JOÃO SOUZA (1935-2022): Morre um gigante do jornalismo brasileiro

Luiz Cláudio Cunha *

O caminhar era sereno, o tom de voz sempre aveludado, o gestual das mãos incontrolavelmente suave. Nada ali permitia um desassossego, uma grosseria, uma palavra rude, um atropelo, um trejeito de brutalidade. Assim foi o jornalista gaúcho João Borges de Souza até segunda-feira, 13 de junho passado, quando tombou mansamente aos 87 anos, num hospital da Grande Porto Alegre, vencido por uma parada cardiorrespiratória e pelo mal de Alzheimer, que há três anos dissolvia sua amorosa memória. Apesar disso, João Souza, como ele era conhecido, ficará para sempre na nossa lembrança como um dos gigantes do jornalismo brasileiro.

Alto, com 1m80 onde se acomodava um físico enxuto de 75 kg sem gorduras, João Souza desfilava sua elegância pelos gabinetes de políticos e salões dos palácios com o habitual terno de feitio impecável sempre combinando com a gravata ajustada, o que lhe dava o perfil de um lorde inglês importado para os pampas. O contraste dos cabelos precocemente grisalhos com o tom escuro da pele lhe conferia a altiva dignidade de um príncipe etíope, que chamava ainda mais a atenção por ser um dos primeiros negros do Rio Grande do Sul em cargo importante em redações dominadas secularmente por jornalistas que se consideravam brancos, herdeiros da alvura dos imigrantes alemães, italianos e portugueses.

Apesar disso, João não se considerava um intruso racial. Perguntado anos atrás, numa entrevista com três repórteres, se ele tinha sentido na pele o racismo estrutural do Rio Grande, ele respondeu que não. “Quando insistimos na pergunta”, lembra a jornalista Núbia Silveira, sua amiga e confidente de meio século, “ele nos fuzilou com o olhar, sem dizer nada, como se perguntasse: Não acreditam em mim?”.

Repórter sagaz, editor talentoso, líder sindical corajoso em tempos de ditadura, João Borges tornou-se uma referência de gentileza, firmeza e dignidade no seu perene e aberto confronto contra a brutalidade, a tibieza e a desonra que pervertem costumes e corporações nos tempos sombrios do arbítrio. Comandou em diferentes cargos o Sindicato de Jornalistas de Porto Alegre no período mais trevoso da ditadura militar, nos governos dos generais Garrastazú Médici e Ernesto Geisel, quando muitos jornalistas, em vez de entrevistar, eram compulsoriamente entrevistados por militares hostis da repressão na antessala dos cárceres ilegais.

Não me reconhece, camarada?

Por sua liderança e presença sempre do lado certo da História, João tem seu nome engastado em momentos memoráveis do jornalismo. Sem nunca ter frequentado universidade, um João quase adolescente abraçou o jornalismo, por devoção ao ofício e à ideologia, colaborando com a Gazeta Sindical, de São Paulo, ligada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em 1956, aos 21 anos, trocou o amadorismo pela profissão, contratado como repórter do jornal Tribuna Gaúcha, porta-voz do PCB no Sul, que sobreviveu entre 1946 e 1958. Na época, muitos dos colegas de João alternavam a redação com horas ou dias vividos nas prisões políticas da capital gaúcha.

Quatro anos antes da chegada de João, a primeira redação do jornal comunista era ponto fixo de confusão. Na antiga Rua da Ladeira (atual General Câmara), uma transversal íngreme que ligava a praça do Palácio do Piratini à tradicional Rua da Praia (atual Andradas), no centro da capital, funcionava a Tribuna com o seu parque gráfico no porão. Para atrapalhar a circulação, a repressão fazia ali prisões, espancamentos, tumultos que marcavam cada edição do diário. Com as portas sempre fechadas, para conter a polícia, elas se abriam apenas para sair algum militante com discurso furibundo, que distraía a polícia para longe, enquanto pacotes do jornal eram rapidamente desviados para militantes em pontos seguros da Rua da Praia, uma quadra abaixo.

Numa obra clássica sobre o jornalismo “subversivo” no Estado, A imprensa Operária do Rio Grande do Sul 1873-1974, o jornalista João Batista Marçal conta detalhes que o jovem João Souza viu de perto. A polícia, com ideia fixa, não estranhava o número elevado de grávidas em elevado estado de gestação que costumava sair daquele endereço, mesmo nos momentos mais conturbados do cerco policial. Na verdade, eram militantes quase virginais saindo dali com resmas de jornais impressos enrolados na falsa barriga. Algumas eram amigas ou conhecidas de João.

O repórter e pupilo Paulo de Tarso Riccordi contou ao jornalista Lourenço Cazarré, nascido em Pelotas como João Souza, uma história que ressalta o lado bem-humorado do amigo. No começo dos trepidantes anos 1960, João estava na rua, cobrindo uma manifestação de protesto. Ele estava tão próximo da notícia que, em dado momento, começou a levar bordoada de um guarda da Polícia de Choque da Brigada Militar, que fazia a repressão. João identificou o agressor, na hora, como integrante clandestino do partido.

– O que houve, camarada? Não estás me reconhecendo? – reclamou o jornalista.

Sem cessar a pancadaria, agora menos intensa, o guarda respondeu com a discrição possível:

– É claro que estou, camarada. Mas preciso baixar a borracha porque os meus comandantes já andam desconfiados de mim, estão achando que sou comuna ou brizolista…

E o guarda fingia com o cassetete, enquanto João fingia que apanhava.

Da conturbada Tribuna Gaúcha, João migrou no final de 1954 para o matutino A Hora, um empreendimento de empresários trabalhistas vinculados a João Goulart. Pretendia ocupar o vazio deixado pelo Diário de Notícias, o principal jornal dos Diários Associados de Chateaubriand, incendiado em agosto pelo povo enfurecido com o suicídio de Getúlio Vargas. O jornal definhou e morreu, por inanição, em março de 1962. Antes de acabar A Hora¸ João migrou para a Última Hora gaúcha, no início de fevereiro de 1960, que seria lançada duas semanas depois, participando dos números zeros experimentais do jornal revolucionário de Samuel Wainer, sempre antipatizado pela direita e pelos militares por sua visceral ligação com Getúlio Vargas. Foi, certamente, o primeiro repórter a cobrir o movimento sindical, uma novidade em jornal, fora da imprensa comunista que João integrou.

João resistiu lá mesmo com o turbilhão do golpe de 1964, que fechou o jornal esquerdista de Wainer, renascido como a Zero Hora direitista de Ary de Carvalho. João sobreviveu no novo jornal como repórter e editor de política, até ser demitido em meados de 1965, acusado de integrar uma célula do PCB na redação de ZH sob o comando de João Aveline. Com a ajuda do amigo Tarso de Castro, João exilou-se um tempo na Secretaria de Saúde, como assessor de imprensa, até ressurgir como editor de política do novo jornal que Breno Caldas estava criando, no final da trepidante década de 1960, para disputar as bancas com Zero Hora, seu maior concorrente.     

Tem rolo, chama o João

João não queria o velho ranço conservador da Caldas Júnior, mas buscava o novo. E o novo era a Folha da Manhã, a ousada tentativa de renovação de Breno Caldas, o dono da empresa. Lançado em 1969, sob a direção do ex-capitão Erasmo Nascentes, que chamou João para ser seu editor de política, desde a primeira edição. O jornal só ganhou um fôlego renovador em 1972, quando Nascentes passou a direção para o jornalista José Antônio Severo, líder de um projeto avançado que trazia inovações gráficas, uma linguagem mais moderna, grandes reportagens, jornalismo investigativo e uma postura mais crítica da realidade, novidades numa empresa conhecida por seu conservadorismo e alinhamento com o regime, que gozava da simpatia dos outros dois jornais da casa, o Correio do Povo e a Folha da Tarde.

O novo jornal era o filho rebelde, o matutino malcomportado da casa. Lá, o progressista editor político João Souza, aos 37 anos, sentia-se em casa, ao lado de gente nova, talentosa, de sangue quente. Em momentos distintos, João teve ao seu lado nomes brilhantes que viriam a formar uma seleção da imprensa brasileira – Elmar Bones, Rosvita Saueressig, Caco Barcellos, Jefferson Barros, Yara Rech, Luís Fernando Veríssimo, Núbia Silveira, Edgar Vasques, Assis Hoffmann, Gilberto Pauletti, Luiz Carlos Merten, Xico Vargas, José Antônio Vieira da Cunha, Carlos Alberto Kolecza, Juarez Fonseca, José Onofre, Geraldo Canalli e Carlos Urbim, entre outros.

Apesar de tanto talento concentrado, o jornal entrou em crise, dirigido na sequência por Ruy Carlos Ostermann e Walter Galvani, que sucederam a Nascentes e Severo. Após o auge de sucesso do início dos anos 1970, o projeto renovador da FM – que reforçou seu tom investigativo e denunciador sob o comando de Ostermann – entrou em crise, até sucumbir uma década depois, a partir de um conflito interno com Breno Caldas. O jornal acabou fechando em 1980, com apenas 11 anos de vida. João e outros remanescentes foram deslocados para a Folha da Tarde.

A Caldas Júnior cercada pela polícia: o dono, Breno Caldas, cruza o piquete grevista vaiado como ‘caloteiro’

Lá, João precisou usar de sua experiência sindical para conduzir um dos episódios mais graves da imprensa gaúcha: a greve, primeira e única, que levou ao fim a maior empresa jornalística do Estado, a Caldas Júnior de Breno Caldas. Durante 56 dias, entre dezembro de 1983 e fevereiro de 1984, os jornalistas e gráficos do Correio do Povo e da Folha da Tarde esbravejaram por atrasos de sete meses nos salários. Um recorde de paralisação, em tempos em que a duração média de uma greve no setor privado não passava de três dias, graças ao rigor da Lei 4.330 da ditadura, que os líderes sindicais tachavam de “lei antigreve”.

A decisão de fazer a greve foi tomada na noite de segunda-feira, 12 de dezembro, numa assembleia de 300 pessoas que lotou a ‘oficina de chumbo’, um salão de 100 metros quadrados, no segundo andar do prédio do jornal, que marcava a transição de uma era: muitos foram demitidos a partir de julho, quando a modernização do parque gráfico do jornal trocou a composição a quente, com chumbo, para a fotocomposição, a frio.

No dia seguinte, a sede da Caldas Júnior amanheceu cercada por tropas da Brigada Militar para conter os piquetes grevistas, que tentavam bloquear os caminhões com o jornal impresso. O dono, Breno Caldas, teve que atravessar o piquete de funcionários, vaiado e chamado de ‘caloteiro’.                                                                                                              

A densa tese de mestrado da historiadora Clarice Gontarski Esperança –  A greve da oficina de chumbo – o movimento de resistência dos trabalhadores da Caldas Júnior – , aprovada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2007, conta detalhes inéditos desse conflito. O advogado dos grevistas, Luís Burmeister, revela a importância de João Souza, que havia sido presidente do Sindicato dos Jornalistas entre 1974 e1978. “A militância era enlouquecida. Eram tempos da Libelu, a Liberdade e Luta, uma corrente de origem estudantil, trotskista. Aí, os caras que achavam que a Libelu era meio devagar criaram a Avalu, Avançar a Luta”. O jeito foi chamar sindicalistas mais experientes, alguns ligados ao PCB. E chamaram o João: “Quem fazia a moderação da coisa era o João Souza, um cara muito jeitoso e muito habilidoso, ao velho estilo de ficar por trás das coisas, mas ser uma palavra importante. Quando tinha algum rolo, que precisava decidir alguma coisa, o que fazer amanhã, a gente chamava o João Souza”, lembra Burmeister na tese de Esperança.

A greve, moderada por João, também demitido pela empresa, acabou vitoriosa. Foi declarada legal pela Justiça do Trabalho. Na passeata da vitória, após tantos dias de tensão, puxava o cordão o mais ilustre funcionário do Correio do Povo – o poeta Mário Quintana, o editor da página literária dos sábados, o lendário ‘Caderno H’. Apesar da fama, o poeta recebia uma merreca de salário, cerca de 192 mil cruzeiros, o equivalente a menos de dois salários mínimos atuais. Na flor dos seus 78 anos, o poeta desfilou sorridente no desfile vitorioso da greve, com o inseparável cigarro entre os dedos, sorrindo como uma criança. Quem o via ali, lembrava de uma advertência de Quintana: “Poeta não é profissão. É um estado de espírito, ou coma. Minha profissão é jornalista. Assim está escrito na minha carteira profissional”.

Quintana lê o boletim da greve, a passeata da vitória, o poeta na vanguarda:  a Caldas Jr. acaba sem poesia

Dois Paulos, um mentiroso

Na carteira de João, também. Além do jornalismo, ele se preocupava com os princípios éticos da profissão. Como presidente do sindicato, percorria com destemor e altivez os corredores dos quarteis militares ou da Polícia Federal, sempre que um jornalista detido pela ditadura precisava de seu conforto e apoio.

Quando nem a família tinha acesso, era o João, munido de sua autoridade e prestígio, que conseguia o contato pessoal que dava mais esperança para os familiares angustiados pelo desaparecimento. João amparava seus colegas, dentro e fora dos cárceres da repressão.

João Souza, Paulo Riccordi e Paulo Brossard: João provou que o Paulo mentiroso não era o repórter…

Em 1974, editor de política da Folha da Manhã, ele escalou o repórter Paulo de Tarso Riccordi para entrevistar o novo senador eleito, Paulo Brossard. Era o personagem central de uma fragorosa derrota da ditadura, quando a oposição – reunida no MDB –  consagrou-se conquistando 16 das 22 cadeiras do Senado em disputa, além de arrematar 161 das 364 cadeiras da Câmara dos Deputados. Entrevista feita e publicada, Brossard apoquentou-se com o que leu no jornal. Procurou Breno Caldas para queixar-se do repórter, negando o que havia dito. O dono da empresa não hesitou. Acreditou no amigo e determinou a demissão de Riccordi.

João esperou o retorno do repórter, para provar que ele estava certo. A entrevista, feita na fazenda de Brossard, em Bagé, fora gravada em várias fitas cassetes. “João levou a Breno Caldas o meu bornal de lona lotado com dez fitas gravadas”, contou Riccordi a Núbia Silveira. E assim a verdade do repórter sobreviveu à mentira do futuro senador.

Às vezes, era mais importante que os jornalistas protegessem João, nosso presidente, em vez do contrário. Em dezembro de 1975, Audálio Dantas, o presidente do sindicato paulista ligou para mim, autor desse texto, então chefe da sucursal em Porto Alegre da revista Veja. O II Exército, em São Paulo, acabava de divulgar uma nota, sustentando a falsa versão de ‘suicídio’ do jornalista Vladimir Herzog nos porões do DOI-CODI, na verdade morto sob tortura. Botar o sindicato em confronto direto com o Exército daria o pretexto para sua intervenção. Assim, os próprios jornalistas criaram um movimento nacional para exigir a verdade no IPM militar. Audálio não poderia pedir que João fizesse isso no Sul, para não correr o mesmo risco. Ligou para mim e me encarregou da coleta de assinaturas, um episódio contado aqui pelo JÁ:

João Souza é apenas um dos 1.004 signatários do histórico manifesto “Em nome da Verdade”. Somente 11 dos 25 sindicatos de jornalistas do país protestaram contra a morte de Vlado.

A entidade gaúcha, presidida por João, foi uma das primeiras a se manifestar.

Nos tempos de Médici e Geisel

Sou testemunha de dois episódios que mostram a dignidade e a coragem de João Souza na defesa dos jornalistas.

Em 1974, poucas semanas antes passar o bastão de ditador para o sucessor, o general Emílio Garrastazu Médici fez uma última visita, de caráter sentimental, ao seu Rio Grande natal na condição de presidente. Não lembro qual o programa daquela sua incursão, mas, quase um mês antes, com a antecedência recomendável, apresentei o burocrático pedido de credenciamento que se exigia da imprensa para cobrir eventos da Presidência da República. Esse procedimento era sempre comandado pelo QG do III Exército (atual Comando Militar do Sul).

Naquela ocasião, contrariando o que acontecera em visitas anteriores, fui informado de que minha credencial havia sido negada. Foi uma surpresa. Até então eu era, nos padrões da segurança do regime, um repórter confiável, segundo os arquivos nada confiáveis do SNI do regime: não tinha militância política, não participara da luta armada, não era terrorista, nem jogara pedra ou bomba na polícia….

Enfim, eu era um zero à esquerda, limpo como uma folha em branco. Aquele veto era apenas um exemplo do poder arbitrário do regime militar, que abonava ou bania quem e quando quisesse, segundo o humor da hora. Vi naquela surpreendente rejeição uma forma de peitar os militares com a ajuda de meu prontuário absolutamente anódino e inofensivo.

Resolvi questionar o veto, coisa que jornalista sensato ou bem-comportado não costumava fazer naqueles tempos chumbados.

Apresentei meu plano a duas instâncias inevitáveis. Uma, a direção da Veja, que topou o desafio. A outra foi o Sindicato de Jornalistas, então presidido por João Souza, o ícone da categoria. Foi uma conversa evidentemente confidencial, com a qual busquei sua bênção e a cobertura da nossa entidade de classe. João topou o confronto, com a firmeza e a serenidade de sempre, vendo ali o pretexto ideal para que os jornalistas questionassem os critérios volúveis e estúpidos que os militares usavam, de forma aleatória, para controlar e intimidar a imprensa, que vivia sob o tacão do AI-5.

Minha ideia era linear: contestar o veto, para que o III Exército tentasse justificar minha surpreendente exclusão do time de credenciados, aproveitando o precedente de que eu tinha sido autorizado a cobrir visitas presidenciais anteriores, sem qualquer objeção. Se o QG, como de hábito, respondesse que o veto estava mantido, sem maiores explicações, para um repórter abusado como eu, nosso próximo passo seria cobrar a credencial na Justiça.

Estávamos dispostos a ir até ao Supremo Tribunal Federal para escancarar o mau-humor e o caráter discricionário dos militares. Nas nossas estimativas, seria difícil para o Exército justificar o arbítrio. Ganhando no Supremo, a gente estaria denunciando esse abuso específico contra a imprensa, um detalhe no oceano de violências com que a ditadura tentava manietar brasileiros de todas as categorias. Era um detalhe menor, mas era o que podíamos fazer para incomodar o governo de plantão. João ficou animado com a oportunidade, e me deu seu integral apoio: o Sindicato dos Jornalistas me proporcionaria a mais ampla cobertura jurídica.

Se aquele caso fosse adiante, seria um dos primeiros embates no STF da luta permanente entre Ditadura x Imprensa, que se aprofundaria a seguir.

João e eu chegamos a avaliar os próximos passos. Concordamos no nome que o sindicato contrataria para nos representar na Justiça: Werner Becker, um dos mais importantes advogados do Rio Grande do Sul, com atuação frequente e vitórias eloquentes no STF. Era pessoa de nossa confiança, minha e do João.

Cinco anos depois, Werner seria o advogado que o Sindicato dos Jornalistas colocaria à minha disposição para nos defender, a mim e ao fotógrafo JB Scalco, testemunhas involuntárias que fomos do sequestro dos uruguaios Universindo Díaz, Lilián Celiberti e seus dois filhos em Porto Alegre, em novembro de 1978, numa operação clandestina binacional da Operação Condor. O braço nacional da Condor era comandado pelo delegado do DOPS e torturador Pedro Seelig, chefe de Didi Pedalada e João Augusto da Rosa, identificados e denunciados pelos repórteres de Veja.

Em 1979, Werner, conhecido por sua verve e inteligência, foi interpelado pelo advogado Oswaldo Lia Pires, que defendia Seelig e seus comparsas no processo aberto pela Justiça Federal. Ao cruzar com Werner, numa das primeiras audiências, Lia Pires teve a má ideia de ser engraçadinho com nosso advogado:

– Ué, dr. Werner, nunca vi testemunha com advogado!

O nosso defensor rebateu na pleura:

– Quando polícia vira bandido, dr. Lia Pires, testemunha precisa de advogado…

Voltando a 1973. Daquela vez, contudo, nem precisamos chamar o Werner para nos assessorar em nossa insidiosa e subversiva manobra – por culpa do próprio Exército.

De repente, não mais que de repente, a sucursal da Veja, recebeu um telefonema do QG do III Exército informando que minha credencial estava liberada para a cobertura da visita de Médici, quando faltavam duas ou três semanas para a viagem presidencial.

Sem qualquer explicação ou esclarecimento, como acontecera no anúncio do veto, o comando do Exército nos comunicou a liberação da credencial. É da índole dos regimes autoritários não justificar seus atos e decisões, para não ter depois que explicar o que aconteceu ou deixou de acontecer. Assim, ganhei de novo a credencial perdida – e vi desaparecer a oportunidade de consumar nossa emboscada jurídica contra os militares.

João e eu ficamos frustrados pela chance desperdiçada.

João Souza foi a única pessoa, fora da redação de Veja, que soube, compartilhou, estimulou e se preparou para nossa iminente batalha jurídica. Não sei, até hoje, o que levou os militares a vetarem e, depois, liberarem minha credencial. Por razões óbvias, esse não era um tema que João e eu abordássemos em nossas conversas ao telefone, foco inevitável dos grampos de escuta ilegal que a repressão do regime espalhava com volúpia e paranoia – especialmente em sucursais de jornalistas e em sindicatos não apelegados.

Conto isso pela primeira vez, aqui no OBSERVATÓRIO e no jornal JÁ, para mostrar a importância de João Souza, como figura pétrea de dignidade, firmeza e coragem que nos inspirava e dava confiança naqueles tempos tão desesperançados e desconfiados.

Em novembro de 1976, o regime militar enfrentava o seu primeiro grande teste eleitoral após a derrota na eleição anterior, de 1974, que elegeu Brossard. Para dar um retrato nacional da eleição daquele ano, Veja escolheu para sua cobertura 20 grandes cidades interioranas, já que os cidadãos das capitais, pelos humores do regime, não tinham a chance de escolher seus prefeitos.

A cidade gaúcha selecionada pela revista foi minha terra natal, Caxias do Sul, segundo maior colégio eleitoral do Estado. Empenhado pessoalmente na vitória da Arena, o partido da ditadura, o general-presidente Ernesto Geisel estivera lá duas vezes antes do pleito. Não adiantou.

O candidato do MDB, Mansueto Serafini, ganhou com a maior votação individual do Estado, 43 mil votos, doze mil a mais do que o candidato de Geisel, o arenista Victor Faccioni.

