusivas para a saúde pública do Estado como o controle epidemiológico, o gerenciamento das doações de sangue e realização de exames de DNA, dentre outros serviços. Os prejuízos também serão enormes e lembremos que a Fepps é referência no atendimento a pacientes com hemofilia, através do Hemocentro do Estado (Hemorgs) e da Hemorrede Pública (rede de hemocentros). Além disso, a Fundação realiza exames de paternidade para crianças de famílias de baixa renda. Segundo a Defensoria Pública do Estado, cada exame de DNA realizado pela FEPPS representa menos cinco ações que ingressariam no Poder Judiciário. Sobretudo, é o Estado garantindo um serviço como direito dos que precisam. A extinção da FEPPS também coloca em risco o trabalho realizado pelo Laboratório Central do RS que realiza análises de resíduos de agrotóxicos em alimentos, hepatites virais, HIV, tuberculose, cólera, dengue, febre amarela, leptospirose, H1N1, infecções hospitalares, análise de águas, medicamentos, leite, entre outros. ” Se eu elejo um vereador do PTB, defensor do trabalhismo, do trabalhador, é por que acredito que ele seja capaz de defender instituições que protejam o trabalhador: extinguir a FEPPS só fará bem para o Capital, até Alberto Pasqualini, onde quer que esteja, sabe disso.
Nenhum argumento foi capaz de fazer o PTB manter sua palavra. Havia no PTB aqueles que sinalizavam ter aceito os argumentos em defesa da fundação e, para evitar discursar até as 5 horas da manhã, acordaram, deram sua palavra, que não dariam a maioria que o governador queria. Essa foi a posição do partido. Se erraram, porque o PTB não pediu renovação de votação? Em entrevista ao SUL21, Ciro Simoni reconheceu que fez um acordo com o PTB: ” O deputado [Aloísio] Classmann é um homem em quem eu confio, foi com quem eu fiz o acordo e esse acordo não foi cumprido com alguém da bancada. Não acredito que tenha sido o deputado Classmann. Quero dizer que, certamente, não foi o deputado Lara. Porque é outra pessoa que eu conheço, participei da conversa dos dois quando conversaram. A verdade é que tínhamos um acordo, tanto é visto que ninguém se manifestou. Estava dentro do acordo só a minha manifestação, nem da bancada do PT, nem do PC do B. Vocês viram que durante todos os projetos polêmicos aqui, todo mundo se manifestou. É para mostrar que havia um acordo. Infelizmente, ele não foi cumprido “
A mídia hegemônica da capital pouca atenção deu ao detalhe, prestando um desserviço à sociedade, pois assim enfraquece a ideia de que a verdade é a base da confiança, e a confiança, alicerce para a vida em comum e, portanto, essencial a vida política. Quando assistimos as lideranças fazerem um acordo político, esta é a verdade da política, é sua natureza, baseada na honra da palavra, essência da vida do plenário. Quando ela não se cumpre, estamos dizendo que há mentira entre os políticos. É preciso inverter os termos da relação verdade/mentira na política, abandonar a concepção de que a mentira é um mal menor. Não é: Ciro Simoni reitera “Imaginar que isso tenha acontecido, é coisa quase impossível nesta Casa, porque esta Casa, por mais difícil que seja a conjuntura, sempre cumpriu seus acordos. ”
O retorno da mentira à política é porque ela torna-se o ingrediente essencial no fomento do autoritarismo. Se desde o início dos anos 90 a política inseriu-se no espaço da mídia e a mídia transformou-se num campo de batalha pelo poder, o que fazem e dizem nossos políticos ficou mais próximo dos cidadãos. Na época em que inexistia a TV Assembleia era possível que situações como essa, votações na calada da noite, acordos duvidosos e políticos que não cumprem acordos poderiam passar batido. Agora não, os políticos precisam ter cautela com o que dizem, ter cuidado com suas promessas. Elas são televisionadas, acompanhadas no detalhe pela imprensa. Para se atingir os políticos, eles sabem que é preciso agir pela mídia. A palavra dada é sua única proteção. Por isso em todo o mundo líderes políticos tiveram sua imagem destruída por uma série de escândalos que normalmente dizem respeito a ordem moral (comportamento sexual inadequado, problemas de alcoolismo) mas que também dizem respeito a corrupção política e ao que dizem, ao modo como conduzem a política. Agir indevidamente, trocar de favores, desde o escândalo do governo Fernando Collor de Mello tem sido o combustível da mídia mais fornecido pela vida pública: mentir parece ser o primeiro passo capaz de destruir um político ou um partido. Que o PTB tome cuidado, tudo o que faz está sob as vistas das câmeras.
No caso do escândalo envolvendo Yeda Crusius, sua especularização teve um significado. Viu-se que era um erro pensar que aquele governo fosse mais ou menos honesto ou corrupto que seus antecessores. Como lá e hoje, o olhar deve ser direcionado: as denúncias e notícias que vem a público revelam o nível de nossa sociedade democrática, o nível da liberdade de imprensa e o nível moral de nossos políticos. Se a imprensa burguesa não enfatizou, o eleitor deve ser atento: o PTB foi pego na mentira e isto é um escândalo político. Ocorreu porquê este silencio? Porque a mídia burguesa apoia o projeto neoliberal de José Ivo Sartori. Quem saiu perdendo: os bons políticos que buscam a verdade e não enganar seus colegas de plenário.