Entusiasmados, os caxienses foram às ruas para festejar: mais de dez mil pessoas e um cortejo de quatrocentos automóveis que entupiram a centralíssima avenida Júlio de Castilhos na tarde de quinta-feira, 18 de novembro.

Eu estava lá, com o fotógrafo Ricardo Chaves, o Kadão, para documentar o festejo. De repente, dois grandes jipes militares, cada um com onze soldados armados de fuzis-metralhadoras e baionetas caladas, começaram a abrir caminho trafegando lentamente e acintosamente entre a multidão. Era a carranca verde-oliva da ditadura atravessando a avenida e a alegria popular – como fazia desde 1964.

Na frente da prefeitura, eu me postei acintosamente diante dos veículos militares e anotei suas placas. Um soldado desceu do jipão, me interpelou, pediu muitas explicações e minutos depois Kadão e eu fomos detidos, sob os olhares de dezenas de jornalistas que cobriam a festança do povo.

Colocados na carroceria descoberta do jipe, fomos levados para o quartel do 3º Grupo de Canhões Automáticos Antiaéreos (3º GAAAc). O comandante daquela unidade, coronel Eugênio de Almeida Baptista, nos recebeu de pé, cara fechada, no alto de uma pequena escadaria que dava acesso ao saguão principal da caserna. Tinha os braços cruzados sobre o peito, o nariz empinado e batia o pezinho direito no chão, sinalizando no coturno sua enorme irritação.

– Vocês são todos uns ordinários e sem-vergonhas! A vontade que eu tenho agora é de enfiar a mão na cara de vocês! – fuzilou-nos à queima-roupa, mal-educado, sem sequer se apresentar.

– Boa tarde – retruquei. – Como é seu nome?

Empreguei um estudado tom baixo e sereno que desarmou o valentão. Em suma, puxei o tapete dele.

Depois que o comandante se identificou com nome e posto, apresentei-me:

– Coronel, meu nome é Luiz Cláudio Cunha. Sou jornalista e chefe da sucursal da revista Veja. Qual é o problema com a gente?

O coronel, talvez surpreso com minha identificação, amansou um pouco. Mas, ainda visivelmente irritado, perguntou por que eu anotara as placas das suas preciosas viaturas.

Expliquei que a aparição imprevista daqueles veículos bélicos em uma festa popular necessariamente deveria estar registrada na minha reportagem. Daí a anotação.

– Eles estavam lá para controlar a turba… – tentou justificar o militar.

– Turba não, coronel – interrompi. – Massa. O que há lá no centro da cidade é apenas uma massa de gente pacífica, alegre, comemorando uma vitória democrática. Seus jipes estavam ali só para atrapalhar.

– Neste caso, eu boto todas as viaturas do quartel aqui no pátio para o senhor anotar as placas… – disse ele, desafiante.

– Não precisa, coronel. Só me interessam aquelas duas que se infiltraram na festa. Aliás, não sei nem por que estou aqui, em vez de estar cobrindo a comemoração. Eu estou preso, coronel?

– Na-não! – gaguejou ele. – Estamos apenas co-conversando…

– Bem, sendo assim, estou perdendo meu tempo. Eu não vim a Caxias para conversar com o senhor. Vim para cobrir a eleição e seu resultado. Já que me tirou do meu local de trabalho, o senhor poderia, por favor, me mandar de volta para lá antes que os festejos acabem – pedi, com a petulância e o atrevimento que me cabiam.

Antes de me liberar, o coronel solicitou-me que não divulgasse as placas das suas viaturas.

– Repare bem: estou pedindo, não proibindo.

E, antes de nos devolver ao centro da cidade – dessa vez transportados no seu carro particular, uma Variant verde, quase oliva –, o coronel me apresentou mais uma solicitação:

– E, por favor, fale a verdade!

Quando voltamos ao centro já corria por lá a notícia de nossa detenção. Em Porto Alegre, preocupado com nossa segurança física, João Souza, o diligente presidente do sindicato, denunciou nossa “prisão”, comunicada a ele pelos coleguinhas de Caxias do Sul. E, de imediato, acionou o governador Synval Guazzelli, no Palácio Piratini.

Pouco depois, João recebeu a notícia tranquilizadora: Kadão e eu já estávamos trabalhando no meio da “turba” que tanto inquietava o coronel.

Mas aquela festa ficou marcada por grave incidente, provocado pelos militares.

O vitorioso Mansueto Serafini desfilou em um DKW amarelo, saudado por foguetes e escolas de samba e acompanhado pelos operários que saíam das fábricas no final da tarde. Fez a volta na praça e foi carregado pela multidão por cinco quadras, até o edifício onde morava. Só não discursou porque os companheiros o lembraram da ordem expressa do coronel Baptista:

– Não transforme a passeata da vitória num comício político!

Mas aquela festa ordeira acabou em violenta desordem. Súbito, com a ajuda de vinte homens da Brigada Militar, a tropa do Exército entrou em choque com a multidão, distribuindo cacetadas e lançando oito bombas de gás. Dois vereadores do MDB e mais de vinte pessoas foram atendidas nos hospitais. Minutos depois as emissoras de rádio e TV e os jornais foram proibidos de noticiar a confusão.

A reportagem de capa da Veja da semana seguinte falou a verdade, como pedia o coronel: relatou toda a confusão provocada pela “turba” fardada – e ainda publicou as placas dos dois jipes enxeridos (EB-21-18-488 e EB-21-15-467).

Algumas semanas depois, sem choro nem vela, o coronel Baptista foi exonerado e transferido. Nunca mais se ouviu falar dele.

Mas é preciso falar sempre de João Souza, que nos momentos mais tensos sempre foi uma presença serena, firme, inabalável, digna, consciente do que devia fazer e do que não podia se eximir. Ele nos representava e nos protegia.

Esse foi João Souza, orgulho da raça.

Da raça dos jornalistas.

 

*Luiz Cláudio Cunha é jornalista, autor de Operação Condor – O Sequestro dos Uruguaios [Ed. L&PM, 2008, Porto Alegre]   –   cunha.luizclaudio@gmail.com

 

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A jornalista grávida, torturada, e o deputado cínico, debochado

Luiz Cláudio Cunha*

A jornalista Míriam Leitão chorou ao telefone, em sua casa no Rio de Janeiro, e o repórter que a entrevistava desde Brasília, o autor deste texto, também. Era o encerramento de uma longa, emotiva conversa de mais de uma hora em uma noite do final de julho de 2014.

Um mês antes, Míriam tinha conduzido uma notável entrevista, no canal da GloboNews, com o então ministro da Defesa do Governo Dilma, o diplomata Celso Amorim [leia aqui].

Principal colunista de economia do jornal O Globo, uma das mais importantes profissionais de imprensa do país, Míriam acabara de me contar o que nem seus filhos jornalistas sabiam: os detalhes chocantes de sua prisão em um quartel do Exército em Vila Velha, no Espírito Santo, entre dezembro de 1972 e fevereiro de 1973, no auge das violências da ditadura do Governo Médici.

Míriam tinha 19 anos e estava grávida de um mês ao ser presa. Quando foi liberada, com uma barriga de quatro meses, a jovem que entrou no quartel do 38º Batalhão de Infantaria do Exército com 50 kg estava pesando apenas 39 kg. Nesse período de pavor, levou chutes, tapas, pancadas que a fizeram sangrar, foi acuada por ferozes cães pastores e passou horas ali, nua, na companhia solitária e apavorante de uma cobra jiboia, de mais de dois metros e 50 kg, mais pesada do que ela. A cobra era o brinquedo de terror do seu dono, o Dr. Pablo, codinome do coronel Paulo Malhães, um dos homens mais temidos do DOI-CODI da rua Barão de Mesquita, o centro de torturas do QG do I Exército (hoje Comando Militar do Leste).

Ao ver a entrevista da repórter, sempre segura e firme, diante de um ministro inseguro e gaguejante, estranhei a instabilidade do entrevistado. Entendi, então, que ele, ao responder sobre torturas, sabia que estava diante de uma jornalista brasileira torturada no regime militar. Lembrei então que o nome de Míriam estava registrado, de forma discreta, na nota de pé da página 39 do livro Brasil: Nunca Mais – um resumo escrito por Ricardo Kotscho e Frei Betto, a partir do histórico projeto original de 12 volumes editado em 1985 pelo Conselho Mundial de Igrejas sobre os horrores da ditadura brasileira. Ali, no capítulo “Castigo Cruel, Desumano e Degradante”, estão registrados os depoimentos de oito presos políticos sob a rubrica “Insetos e Animais”. Míriam é autora do quarto depoimento, registrado no livro nº 674, volume 3, páginas 782v-783 do projeto Brasil: Nunca Mais, citada na transcrição parcial do auto de qualificação e interrogatório da jornalista, já com 20 anos, e identificada como Míriam de Almeida Leitão Netto. Suas palavras, no resumo seco da Auditoria Militar:

[…] que, apesar de estar grávida na ocasião e disto ter ciência os seus torturadores […] ficou vários dias sem qualquer alimentação;

[…] que as pessoas que procediam os interrogatórios, soltavam cães e cobras para cima da interrogada; […]

Ligando os fatos – Amorim e Dr. Pablo, a cobra e as torturas, Míriam e o Brasil: Nunca Mais –, percebi que faltava apenas o depoimento da repórter para relacionar o terror e mostrar o caráter truculento daqueles tempos. Na minha primeira tentativa, com a elegância habitual, Míriam procurou se esquivar, alegando que sua história pessoal não tinha importância. “Outros presos viveram coisas piores, muitos nem sobreviveram. Aquele foi meu inferno, mas não quero me vitimizar”.

Mês de convencimento

Insisti, mandei novos e-mails, argumentei que a sua história pessoal, justamente por ser quem era, dava uma nova dimensão e atualidade para descrever a violência que cometia o regime militar e seus sequazes. O fato de a vítima, nesse caso, ser uma jornalista nacionalmente conhecida, que atravessava o cotidiano dos brasileiros pela TV, pelo rádio, pelo jornal e pela internet, tornava ainda mais urgente e necessário o seu depoimento. Sagaz e inteligente, Míriam percebeu que eu tinha razão – e, aos poucos, foi cedendo à minha insistência. Até que topou falar, no longo telefonema que nos encharcou de emoção pelas verdades reveladas e pelas lembranças revividas.

Esse longo processo de convencimento levou quase um mês, complementado pelo envio de fotos de seu arquivo pessoal. Em 2011, quando se aproximou a instalação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que tanto desconforto provocou nos generais e seus subordinados, Míriam tratou de avivar sua memória. Sem contar nada ao marido e aos filhos, ela fez uma furtiva viagem de volta ao passado e ao inferno de sua juventude.

Saiu do Rio de Janeiro e uma hora depois desembarcou em Vitória. Pegou um carro, atravessou a Terceira Ponte, que liga a capital à cidade de Vila Velha, do outro lado da baía, e seguiu em direção a um dos principais pontos turísticos do Estado: o morro da Penha, uma elevação de 150 metros de onde se admira uma bela paisagem. No alto está o velho Convento da Penha, com uma história de 454 anos. Ao pé do morro está outro monumento: o Forte de Piratininga, ali plantado em meados do século 16.

O inferno de Míriam Leitão na ditadura: o belo forte do 38º Batalhão de Infantaria em Vila Velha (ES) | Foto: Exército

Míriam não fazia um repentino programa de turista. Era uma dorida viagem interior ao cenário dos piores momentos que a jornalista passou em sua vida. “Quando o país começou a discutir a criação da Comissão da Verdade, por volta de 2011, decidi voltar lá. Eu quis fazer minha viagem pessoal, um retorno particular à minha história”, explicou Míriam, no emocionado desabafo que fez pela primeira vez, quatro décadas após o inferno que amargou naquele cenário hoje encantador. Desde o final da Primeira Guerra Mundial, o forte lá embaixo abriga um batalhão de infantaria subordinado ao Comando Militar do Leste (antigo I Exército), no Rio de Janeiro. A construção mais antiga, redonda [na foto, no alto à esquerda], é o prédio histórico da Fortaleza São Francisco Xavier de Piratininga, reformado no século 17. Foi ali que a Míriam quase adolescente de 1972, uma menina grávida de 19 anos, desceu ao submundo da repressão desatinada que marcava o auge da violência do governo mais truculento da ditadura, o do general Emílio Garrastazú Médici.

O essencial da memória

Foi lá que Míriam enfrentou a danação de um nome que resumia como ninguém a truculência do regime: o coronel Paulo Malhães, o temido “Dr. Pablo” do DOI-CODI, e sua cobra. Ao ver meses depois na TV o velho torturador de 76 anos depondo para a Comissão da Verdade, Míriam chegou a duvidar que fosse o mesmo e fogoso oficial de 34 anos e cabeleira negra e farta que comandou seu interrogatório. Mas ela recordava bem que os outros militares o chamavam de “Dr. Pablo”, o codinome que Malhães usava no DOI-CODI.

Na sua volta ao passado, Míriam fez questão do isolamento: “Fui sozinha, não queria ninguém junto comigo. Era uma jornada só minha. Entrei e não precisei que ninguém me mostrasse o caminho. Era esquisito, não tenho bom senso de orientação, mas eu conhecia aquele quartel como a palma da minha mão. Percebi algumas reformas, paredes que não existem mais, escadas que mudaram de lugar, salas que foram modificadas. Não me permitiram ir a alguns lugares, mas o essencial estava na minha memória”, me contou Míriam, com o tremor na voz que traía os demônios que assombraram aquele lugar.

Míriam em 2011: na sala onde passou a noite de 1972 com a jiboia | Foto: Arquivo pessoal

Ela posou para fotos junto à porta da cela onde ficou um tempo, tiradas pelo motorista que a acompanhava. E conseguiu voltar à sala grande onde passou a madrugada de horror com a jiboia. “O lugar agora é um anfiteatro, mas eu fui direto ao ponto onde me mantiveram de pé, nua, durante horas, antes e durante o tempo em que fiquei com a cobra. É uma imagem que não sai da minha cabeça. Ali eu fiz essa foto”, explicou, abrindo pela primeira vez seu arquivo pessoal.

Míriam, em meio a tanto sofrimento, lembra de um paradoxo que vivia na época: “Minha cela ficava na fortaleza. Quando eu saía de lá à noite e era levada para outro local de tortura, eu a contornava e passava pela escadaria. Saía desse belo prédio circular, às margens da baía – e que hoje, por ironia, o Exército aluga para festas –, e era levada para a parte nova do quartel onde funcionavam algumas seções administrativas do quartel. Olhava aquele lugar lindo, lindo até hoje, o convento lá em cima, e pensava o quanto nada daquilo fazia sentido. Era uma beleza que contrastava com a violência daquele lugar. Eu não conseguia entender isso. Não entendia naquela época, não entendo até hoje”, dizia Míriam, a voz embargada pela emoção da memória.

Míriam: entre a beleza do cenário e o terror do quartel | Foto: Arquivo pessoal

Apesar de todo o drama humano contido no relato corajoso e inédito que Míriam Leitão fez ao OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA em agosto de 2014, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), fiel aos padrões debochados da família, resolveu apelar de novo para sua fracassada verve humorística.

Contestando um tuíte de Míriam, onde ela dizia que o maior erro da terceira via era tratar Lula e Bolsonaro como iguais, já que “Bolsonaro é inimigo confesso da democracia”, Eduardo respondeu no Twitter no domingo (3) com sua piadinha infeliz e debochada: “Ainda com pena da cobra…”

O deputado jocoso no Twitter: com o brilho particular do serpentário dos Bolsonaro

Sem pena do deputado, parlamentares do PSOL, PCdoB e PT entraram na segunda-feira (4) com uma ação no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados pedindo a cassação de Eduardo Bolsonaro por quebra do decoro parlamentar e apologia ao ato criminoso da tortura.

Neste momento é útil reler o depoimento inédito e comovente que Míriam Leitão – que completa 69 anos nesta quinta-feira (7) – deu ao OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, publicado na edição 812 de 19 de agosto de 2014. É provável, daí, que os leitores, sempre mais sérios e sensatos, fiquem com pena do deputado –e não da cobra.

Este é o depoimento de Míriam Leitão:

“Eu sozinha e nua. Eu e a cobra. Eu e o medo”

[Depoimento a Luiz Cláudio Cunha]

Míriam, ou Amélia: fotografada no dia da prisão, um domingo do final de 1972, quando ia para a praia. A ficha foi descoberta pelo repórter Matheus Leitão, seu filho, que a emoldurou e deu de presente à mãe | Foto: IPM/1º Exército

Eu morava numa favela de Vitória, o Morro da Fonte Grande. Num domingo, 3 de dezembro de 1972, eu e meu companheiro na época, Marcelo Netto, estudante de Medicina, acordamos cedo para ir à praia do Canto, próxima ao centro da capital. Acordei para ir à praia e acabei presa na Prainha. É o bairro que abriga o Forte de Piratininga, essa construção bonita do século 17. Ali está instalado o quartel do 38º Batalhão de Infantaria do Exército, do outro lado da baía.

Eu tinha dado quatro plantões seguidos na redação da rádio Espírito Santo e já tinha quase um ano de profissão. Eu vestia uma camisa branca larga, de homem, sobre o biquini vermelho. Caminhando pela Rua Sete em direção à praia, alguém gritou de repente:

– Ei, Marcelo?

Nos viramos e vimos dois homens correndo em nossa direção com armas. Eu reconheci um rosto que vira em frente à Polícia Federal. Meu ônibus sempre passava em frente à sede da PF e eu tentava guardar os rostos.

– É a Polícia Federal – avisei ao Marcelo

Em instantes estávamos cercados. Apareceram mais homens, mais um carro. Voltei a perguntar:

– O que está acontecendo?

Eles nos algemaram e empurraram o Marcelo para o camburão. Era uma camionete Veraneio, sem identificação. Eu tive uma reação curiosa: antes que me empurrassem sentei no chão da calçada e comecei a gritar, a berrar como louca, queria chamar a atenção das pessoas na rua. Mas ainda era cedo, manhã de domingo, havia pouca gente circulando. Achava que quanto mais gente visse aquela cena, mais chances eu teria de sair viva. Como eu berrava, me puxaram pelos cabelos, me agarraram para me colocar no carro. Eu, ainda com aquela coisa de Justiça na cabeça, reclamei:

– Moço, cadê a ordem de prisão?

O homem botou a metralhadora no meu peito e respondeu com outra pergunta:

– Esta serve?

As algemas eram diferentes, eram de plástico, e estavam muito apertadas, doíam no pulso. Viajamos sem capuz, eu e Marcelo, em direção a Vila Velha, onde fica o quartel do Exército. Eu ainda achava que não era nada comigo, que o alvo era o Marcelo. Ele estava no quarto ano de Medicina e tinha acabado de liderar a única greve de estudantes do país daquele ano, que trancou por dois dias as aulas na universidade de Vitória e paralisou os trabalhos no Hospital de Clínicas. Achei que estava presa só porque estava indo à praia com o Marcelo.

A Veraneio entrou no pátio do quartel, o batalhão de infantaria. Nos levaram por um corredor e nos separaram. Marcelo foi viver seu inferno, que durou 13 meses, e eu o meu. Sobre mim jogaram cães pastores babando de raiva. Eles ficavam ainda mais enfurecidos quando os soldados gritavam: “Terrorista, terrorista!”. Pareciam treinados para ficar mais bravos quando eram incitados pela palavra maldita. De repente, os soldados que me cercavam começaram a cantar aquela música do Ataulfo Alves: “Amélia não tinha a menor vaidade/ Amélia é que era mulher de verdade”. Só então percebi que minha prisão não era um engano. “Amélia” era o codinome que o meu chefe de ala no PCdoB tinha escolhido pra mim: “Você, a partir de agora, vai se chamar Amélia”. Quis reagir na hora, afinal não tenho nada de Amélia, mas não quis discordar logo na primeira reunião com o dirigente.

O comandante do batalhão era o coronel Sequeira [tenente-coronel Geraldo Cândido Sequeira, que exerceu o comando do 38º BI entre 10 de março de 1971 a 13 de março de 1973], que fingia que mandava, mas não via nada do que acontecia por lá. O homem que de fato mandava naquele lugar, naquele tempo, era o capitão Guilherme, o único nome que se conhecia dele. Ele era o chefe do S-2, o setor de inteligência do batalhão. Todos os interrogatórios e torturas estavam sob a coordenação dele. Ele pessoalmente nada fazia, mas a ele tudo era comunicado. Nesse primeiro dia me deu um bofetão só porque eu o encarei.

– Nunca mais me olhe assim! – avisou.

Coronel Geraldo Sequeira, comandante do 38º Batalhão de Infantaria: “mandava, mas não via nada”

Fui levada para uma grande sala vazia, sem móveis, com as janelas cobertas por um plástico preto. Com a luz acesa na sala, vi um pequeno palco elevado, onde me colocaram de pé e me mandaram não recostar na parede. Chegaram três homens à paisana, um com muito cabelo, preto e liso, um outro ruivo e um descendente de japonês. Mandaram eu tirar a roupa. Uma peça a cada cinco minutos. Tirei o chinelo. O de cabelo preto me bateu:

– A roupa! Tire toda a roupa.

Fui tirando, constrangida, cada peça. Quando estava nua, eles mandaram entrar uns 10 soldados na sala. Eu tentava esconder minha nudez com as mãos. O homem de cabelo preto falou:

– Posso dizer a todos eles para irem pra cima de você, menina. E aqui não tem volta. Quando começamos, vamos até o fim.

Os soldados ficaram me olhando e os três homens à paisana gritavam, ameaçando me atacar, um clima de estupro iminente. O tempo nessas horas é relativo, não sei quanto tempo durou essa primeira ameaça. Viriam outras.

Eles saíram e o homem de cabelo preto, que alguém chamou de Dr. Pablo, voltou trazendo uma cobra grande, assustadora, que ele botou no chão da sala, e antes que eu a visse direito apagaram a luz, saíram e me deixaram ali, sozinha com a cobra. Eu não conseguia ver nada, estava tudo escuro, mas sabia que a cobra estava lá. A única coisa que lembrei naquele momento de pavor é que cobra é atraída pelo movimento. Então, fiquei estática, silenciosa, mal respirando, tremendo. Era dezembro, um verão quente em Vitória, mas eu tremia toda. Não era de frio. Era um tremor que vem de dentro. Ainda agora, quando falo nisso, o tremor volta. Tinha medo da cobra que não via, mas que era minha única companhia naquela sala sinistra. A escuridão, o longo tempo de espera, ficar de pé sem recostar em nada, tudo aumentava o sofrimento. Meu corpo doía.

Não sei quanto tempo durou esta agonia. Foram horas. Eu não tinha noção de dia ou noite na sala escurecida pelo plástico preto. E eu ali, sozinha, nua. Só eu e a cobra. Eu e o medo. O medo era ainda maior porque não via nada, mas sabia que a cobra estava ali, por perto. Não sabia se estava se movendo, se estava parada. Eu não ouvia nada, não via nada. Não era possível nem chorar, poderia atrair a cobra. Passei o resto da vida lembrando dessa sala de um quartel do Exército brasileiro. Lembro que quando aqueles três homens voltaram, davam gargalhadas, riam da situação. Eu pensava que era só sadismo. Não sabia que na tortura brasileira havia uma cobra, uma jiboia usada para aterrorizar e que além de tudo tinha o apelido de Míriam. Nem sei se era a mesma. Se era, talvez fosse esse o motivo de tanto riso. Míriam e Míriam, juntas na mesma sala. Essa era a graça, imagino.

Gargalhadas do “Dr.Pablo”, o dono de Míriam: a graça era a jiboia do DOI-CODI com sua xará em Vila Velha

Dr. Pablo voltou, depois, com os outros dois, e me encheu de perguntas. As de sempre: o que eu fazia, quem conhecia. Me davam tapas, chutes, puxavam pelo cabelo, bateram com minha cabeça na parede. Eu sangrava na nuca, o sangue molhou meu cabelo. Ninguém tratou de minha ferida, não me deram nenhum alimento naquele dia, exceto um copo de suco de laranja que, com a forte bofetada do capitão Guilherme, eu deixei cair no chão. Não recebi um único telefonema, não vi nenhum advogado, ninguém sabia o que tinha acontecido comigo, eu não sabia se as pessoas tinham ideia do meu desaparecimento. Só três dias após minha prisão é que meu pai recebeu, em Caratinga, um telefonema anônimo de uma mulher dizendo que eu tinha sido presa. Ele procurou muito e só conseguiu me localizar no fim daquele dezembro. Havia outros presos no quartel, mas só ao final de três semanas fui colocada na cela com a outras presas: Ângela, Badora, Beth, Magdalena, estudantes, como eu.

Fiquei 48 horas sem comer. Eu entrei no quartel com 50 kg de peso, saí três meses depois pesando 39 kg. Eu cheguei lá com um mês de gravidez, e tinha enormes chances de perder meu bebê. Foi o que médico me disse, quando saí de lá, com quatro meses de gestação. Eu estava deprimida, mal alimentada, tensa, assustada, anêmica, com carência aguda de vitamina D por falta de sol. Nada que uma mulher deve ser para proteger seu bebê na barriga. Se meu filho sobrevivesse, teria sequelas, me disse o médico.

– A má notícia eu já sei, doutor, vou procurar logo um médico que me diga o que fazer para aumentar as chances do meu filho.

Mas isso foi ao sair. Lá dentro achei que não havia chance alguma para nós. Eu era levada de uma sala para outra, numa área administrativa do quartel, onde passava por outras sessões de perguntas, sempre as mesmas, tudo aos gritos, para manter o clima de terror, de intimidação. Na noite seguinte, atravessei a madrugada com uma sessão de interrogatório pesado, o Dr. Pablo e os outros dois berrando, me ameaçando de estupro, dizendo que iam me matar. Um dia achei que iria morrer. Entraram no meio da noite na cela do forte para onde eu fui levada após esses dois dias. Falaram que seria o último passeio e me levaram para um lugar escuro, no pátio do quartel, para simular um fuzilamento. Vi minha sombra refletida na parede branca do forte, a sombra de um corpo mirrado, uma menina de apenas 19 anos. Vi minha sombra projetada cercada de cães e fuzis, e pensei: “Eu sou muito nova para morrer. Quero viver”.

Um dia, um outro militar, que não era nenhum daqueles três, botou um revólver na minha cabeça e falou: “Eu posso te matar”. E forçou aquele cano frio na minha testa. Me deu um sentimento enorme de solidão, de abandono. Eu me senti absolutamente só no mundo. Pela falta de notícias, imaginava que o Marcelo estava morto. Entendi que iria morrer também e que ninguém saberia da minha morte, pensei. Mas não quis demonstrar medo. Lembro que o homem do revólver tinha olhos azuis. Olhei nos seus olhos e respondi: “Sim, você pode pode me matar”. E repeti, falando ainda mais alto, com ar de desafio: “Sim, você pode!”

Um dos interrogatórios foi feito na sala do capitão Guilherme, o S-2 que mandava em todos ali. Era noite, ele não estava, e me interrogaram na sala dele. Lembro dela porque havia na parede um quadro com a imagem do Duque de Caxias. Estava ainda com o biquíni e a camisa, era a única roupa que eu tinha, que me protegia. Nessa noite, na sala, de novo fui desnudada e os homens passaram o tempo todo me alisando, me apalpando, me bolinando, brincando comigo. Um deles me obrigou a deitar com ele no sofá. Não chegaram a consumar nada, mas estavam no limite do estupro, divertindo-se com tudo aquilo.

Eu estava com um mês de gravidez, e disse isso a eles. Não adiantou. Ignoraram a revelação e minha condição de grávida não aliviou minha condição lá dentro. Minha cabeça doía, com a pancada na parede, e o sangue coagulado na nuca incomodava. Eu não podia me lavar, não tinha nem roupa para trocar. Quando pensava em descansar e dormir um pouco, à noite, o lugar onde estava de repente era invadido, aos gritos, com um bando de pastores alemães latindo na minha cara. Não mordiam, mas pareciam que iam me estraçalhar, se escapassem da coleira. E, para enfurecer ainda mais os cães, os soldados gritavam a palavra que enlouquecia a cachorrada: “Terrorista, terrorista! …”

As primeiras três semanas que passei lá foram terríveis. Só melhorou quando o Dr. Pablo e seus dois companheiros foram embora. Entendi então que eles não pertenciam ao quartel de Vila Velha. Tinham vindo do Rio, é o que chegaram a conversar entre eles, em papos casuais: “E aí, quando voltarmos ao Rio, o que a gente vai fazer lá…” Isso fazia sentido, porque o quartel de Vila Velha integra o Comando do I Exército, hoje Comando do Leste, que tem o QG no Rio de Janeiro.

Quando o trio voltou para o Rio, a situação ficou menos ruim. Eles já não tinham mais nada para perguntar. Me tiraram da cela da fortaleza e me levaram para a cela coletiva. Foi melhor. Na cela do forte não havia janelas, a porta era inteiriça e minhas companhias eram apenas as baratas. Fiz uma foto minha, agora em 2011, ao lado da porta.

Míriam em 2011 na porta da cela de 1972: baratas | Foto: Arquivo pessoal

Até que chegou o dia de assinar a confissão, para dar início ao IPM, o inquérito policial-militar que acontecia lá mesmo, dentro do quartel. Me levaram para a sala do capitão Guilherme, o S-2, e levei um susto. Lá estava o Marcelo, que eu pensava estar morto. Os militares saíram da sala e nos deixaram sozinhos. Quando eu fui falar alguma coisa, o Marcelo me fez um sinal para ficar calada. Ele levantou, foi até a parede e levantou o quadro do Duque de Caxias. Estava cheio de fios e microfones lá atrás. Era tudo grampo.

Depois disso, o Marcelo foi levado para o Regimento Sampaio, na Vila Militar, no Rio de Janeiro, e lá ficou nove meses numa solitária. Sem banho de sol, sem nada para ler, sem ninguém para conversar. Foi colocado lá para enlouquecer. Nove longos e solitários meses… Nós, todos os presos e os que já estavam soltos, nos encontramos mais ou menos em junho na 2ª Auditoria da Aeronáutica, para o que eles chamam de ‘sumário de culpa’, o único momento em que o réu fala. Eu com uma barriga de sete meses de gravidez. O processo, que envolvia 28 pessoas, a maioria garotos da nossa idade, nos acusava de tentativa de organizar o PCdoB no estado, de aliciamento de estudantes, de panfletagem e pichações. Ao fim, eu e a maioria fomos absolvidos. O Marcelo foi condenado a um ano de cadeia. Nunca pedi indenização, nem Marcelo. Gostaria de ouvir um pedido de desculpas, porque isso me daria confiança de que meus netos não viverão o que eu vivi. É preciso reconhecer o erro para não repeti-lo. As Forças Armadas nunca reconheceram o que fizeram.

Nunca mais vi o capitão Guilherme, o S-2 que comandou tudo aquilo. Uma vez ele apareceu no Superior Tribunal Militar como assessor de um ministro. Marcelo foi expulso do curso de Medicina, após a prisão, e virou jornalista. Fomos para Brasília em 1977. Por ironia do destino, Marcelo só conseguiu vaga de repórter para cobrir os tribunais. E lá no STM, um dia, ele reviu o capitão Guilherme. Depois disso, não soubemos mais dele. Nem sei se o S-2 ainda está vivo.

O que eu sei é que mantive a promessa que me fiz, naquela noite em que vi minha sombra projetada na parede, antes do fuzilamento simulado. Eu sabia que era muito nova para morrer. Sei que outros presos viveram coisas piores e nem acho minha história importante. Mas foi o meu inferno. Tive sorte comparado a tantos outros.

Sobrevivi e meu filho Vladimir nasceu em agosto forte e saudável, sem qualquer sequela. Ele me deu duas netas, Manuela (3 anos) e Isabel (1). Do meu filho caçula, Matheus, ganhei outros dois netos, Mariana (8) e Daniel (4). Eles são o meu maior patrimônio.

Minha vingança foi sobreviver e vencer. Por meus filhos e netos, ainda aguardo um pedido de desculpas das Forças Armadas. Não cultivo nenhum ódio. Não sinto nada disso. Mas, esse gesto me daria segurança no futuro democrático do país.

 * jornalista, foi consultor do GT Operação Condor na Comissão Nacional da Verdade e escreveu Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (L&PM, 2008). cunha.luizclaudio@gmail.com

 

A morte quase obscura de um líder exemplar no país do capitão cafajeste

Luiz Cláudio Cunha*                                                               

A notícia, incompleta, saiu quase escondida na edição impressa de quarta-feira, 13 de janeiro de 2021, do maior jornal brasileiro. “Morre Alencar Furtado, ex-deputado cassado pela ditadura”, informou secamente a Folha de S.Paulo, numa única coluna de 30 linhas e 144 palavras, espremidas no canto inferior da sétima página do primeiro caderno, distante da honra da primeira página do dia.

As duas manchetes principais da A7 foram dedicadas a um candidato azarão de nome irrelevante na disputa pela Câmara dos Deputados e a uma nova investida da Lava Jato sobre propinas ao filho de um ex-ministro.

A “nossa pátria mãe tão distraída”, como acusa o verso de Chico Buarque em Vai Passar, não se apercebeu que, na madrugada de segunda-feira, 11, morria simplesmente um dos gigantes da política brasileira e da luta contra a ditadura. Não era apenas um “ex-deputado cassado”, que morria de insuficiência renal aos 95 anos, em sua casa em Brasília, onde se recuperava de um AVC (acidente vascular cerebral) sofrido pouco depois do Natal.

Alencar era muito mais do que isso: na condição de líder do MDB na Câmara dos Deputados, foi o último dos 4.682 cassados pelo regime militar de 1964, o 173º parlamentar castigado pelo AI-5 no espaço de 13 anos. Foi a 36ª cassação do Governo Ernesto Geisel, o derradeiro ato punitivo do quarto general-presidente, em 30 de junho de 1977, antecipando-se à linha-dura militar irritada pela histórica aparição de Alencar três dias antes em rede nacional de TV, tocando num tema sensível para o aparato repressivo do regime: a tortura e o desaparecimento de presos políticos.

O fim irrisório de um gigante: Alencar morre, quase oculto, em 30 linhas de uma remota página interna

O MDB havia descoberto uma brecha na lei restritiva da ditadura que permitia um único programa de 40 minutos, gravado, em rede nacional obrigatória de TV para debate de assuntos partidários. Quando o regime percebeu a manobra, tentou sustar no TSE, mas a Justiça Eleitoral garantiu a sua realização. Para aproveitar bem aquela nesga de luz nas telas censuradas da TV dos brasileiros, o MDB escalou seus quatro principais comandantes. Na transmissão, o presidente, deputado Ulysses Guimarães, condenou o AI-5. O líder no Senado, Franco Montoro, centrou fogo no alto custo de vida. O presidente do Instituto Pedroso Horta, deputado Alceu Collares, criticou o arrocho salarial. O líder na Câmara, Alencar Furtado, por fim, avançou corajosamente na delicada questão dos direitos humanos, produzindo uma das peças mais contundentes, líricas, inesquecíveis da história política brasileira.

Na noite de segunda-feira, 27 de junho, com a voz eloquente de advogado curtido em mais de 400 juris populares e a expressão seca de um rosto marcado desde criança pelo sol inclemente do semiárido cearense, Alencar despontou no horário nobre da TV, antes do Jornal Nacional, dizendo o indizível, atacando o inatacável, eternizado nesse trecho:

Sempre defendemos os direitos humanos. Hoje, menos do que ontem, ainda se denunciam prisões arbitrárias, prisões injustas e desaparecimento de cidadãos. O programa do MDB defende a inviolabilidade dos direitos da pessoa humana, para que não haja lares em prantos, filhos órfãos de pais vivos — quem sabe? — mortos, talvez. Órfãos do talvez ou do quem sabe. Para que não haja esposas que enviúvem com maridos vivos, talvez, ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe e do talvez.

 

Uma rua, dois cassados

Os profissionais de sangue e tortura dos DOI-CODI, que em seus porões de trabalho produziam aqueles órfãos, quem sabe?, e aquelas viúvas, talvez, detestaram a imprevista tirada poética de Alencar. No dia seguinte, 28, perguntado sobre o programa, o chefe do SNI, general Joao Baptista Figueiredo, respondeu: “Vi. Não gostei e acho que ninguém gostou.” Mas, nem o SNI que o general comandava se incomodou muito. No texto da Apreciação Sumária Nº 25, que o Serviço Nacional de Informações distribuiu a Geisel e aos principais gabinetes do Planalto na manhã de quarta-feira, 29, dois dias após a transmissão da TV, o programa do MDB foi citado superficialmente e a lancinante intervenção de Alencar acabou resumida em treze palavras irrisórias.[1] Quem acreditasse no SNI poderia, talvez, imaginar até que Alencar poderia se safar, quem sabe.

Apesar do descuido do araponga, o destino do líder do MDB já não dependia de um talvez, mas de quem sabia. Na tarde daquela quarta-feira, o ministro da Justiça, Petrônio Portella, telefonou para o secretário-geral do MDB, deputado Thales Ramalho, para confirmar o que se previa: “Thales, vamos ter reação”. Pediu que contasse apenas a Ulysses, mas fora do prédio do Congresso, indício claro de que o lugar deveria estar grampeado pelo SNI. Mais tarde, no seu apartamento, Thales antecipou a informação ao presidente do MDB.  “Vamos ter a cassação do Alencar”. Ulysses devolveu com outra pergunta, que denunciava os temores que sobrevoavam Brasília nas últimas horas: “Só do Alencar?”.[2]

A boataria dizia que uma dezena de oposicionistas, incluindo todos os quatro participantes do programa, seriam punidos. O alvo central era o líder da Câmara, que além de invadir o terreno proibido dos órfãos e viúvas, tinha pronunciado em seu mandato cerca de 40 discursos da tribuna com denúncias de torturas e críticas à política econômica do governo. Várias vezes, Alencar cobrou em seus discursos o desaparecimento do deputado Rubens Paiva, preso em janeiro de 1971 pela Aeronáutica, no Rio de Janeiro, torturado e morto no DOI-CODI carioca e até hoje desaparecido.

O ministro do Exército, Sylvio Frota, como Figueiredo, também viu e não gostou do MDB na TV. Na manhã de quinta-feira, 30, Frota mandou o telegrama 665 aos quartéis dizendo ter informado a Geisel sobre a repercussão negativa do programa, que ele classificava como “uma ação comunista para atacar os brios das Forças Armadas”.[3] O Planalto previa que a cassação do líder mais aguerrido da oposição teria repercussão internacional, e seria um abalo ainda maior se fosse punido também o presidente nacional do MDB. No último momento, Geisel tirou Ulysses da mira e trocou sua iminente cassação por um processo na justiça eleitoral, como responsável pelo programa.

O procurador-geral da República, Henrique Fonseca de Araújo, requisitou as fitas gravadas pela TV e abriu o inquérito naquele mesmo dia. Tempos depois, Ulysses foi absolvido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O líder do MDB na Assembleia paulista, Alberto Goldman, explicou anos mais tarde ao jornal O Estado de S.Paulo a súbita contenção de Geisel: “Ulysses só não foi cassado por seu histórico, porque sua figura tinha mais respaldo. Ele vinha do PSD, presidia a legenda e tinha uma postura mais moderada. Alencar era mais duro, incisivo, acusador. Geisel usou a cassação porque precisava enfrentar os militares radicais e mostrar que não era mole”.

A violência do AI-5 excluiu da vida pública brasileira mais do que um parlamentar duro. José Alencar Furtado era um predestinado ao combate. “Nasci no Araripe, cidade pequenina lá do Ceará. Minha cidade só tem uma rua. Mas tinha dois cassados da época da ditadura, eu e o Miguel Arraes”, contou ele.[4]

Hoje com 20 mil habitantes, Araripe, no extremo sul cearense, quase fronteira com Pernambuco, era ainda menor em 1925, quando Alencar nasceu. O menino Arraes, seu conterrâneo, nove anos mais velho, saiu da cidade ainda adolescente para concluir o ginásio numa cidade próxima e maior, Crato. Os dois não se conheceram na terra natal, mas a História sangrou seus destinos pela mesma lâmina afiada da ditadura.

Miguel Arraes era o governador de Pernambuco em abril de 1964, quando foi derrubado e preso pelos militares. Na sexta-feira, 10 de abril, um dia antes da ‘eleição’ presidencial do chefe do golpe, general Castello Branco, o Comando Supremo da Revolução divulgou o primeiro listão de cassados pelo regime militar. Eram exatos 100 nomes, uma lista aberta pelo líder comunista Luís Carlos Prestes e pelo ex-presidente João Goulart, além de 40 deputados federais. O ex-governador Leonel Brizola ocupava o 10° posto no índex.

Assim, na linha caprichosa do tempo, os dois garotos de Araripe, curtidos pela vida do sertão, cinzelados pela disputa política e castigados pelo regime militar, acabariam abrindo e fechando o ciclo punitivo que define o arbítrio do golpe de 1964. Arraes era o 4º nome da primeira lista de 100 cassações. E Alencar acabou sendo, em 30 de junho de 1977, aos 51 anos, o último punido da longa relação de 4.682 cassados em 13 anos de ditadura.

Arraes e Alencar, os filhos de Araripe: o pioneiro da primeira lista e o último cassado pela ditadura

Quase um terço dos cassados, 1.261, eram das Forças Armadas. Já no sábado, 24 horas após o listão dos 100 primeiros, o tacape do golpe caiu sobre 122 militares legalistas que apoiavam Goulart: 77 do Exército, 31 da Aeronáutica, 14 da Marinha. No domingo, outros 62 decapitados, mais da metade deles militares.

O general cristão

A rajada de punições da ditadura era ampla, geral e irrestrita. Mais de 300 professores, quase 500 legisladores sagrados pelo voto popular – de deputados federais a estaduais, de senadores a vereadores, além de 50 chefes de Executivo, de governadores a prefeitos. Três ex-presidentes – Jango, Jânio e Juscelino – e três ministros do Supremo Tribunal Federal.

A guilhotina era democrática. Decepou diplomatas, agrônomos, procuradores, carteiros, desembargadores, motoristas, sindicalistas, escrivães, policiais, promotores públicos, juízes, taifeiros, engenheiros, telegrafistas, médicos, guardas-civis, estivadores, eletricistas, ferroviários, advogados, jornalistas, bancários, dentistas, músicos, guardas-florestais, fiscais do Imposto de Renda, serventes, auditores militares. Até garçons e porteiros! Na vesga ótica militar deviam ser grave ameaça à segurança nacional e, por isso, foram degolados na fúria revolucionária.

A lógica estúpida dos militares se sustentava na arrogância incontestável do arbítrio. Ela está expressa no primeiro ato institucional, editado pelo Comando da Revolução em 9 de abril de 1964, no alvorecer da ditadura. Nem número tinha, o que acabou depois sendo necessário pelos 17 atos e 104 atos complementares decretados em sequência até 1969, tentando dar uma fachada legal ao processo de violência institucional do golpe.

O AI-1, que 48 horas depois levou ao pioneiro listão da centena de cassados, estabelecia na sua introdução, para eliminar qualquer dúvida sobre a origem e os limites de seu inexcedível poder:

[…]A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. […]. Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.

 

No penúltimo de seus 11 autossuficientes artigos, o AI-1 firmado pelos chefes do Exército, Marinha e Aeronáutica determina, para tranquilidade geral da nação: “No interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, os Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão suspender os direitos políticos pelo prazo de dez (10) anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses atos. ”

Treze anos depois, em junho de 1977, Alencar Furtado seria o último cidadão do país punido sem qualquer apreciação da Justiça.

A nova ordem ‘revolucionária’ se bastava e não se submetia a ninguém. Tudo fazia e nunca se justificava. Em seu depoimento à Comissão da Verdade, em 2014, Alencar deu a dimensão desse estado de truculência ao lembrar a história do engenheiro Virgildásio de Senna, que tinha assumido a prefeitura de Salvador pelo PTB em abril de 1963. No abril seguinte, foi atropelado sem sutilezas pelo golpe de 1964.

No dia 5 de abril, um domingo, o prefeito da capital baiana foi almoçar com amigos. Ao voltar no início da noite para casa, no bairro do Campo Grande, encontrou a rua cercada por tropas do Exército, escoltadas por dois canhões de campanha e holofotes enormes. Ele perguntou a uma pessoa o que estava acontecendo: “Estão prendendo o prefeito”, disse o morador, sem reconhecer o prefeito ao seu lado.  Virgildásio evitou a casa sitiada e procurou logo a maior autoridade do Exército na Bahia, o general Mendes Pereira, comandante da IV Região Militar. Ali mesmo, no quartel da Mouraria, o general deu voz de prisão ao prefeito, com uma explicação surreal: “Você está preso porque somos cristãos! ”.