Ao tornarmos conscientes destes processos de manipulação, de ocultação de gesto, de ausência de discursos sobre o que é importante, nos tornamos crítico a política que nos cerca. O que é positivo na política do espetáculo é que retira o poder dos políticos para trazê-lo para o campo da sociedade. Agora, tudo é visível, mesmo na calada da noite. A mentira é negativa, ruim para a política, ela retira a legitimidade dos partidos identificados mais uma vez a corrupção. A conclusão que fica é que, se no plano da res pública, a mentira leva a corrupção, e a imprensa é havida em transformar corrupção em espetáculo, por isso é preciso defender os mecanismos de defesa da sociedade, o valor das instituições democráticas e a verdade na política.
Tanto o governo Yeda teve muito a explicar como o PTB tem agora. Não cabe a nós pré-julgar sem provas mas apontar as consequências do fato. Se a imprensa tem o mérito de nos levar a tomar conhecimento da corrupção, dos acordos rompidos e das mentiras trocadas entre partidos, cabe ao cidadão exigir suas explicações e a sociedade usar de mecanismos para fazer valer o seu controle, além de ser audiência ela detém o poder do voto. E pode tirar da política aqueles que mentem. Se o sistema da mídia, em suas relações de simbiose com as instituições políticas, transforma escândalos em artigo de venda, os políticos têm mais uma razão para estarem atentos. Continuamos precisando dos bons políticos, aqueles que vão a fundo na defesa de sua palavra e usam seu tempo de tribuna não para iludir, mas para buscar acordos que representam o desejo da sociedade.
É preciso utilizar de outros recursos para julgar o comportamento de um político e que eles sejam em si mesmos remédios contra a mentira, que inibam a corrupção na busca da verdade. Disse o Deputado Pedro Ruas ao site Globo.com: “Nós temos levado adiante a estratégia de debater insistentemente cada projeto na medida em que é importante, já que eles não foram debatidos com a sociedade. Agora havia um pedido do PTB, de que nós não discutíssemos esse projeto da Fepps, porque o PTB nos daria os votos necessários para reprová-lo. E não aconteceu isso, lamentavelmente. Isso nos deixou muito triste, particularmente porque nós sempre debatemos e, dessa vez, deixamos de debater para respeitar o acordo, que não foi respeitado pela outra parte(…)foi tão forte, tão intenso, que os deputados não puderam ficar no plenário. Não tinha mais clima”, completou.
Essa ausência de clima, este mal-estar apontado por Pedro Ruas é o testemunho da desintegração parcial de uma instituição. A política se funda na palavra, na oratória, na gestão dos bons argumentos. Se a palavra é falseada, o debate não tem valor, e a instituição entra em processo de corrosão e agora, a vista de todos graças a mídia que faz ver a mentira que supera a verdade e as consequências do que foi capaz de fazer. O que é positivo nesta política do espetáculo é que retira o poder dos políticos para trazê-lo para o campo da sociedade, tudo é visto, inclusive, os bastidores da política. O que é negativo na mentira na política é que se retira a legitimidade dos partidos, identificados mais uma vez a corrupção.
O PTB caiu na armadilha do sistema que ele mesmo ajudou a construir. O PTB abandonou sua ideologia por interesses de ocasião, que usou da mídia para fazer-se apresentar a sociedade seus candidatos como sinônimo de novidade na política, viu-se denunciado pela oposição como incapaz de cumprir acordos. Isso é um escândalo. A conclusão que fica é que, se no plano da res pública, a mentira leva a corrupção, é preciso defender os mecanismos de defesa da sociedade e o valor das instituições democráticas.
O PTB ainda tem muito a explicar. Surgido em 1945 e fundado por Getúlio Vargas, como é possível que um partido que tem o Trabalhismo no nome e figuras como Alberto Pasqualini, um notável defensor do trabalho e dos trabalhadores, possa ter traído um acordo para preservar uma instituição e seus funcionários? Se a atitude do PTB tem um significado, é de nos provar a sua própria corrosão, e cabe ao cidadão exigir suas explicações e a sociedade deve usar de outros partidos para efetuar sua representação nas próximas eleições.
Se o sistema de acordos políticos já não é eficaz é porque as relações de simbiose dos partidos, como o PTB com a mentira é necessária para aprovar projetos que destoam do ideal histórico do partido, de agora em diante, a defesa do ideal trabalhista já não é suficiente para garantir a crença da sociedade no partido. Por isso continuamos precisando de bons políticos, inclusive no PTB, para que vão fundo na recuperação da ideologia do partido e não se tornem aliados de ocasião a projetos que vão na contramão de suas origens, contra sua ideologia. Nas próximas eleições, os cidadãos terão uma evidencia nova para julgar o comportamento dos político que se apresentam como novidade do partido, é necessário votar naqueles candidatos que inibam a corrupção na busca da verdade. A ação do PTB desonrou a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul: o partido precisa fazer seu mea culpa, pedir desculpas, assumir que errou como todos os demais.