O general Mendes Pereira justifica a prisão do prefeito Virgildásio e dos ‘comunistas’: “Somos cristãos!”

 Alencar lembrou à Comisão Nacional da Verdade que Virgildásio foi preso, cassado pelo AI-1 e solto dias depois. Pouco antes de liberar o prefeito, um porta-voz do comando militar ocupou o microfone de uma rádio de Salvador para esclarecer os fatos, sem maiores explicações ou qualquer justificativa, com a crueza típica e arrogante daqueles novos tempos: “O prefeito Virgildásio de Senna foi preso porque tinha que ser preso. E agora vai ser solto porque tem que ser solto. Boa noite!”.

Ao longo da ditadura, as cassações se distribuíram de forma desigual.

O provisório Comando Supremo da Revolução, no exíguo espaço de 15 dias que separou o golpe da posse do primeiro general-presidente, cassou 280 pessoas, mais de 18 a cada 24 horas. Castello Branco, o primeiro general-presidente, fez a faxina mais ampla, cassando 2.927 pessoas. O segundo presidente, Costa e Silva, decepou 631 nomes da vida pública.

A Junta Militar de 1969 — formada pelos três ministros militares, que reinou sobre o país por apenas dois meses, em setembro e outubro, logo após a trombose cerebral que tirou Costa e Silva do poder — cassou nesse curto espaço de tempo 205 pessoas, uma média de 3,4 punições por dia. O terceiro presidente, Emílio Médici, o mais sanguinário do período militar, usou o AI-5 por 603 vezes. O quarto presidente, Ernesto Geisel, abrandado pela faxina punitiva mais extensa de seus antecessores, cassou 36 vezes, encerrando a série de violência revolucionária com Alencar Furtado.

A matemática do arbítrio

Essa inédita contabilidade sobre a violência ‘revolucionária’ começou a ser feita em São Paulo no início de 1977, por um trio emérito de intelectuais: os jornalistas Mylton Severiano da Silva (o Myltainho) e Hamilton Almeida Filho (o HAF) e o historiador Joel Rufino dos Santos, que resolveram contar, literalmente, a saga dos cassados no Brasil.  Com a ajuda da pesquisadora Beth Costa e uma equipe de quatro pessoas, foi folheada toda a coleção do Diário Oficial, página por página, desde março de 1964 até a cassação de Alencar. Foram quase três mil cópias xerox, coladas em 680 páginas, com a matemática da violência revolucionário sobre 4.682 pessoas.

De início, o levantamento se destinava a um livro, que teria o título de Os Cassados. Mas acabou formatado para uma revista de oposição em São Paulo, a Extra – Realidade Brasileira. Antes que fosse publicada, porém, a ditadura impôs censura prévia à publicação. Decididos a não aceitar a intervenção dos militares, os seus editores desistiram da reportagem sobre os cassados e preferiram fechar a revista. E o material coletado em São Paulo, para sobreviver, acabou tomando o rumo inesperado de Porto Alegre.

Alencar na manchete e na matéria principal do CooJORNAL: o último dos cassados em 13 anos de ditadura

A reportagem inédita de quatro páginas, com a foto de Alencar Furtado na capa, foi a manchete do mensário gaúcho CooJORNAL em julho de 1977, com grande repercussão nacional, pois o número de 4.862 cassados era muito superior ao que se sabia até então.

O jornal da imprensa alternativa era editado em Porto Alegre pela primeira cooperativa de jornalistas do país. Fundada em 1974, a CooJORNAL cresceu e, três anos depois, era integrada por mais de 300 jornalistas vivendo a utopia de uma imprensa sem patrão e sem hierarquia, respirando o ar limpo e democrático do cooperativismo na atmosfera rarefeita e sufocante da ditadura.

Aquela edição do CooJORNAL com Alencar Furtado na capa vendeu 34 mil exemplares, a maior vendagem de sua história. Sofreu então a primeira ação ostensiva da ditadura, incomodada com a crescente relevância do pequeno jornal de Porto Alegre, que ganhava destaque entre os títulos mais conhecidos da chamada ‘imprensa nanica’ – um influente nicho de jornais de esquerda, oposicionistas, insurretos, onde brilhavam publicações semanais ou mensais do centro do país como Movimento, Opinião, Versus, Em Tempo, Bondinho e o irreverente O Pasquim, um abusado semanário carioca que se multiplicou com até 200 mil exemplares nas bancas.

Inquieta com o atrevimento do CooJORNAL, a ditadura apelou para a violência camuflada, envergonhada, mas sempre letal: mandou os agentes da Polícia Federal cumprirem uma discreta agenda de visitas aos assustados anunciantes do jornal, pressionando as empresas a cancelar os poucos anúncios que sustentavam as edições sempre ousadas do CooJORNAL.

Os militares mostravam um azedume cada vez maior com a pauta criativa do jornal, que recontava episódios da história recente brasileira, dava voz aos dissidentes do regime, replicava textos de intelectuais de esquerda e ouvia personagens execrados pela ditadura, muitos deles membros ilustres da lista dos 4.862 cassados pelo arbítrio.

O mau humor dos generais pode ser resumido pelo trecho da Informação Confidencial Nº 031 da Agência Central do SNI, de 19 de agosto de 1980, três anos após a cassação de Alencar Furtado. O redator do SNI se lamuriava, no relatório, daquilo que era o exato motivo de orgulho para os associados da cooperativa:

O periódico CooJORNAL, editado pela Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, caracteriza-se por divulgar artigos hostis ao governo. Apesar de a referida publicação ter tiragem de, apenas, 35 mil exemplares, seus artigos são comumente comentados pelos demais órgãos de imprensa, e passa, deste modo, a ter repercussão nacional.

Isso é o Brasil, gente!

Os bastidores da bombástica reportagem do Coojornal mostravam o medo endêmico que permeava o país, em meados de 1977, penúltimo ano de Geisel no Planalto. Naqueles tempos sem internet, e-mail ou celular, a remessa de matérias ou filmes fotográficos de uma cidade para outra era feita de forma quase artesanal, um pouco amadora, sempre voluntária.

Um repórter procurava aleatoriamente um passageiro no aeroporto, com destino à sede do jornal ou revista, e pedia o favor de levar em mãos um envelope lacrado com o material, que seria entregue no aeroporto de destino para alguém destacado pela publicação. O passageiro dizia seu nome e fones de contato, para evitar desencontros, e o repórter no aeroporto de origem passava pelo telefone os dados do portador, dando seu nome e descrição física, como o traje que vestia, para que fosse melhor identificado na fila do desembarque, no saguão do aeroporto de destino.

Bones, o editor, Myltainho, Hamilton e Rufino, que revelaram os 4.682 cassados: esse era o Brasil da ditadura

Era um arranjo que funcionava, quase sempre, dando agilidade e segurança para o envio de material. O que podia atrapalhar era a sensação de perigo e o temor que, eventualmente, poderiam intimidar o portador, em matérias politicamente mais sensíveis. Foi o que aconteceu e quase impediu a manchete dos cassados no Coojornal, como relatou com precisão o seu editor, jornalista Elmar Bones, na carta aos leitores do número 18 do mensário, de julho de 1977:

Encomendamos a reportagem a três colegas de São Paulo que já tinham um levantamento amplo sobre o assunto. Um levantamento, pelo que sabemos, ainda não feito no país. Durante dois dias eles trabalharam sem parar. Na segunda-feira, 4, as seis horas da manhã o repórter Hamilton Almeida Filho saiu direto da máquina para o aeroporto de Congonhas. […] No voo das 8h30 da Cruzeiro, Hamilton localizou um cidadão de maneira afáveis, simpático. Era um funcionário do Ministério da Fazenda que, prontamente, aceitou trazer o envelope.

No aeroporto de Porto Alegre, era outro o homem. Nervoso, gaguejando, travou o seguinte diálogo com a pessoa que foi apanhar o envelope:

— Olha, me desculpe, eu derramei cafezinho no material, ficou inutilizado.

— Não, mas o senhor pode me dar assim mesmo. Deve dar para ler, a gente arruma…

—Mas ficou imprestável, joguei fora…

— Isso é um absurdo, como é que o senhor fez isso? O senhor sabia o que tinha no envelope? Era uma reportagem.

A esta altura o homem mudou o tom de voz e explicou:

— Aconteceu o seguinte: abri o envelope e li o que tinha dentro. Aquele assunto…. Eu sou um funcionário do governo, não podia desembarcar com aquilo. Tinha autoridades me esperando, não posso me comprometer…. Eu destruí o material. Você deve compreender a minha situação.

Tremia o homem e não havia como reclamar dele. A solução foi esperar uma cópia providencialmente guardada em São Paulo e, desta vez, remetida pelas vias normais. Ao saber do fato, inédito em sua carreira de 15 anos de jornalismo, Hamilton exclamava do outro lado da linha:

— Isso é o Brasil, minha gente!

Esse era o Brasil, gente, e tudo aquilo aconteceu antes que Alencar Furtado fosse o personagem central na primeira página do Coojornal.  O Brasil do medo era produto, também, das trapaças e embustes engendrados pelos agentes da repressão. Uma armadilha dessas levou à cassação do deputado federal Marcos Tito, do MDB mineiro, o penúltimo punido pelo AI-5, duas semanas antes de Alencar Furtado. Em 24 de maio de 1977, Tito subiu à tribuna da Câmara para fazer um duro discurso contra a ditadura. Dias depois, o deputado Sinval Boaventura, da ARENA mineira, arauto da linha-dura militar, denunciou que Tito havia, de fato, lido um manifesto do clandestino PCB (Partido Comunista Brasileiro). Em 14 de junho, três semanas após seu discurso, Tito foi cassado.

A armadilha da Aeronáutica

Ele não foi vítima de um dedo-duro, mas alvo deliberado de uma maligna farsa do serviço secreto da Aeronáutica, o CISA (Centro de Informações da Aeronáutica). A revelação foi feita 40 anos depois pelo repórter Marcelo Godoy, de O Estado de S.Paulo, que entrevistou durante cinco horas, no Clube da Aeronáutica, no Rio, um anônimo coronel, codinome ‘Paulo Mário’, que trabalhou 28 anos no Núcleo do Serviço de Informações de Segurança, a contrainteligência da Aeronáutica.[5]

O CISA foi criado e chefiado pelo brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, a face mais radical da Força. Como major-aviador, em 1959, chefiou com outros militares a fracassada Revolta de Aragarças, contra o presidente Juscelino Kubitschek, quando Burnier planejava até bombardear os palácios do Catete e das Laranjeiras, no Rio.

Em carta ao presidente Geisel, o lendário brigadeiro Eduardo Gomes definiu Burnier assim: “Um insano mental inspirado por instintos perversos sanguinários, sob o pretexto de proteger o Brasil do perigo comunista”.   

Ulysses e Tito: o penúltimo cassado pelo ardil do CISA de Burnier, o ‘insano mental’ da FAB

 Tito agora era o alvo do CISA criado pela mente perversa de Burnier. “O deputado estava assumindo uma posição que estava nos incomodando muito”, justificou o agente ‘Paulo   Mário’ ao Estadão. “Realizamos algumas operações fundamentalmente de contrainteligência muito produtivas. Nenhuma com violência, mas foram ações que você faz para expor o inimigo a uma situação ridícula, que ele não contribuiu para aquilo, para desmoralizá-lo e acabar com ele”. O ardil montado pelo CISA foi trivial. Agentes da Aeronáutica escolheram uma edição de abril de 1977 do jornal Voz Operária, órgão oficial do ilegal PCB, que era impresso na Europa e despachado por correio para o Brasil.

Aquela edição trazia um editorial do partido, que acusava o regime de usar o medo e o arbítrio como método de governo. O CISA manipulou o texto, suprimiu cinco dos seus 24 parágrafos, disfarçando a origem da manifestação, e mandou entregar o documento no gabinete do parlamentar no Congresso. O papel foi recebido por um assessor de Tito, que o repassou ao deputado. “Levamos como se fosse coisa de estudante inconformado, pedindo para ele ler no plenário da Câmara. Ele caiu e leu. Acabou levando uma ferroada, cassado e posto na rua”, contou o coronel do CISA.

Duas semanas após a cassação de Tito, quem levou a ferroada foi Alencar Furtado, em 30 de junho, cassado pela manifestação na TV sobre os órfãos e viúvas do talvez e do quem sabe. Até chegar ao seu último ato político como parlamentar, com a dolorosa honra de ser o último dos 4.682 cassados do país, o líder do MDB foi muito além de um histórico, lírico discurso de denúncia sobre torturas e assassinatos da ditadura em rede nacional de TV.

Alencar Furtado foi figura crucial para a definição do perfil mais oposicionista do MDB e sua orientação política mais aguda, na luta mais aberta contra a ditadura e seu partido, a ARENA. Na primeira eleição em 1966, cerceado pela legislação restritiva dos militares, o MDB elegeu apenas sete das 23 cadeiras de senador em disputa. Na Câmara, conseguiu conquistar só 132 cadeiras de deputado federal entre as 409 vagas em disputa.

Na eleição seguinte, em 1970, o partido da oposição encolheu. Além das cassações anteriores e do endurecimento gerado pelo AI-5, o MDB convivia com o ufanismo oficial insuflado pelo tricampeonato da seleção do Brasil no México e a euforia nascente do ‘milagre econômico’ cozinhado pelo ministro Delfim Netto. Dessa vez, elegeu apenas seis senadores e conquistou somente 87 vagas na Câmara dos Deputados. A perda avassaladora de quase 50 cadeiras do MDB no Congresso, além da repressão e das regras eleitorais viciadas, foi atribuída aos 30% de votos brancos e nulos, expressão clara do desencanto e do protesto de um eleitorado descrente.

Combativo na juventude, Alencar Furtado integrou a Esquerda Democrática, dissidência da UDN nascida logo após a queda do Estado Novo, em 1945, que deu origem ao PSB, Partido Socialista Brasileiro, fundado no Ceará com a ajuda de Alencar.

Na década de 1950, seguindo a saga dos sertanejos, Alencar migrou do Nordeste para o Sul, fincando raízes em Paranavaí, no fértil norte do Paraná.  Lá se elegeu deputado federal na primeira eleição do MDB, em 1966, sagrado com 40 mil votos. Na disputa seguinte, em 1970, reelegeu-se com o apoio consagrador de 86 mil eleitores.

O bloco do MDB na rua

Em Brasília, o pequeno gigante de Araripe, com pouco mais de 1m65 de altura, deu força e veemência ao então burocrático MDB, que seguia a férrea, mas moderada liderança de Ulysses Guimarães. Alencar assumiu o protagonismo, na bancada emedebista de 87 deputados, de um grupo mais agressivo de 23 parlamentares que ganharam o justo carimbo de ‘Autênticos’. Centravam fogo na convocação de uma Constituinte, no fim da tortura, na volta dos exilados e na anistia aos presos políticos.  Ao lado dele estavam os nomes mais intensos e críticos da esquerda do MDB, como Marcos Freire (PE), Chico Pinto (BA), Fernando Lyra (PE), Lysâneas Maciel (RJ), Freitas Nobre (SP), Alceu Collares (RS), Jaison Barreto (SC), Amaury Muller (RS), Marcondes Gadelha (PB), Nadyr Rossetti (RS), Paes de Andrade (CE), Santilli Sobrinho (SP) e Marcos Tito (MG).

Foi de Alencar e seu grupo a ideia mobilizadora de uma anticandidatura presidencial, desafiando a ‘eleição’ de cartas marcadas do general Ernesto Geisel no Colégio Eleitoral, em janeiro de 1974. A ideia era percorrer o país para denunciar o paradoxo de uma eleição sem povo e a farsa de uma disputa sem adversário. O MDB, tangido pelos Autênticos de Alencar, iria sair do conforto dos gabinetes para sentir o clima irrespirável das ruas.

Na convenção do MDB que lançou o anticandidato, em setembro de 1973, Ulysses advertiu ao país:

[…] Não é o candidato que vai percorrer o país. É o anticandidato, para denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição que homizia o AI-5, submete o Legislativo e o Judiciário ao Executivo, possibilita prisões desamparadas pelo habeas corpus e condenações sem defesa, profana a indevassabilidade dos lares e das empresas pela escuta clandestina, torna inaudíveis as vozes discordantes, porque ensurdece a Nação pela censura à Imprensa, ao Rádio, à Televisão, ao Teatro e ao Cinema. […]

 

A caravana do anticandidato percorreu então capitais e estados com sua bandeira de volta à democracia, eleições diretas, anistia e Constituinte. Os brasileiros form encorajados, daí, a ouvir a verdade sobre a ditadura.

Ulysses combinara com Alencar e os Autênticos que, momentos antes do início da sessão de eleição, ele renunciaria para dar mais força à denúncia da farsa. Mas, Ulysses não cumpriu o acordo e se manteve na falsa contenda até a proclamação do resultado na disputa no Colégio Eleitoral. Aí, como estava previsto, Geisel foi ‘eleito’ com 400 votos, contra 76 dados a Ulysses. Em protesto, Alencar e 20 deputados dos Autênticos presentes no Congresso se abstiveram, acusando no microfone o jogo da ditadura.

Ulysses encerrou seu perene discurso evocando os versos de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso/Viver não é preciso”. Ali, com as velas “paridas de sonho, aladas de esperança”, como disse o anticandidato, começou a longa navegação iniciada por Alencar e seus argonautas nas águas revoltas da ditadura.

O MDB perdeu na falsa eleição de janeiro, como se previa, mas dez meses depois ganhou de forma inesperada e estrondosa nas eleições reais e gerais de novembro de 1974. Elegeu 16 das 22 cadeiras do Senado em disputa, conquistou 165 das 364 vagas existentes na Câmara dos Deputados. Os 6 milhões de votos para senador em 1970 viraram mais de 14 milhões em 1974. Os votos para deputado no MDB subiram de 4,7 milhões em 70 para 11 milhões em 74, garantindo 44% das cadeiras da Câmara.

Quatro anos depois, na sucessão também indireta de Geisel em 1978, a força da ditadura ficou ainda menor. O candidato oficial, general João Figueiredo, derrotou o anticandidato do MDB, general Euler Bentes Monteiro, por apenas 89 votos. Foram 355 contra 266 para o anticandidato, que recebeu mais do que o triplo dos votos obtidos quatro anos antes por Ulysses. As velas dos Autênticos estavam aladas de esperança.

Baioneta não é voto!

Na campanha verdadeira das ruas, Ulysses assumiu a odisseia do confronto mais direto com a ditadura, como queriam os Autênticos de Alencar. Em seu momento mais homérico, na noite de 13 de maio de 1978, em campanha pelo candidato do MDB na Bahia, ele se deparou com os cães e soldados do governador arenista Roberto Santos. Uma tropa de 400 PMs cercava o local do comício, na praça Dois de Julho, em Salvador, bloqueando a passagem da comitiva do MDB, que incluía os senadores Tancredo Neves (MG) e Saturnino Braga (RJ).

O moderado Ulysses perdeu a paciência. De dedo em riste, rompeu o cordão militar, indiferente aos latidos e ameaças da repressão e, ali mesmo, resolveu fazer um discurso inesperado para a tropa que tentava contê-lo. Uma fala e um gesto do mais autêntico MDB que entraram para a história:

Soldados da minha pátria! Enquanto ouvíamos as vozes livres que aqui se pronunciaram, ouvíamos o ladrar dos cães lá fora! O ladrar, essa manifestação zoológica, é do arbítrio, do autoritarismo que haveremos de vencer. Meus amigos, foi uma violência estúpida, inútil e imbecil. Saibam que baioneta não é voto e cachorro não é urna!

A odisseia e a ira de Ulysses, na Bahia, com Tancredo e Saturnino: “Baioneta não é voto, cachorro não é urna! ”

Em 1982 aconteceu a primeira eleição direta para governador, desde 1960. A ousada navegação iniciada uma década antes pelos Autênticos de Alencar alcançou novos portos. Apesar do voto vinculado, truque da ditadura que obrigava o eleitor a votar em candidatos de um mesmo partido, a oposição conseguiu eleger dez governadores, nove pelo MDB e um pelo PDT nos 22 Estados em disputa. Assim, na primeira brecha que o eleitor teve para votar diretamente, os três maiores Estados do país sagraram nomes da oposição: São Paulo (Franco Montoro) e Minas Gerais (Tancredo Neves), ambos do MDB, e Rio de Janeiro (Leonel Brizola), do PDT.

Dois anos depois, a quimera dos Autênticos desaguou no maior oceano de povo da história política brasileira, a campanha das Diretas-Já, com milhões de pessoas nas avenidas e praças clamando pelo voto para presidente e pela Constituinte.  Em 1985, enfim, a ditadura acabou afogada nas águas rasas de seu porto seguro, o Colégio Eleitoral, onde emergiu o vitorioso da oposição, Tancredo Neves, o primeiro presidente que não era general desde 1964. Três anos mais tarde, para completar o sonho de Alencar e seus Autênticos, a Constituinte legou ao país a Constituição-Cidadã de 1988. O resto é história.

Ulysses: com Alencar (esq.), ondulando com o povo nas praças, navegando com milhões nas ruas das Diretas-Já

Alencar Furtado morreu em janeiro de 2021, quando se completava o segundo ano do mandato presidencial de Jair Bolsonaro. Por razões distintas, são as duas faces do que era o Brasil e do que o Brasil virou.

Um é admirável pelo exemplo, o outro é repulsivo pelo que faz e diz. Alencar dedicou a vida à luta pela democracia, à bandeira dos direitos humanos e pela defesa dos cidadãos. Bolsonaro empenha sua palavra na defesa da ditadura, no desrespeito a avanços civilizatórios e no ataque contumaz a princípios consagrados em sociedades democráticas. Alencar lembrava das viúvas, ‘quem sabe’, e dos órfãos, ‘talvez’, produzidos pela ditadura. Bolsonaro fala sempre em defesa dos agentes da repressão que torturaram, ‘certamente’, e que mataram, ‘com certeza’, maridos, mulheres e filhos, produzindo as viúvas e órfãos dos dissidentes caçados a ferro e fogo pelo aparato de guerra interna armado pelo regime militar.

Um especialista em matar

O apreço pela vida de Alencar e a atração pela morte de Bolsonaro é a primeira e mais forte distinção entre os dois. O capitão, com os seus polidos coturnos de psicopata, escancarou sua mente doentia em 2017 em Porto Alegre, quando já era candidato a presidente, confessando numa reunião com empresários: “Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar”.

Três anos antes da aparição do Covid-19, ele já fazia sua opção preferencial pelo vírus em detrimento da vacina: “Minha especialidade é matar, não curar ninguém. Aprendi a atirar com tudo que é tipo de armas, sou paraquedista, sou mergulhador profissional. Sei fazer sabotagem, sei mexer com explosivos. Vocês [brasileiros] nos treinam, nos pagam para isso”.                                                    

Jair Bolsonaro: um especialista em matar, não em curar, e seus três Zeros, devotados às armas como o pai

Em maio de 1999, no Governo FHC, quando nem ele sonhava em ser presidente, Bolsonaro deu uma entrevista ao ‘Câmera Aberta’, da TV Bandeirantes, e arreganhou sua face genocida: “Através do voto você não muda nada neste país, nada…Só vai mudar, infelizmente, no dia em que nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro… e fazendo o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil. Começando com o FHC…. Matando! ”.

Vinte e dois anos depois, já presidente, o capitão coveiro realizou o seu sonho, legando ao país um vasto necrotério de mais de 270 mil mortes — nove vezes mais do que o total que ele sonhava para a ditadura dos seus devaneios.

O necrófago Governo Bolsonaro conseguiu, com sua incompetência e negacionismo endêmicos, superar a marca fúnebre dos outros dois governantes que, no passado, registravam as duas maiores mortandades da história brasileira.

O imperador Dom Pedro II (1825-1891) amargou na Guerra do Paraguai (1864-1870), o maior conflito armado na história da América do Sul, um número de mortos que oscila em torno de 50 mil brasileiros.

Prudente de Morais (1841-1902), o terceiro presidente da República recém proclamada, mobilizou o Exército para enfrentar em 1896 a rebelião messiânica que o beato Antônio Conselheiro liderou por 11 meses no vilarejo de Canudos, no interior mais pobre da Bahia, que só acabou com o massacre de 25 mil pessoas – incluindo a degola de velhos, mulheres e crianças.

Jair Bolsonaro, o 38º presidente da República — o pior presidente de nossa história, quem sabe, o mais estúpido governante do planeta, talvez —, não mexeu literalmente um único dedo enquanto o registro de vítimas chegava à marca de 270.917 mortes em 11 de março de 2021, exatamente um ano depois que a OMS classificou a Covid-19 como uma pandemia mundial. A primeira morte de Covid no Brasil aconteceu em 16 de março de 2020, em São Paulo. Apenas três meses depois, na última semana de junho, o país alcançou num único trimestre o mesmo número de baixas que teve em cinco anos e três meses do Século 19 na Guerra do Paraguai, a mais longa e sangrenta do continente: 50 mil mortos, uma letalidade só possível pela inação, teimosia e negacionismo do estúpido Bolsonaro.

Durante todo esse tempo, o que o capitão-presidente fez, de forma doentia e mórbida, foi debochar da doença, escarnecer dos doentes, desdenhar os mortos, desconhecer a ciência e desacreditar os médicos e profissionais da saúde.

Lágrimas na tela e um cafajeste

O país se habituou às emoções derramadas nas telas de TV por profissionais treinados, pelo ofício, no relato de tragédias e desastres do cotidiano. Mas, os dramas humanos e a angústia sufocante imposta pela rotina do Covid-19 romperam as comportas de emoção de rostos familiares aos brasileiros. Em momentos distintos, em programas variados, veteranos repórteres, apresentadores, âncoras e correspondentes se debulharam em lágrimas irreprimíveis, como nos casos de Natuza Nery (GloboNews), Guga Chacra (correspondente da Globo em Nova York), Fátima Bernardes (Rede Globo), Flávio Fachel (Globo/Rio) e Ilze Scamparini (correspondente da Globo em Roma). Solidários e fragilizados, todos eles choraram, com o recato possível, diante das câmeras de TV no Rio, em São Paulo, nos Estados Unidos, na Itália, vertendo as lágrimas que dão humanismo e sentimento ao jornalismo.

Antes que algum filho Zero de Bolsonaro faça alguma piadinha cretina sobre isso, insinuando que deve ser tudo chororô produzido pela Rede Globo, é conveniente lembrar que a dor é um sentimento que perpassa o ser humano, e não fica restrito aos estúdios de TV. Mais gente, mundo afora, para espanto do debochado clã Bolsonaro, também chora pelos mortos e louva a vida.

Assim, na TV, foi possível também testemunhar a emoção genuína e a dor comovente de gente chorando, sem controle, como o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio, a repórter Sara Sidner da CNN na Califórnia, o ator espanhol Miguel Herrán (que faz o personagem ‘Rio’ na série Casa de Papel ), o governador da Bahia Rui Costa e muitos, milhares, milhões de profissionais da saúde no mundo todo que combatem, ganham e perdem todos os dias a guerra exaustiva, infindável contra o Covid-19.

Enquanto isso, o divertido capitão Jair Bolsonaro ri, debocha, zomba e escancara sua alegria esquizofrênica diante de uma nação angustiada pela doença, esmagada pela dor, aflita pela cura, desorientada pela falta de empatia de um presidente desequilibrado

O capitão no seu hilário, cômico, irresistível, desopilante país de 275 mil mortos e 11 milhões de doentes

Por tudo o que faz e, principalmente pelo que não faz, Bolsonaro merece todos os adjetivos degradantes que definem sua personalidade necrófila, de desprezo pela vida, de raciocínio tosco, de comportamento abrutalhado, de pensamento demente.

Jair Bolsonaro é um viúvo de civilização, quem sabe?, e um órfão de humanidade, talvez. No momento mais macabro de sua história, o Brasil precisa enfrentar o desafio quase insuperável da pandemia convivendo com um governante patético no Palácio do Planalto.

Sua imagem de um esquizofrênico sorridente, em meio a tanta tristeza, é o retrato acabado de um cafajeste no poder.

O Brasil do admirável Alencar Furtado não merece a figura asquerosa de Jair Bolsonaro.

 

* Luiz Cláudio Cunha, jornalista, foi consultor da Comissão Nacional da Verdade e é autor de Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (L&PM, 2008). E-mail: cunha.luizclaudio@gmail.com 

 

 REFERÊNCIAS

[1] Apreciação Sumária nº 25, do SNI, de 29 de junho de 1977. In Elio Gaspari, A Ditadura Encurralada, 2004, p. 426.

[2] Depoimento de Thales Ramalho a Gaspari, op. cit., p. 427.

[3] Telegrama 665/Ministério do Exército, de 30 de junho de 1977. Arquivo Golbery do Couto e Silva. In Gaspari, op. cit., p. 428.

[4] Depoimento de 1h26 de Alencar Furtado à Comissão Nacional da Verdade, em Brasília, em 19/setembro/2014, na condição de vítima civil da ditadura.

[5] Marcelo Godoy. ‘O complô para cassar o deputado’. O Estado de S. Paulo, 8/dezembro/2018.

Naqueles tempos em que mataram Vlado

Luiz Cláudio Cunha*

O telefone tocou na sucursal da revista Veja em Porto Alegre e ecoou a voz firme, mas sempre cordial:

– Bom dia, companheiro Luiz Cláudio. Aqui é o Audálio Dantas!

Nem precisava se identificar. A voz inconfundível do jornalista de 46 anos ainda preservava um doce e sedutor sotaque alagoano, que não esqueceu suas origens nem quando o menino de Tanque D’Arca, no árido agreste de Alagoas, trocou aos 12 anos sua terra natal de apenas 5 mil habitantes pela mais populosa cidade do continente, São Paulo.

Era um telefonema improvável naquela manhã, na segunda quinzena de dezembro de 1975. Improvável porque, naqueles dias tormentosos, o presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo tinha, com certeza, coisas mais importantes a fazer do que telefonar para o sul do país. Naquele momento Audálio liderava, com firmeza, serenidade e coragem, o sentimento de indignação e revolta que envolvia a morte, sob torturas, do jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, nos porões do DOI-CODI do II Exército.

Outubro de 1975: Audálio Dantas, desolado diante do caixão do amigo Vlado, assassinado no DOI-CODI

O fim inesperado do diretor de jornalismo da TV Cultura, horas após se apresentar espontaneamente para um depoimento no centro da repressão paulista, em 25 de outubro de 1975, marcava o auge da investida da facção mais radical da direita militar, em aberta hostilidade ao quarto presidente da ditadura, general Ernesto Geisel.

Herzog era o 22º jornalista morto ou até hoje desaparecido pela repressão do regime. Só nos dois anos iniciais do Governo Geisel, a ditadura tinha registrado cerca de 60 desaparecidos políticos. Na escalada de violência de outubro de 1975, Herzog era o 12º jornalista preso no espaço de uma semana só na cidade de São Paulo, varrida por uma onda de detenções que atingiu mais de 200 pessoas – incluindo líderes sindicais, médicos, estudantes, professores universitários, advogados e membros da oposição legal, reunidos no MDB.[1]

Vítima de um falso ‘suicídio’, segundo a fantasiosa nota oficial do II Exército, Herzog, judeu nascido na Iugoslávia em 1937, foi sepultado dois dias depois, na segunda-feira, 27, na área do Cemitério Israelita do Butantã reservada aos mortos comuns, os honrados, não no espaço distante onde a fé judaica garantia espaço aos suicidas, execrados pelo judaísmo. A congregação do Chevrah Kadisha, que administra o cemitério, não encontrou nenhum indício de suicídio no corpo de Herzog, descartando assim o enterro segregado.

As vozes da solidariedade, como lembrou Audálio Dantas, começaram a ecoar a partir de segunda-feira, dia do enterro. A Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ) e a Organização Internacional dos Jornalistas (OIJ), que na época representavam mais de 230 mil profissionais de imprensa de todo mundo, protestaram. Mas, o medo ainda calava a maioria no Brasil. Dos 25 sindicatos de jornalista do país, apenas 11 se manifestaram contra o assassinato de Vlado – entre eles, o de Porto Alegre.

Audálio se mostrou surpreso e desalentado com a falta de apoio dos sindicatos operários, incluindo os do vibrante ABC paulista. Até o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, onde despontava um líder barbudo em ascensão chamado Luiz Inácio Lula da Silva, calado estava, calado ficou. O estrondoso e constrangedor silêncio do ABC sindical brotou na morte de Vlado, em outubro de 1975 e perdurou, de forma ainda mais embaraçosa, três meses depois, em janeiro de 1976, quando Manoel Fiel Filho, operário como eles, apareceu também ‘suicidado’ no mesmo DOI-CODI que matou Herzog.[2]

O ‘probleminha’ da tortura

A crise no coração da repressão do regime forçou a ida de Geisel a São Paulo na quinta-feira, 30, véspera do tenso culto ecumênico na catedral da Praça da Sé, centro maior da Igreja Católica na capital. O aparelho repressivo não queria nem mesmo investigar a morte do jornalista. Confrontado pelos generais Ednardo d’Avila Mello, comandante do II Exército, e pelo general Sylvio Frota, ministro do Exército, Geisel bateu pé pela investigação de um inquérito policial-militar, o IPM. “Não pode haver crime, ou morte, dentro de uma organização militar sem ser apurado”, trovejou o presidente, segundo Elio Gaspari, em A ditadura encurralada.

Rendido, naquele mesmo dia Ednardo informou, em nota, a instauração de um IPM para “apurar as circunstâncias em que ocorreu o suicídio do jornalista Vladimir Herzog”. O detalhe bizarro é que antes de mesmo de começar, o IPM já apontava sua teimosa conclusão dos fatos ainda não apurados: ‘suicídio’.

General Ernesto Geisel e o seu ‘probleminha’: Herzog e a simulação de suicídio no DOI-CODI

A suspeita precipitação não incomodou Geisel, que parecia no início interessado na correta apuração do crime. Duas décadas depois, em 1997, Geisel definiu tudo aquilo como um ‘probleminha’:

Não sei se o inquérito estava certo ou não, mas o fato é que apurou que o Herzog tinha se enforcado. A partir daí o problema do Herzog, para mim, acabou. (…). É possível que aquilo tenha sido feito para encobrir a verdade. Mas o inquérito tem seus trâmites normais, suas normas de ação, eu não iria interferir no resultado. (…). É preciso ver o seguinte: o presidente da República não pode passar dias, ou semanas, com um probleminha desses. É um probleminha em relação ao conjunto de problemas que ele tem.[3]

A farsa do IPM durou 47 dias, carimbando como ‘suicídio’ a morte de um jornalista moído sob torturas num enredo fantasioso que desperdiçou 299 folhas de papel imprestável. O IPM foi concluído em 12 de dezembro, uma sexta-feira, mas os seus pífios resultados só foram divulgados uma semana depois, dia 19, a sexta-feira seguinte.

Nasceu daí a ideia de contestar o falso IPM. Todos sabiam que um confronto direto com os militares poderia dar a eles o pretexto de uma intervenção no sindicato, sujeito à dura legislação que submetia o sindicalismo aos humores do Ministério do Trabalho. A solução seria transformar o sindicato em mero intermediário de uma contestação ao IPM organizada e assinada pelos jornalistas, uma ação coletiva que protegeria a entidade presidida por Audálio Dantas de qualquer ameaça de intervenção. O manifesto, ‘Em Nome da Verdade’, começou então a sua épica jornada de coleta de assinaturas, com ênfase central em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Porto Alegre, que concentravam a maioria dos jornalistas do país.

Era essa a explicação para o inesperado telefonema que atendi na sucursal gaúcha de Veja.

Audálio, diante da urgência do caso, me deu o prazo de uma semana para colher as assinaturas dos jornalistas de Porto Alegre. O ato de assinar um documento de aberta contestação à mentirosa versão do falso suicídio de Herzog era um gesto de coragem e dignidade dos jornalistas, a primeira contenda pública com o regime militar desde o advento do AI-5, em dezembro de 1968, exatos sete anos antes. O risco de represálias era elevado. Como havia dúvidas se os jornais publicariam o manifesto, os signatários de São Paulo e Rio, além da coragem, contribuíam com uma caixinha para custear a sua eventual publicação como matéria paga, um texto ‘a pedido’.

Os grandes jornais, ao contrário dos jornalistas, ainda mantinham uma postura de apoio, velada simpatia, disfarçada indiferença ou calculado silêncio diante da força e da censura do regime que eles sustentaram, antes e depois do golpe militar de 1ºde abril de 1964, uma data coerente com o ‘suicídio’ de Herzog.

União na conspiração

No Rio de Janeiro, antes mesmo do golpe, a conspiração conseguira unir os três grandes concorrentes da imprensa carioca: O Globo, o Jornal do Brasil e os Diários Associados.[4]  Roberto Marinho, Nascimento Brito e Assis Chateaubriand fundaram, em 26 de outubro de 1963, a cinco meses da derrubada de João Goulart, a ‘Rede da Democracia’, que ecoava em transmissão conjunta das rádios Jornal do Brasil, Globo e Tupi uma catilinária em cadeia nacional contra a ‘ameaça vermelha’ e a iminente tomada do poder pelos comunistas ligadas ao presidente Jango.[5]

Marinho, Brito e Chateaubriand: O Globo, JB e Associados, adversários, mas unidos em rede pelo golpe

No dia seguinte ao golpe vitorioso, 2 de abril de 1964, o Globo de Roberto Marinho festejava em editorial a intervenção militar: “Ressurge a Democracia!”. Em um trecho, tentava dar o amparo do Art. 176 da Constituição para o uso do arbítrio, definindo dessa forma as Forças Armadas: “São instituições permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade do presidente da República E DENTRO DOS LIMITES DA LEI”. Assim mesmo, em maiúsculas de tom quase verde-oliva, para camuflar a violência e vender a ideia de que o fora-da-lei era o presidente Goulart.

O Jornal do Brasil conseguiu ser mais rápido que O Globo no gatilho da adulação. Na véspera, 1º de abril, o jornal de Nascimento Brito saudou a vitória da democracia “contra a ameaça de uma república sindicalista” ou “a implantação de um regime comunista”, o que dava no mesmo. O JB já dava o movimento militar como vitorioso, enquanto os tanques dos generais Olympio Mourão Filho e Carlos Luís Guedes ainda rodavam de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro. No dia seguinte, 2 de abril, os dois jornais trombaram no seu entusiasmo. “Fugiu Goulart e a democracia está sendo restabelecida”, mentiu O Globo, desmentido na manchete daquele dia do Jornal do Brasil: “Goulart resiste no sul e o Congresso empossa Mazzilli”.[6]

O apoio ao golpe no JB não era restrito aos donos da empresa, condessa Pereira Carneiro e seu genro, Nascimento Brito. A cúpula do jornal – Alberto Dines (editor-chefe de 1962 a 1973), Carlos Lemos (chefe de redação), Wilson Figueiredo (editorialista) e Luiz Orlando Carneiro (chefe de reportagem) –, responsável pelo que era publicado, também festejou a derrubada de Jango, em franca oposição à redação do JB, na maioria integrada ou por simpatizantes do governo ou militantes da esquerda.[7] Daqueles quatro, doze anos depois, só aparece o nome de Alberto Dines no manifesto dos 1004 jornalistas contestando o ‘suicídio’ de Herzog.

Alberto Dines, Carlos Lemos, Wilson Figueiredo e Luiz Orlando, a cúpula do JB em 1964: apoio ao golpe

Uma década após o golpe, Alberto Dines era um bravo defensor de Vladimir Herzog contra as perfídias cometidas por jornalistas a serviço dos órgãos de repressão, numa campanha sórdida de delação contra a direção de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, que Vlado assumira em setembro de 1975, quase dois meses antes de morrer sob torturas no II Exército.

Um colunista do jornal Shopping News, Cláudio Marques, que ecoava notas e rumores oriundos dos porões militares, costumava fazer piadas sobre os hóspedes forçados do ‘Tutoia Hilton’, referência maliciosa ao endereço do DOI-CODI da rua Tutoia. Outro desafeto ostensivo de Vlado e da TV Cultura era Lenildo Tabosa Pessoa, militante extremista da direita católica e colunista do Jornal da Tarde.  Os torpedos canalhas dos dois jornalistas eram regularmente replicados, de forma combinada, por dois deputados da Arena, o partido da ditadura, na Assembleia paulista: Wady Helou e José Maria Marin. Na sua coluna semanal do ‘Jornal dos Jornais’, na Folha de S.Paulo, Dines era uma trincheira permanente de defesa de Vlado contra os libelos maldosos da dupla Marques-Pessoa e seus aliados.

Um outro grande jornal carioca da época, o Correio da Manhã, conhecido pela histórica tradição como liberal e independente, surpreendeu por sua meteórica adesão na hora crucial do golpe. Três anos antes, o Correio apoiara a posse de Jango, contestada pelos ministros militares diante da renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961. O jornal sustentou a posse de Juscelino Kubitschek em 1955, desafiada por focos militares de amotinados, e criticou a construção de Brasília, maior bandeira de JK.

Mas, nas 48 horas decisivas para a derrubada de Jango, o jornal produziu dois sucessivos editorais de impacto no vórtice da crise. O primeiro, “Basta! ”, saiu no 31 de março. O segundo, “Fora! ”, no dia seguinte, 1° de abril, quando Jango ainda permanecia presidente no Palácio Laranjeiras, no Rio. Dali, só por volta das 13h, Jango tomou o rumo da Base Aérea do Galeão e, de lá, voou para Brasília.

Já no final da manhã de 1° de abril, o Forte de Copacabana mudou de lado e, legalista, virou golpista, como relata o repórter Mário Magalhães. O quartel ao lado, o QG da Artilharia de Costa, foi tomado às 11h30, pouco antes da decolagem do avião presidencial para Brasília. Nos seus últimos momentos no Palácio do Planalto, Jango percebeu que a situação militar se deteriorava e, na noite daquela quarta-feira, 1º de abril, o Dia da Mentira, embarcou para Porto Alegre, onde aterrissou já na madrugada de quinta-feira, dia 2.

A tensa reunião da madrugada na residência do comandante do III Exército, general Ladário Telles, mostrava ao insone presidente que a tropa decisiva do Sul estava dividida. Jango só desistiu de fazer uma reunião com os generais no próprio QG do Exército ao ser informado que, se fosse lá, seria preso. Decidido a não resistir, Jango perambulou nas horas seguintes por algumas de suas fazendas na região de São Borja, na fronteira com a Argentina, até voar definitivamente em 4 de abril para o Uruguai. Só voltaria ao Brasil doze anos depois, morto, num caixão oriundo do exílio argentino.

O “Fora!”, editorial de 40 linhas e 475 palavras da quarta-feira, 1º de abril, do Correio da Manhã  foi publicado, portanto, quando Jango ainda permanecia no Palácio Laranjeiras. Nas primeiras cinco linhas, as 57 palavras iniciais resumiam o resto: “Fora! A Nação não mais suporta a permanência do Sr. João Goulart à frente do governo. Chegou ao limite final a capacidade de tolerá-lo por mais tempo. Não resta outra saída ao Sr. João Goulart que não a de entregar o governo ao seu legítimo sucessor. Só há uma coisa a dizer ao Sr. João Goulart: Saia!”.

O presidente, desalentado e surpreso, leu o editorial e comentou com um amigo: “Olha o que o Correio da Manhã está dizendo aqui…”

Ainda hoje não se sabe, com certeza, quem escreveu os dois editoriais que transformaram o Jango protegido de 1961 no Jango execrado de 1964, na soleira do abandono político. Quase 15 anos após o golpe de 1964, o redator-chefe, Edmundo Moniz, negou à Folha de S. Paulo ter sido o autor dos textos que dramatizaram o divórcio entre o presidente acuado e a mídia engajada no golpe: “Eu só sou autor daquilo que eu assino… O artigo foi feito pela redação, não posso dizer o autor dos artigos, eles são de responsabilidade do jornal. Os dois editoriais talvez fossem escritos por muita gente. Toda a redação mexeu. Não escrevi o artigo, mas o alterei”.

Edmundo Moniz, o editorial sem autor, e Cony: um corte aqui, uma alteração ali, uma pequena frase

A redação toda, na verdade, não mexeu, mas o time de editorialistas, sim. A equipe liderada pelo trotskista Moniz era integrada por intelectuais do nível de Otto Maria Carpeaux, Osvaldo Peralva, Carlos Heitor Cony e Newton Rodrigues. O próprio Cony esclareceu, na sua coluna na Folha, em novembro de 2002: “Minha participação limitou-se a cortar um parágrafo e acrescentar uma pequena frase. Hora e meia mais tarde, Moniz telefonou-me outra vez, lendo o texto final que absorvia a colaboração dos editorialistas, e, embora o conteúdo fosse o piloto elaborado por Carpeaux, a linguagem traía o estilo espartano do próprio Muniz”. [8]

Nos meses seguintes, apesar dos seus candentes “Basta!” e “Fora!”, o Correio da Manhã insistia teimosamente em algemar a palavra ‘Revolução’ de 1964 entre aspas, quase subversivas. Criticava os duros atos institucionais do regime e chegou a denunciar casos de tortura. A dona do jornal, Niomar Moniz Sodré Bittencourt, foi presa por dois meses pela ditadura, em janeiro de 1969. Nove dias depois, os militares deram um ‘basta’ na proprietária do Correio e lhe deram um ‘fora’ de dez anos da política, cassando seus direitos pelo AI-5. Descarnado e sem alma, o jornal foi arrendado meses depois a um grupo de empreiteiros, sem jamais recuperar seu prestígio. Morreu sem choro nem vela em 1974.

Em São Paulo, o envolvimento dos grandes jornais antecedia o golpe, começando na conspiração para derrubar Jango. No início de 1962 oficiais das Forças Armadas, falando em nome de um trio histórico de conspiradores – o marechal Odylo Denys, o almirante Sílvio Heck e o brigadeiro Gabriel Grun Moss –, foram a São Paulo para um encontro com Júlio Mesquita Filho, dono de O Estado de Paulo, a quem entregaram um documento sobre as normas que iriam orientar o governo militar após a queda de Jango.

O grupo, integrado pelos generais Cordeiro de Farias e Orlando Geisel, foi mais explícito com o dono do Estadão: o regime discricionário teria de ficar no poder por pelo menos cinco anos. Animado com a conversa, Mesquita chegou ao ponto de sugerir oito nomes para o futuro ministério revolucionário, incluindo entre eles Mem de Sá, Roberto Campos, Dario de Almeida Magalhães e Milton Campos. Todos os quatro chegaram lá.

Com o jurista Vicente Rao, advogado da mineradora americana Hanna, Mesquita chegou a fazer o rascunho de um Ato Institucional para fechar o Senado, a Câmara e todas as Assembleias estaduais e cassar mandatos – o mesmo instrumento de força que a ditadura anos depois faria seu jornal engolir com o Ato Institucional nº5, na forma de versos de Camões e receitas de bolo.[9]

“Até ali [o AI-5], nós vínhamos divergindo em caso e número, mas não em gênero, porque sabíamos que o processo tinha que ser aquele, achávamos que devia ser aquele”, reconheceria anos depois Ruy Mesquita, irmão de Júlio e também diretor de O Estado de S. Paulo.[10]

Em entrevista a Audálio Dantas, em 2005, Mesquita foi além: “Não só apoiamos, como conspiramos”.[11] Ao contrário do pai, o jornalista Ruy Mesquita Filho, o Ruyzito, um dos herdeiros do Grupo Estado, é um dos 1004 signatários do manifesto contra o ‘suicídio’.

Ruy Mesquita e Ruyzito: o pai, ao contrário do filho, não assinou o manifesto contra a farsa do Exército

O outro grande jornal paulista, a Folha de S.Paulo, tinha um envolvimento até logístico, além de ideológico, com o golpe militar. As peruas Chevrolet C-14, da frota que transportava jornais para as bancas, muitas vezes foram usadas para levar ou trazer gente torturada na Oban, a Operação Bandeirantes, núcleo integrado da repressão.

Carlos Eugênio Paz, o chefe do Grupo Tático de Ação (GTA) da organização guerrilheira Aliança Libertadora Nacional, reforça: “A ALN queimou vários carros da Folha como represália à participação do Grupo Folha no financiamento da repressão e ao uso de seus carros na repressão direta. Ao fazer isso, atuando na guerra, o Grupo Folha era passível de sofrer as sanções e as represálias da guerra. O Grupo Folha apoiou o golpe de estado, financiou, participou diretamente da repressão e jamais fez autocrítica disso”.[12]                                                                                         

Octávio Frias: a perua da Folha, queimada pela guerrilha, e o vespertino que virou porta-voz da repressão

A redação de policiais

O vespertino do grupo, a Folha da Tarde, era a ponta avançada do extremismo radical da empresa, o porta-voz oficioso da repressão política. Até 1968 era um jornal de esquerda, mais inquieto, que concorria diretamente com o irmão mais novo do Estadão, o Jornal da Tarde. No comando da redação estava um jornalista egresso da Última Hora janguista, Jorge Miranda Jordão, que tinha sob seu comando alguns jornalistas ligados à ALN, grupo da luta armada liderada por Carlos Marighella. O advento do AI-5 virou o fio do jornal. Houve uma limpeza na redação e, a partir de julho de 1969, a Folha da Tarde converteu-se num diário que o jornalista Cláudio Abramo resumiu numa palavra: “Sórdido”.

O dono do Grupo Folha, Octávio Frias de Oliveira, trocou o esquerdista Jordão por Antônio Aggio Jr., um jornalista especializado em cobertura policial. Um redator da editoria de ‘Mundo’ cumpria dupla jornada: trabalhava à tarde no jornal e, de manhã, no DOPS comandado pelo delegado Sérgio Fleury, o mais ilustre nome da máquina de tortura brasileira. “Muitos jornalistas andavam armados na redação. O Aggio mesmo circulava com uma maleta em forma de violino. Era uma carabina turca”, revelou a jornalista Beatriz Kushnir, autora de um livro cortante sobre o colaboracionismo da grande imprensa com a ditadura e a censura.[13]

Os antigos militantes de esquerda foram substituídos por policiais que escreviam, mantendo até o duplo emprego entre redação e o aparato repressivo. A FT, inexpressiva nas bancas, passou a ser conhecida como “o jornal de maior tiragem” – uma piada lúgubre sobre a taxa de ‘tiras’ (policiais) que infestavam sua redação, também conhecida como ‘delegacia’.

Assim como Chateaubriand e Marinho no Rio, as famílias Mesquita e Frias em São Paulo integravam o centro ideológico da mídia no golpe, concentrado no IPES. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, fundado no Rio em novembro de 1961, três meses após a renúncia de Jânio Quadros, reunia a nata do empresariado, nacional e multinacional, com todos os nomes, sobrenomes e siglas que ainda hoje enfeitam as listas das maiores empresas do país. Um empresário de origem americana no Rio, Gilbert Huber Jr., dono da então poderosa Listas Telefônicas, articulou-se com um empresário de uma multinacional em São Paulo, João Batista Leopoldo Figueiredo, ex-presidente do Banco do Brasil no Governo Jânio e tio do futuro presidente Figueiredo.

Acabaram recrutando militares da reserva – um deles, o general Golbery do Couto e Silva.

Parecia um inocente clube de homens de negócios. Mas, na sua face oculta, sob siglas e codinomes, o IPES concentrava a execução metódica de um pensado plano da burguesia nacional para combater, de forma clandestina, os seus três principais inimigos: o Governo Jango, a aliança nacionalista do PTB e o comunismo, que aparentemente resumia tudo aquilo. O braço político ostensivo do IPES era o IBAD, Instituto Brasileiro de Ação Democrática, que apesar do nome tinha ligações com o MAC, Movimento Anticomunista, e com a organização da direita católica Opus Dei.

O fundador do IBAD em 1959 foi o integralista Ivan Hasslocher, dono da Promotion, uma agência de publicidade que promovia o lobby do IBAD e seu braço parlamentar, a ADP – Ação Democrática Popular, um núcleo conservador de 160 parlamentares da centro-direita no Congresso reunido em torno da UDN, PSD e PSP. A ADP fazia contraponto à Frente Parlamentar Nacionalista, que orbitava no universo do PTB e dos aliados da esquerda. Segundo o historiador uruguaio de nascimento René Dreifuss, a ADP tinha sua ação política patrocinada pela estação no Rio de Janeiro da CIA, a agência de inteligência americana focada em campanhas políticas e grupos de pressão.[14]

Homens da mesma linha de pensamento e com igual propósito juntaram, a partir de 1962, as duas entidades: nascia o complexo IPES/IBAD, matriz ideológica e operacional da conspiração que daria o golpe e, depois, forneceria os quadros e dirigentes do aparato estatal que sustentou o regime militar. O IPES operava como centro estratégico, e o IBAD, como unidade tática. O monstro crescia junto com a conspiração. Em 1963, os 80 membros originais do IPES pularam para 500. Eram sócios 26 dos 36 líderes da FIESP, a maior federação industrial do país. A entidade se espalhava pelas capitais do país.

Intelectuais a soldo

 A articulação dos empresários com os militares era feita pelo Grupo de Levantamento da Conjuntura (GLC) do IPES, comandado pelo general Golbery, que atuava sobre o I (Rio) e III (Porto Alegre) Exércitos. A ‘ordem de serviço com calendário’ do GLC, que definia a estratégia de ação, tinha uma edição limitada de 12 exemplares, que não eram registrados nas atas do IPES. A equipe de Golbery distribuía nos quartéis uma circular bimestral mimeografada, sem citação da fonte, avaliando a atividade ‘comunista’ no país, apontando o dedo para subversivos infiltrados no governo e mapeando suas ações.

Golbery e o QG do golpe, no 27º andar do Avenida Central: 3 mil grampos de telefone só no Rio

Só no Rio de Janeiro o GLC de Golbery tinha três mil telefones grampeados[15]. O grupo do general ocupava quatro das 13 salas que o IPES havia alugado no 27° andar do Ed. Avenida Central, na av. Rio Branco, no centro da cidade. A conta do telefone era faturada em nome do general da reserva Henrique Geisel, irmão de Ernesto.O GLC escrutinava a produção diária da imprensa do país, um total de 14 mil edições no ano, e produzia mensalmente cerca de 500 artigos, disseminados pelos jornais ou divulgados em forma de palestras.

Neste trabalho era fundamental manipular a expressão da sociedade. O objetivo central do Grupo de Opinião Pública (GOP) do IPES era disseminar seus objetivos na imprensa falada e escrita. Dissimulado, o grupo evitava o nome “opinião pública”, preferindo as expressões “divulgação” e “promoção”. O GOP era “a base de toda a engrenagem”, definia o general Heitor Herrera, um dos líderes do IPES. José Luís Moreira de Souza, dono da Denison Propaganda, dizia que “conquistar a opinião pública” era a essência da ação política do grupo. O principal articulador do GOP era um ex-comissário de polícia, José Rubem Fonseca, que nas décadas seguintes se consagraria como o maior contista vivo do país, ganhador em 2003 do Prêmio Camões, o Nobel dos escritores de língua portuguesa.

Rubem Fonseca coordenava, entre outros, jornalistas no Rio, como Glauco Carneiro e Wilson Figueiredo (o editorialista golpista do JB ), e em São Paulo, como Ennio Pesce[16] e Flávio Galvão, estrelas do Estadão. Intelectuais de respeito estavam no balaio de Fonseca e do IPES: a escritora Nélida Piñon (secretária da entidade no Rio), o cronista Odylo Costa, filho, o poeta Augusto Frederico Schmidt e a romancista Rachel de Queiroz – todos irmanados na agitação golpista em favor do general Castello Branco, primo de Rachel.[17]

Rubem Fonseca, Nélida Piñon e Rachel de Queiroz: escritores assalariados pelo golpe

O que acontecia na grande imprensa do Rio e São Paulo se repetia na grande imprensa gaúcha, que teve conivência e complacência com o golpe, antes e depois de 1964.

O Diário de Notícias, o principal órgão Associado no sul, foi depredado e incendiado pela população de Porto Alegre, em agosto de 1954, ao ecoar o tiro do suicídio de Getúlio Vargas, atribuído à forte oposição da imprensa, onde se destacava o grupo de Chateaubriand. Sua adesão ao golpe, em 1964, não impediu sua decadência, até fechar em 1979.

A Zero Hora  já nasceu depurada e lavada ideologicamente em 4 de maio de 1964, um mês e quatro dias depois que o general Olympio Mourão Filho desencadeou o golpe, mobilizando as tropas da 4ª Divisão de Infantaria que ele comandava em Juiz de Fora, em Minas Gerais. Herdou do jornal Última Hora as máquinas e a antiga sede na rua Sete de Setembro, no centro de Porto Alegre, mas livrou-se rapidamente do logotipo, da cara e da comprometedora intimidade ideológica de seu antecessor nas bancas e de seu dono no expediente, Samuel Wainer, identificado com o getulismo, a esquerda e o Governo Jango.

A Última Hora gaúcha era a edição mais jacobina da ágil rede de jornais de Wainer, que além do Rio e São Paulo publicava edições simultâneas e vibrantes em outros nove centros do país – capitais como Belo Horizonte, Recife, Niterói, Curitiba, Porto Alegre e outras quatro cidades do interior paulista, inclusive a emergente região sindical do ABC.[18]

Era natural, portanto, que herdasse também todos os inimigos e a santa ira da nova ordem militar. A UH de Porto Alegre sentiu o golpe, literalmente. Tentou manter a linha editorial e o sonho de uma resistência de Jango ao levante militar até o dia 5 de abril. Resfolegou na impossível neutralidade por mais três semanas e, afinal, sucumbiu em 25 de abril do ano da graça de 1964. O diretor da edição gaúcha, Ary de Carvalho, ainda procurou manter a equipe, a marca e a estrutura do velho jornal. Viajou ao Rio, para uma conversa de negócios com Wainer, então exilado na Embaixada do México. Carvalho fez a proposta, e Wainer topou vender as máquinas de escrever, as oito máquinas fotográficas, as quatro lambretas, os dois carros e o arquivo de fotos – mas não aceitou vender o título do jornal.

Da Ultima Hora de Samuel Wainer para a Zero Hora de Ary de Carvalho: a mudança foi além do logotipo

Wainer mandou fechar a UH. Com outros três empresários, Carvalho comprou máquinas e equipamentos da redação, segurou alguns membros da equipe e tratou de fundar um novo diário em maio de 1964. Pediu ao chefe da diagramação, o argentino de nascimento Aníbal Bendatti, uma logomarca para o novo jornal – “parecida, mas diferente da Última Hora[19]. Bendatti datilografou as palavras Zero Hora, ampliou os tipos da máquina de escrever, livrou o título antigo do retângulo e cravou a nova marca num quadrado comportado. Preservou apenas o azul dos velhos tempos na cara do diário que já nascia simpático ao regime de 1964. A simpatia dos conspiradores foi ainda maior.

Ary de Carvalho trazia ligações de família decisivas desde Birigui, cidade do interior paulista onde se iniciou em 1926 a carreira de sucesso de um antigo office-boy de uma agência local do Banco Noroeste chamado Amador Aguiar. Décadas depois, Aguiar tinha um emprego novo e o seu próprio banco, o Bradesco, ambos engajados de corpo e alma no projeto golpista do IPES. Nada mais natural, assim, do que ajudar o velho amigo de um jornal que já nascia amigo dos vitoriosos de abril de 64.

Com o dinheiro do Bradesco, Carvalho livrou-se dos antigos sócios e cresceu. Ganhou anos depois um novo parceiro, o radialista Maurício Sirotsky, que em 1962 criara a TV Gaúcha, então filiada à Rede Excelsior. Juntos compraram em Chicago, EUA, a moderna máquina de impressão em off set que tornou a Zero Hora o segundo jornal do país a adotar a novidade (o primeiro tinha sido a Folha de S.Paulo de Frias).

O esforço fez o jornal cambalear financeiramente, e, em abril de 1970, seis anos após o golpe, Carvalho vendeu as ações que tinha ao sócio e retirou-se para o Rio de Janeiro. Sirotsky, agora o único dono de Zero Hora, fizera em 1965 um movimento tático decisivo: trocou a Excelsior pela nascente Rede Globo de Roberto Marinho, a organização jornalística que mais cresceria sob a ditadura. No vácuo desse sucesso nasceu, cresceu e apareceu a RBS, a Rede Brasil-Sul de Sirotsky, hoje o grupo de mídia mais poderoso do sul do país, nascido dos escombros da Última Hora esmagada pelos tanques de 64.

O fazendeiro ancora no golpe

Até aparecer a RBS, a empresa jornalística mais influente e rica do Rio Grande do Sul era a Caldas Júnior, que editava o jornal mais importante do Estado, o Correio do Povo, operava a rádio mais ouvida, a Guaíba, e mantinha um vespertino de larga penetração, a Folha da Tarde. Atravessou sem sobressaltos a turbulência de 1964 porque era uma empresa conservadora, mantida sob o rígido controle de seu dono, Breno Caldas. Tinha apenas 25 anos quando assumiu o jornal, em 1935. O pai, fundador do Correio do Povo meio século antes, morrera prematuramente aos 45 anos, em 1913, mergulhando a empresa numa crise financeira que durou até a chegada de Breno Caldas.

Dono de jornal e fazendeiro, Breno Caldas cultivava uma previsível hostilidade contra as reformas de base de João Goulart e antipatia ainda maior contra o cunhado do presidente, Leonel Brizola – que na crise da renúncia de Jânio em 1961 requisitou a sua rádio Guaíba para montar em torno dela a “Rede da Legalidade”, que no gogó brecou o golpe militar e, com a adesão inesperada do III Exército, garantiu a posse de Jango.

Nos idos de 1962, o líder do IPES carioca, José Luiz Moreira de Souza, dono da Denison Propaganda, viajou a Porto Alegre para botar a Caldas Júnior no balaio da conspiração. Ganhou as graças de Arlindo Pasqualini, irmão de Alberto, ideólogo do trabalhismo que o IPES combatia. Arlindo, diretor da Folha da Tarde e o sucessor natural do dono da empresa, Breno Caldas, recebeu a missão de produzir uma série de artigos contra Leonel Brizola, que já não tinha a simpatia da casa desde a Campanha da Legalidade do ano anterior.[20]

A animosidade cresceu no governo Jango. Brizola pegou gosto pelo microfone e batia regularmente em Breno Caldas às sextas-feiras, no seu programa noturno na rádio Farroupilha, que curiosamente fazia parte da rede dos Diários Associados do golpista Chateaubriand. O ex-governador adotava um tom coloquial e direto ao falar na rádio: “Dr. Breno, eu sei que o senhor está me ouvindo aí no seu iate ancorado no Guaíba…”. A chicotada vinha em seguida: “O Correio do Povo, que já foi jornal do povo, hoje não é. Agora é um órgão da oligarquia, dos monopólios, dos trustes internacionais…”, batia Brizola.[21].

Breno Caldas, ancorado no iate Aventura, levando torpedos pelo programa de rádio de Leonel Brizola

A resposta vinha na primeira página da Folha da Tarde, nos artigos assinados por seu diretor, Arlindo Pasqualini, o homem do IPES dentro da Caldas Júnior. Como bom fazendeiro e criador de cavalos, Breno tinha afinidades campeiras com Jango, a quem chamava por “tu”, expressão de intimidade entre gaúchos. (Para manter a distância, Breno sempre tratava Brizola pelo cerimonioso “doutor”). Quando o golpe aconteceu, acabaram as cerimônias.

Nos primeiros editoriais após o golpe de 1964, o jornal abandonou sua histórica divisa da primeira edição de 1895 – “independente, nobre e forte” – e aderiu à facção vitoriosa, assumindo uma postura subalterna à nova ordem militar. E escancarou seu apoio em editoriais didáticos para explicar por que os revolucionários do golpe de 1º de abril estavam certos: “Aquele era o único caminho para salvar o Brasil”, dizia o jornal que se pretendia independente, nobre e forte, fazendo o coro de submissão com a grande imprensa golpista do centro do país.[22]

Falando, Breno Caldas tentava matizar o que era mais explícito nos editoriais. Em 1987, dois anos antes de morrer, em entrevista ao jornalista José Antônio Pinheiro Machado, ele reconhecia: “A Revolução de 1964, de certo modo, contou com a nossa participação, ou pelo menos com a nossa simpatia. O pessoal que foi ao poder em 1964… não é que fosse ligado a nós, não tínhamos ligações políticas com ninguém…, mas eram pessoas afinadas conosco, estávamos no mesmo caminho. Quando houve a tal conspiração do Castello Branco, eu não sabia de nada oficialmente. Até que o general Adalberto Pereira dos Santos, que comandou o movimento por aqui, fez um contato comigo, me disse que a situação era crítica, que iria acontecer alguma coisa. ‘Fique atento a uma manifestação do general Castello Branco’, me disse ele”.[23]

O retrato da mídia pelo SNI

Esse era o terreno, agreste como o sertão alagoano, que Audálio Dantas me propunha percorrer, em dezembro de 1975, para recolher assinaturas para o manifesto que contestava o IPM do ‘suicídio’ de Vlado. O pedido poderia ter sido feito ao bravo presidente do Sindicato dos Jornalistas de Porto Alegre, João Borges de Souza, mas a precaução era a mesma exigida em São Paulo: era preciso cautela, para não expor o sindicato numa atividade politicamente provocante e dar aos militares o pretexto fácil da intervenção. Isso explica por que Audálio telefonou para mim, e não para o João Borges, um dos 1004 ilustres signatário do manifesto ‘Em Nome da Verdade’.

Três anos depois do assassinato de Vlado no DOI-CODI, a agência do SNI em Porto Alegre fez uma avaliação secreta sobre a imprensa gaúcha. Com todos os preconceitos e vícios típicos da ditadura, o relatório enviado à Agência Central em Brasília, em 20 de novembro de 1978, reflete a visão que o aparato repressivo do regime tinha da mídia de Porto Alegre, que certamente era muito parecida com a que visitamos nos idos turbulentos de dezembro de 1975.[24] Esse era o perfil que o SNI fazia dos principais jornais gaúchos, pouco depois da morte de  Vladimir Herzog:

  1. Correio do Povo: é o jornal mais tradicional do RS, que se mantém dentro de uma linha de jornalismo conservadora, apresentando as notícias de forma realista, séria e sem deturpações. Geralmente assume posicionamento concordante com o Governo Federal. Possui muito boa credibilidade junto à opinião pública;
  2. Folha da Tarde: vespertino de linha apolítica. Usa de linguagem moderada e imparcial nos seus artigos. Não faz oposição ao governo;
  3. Jornal do Comércio: jornal inteiramente dedicado a assuntos da área econômica. É bastante favorável ao Governo Federal.
  4. Folha da Manhã: matutino que frequentemente apresenta notícias e reportagens de conteúdo crítico contrário ao governo. Através de artigos, manchetes sensacionalistas e charges, distorce os fatos, apresentando-os com inverdades ou meias verdades;
  5. Zero Hora: jornal de grande circulação no Estado. Em seu editorial posiciona-se, geralmente, favorável ao Governo Federal. Porém, no seu todo o jornal dá maior destaque para a oposição e para qualquer assunto ou movimento contrário ao governo e ao Regime Político atual. Salienta-se, também, que ZH é o único jornal do Estado que divulga notícias da Agência NOVOSTI (APN) da UNIÃO SOVIÉTICA que, muitas vezes, são incluídas no noticiário de outras agências internacionais, intercalando-se o texto das mesmas, fato ocorrido particularmente nos recentes incidentes do AFEGANISTÃO.
  6. CooJORNAL: encontra-se dentro da mesma linha de orientação dos demais jornais da imprensa “ALTERNATIVA”, que atuam no País, apresentando conteúdo frontalmente contrário ao governo, às suas instituições e ao Regime Político implantado em 31 MAR 1964.[25]

Logo depois do inesperado telefonema de Audálio, peguei o texto enviado por telex pelo Sindicato de São Paulo, intitulado ‘Em Nome da Verdade’, de autoria de Fernando Pacheco Jordão, um dos integrantes da diretoria liderada por Audálio e autor, quatro anos depois, do livro Dossiê Herzog: prisão, tortura e morte no Brasil. O teor do manifesto tinha uma breve introdução e oito perguntas básicas, quase óbvias, para desmontar a farsa do IPM. Fiz três cópias e repassei duas aos meus dois repórteres na sucursal de Veja – Pedro Maciel e Adélia [Dedé] Porto da Silva.

Fomos os primeiros a assinar, junto com os outros integrantes de revistas da Editora Abril, cuja sucursal eu chefiava, incluindo jornalistas efetivos, colaboradores free-lancers e antigos integrantes da equipe que sempre circulavam por lá. Abriam a fila os fotógrafos Ricardo [Kadão] Chaves, Olívio Lamas e Assis Hoffmann, os repórteres da revista Placar Divino Fonseca e Mário Marcos de Souza, os colaboradores da Exame Maria Iara Rech e Affonso Ritter e minha secretária, Rejane Baeta.

Coletar assinaturas para um documento que confrontava diretamente uma investigação viciada do Exército sobre a morte de Herzog só podia ser uma responsabilidade coletiva, nunca individual. Um exemplo é que em dezembro, quando o manifesto começou a correr as redações de São Paulo, o meu repórter Pedro Maciel casualmente estava lá, fechando uma matéria. Na sede paulistana da Veja, no prédio da Abril na Marginal do Tietê, o secretário de redação, o gaúcho Paulo Totti, era o encarregado de colher as assinaturas. Quando Maciel se dispôs a assinar, ali mesmo, o experiente Totti observou: “Pedro, se assinares aqui, tu serás o único gaúcho em uma lista de jornalistas paulistas. E isso vai te expor muito. É melhor esperar que o manifesto chegue a Porto Alegre, para assinar lá”.

Audálio nos deu uma semana de prazo, mas achei que a tarefa deveria ser cumprida em um ou dois dias, no máximo, para atrair menos atenção, devido à delicadeza do momento, reduzindo assim nossa presença nas redações.

Decidi concentrar nosso esforço – eu, Pedro e Dedé –  em cinco desses jornais, que reuniam o maior contingente de jornalistas: os três da Caldas Júnior (Correio do Povo, Folha da Tarde e Folha da Manhã), a Zero Hora e o CooJORNAL.

Dedé, a mais simpática do trio, ficou encarregada de visitar a CooJORNAL, a primeira cooperativa de jornalistas do país, fundada em agosto de 1974 na esteira de uma crise na Folha da Manhã, quando 21 jornalistas (1/3 da redação) se demitiram em protesto contra a demissão do repórter Caco Barcellos, autor de uma vigorosa matéria contra a violência policial. Os 66 jornalistas que fundaram a cooperativa se multiplicaram até chegar a 314 associados, editando 33 jornais e boletins para sindicatos, empresas privadas e outras cooperativas, garantindo o sustento de quase 100 jornalistas que realizavam a utopia de uma empresa sem patrões, fazendo um jornal de jornalistas.

O CooJORNAL se orgulhava de ter ‘o maior expediente do mundo’, com mais de 300 jornalistas sem patrão e sem hierarquia, todos nivelados pelo cooperativismo. O jornal, assim, era um bravo integrante da chamada ‘imprensa nanica’, ao lado de publicações do centro do país como Movimento, Opinião, Versus, Em Tempo, Bondinho, Ex e o venerando O Pasquim, o irreverente semanário carioca que chegou a vender 200 mil exemplares, um sucesso de banca que afrontava a condição de ‘nanico’.

O mensário cooJORNAL se caracterizava por uma pauta criativa, centrada em fatos históricos, remontando episódios e citando personagens da oposição, dissidentes e pensadores de esquerda, que irritavam os militares. Um bom retrato do jornal foi desenhado pela própria Agência Central do SNI, na ‘Informação Confidencial nº 031, de 19 de agosto de 1980, que registrou com inusual precisão:

O periódico CooJORNAL, editado pela Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, caracteriza-se por divulgar artigos hostis ao governo. Apesar de a referida publicação ter tiragem de, apenas, 35 mil exemplares, seus artigos são comumente comentados pelos demais órgãos de imprensa, e passa, deste modo, a ter repercussão nacional. [26]                                                         

A cooperativa e seu pequeno jornal: ‘artigos hostis’ e ‘repercussão nacional’, segundo o elogio do SNI

No perfil da imprensa desenhado pela agência gaúcha do SNI, de novembro de 1978, o órgão de informações citava Elmar Bones da Costa (editor-responsável), Carlos Rafael Guimarães (redator), Osmar Trindade (secretário da cooperativa), José Antônio Vieira da Cunha (presidente da CooJORNAL), Renan Antunes de Oliveira (repórter), o chargista Edgar Vasques e Luiz Carlos Merten (redator). Bones, Vasques e Merten integram a lista final dos 1004 signatários do manifesto de 1976 dos jornalistas.

O SNI acusava:

Relacionamos os principais dirigentes e redatores do COOJORNAL, todos de tendências ideológicas ‘esquerdistas’, que em seus artigos fazem forte oposição ao governo e ao regime implantado em MAR de 1964.[27]

Bones, Rafael, Trindade, Vieira, Renan e Vasques: os ‘esquerdistas’ do Coojornal, conforme o relatório do SNI

Na redação do cooJORNAL, portanto, Dedé pisava em solo favorável a quem discordava do falso IPM sobre a morte de Vlado. Na redação bem mais ampla da Zero Hora, Pedro Maciel transitou por terreno mais delicado. A direção do jornal estava, desde 1970, sob o comando de Lauro Schirmer, um moderado e bem-humorado profissional que, na década de 1950, flertou com a política como candidato frustrado a deputado pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB).

No perfil da imprensa que o SNI desenhou em 1978, ele ganhou uma descrição crítica, mas o araponga do serviço de espionagem confundiu o PSB com o velho PCB:

Lauro Schirmer, diretor de redação: (…) antecedentes desabonadores por sua militância no PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO (PCB) e ligações com comunistas. Na direção da gráfica (…) que imprime o jornal ZH, permite a impressão de diversas publicações, entre as quais o COOJORNAL, que se caracterizam pela forte oposição ao governo e ao regime.[28]

Apesar daquele arreganho com o PSB na juventude, Schirmer comandou a ZH por 20 anos, atravessando incólume e bem-comportado os rigores da ditadura. Em 1976, ele achou prudente não assinar o manifesto dos 1004, mas seu filho, o fotógrafo Gerson Schirmer, é um dos signatários.

O secretário de Médici, o ‘comunista’ de Breno

A assinatura mais surpreendente coletada na Zero Hora por Pedro Maciel foi a do editor-chefe Carlos Fehlberg, que ocupou o posto na redação por 17 anos. Antes de chegar lá, em 1974, foi durante quatro anos o secretário de imprensa no Palácio do Planalto do general Garrastazú Médici, o presidente mais sanguinário do ciclo militar, mentor do DOI-CODI onde acabaria morrendo Vlado, sob tortura, já no governo de seu sucessor, Ernesto Geisel. Cordato e submisso, nunca se soube – nem durante, nem depois da ditadura – de qualquer contrariedade ou manifestação pública de Fehlberg contra a violência da repressão e a prática contumaz da censura à imprensa.

O primeiro e talvez único gesto de calculada dissidência, com certeza, foi o manifesto que Pedro Maciel lhe apresentou. Apesar de seu passado submisso e silente diante da ditadura, louve-se, ele ousou firmar em 1976 o abaixo-assinado que reafirmava a tortura e a violência que levou à morte de Vlado no DOI-CODI paulista. Fehlberg garantiu, assim, seu surpreendente e digno lugar entre os 1004 jornalistas inconformados com a farsa do IPM.                                                                                                        

Surpresa na ZH: Schirmer, ex-socialista, não assinou, e Fehlberg, ex-porta-voz de Médici, assinou

Coube a mim percorrer o território mais povoado e hostil da Caldas Júnior e seus três jornais. Escolhi o meio da tarde do início da semana, segunda ou terça, quando a redação está com as editorias a pleno vapor e os repórteres já retornaram da rua. Apesar do expurgo sofrido em 1974, a Folha da Manhã  de 1976 continuava sendo, para o SNI, “um matutino de notícias e reportagens de conteúdo crítico contrário ao governo”, que por meio de “artigos, manchetes sensacionalistas e charges, distorce os fatos e apresentando-os com inverdades ou meia verdades”.[29] Minha passagem por lá foi rápida e produtiva.

Na redação ao lado, da Folha da Tarde, a colheita foi mais árdua. Para o SNI, era um “vespertino de linha apolítica”, que “usa de linguagem moderada e imparcial nos seus artigos” e “não faz oposição ao governo”. O diretor de redação, Edmundo Soares, era definido pelo SNI como “sem antecedentes”, o que devia ser elogioso e confortável para a ditadura. O número 2 do jornal, o secretário de redação da FT, Adil Borges Fortes da Silva, mereceu esse perfil do SNI:

Elemento integrado ao Regime Revolucionário de 31 MAR 1964; anticomunista; (…) combate as organizações ‘esquerdistas’ e/ou oposição ao Regime. Ao mesmo tempo, faz propaganda do governo e de suas obras.[30]

Adil, na verdade, encarnava o jornalista-símbolo que a ditadura idealizava: integrado ao regime, anticomunista, antibrizolista, inimigo das oposições e ainda propagandista do governo dos generais. Além da mão-de-ferro sobre a redação, a partir de 1962 Adil passou a assinar uma coluna sob o pseudônimo de ‘Hilário Honório’, personagem oculta por onde o colunista regurgitava todo o seu antibrizolismo e deixava escorrer toda a sua aversão ao comunismo.

Enfurecido, o então governador Leonel Brizola dizia que tinha ‘perdigueiros’ no jornal que lhe revelaram a verdadeira identidade de HH. Dias depois, o desmascarado Adil colocou a imagem de um cão no cabeçalho da coluna e deu a ela o título de ‘Perdigueiro, por HH’. A coluna sobreviveu 22 anos, até 1984, véspera da queda da ditadura, o osso autoritário a que Adil Borges Fortes se atracou com a fúria de um cão esfomeado.                                                                                                                   

Adil, o colunista da Folha da Tarde: o ‘Hilário Honório’ que deixava Brizola furioso

Como manda o protocolo, procurei o diretor e o secretário de redação da FT, em primeiro lugar, para colher suas assinaturas. Como previa, nem Edmundo Soares, nem Adil Borges Fortes concordaram com o abaixo-assinado, e recusaram educadamente meu convite. Mas a base da redação, na sua maioria, apoiou o manifesto.

Chegou então a vez do carro-chefe da Caldas Jr., o Correio do Povo, o centenário e conservador jornal gaúcho, uma versão sulista do Estadão. A redação, com móveis pesados de madeira escura, combinava com a maioria dos jornalistas, já veteranos, muitos com suas cabeleiras amadurecendo do grisalho para o branco. Não procurei inicialmente nenhum deles.

Fui direto a uma figura destoante da redação, que ocupava uma mesa à esquerda da porta de entrada, fincada em um estrado de madeira de uns 10 cm que a colocava num patamar superior em relação ao vetusto cenário de editores e redatores. Era ocupado por um jovem que tinha a minha idade e a mesma aparência: 24 anos, cabeludo e barbudo. Nessa condição, era identificado aos sussurros pela provecta redação do Correio do Povo como ‘comunista’.

O improvável Edgar Lisboa era muito mais do que sugeria sua imagem iconoclasta. Era o homem, ou jovem, de confiança extrema do dono da Caldas Júnior, o ‘doutor’ Breno Caldas – o mesmo tratamento reverencial dedicado ao ‘doutor’ Roberto Marinho por seus companheiros de O Globo. No papel, Lisboa tinha o mero título de Editor de Coluna, mas na prática era uma espécie de Diretor-Assistente do dr. Breno, que tinha um gabinete fechado, com porta de vidro, logo atrás da mesa dominante de Lisboa. Ninguém alcançava a sala de Breno Caldas sem passar por ele, ou por sua aprovação.

Lisboa, o ‘comunista’ do Correio do Povo, e o poeta Quintana, com o cigarro e o sorriso

Com a bênção de Lisboa, comecei a percorrer a redação. Pela hierarquia, fui direto à mesa do chefe de redação. Então com 62 anos, Adail Borges Fortes da Silva ocupou aquela cadeira por espantosos 39 anos. No perfil traçado pelo SNI, Adail era apresentado como “integrante do Diretório Nacional da Liga de Defesa Nacional/RS (…) comprometido com os ideais da revolução de MAR 1964”.[31] E era o irmão mais velho de Adil Borges Fortes da Silva, o ranzinza ‘Hilário Honório’ da Folha da Tarde, a cara mais reacionária e radical da família.

Apesar do parentesco e da ficha, Adail foi extremamente simpático e assinou, sem qualquer contestação, o manifesto contra o IPM de Vlado. O seu gesto de assentimento abriu uma clareira de aceitação no Correio, onde minha tarefa se mostrou muito mais fácil do que parecia – após as assinaturas pioneiras de Lisboa e de Adail.

A causa e o sorriso do poeta

Acerquei-me então de uma mesa sem máquina de escrever, ocupada por um redator de 69 anos, trajando um burocrático terno e gravata de tons escuros. Pernas cruzadas, tinha o olhar perdido nos círculos de fumaça que ele desenhava com o cigarro e que se dissolvam lentamente no ar. Minha chegada o tirou de suas divagações e, sem descruzar as pernas, abriu um sorriso doce, acolhedor, que dissolveu meus receios. Eu estava diante do maior poeta do país, Mário Quintana, o único sobrevivente de uma nobre linhagem que incluía Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes.

Desde 1953, aos 47 anos, Quintana editava a página literária de todo sábado no Correio do Povo, onde brilhava o seu lendário ‘Caderno H’, uma sucessão de epigramas construídos com sutileza, ironia e graça. Além de sua página semanal, ele copidescava o texto dos repórteres, fazia títulos e traduzia telegramas das agências de notícias. Tradução era sua praia: fluente em francês e inglês, verteu mais de 130 obras da literatura universal, incluindo Proust, Balzac, Voltaire, Virginia Woolf e Saint-Exupéry.

Quem imagina que ser poeta é uma condição inescapável de nefelibata, não deve estar pensando em Mário Quintana, que nem gostava de ser chamado assim: “Poeta não é profissão. É um estado de espírito, ou coma. Minha profissão é jornalista. Assim está escrito na minha carteira profissional”, escreveu ele. E para quem acha que poesia é a fronteira da abstração, Quintana completou: “Eu não entendo nada da questão social/ Eu faço parte dela, simplesmente…” Na ditadura do AI-5, o poeta se deparou com a censura, quando viu sua editora desistir de publicar o primeiro livro infantil – Pé de Pilão – ao tremer diante dessa frase ameaçadora: “O soldado é um cavalo montado noutro cavalo”. Ao votar na eleição de 1989, a primeira para presidente em três décadas, Quintana quebrou a discrição e, veemente aos 83 anos, abriu seu voto com um verso profético: “Esse Collor tem olho de louco. Vai acabar com todos os marajás e só vai sobrar ele”. [32]

O doce Quintana pegou o abaixo-assinado do IPM, leu rapidamente a introdução do texto que contestava o Exército, alargou ainda mais o seu sorriso, em mudo mas eloquente atestado de concordância, assinou e me devolveu. Sempre sorrindo, sem dizer nada. Nem precisava.

Nessa jornada de apenas dois dias pelas maiores redações de Porto Alegre, cumprindo a honrosa pauta de Audálio Dantas, nós conseguimos 139 assinaturas – quase 30% das 467 publicadas originalmente na edição do Unidade, o jornal do Sindicato de São Paulo. Um número espantoso que nos encheu de orgulho.

Mas, a assinatura que mais me emocionou foi a do poeta sempre jovem e quase septuagenário.

Quintana disse uma vez: “Uma boa causa não salva um mau poeta”.

A boa causa pela verdade sobre a morte de Vladimir Herzog ganhou, com Mário Quintana, a força e a perenidade do poeta imortal.

 

* Luiz Cláudio Cunha, chefe da sucursal de Veja em Porto Alegre, tinha 24 anos em dezembro de 1975, quando recebeu de Audálio Dantas a tarefa de coordenar a coleta de assinaturas no Sul para o manifesto contra o IPM do ‘suicídio’ de Herzog.

 

REFERÊNCIAS

[1]DANTAS, Audálio. As duas guerras de Vlado Herzog. Rio de Janeiro, ed Civilização Brasileira, 2012, p. 268.

[2]DANTAS, op. cit., p. 261-262.

[3] D’ARAUJO, Maria Celina. CASTRO, Celso (orgs). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 371. O que para o general Geisel era um probleminha, para o capitão Jair Bolsonaro não passava de uma fatalidade. Entrevistado na RedeTV na campanha de 2018, ele afirmou sobre a morte de Vlado: “Suicídio acontece. O pessoal pratica suicídio”. Nem mesmo o jornalista e astrólogo Olavo de Carvalho, guru de Bolsonaro, teve essa indulgência. Surpreendentemente, ele é um dos 1004 signatários do manifesto de 1976 que duvida do ‘suicídio’ de Herzog.

[4] Assis Chateaubriand, o dono dos Diários Associados, então a maior cadeia de imprensa do país, era mais poderoso que Roberto Marinho do Sistema Globo, florescido depois do golpe. No início da década de 1950, Chateaubriand foi citado pelo The New York Times como o ‘Cidadão Kane brasileiro’, versão tupiniquim do magnata americano William Randolph Hearst, que inspirou o filme clássico de Orson Welles. O americano não era páreo para o brasileiro. Diante dos 28 jornais e 18 revistas de Hearst, Chateaubriand ostentava um rosário midiático de 34 jornais, 36 emissoras de rádio e 18 de TV integrantes da rede Tupi, além da revista O Cruzeiro (a maior tiragem do país, 700 mil exemplares no auge dos anos 50).

[5] MOTTA, Cézar. Até a última página. Uma história do Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, ed. Objetiva, 2018, p.133-134.

[6] Na madrugada de 2 de abril, Jango ainda estava em Porto Alegre, discutindo a reação ao golpe, que não aconteceu. A falcatrua histórica só foi corrigida pelo Congresso 50 anos depois, em novembro de 2013, quando aprovou resolução dos senadores Pedro Simon (PMDB) e Randolfe Rodrigues (PSOL) revogando o conluio de militares e parlamentares que votaram apressadamente a vacância da presidência quando Jango ainda se encontrava em solo brasileiro. Assim, foi devolvido simbolicamente o mandato usurpado a Jango, rebaixando o general Castelo Branco à condição rasa de comandante golpista.

[7] MOTTA, op. cit., p. 136.

[8] CONY, Carlos Heitor. “Um basta no ‘basta’”, Opinião, Folha de S.Paulo, 30 de novembro e 2002.

[9] CUNHA, Luiz Cláudio. Máximas e mínimas: os ventos errantes da mídia na tormenta de 1964. Capítulo de ‘Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e memória’. Org.: Enrique Serra Padrós, Vânia M.Barbosa, Vanessa Albertinence Lopez e Ananda Simões Fernandes. Porto Alegre: ed. Corag, 2009, v. 1, p.179-222.

[10] VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

[11] Audálio Dantas. 50 anos do golpe de 1964.  Estudos Avançados, USP, SP, vol. 28, nº 80, jan/abril 2014. Disponível em  https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142014000100007. Acesso em 24nov2020.

[12] Carlos Eugênio Paz. Entrevista a Rodrigo Vianna. Blog O Escrevinhador, 17 abr. 2009. Acesso em: 19set.2009.

[13] KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. Ed. Boitempo, 2004. Aggio, que nega a acusação, contestou sem sucesso a autora na justiça.

[14] DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis, RJ: ed. Vozes, 1981, p. 103.

[15] DREIFUSS, op. cit., p. 188.

15 Ennio Pesce é um dos 1004 signatários do manifesto de 1976 contra o IPM de Herzog.

[17] DREIFUSS, op. cit., p. 188.

[18] BARROS, Jefferson. Golpe mata jornal. Desafios de um tabloide popular numa sociedade conservadora. Porto Alegre: ed. JÁ, 1999, p. 156.

[19] BARROS, op. cit., p. 158.

[20] DREIFUSS, op.cit., p. 233.

[21] PINHEIRO MACHADO, José Antônio. Breno Caldas. Meio século de Correio do Povo. Glória e agonia de um grande jornal. Porto Alegre: ed. L&PM, 1987, p. 72

[22] GALVANI, Walter. Um século de poder: os bastidores da Caldas Júnior. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995, p. 411.

[23] PINHEIRO MACHADO, op.cit., p.78.

[24] Os detalhes do relatório de cinco páginas da Informação nº 26, enviado à Agência Central do SNI em Brasília em 20/nov/1978, sob o título ‘Acompanhamento da Atuação da Imprensa no RS – 4.3.5”, produzido pelo 119 APA (Agência Porto Alegre do SNI), o setor do campo interno encarregado da subversão, estão publicados no meu livro Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios, (ed. L&PM, 2008), nas páginas 288-293.

[25] CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios. Porto Alegre: ed. L&PM, 2008, p. 290.

[26] GUIMARÃES, Rafael; CENTENO, Ayrton; BONES, Elmar. CooJORNAL: um jornal de jornalistas sob o regime militar. Porto Alegre: ed. Libretos, 2011, p. 17.

[27] CUNHA, op.cit., p. 293.

[28] CUNHA, op.cit., p. 292.

[29] CUNHA, op.cit., p. 289.

[30] CUNHA, op. Cit., p. 291.

[31] Informação nº 26, Agência Porto Alegre/SNI, de 20/nov/1978, apud CUNHA, op. cit., p. 291.

[32] CUNHA, Luiz Cláudio. A glória do texto: Mário Quintana. In Vintenário: duas décadas da IMPRENSA em revista. São Paulo: Imprensa Editorial, 2007. Revista IMPRENSA, dezembro de 1990, ano IV, nº 40, p. 334-337.

Cais Mauá: Leite assina pré-contrato com Embarcadero num cenário incerto

O governo do Estado assinou na quinta-feira (25/6), um pré-contrato com a empresa Embarcadero.

As obras para instalar um espaço de lazer e entretenimento numa área do Cais Mauá, junto à Usina do Gasômetro, estão paradas desde o início de março por entraves jurídicos.

Segundo a nota da assessoria de imprensa, trata-se de um “protocolo de intenções” para “viabilizar a conclusão do projeto de revitalização de área do cais no Guaíba ao lado da Usina Gasômetro”.

A empresa diz que já investiu R$ 3,2 millhões, de um total de R$ 6 milhões previstos no empreendimento, em instalações de infraestrutura elétrica, hidrossanitária, de gás, segurança e iluminação entre outras.

Na assinatura do documento, no Palácio Piratini, o governador Eduardo Leite disse que estava ” manifestando publicamente que é firme e seguro o investimento que está sendo realizado pelo Embarcadero, que é muito desejado pelos gaúchos e pelo governo do Estado, e que vai sair do papel para ser entregue, em breve, não apenas à comunidade de Porto Alegre, mas a todos os gaúchos”.

O projeto na verdade enfrenta resistências de um movimento comunitário e de entidades como o Instituto dos Arquitetos do Brasil, que contestam o desmembramento do projeto de revitalização de todo o Cais Mauá.

Também o Ministério Público de Contas questiona o fracionamento do projeto de revitalização e a transferência de espaço público para uma empresa privada sem licitação.

Área interditada dos armazéns do Cais Mauá. Foto: Cleber Dioni Tentardini

Sítio histórico, tombado pelo Patrimônio Público, o Cais Mauá esteve dez anos concedido a um consórcio privado que pretendia implantar um complexo turístico/comercial em 81 hectares de área pública junto Guaiba.

Nada foi feito e, em julho do ano passado, o governo do Estado rescindiu o contrato de concessão e retomou a área. Tudo voltou à estaca zero, mas o projeto Embarcadero na extremidade do Cais junto à orla, foi mantido.

LEIA MAIS:  Obras do Embarcadero paralisadas, Cais Mauá segue sem destino

A nota do governo não fala em reinício das obras do Embarcadero, mas prevê a conclusão “para o segundo semestre, possivelmente entre outubro e novembro”, embora “a inauguração ao público vá depende da evolução da pandemia”.

Há outras incertezas, porém. Segundo o procurador-geral do Estado, Eduardo Cunha da Costa, “ainda faltam alguns elementos para assinar o contrato definitivo, principalmente a retirada da poligonal do porto da área, o que significaria que as decisões a respeito do cais caberiam apenas ao governo gaúcho, sem gerência da Secretaria Nacional de Portos”.

“Concluímos, agora, uma etapa muito importante, que é a formalização da relação do Estado com a Embarcadero, que só está sendo feita após um profundo estudo jurídico da PGE sobre a viabilidade e que antecede algumas questões formais que devem ser resolvidas. Mas esse termo assinado hoje já dá segurança jurídica para os investidores, que logo poderão concluir essa obra que trará benefícios concretos para a nossa comunidade”, acrescentou o procurador-geral.

O pré-contrato prevê que o Embarcadero possa explorar o trecho ao lado do Gasômetro por pelo menos quatro anos a partir da efetiva operação, podendo ampliá-lo dependendo do prazo de retorno financeiro dos investimentos que a empresa fizer no local.

A estimativa é de que seja em torno de R$ 400 mil por ano, mas o valor efetivo será definido somente quando o contrato for oficializado – após a retirada da poligonal do porto na área.

“Agradecemos a oportunidade de entregarmos aos gaúchos possivelmente um dos espaços mais históricos e emblemáticos através de um projeto inicial e experimental, o Cais Embarcadero”, afirmou Fernando Tornaim, em nome dos sócios da empresa.

Área do projeto Cais Embarcadero, ao lado do Gasômetro. Foto: Cleber Dioni Tentardini

Futuro do cais

Segundo o superintendente dos Portos RS, Fernando Estima, a retirada da poligonal do porto de Porto Alegre nunca esteve tão próxima de ser efetivada. No dia 5 de maio, o ministro da Infraestrutura, Tarcisio Gomes de Freitas, assinou a Portaria nº 42, abrindo prazo para consulta pública e manifestações de interesse, que se encerra na próxima segunda-feira (29/6).

“Existe todo um complexo incluído na poligonal, além da área de revitalização junto ao Guaíba, como clubes náuticos e outros espaços, mas o mais importante é que estamos próximos de ter a responsabilidade completa pelo Estado e, assim, poderemos definir de forma mais ágil o que queremos para toda a área”, afirmou Estima.

Paralelamente, o governo segue, através da Secretaria de Planejamento Orçamento e Gestão, com o processo de modelagem, por meio de acordo de cooperação técnica com o BNDES, para definir a melhor forma de gestão e revitalização de todo o trecho junto ao Guaíba.

LEIA MAIS: Uma visita ao Cais abandonado, onde nasceu Porto Alegre

Histórico

Área interditada do Cais Mauá. Foto Cleber Dioni Tentardini

O complexo do Cais Mauá havia sido concedido em 2010, pelo período de 25 anos, ao consórcio Cais Mauá do Brasil (CMB). No entanto, além de não iniciar as obras nove anos depois, a empresa cometeu diversas infrações contratuais e não realizou a manutenção dos armazéns históricos, o que levou à rescisão, anunciada pelo governador no final de maio de 2019.

Paralelamente aos processos administrativo e judicial que envolveram a extinção do contrato de concessão, o governo fez estudos técnicos, financeiros e jurídicos para verificar a viabilidade de contratar, por inexigibilidade de licitação, o projeto do Cais Embarcadero.

 

Cais Mauá: governo firmará contrato para garantir embarcadero

Com a decisão judicial favorável à rescisão do contrato com o consórcio Cais Mauá do Brasil, o governo do Estado anunciou, nesta quinta-feira (5/3), que dará andamento ao Cais Embarcadero, projeto de revitalização em um trecho do Cais Mauá, próximo à Usina do Gasômetro, que já está construindo espaços de lazer e serviços.

“Entendemos que é um espaço nobre e privilegiado e que merece ser usufruído pelos gaúchos o mais breve possível”, destacou o governador Eduardo Leite em coletiva de imprensa.

Pela complexidade do projeto e das obras já realizadas, um parecer da Procuradoria-Geral do Estado (PGE) indicou que o melhor caminho será a contratação por inexigibilidade de licitação. Assim, as duas empresas – DC Set e Tornak –, que tinham contrato com a antiga concessionária, poderão seguir realizando o projeto do Embarcadero.

A previsão de inauguração do Embarcadero é para o mês de abril, já que a conclusão das obras, que incluem seis restaurantes, lojas, quadras de esporte, palco para shows, recanto do gaúcho e bares, depende de definições junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Estão sendo investidos no projeto cerca de R$ 6,5 milhões, dos quais R$ 3 milhões são benfeitorias permanentes, como melhorias em infraestrutura elétrica, hidrossanitária, de gás, segurança, iluminação, cobertura do estacionamento, pintura parcial do muro e nivelamento de parte do terreno.

Esses valores servirão de base para que o governo, em conjunto com as empresas, defina os detalhes do contrato, como o prazo pelo qual as empresas poderão administrar o espaço.

Estacionamento será licitado

A Cais Mauá do Brasil, com quem o governo rescindiu em maio de 2019 por descumprimento de contrato, já foi notificada e deverá deixar o local até sábado (7/3). Quanto ao estacionamento que a concessionária construiu ao lado do Embarcadero e já em funcionamento, o Estado decidiu lançar uma licitação, já que se trata de uma operação mais simples.

Estacionamento no entorno da Usina do Gasômetro. Foto: Cleber Dioni Tentardini

Até que a nova administradora das cerca de 600 vagas seja escolhida, a prefeitura de Porto Alegre, por meio da EPTC, deverá fazer a operação do espaço, para que os usuários não sejam prejudicados e para que a estrutura seja mantida. As tratativas entre o município e o Estado estão em andamento.

Paralelamente, o governo do Estado segue tratando da retirada da poligonal do porto com o governo federal, para obter a gerência completa da área do Cais Mauá, e fazendo os estudos, agora com apoio do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) por meio de um acordo de cooperação técnica, para decidir qual o melhor modelo de negócios para toda a área do Cais Mauá.

“Nosso objetivo é viabilizar os investimentos necessários nessa área tão nobre e termos um projeto qualificado, envolvendo turismo, inovação, cultura e entretenimento, que estimule a nossa economia e seja atrativo para quem quer trabalhar, empreender e viver aqui”, afirmou o governador.

 

A imprensa e o “efeito contágio”

Por Tiago Lobo

O jornalismo brasileiro vem explorando exaustivamente casos de assassinatos em massa e, dependendo de como isso é feito, pode ser muito nocivo.  

Desde 1985 a American Psychological Association (APA) alerta para o fato de que crianças e adolescentes podem tornar-se menos sensíveis à dor alheia ou sentir-se amedrontados após a exposição a programas violentos na televisão. Em relatório a APA indicava que programas infantis freqüentemente apresentavam até vinte cenas contendo agressões, a cada hora.

Para Donna Killingbeck, pesquisadora da Universidade do Leste do Michigan, nos E.U.A., medidas de segurança como revistas em estudantes, policiamento dentro das escolas e contratação de empresas especializadas, como resposta adotadas após tiroteios e ameaças, geram mais problemas e provocam uma percepção distorcida por parte da população que compreende as tragédias através da mídia.

Isso pode levar a população a superestimar o risco de morte que as crianças e adolescentes correm nas escolas. A conclusão do estudo, publicado em 2001, “The role of television news in the construction of school violence as a “moral panic”” (“O papel do telejornalismo na construção da violência escolar como “pânico moral””) é que estas medidas não têm ajudado a evitar tragédias.

Um ano depois de Killingbeck levantar o debate sobre a mídia e as medidas de segurança adotadas que seriam prejudiciais, três pesquisadores de Harvard concluiram que tiroteios em massa são eventos raros e representam um percentual muito baixo no leque de causas de mortes de crianças e adolescentes em geral, e mesmo de crianças e adolescentes na escola.

David James Harding, Jal Mehta e Cybelle Fox em “Studying rare events through qualitative case studies: Lessons from a study of rampage school shootings” (“Estudando eventos raros através de estudos de caso qualitativos: Lições de um estudo de tiroteios na escola”) chamam atenção ainda para os perigos de percepções distorcidas que podem reforçar a justificativa de medidas extremas ineficientes.

A física Sherry Towers, da Universidade do Estado do Arizona (E.U.A) estudou o “efeito de contágio” de tiroteios em massa e concluiu que a cobertura da mídia nacional acaba aumentando a frequência dessas tragédias.

“Nossa pesquisa examinou se havia ou não evidências de que assassinatos em massa podem inspirar cópias. Encontramos evidências de que os assassinatos que recebem atenção da mídia nacional ou internacional realmente inspiram eventos similares em uma fração significativa do tempo”, disse em entrevista ao site da Universidade do Arizona, em 2015.

Ela compara crimes inspirados em tragédias anteriores a uma doença, onde você geralmente precisa de um contato próximo para espalhá-la e afirma que os meios de comunicação agem como um “vetor” que pode transmitir a infecção através de uma área muito grande. Mas ressalta que pessoas suscetíveis à ideação para cometer esses crimes são bastante raras na população. É por isso que ela conclui que é necessária muita cobertura midiática sobre uma ampla área geográfica para que esse tipo de “contágio” ocorra.
The Intercept Brasil propõe caminho
No dia 23 de março, o The Intercept BR enviou um editorial aos seus leitores via boletim semanal, por e-mail. Assinado pelos jornalistas Tatiana Dias e Alexandre de Santi, o texto “Como derrubamos duas páginas de ódio sem dar audiência para elas” compartilhou um autoexame pela equipe do veículo e, ao mesmo tempo, sugeriu caminhos efetivos para a imprensa lidar com conteúdos de ódio e criminosos que buscam notoriedade.

O Intercept decidiu abrir mão da “notícia” e, de certa forma, se transformou nela: pressionaram Google e Facebook para remover duas páginas que disseminavam conteúdo de ódio e conseguiram.
“disseminar um conteúdo de ódio – ainda que for como denúncia – não é mais importante do que agir para que ele seja removido o mais rápido possível, cobrando responsabilidade de quem deve ser cobrado. Se Google e Facebook não tivessem derrubado os vídeos, publicaríamos uma reportagem denunciando a omissão. Felizmente, não foi necessário. Esperamos que não seja necessária a pressão de um jornalista para que isso aconteça”.

A política editorial adotada pelo veículo pode ser ancorada em um sem número de estudos que concluem que atiradores em massa e propagadores de ódio buscam fama e que a ausência deste debate na cobertura da imprensa nacional é extremamente perigosa. Grandes grupos de comunicação com seus rádios, tvs e jornais repercutiram cada suposta novidade, ou meras especulações sobre Suzano sem observar critérios pré-estabelecidos no código de ética do jornalismo brasileiro e recomendações internacionais para lidar com este tipo de assunto. Ato falho, talvez, mas leviano.

O código de ética do jornalismo brasileiro, documento máximo do profissional da imprensa, deixa claro em seu artigo 2º, incisos I e II que  “a divulgação da informação precisa e correta é dever dos meios de comunicação (…) e que as informações divulgadas “devem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por finalidade o interesse público”.

Interesse público é, antes de mais nada, uma norma jurídica e um princípio do sistema constitucional brasileiro que significa que os direitos e garantias individuais de cada cidadão conhecido como “interesse particular”, se somam e formam o que se entende por interesse público.
Celso Antônio Bandeira de Mello, jurista e professor da PUCSP, o define como “a soma de interesses individuais, a ser representado por uma instituição jurídica comum: o Estado, o Poder Público”.

Estes interesses individuais referem-se ao campo dos direitos constitucionais e adquiridos, como mais segurança nas ruas, 13º salário e etc. Não englobam desejos e anseios abstratos. E aí é que mora a confusão onde se confunde “interesse público” com interesse “do” público. Este último não representa coletividade, mas audiência.

Portanto, outro trecho do texto do The Intercept merece destaque:
“o papel da mídia e dos intermediários que também funcionam como mídia, como Google e Facebook, precisa ser discutido. Se a sociedade valoriza a violência, nós vamos dar a ela o que ela quer ver, exacerbando o ódio? Ou assumir uma postura mais responsável?”, defende o The Intercept BR. 

O código de ética da profissão, novamente, indica em seu artigo 7º, inciso V, que o jornalista não pode “usar o jornalismo para incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime”.

O artigo 11º diz ainda que o jornalista não pode divulgar informações “de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes”.

Portanto, o efeito indireto da cobertura desregrada da imprensa é, de forma não intencional, uma afronta ao seu próprio documento deontológico.
Dont Name Them e No Notoriety
Você deve ter percebido que a série de reportagens “As redes do ódio” não cita o nome de nenhum dos atiradores e isso é proposital.
Decidimos aderir a algumas diretrizes de sites como Dont Name Them (“Não nomeie-os”), e No Notoriety (“Sem notoriedade”) para não darmos, justamente, o que eles queriam: fama, notoriedade, reconhecimento e validação.

Sob autorização do psicólogo Dr. Daniel Reidenberg, diretor-executivo do SAVE.ORG (Suicide Awereness Voices of Education), gerente do Conselho Nacional de Prevenção ao Suicídio dos E.U.A. e secretário geral da Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio (IASP), a ONG de Jornalismo e Direitos Humanos Pensamento.org, traduziu um documento, antes disponível apenas em inglês no site www.reportingonmassshootings.org, que oferece recomendações sobre como a mídia pode cobrir um incidente em que uma pessoa (ou um pequeno grupo) atira em vários outros em um ambiente público. Esse projeto foi liderado pelo SAVE e incluiu especialistas nacionais e internacionais do AFSP, do CDC, da Universidade de Columbia, da Força-Tarefa de Mídia do IASP, JED, NAMI-NH, SPRC e vários especialistas do setor de mídia.

Você pode realizar o download, gratuitamente, no link Portuguese (BR) translation.

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Acompanhe as reportagens da série:

Há 20 anos ameaças fermentam na internet

Por Tiago Lobo
No fórum Dogolachan, localizado na primeira camada da Deep Web, uma parte da internet invisível aos motores de busca como o Google, adolescentes intitulados Incels (celibatários involuntários na sua linguagem), trocam informações e pedem dicas de forma anônima. Os assuntos variam desde a compra facilitada de armas, esquemas de bombas caseiras, tipos de ácidos para agredir pessoas, até troca de conteúdo pedófilo e dicas para planejar e cometer atentados terroristas.

Há um espaço, inclusive, que funciona como um confessionário. Um “padre” responde às confissões dos usuários. Um deles pede, por exemplo, ajuda após 9 dias de celibato para se livrar do vício pela masturbação que teria o tornado “impuro”…

O fórum é terreno fértil onde apologia ao crime é rotina. De lá que partiram incentivos para tragédias que mobilizam o país desde o final dos anos 90.

Até novembro de 1999, “tiroteios em massa” não eram uma realidade no Brasil. Isso era tido como um problema da terra do Tio Sam, nada Tupiniquim.

A partir de 20 de abril daquele ano o chamado “Massacre de Columbine” inundou a pauta na imprensa internacional: dois adolescentes mataram 12 alunos  e um professor, feriram outras 21 pessoas para depois se suicidarem em uma escola do Colorado, Estados Unidos. Desde 1996 os adolescentes alimentavam um site onde compartilhavam mapas e estratégias sobre o jogo de tiro “Doom”. No final de 97 já havia conteúdo sobre como construir bombas caseiras e postagens que descreviam o ódio que a dupla sentia da sociedade.

Na noite de 3 de novembro, pouco mais de 6 meses depois de Columbine, cerca de 30 pessoas assistiam ao filme O Clube da Luta na sala 5 do cinema do Shopping Morumbi, em São Paulo. Um estudante de medicina de 24 anos começou a atirar até esvaziar o pente de uma submetralhadora, matando três pessoas e ferindo outras quatro. Ele foi imobilizado quando ficou sem munição e logo em seguida foi detido pela polícia.

Advogados de defesa, na época, tentaram alegar insanidade, o que o tornaria ininputável: alguém que não tem discernimento sobre certo e errado, e possibilitaria o cumprimento da pena em um hospital psiquiátrico. Alegaram também que ele havia sofrido influência de um jogo de tiro, o clássico Duke Nukem: não colou e ele foi condenado a 120 anos e seis meses de prisão.

Um psiquiatra contratado pela família afirmou que o jovem sofria de Transtorno de Personalidade Esquizoide (TPE), caracterizado pelo distanciamento e desinteresse no convívio social e uma gama limitada de emoções em seus relacionamentos interpessoais.

Membro de família da classe média alta de Salvador, o “atirador do shopping” começou a apresentar indícios de depressão e ideação suicida aos 13 anos: queixava-se à mãe que não tinha amigos. Aos 15, durante um intercâmbio nos E.U.A, foi mandado de volta pela família que o acolheu no exterior por conta da sua agressividade e, ao retornar, passou a agredir fisicamente os próprios pais chegando a fraturar a costela de um deles.

Por recomendação médica, foi morar sozinho em São Paulo, para ter “uma vida social independente”. Na faculdade de medicina (seguindo os caminhos do pai), ingressou como aluno brilhante e foi decaindo. Introspectivo e com reações desproporcionais às brincadeiras dos colegas foi ficando sozinho. Um professor o definiria como uma pessoa “apática, diferente”. Nas primeiras férias da faculdade tentou suicídio, depois teve que sair da pensão onde morava por agredir um colega, na sequência ameaçou o porteiro de um apartamento que os pais lhe alugavam e passou a ter alucinações.

Cinco dias antes do crime, resolveu largar a medicação psiquiátrica por conta própria e fazia uso frequente de cocaína. A polícia encontraria 37 papelotes da droga no apartamento do estudante, que não pagava o condomínio havia dois meses.

Três anos depois do julgamento, a pena foi reduzida a 48 anos e nove meses de prisão por uma tecnicalidade da legislação. Hoje ele segue preso, institucionalizado no Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador, destinado a doentes mentais.

Logo após ser detido, policiais do 96º DP perguntaram se havia alguma namorada ou amigos para avisá-los da situação do atirador. “Eu não gosto de ninguém”, ele respondeu. A primeira escola

A cidade de Taiúva, a 363 km de São Paulo foi o palco para o primeiro tiroteio em massa dentro de uma escola que o Brasil registra. Às 14h40min do dia 27/01/2003, um jovem de 18 anos armado com um revólver calibre 38 e 105 projéteis invadiu o pátio da sua ex-escola e disparou quinze vezes contra alunos, professores e funcionários. Após ferir cinco estudantes, zelador e vice-diretora, se matou com um tiro na cabeça. Uma das vítimas ficou tetraplégica.

O colégio estadual Coronel Benedito Ortiz, cena do crime, foi frequentado pelo atirador durante toda sua vida escolar. À época a diretora da escola, Maria Luiza Gonçalves Oliveira disse para a imprensa que eram muito amigos e que “ele nunca deu problemas, era educado, sempre andou bem vestido”.

A polícia concluiu que o atirador teria cometido o crime motivado por revolta, devido ao bullying que sofria por ter “problemas com peso”. Em 1999, segundo a diretora Oliveira, o jovem conseguiu emagrecer quase 30 quilos.

Filho único de família simples, o pai trabalhava no campo e a mãe dona-de-casa, o atirador de Taiúva era tido como bom aluno, sem problemas com disciplina e sem inimigos. Saía pouco e não tinha namorada.Luto nacional

O caso que teve maior repercussão na imprensa e comoção pública, levando a então presidente Dilma Roussef a decretar luto nacional, teve início na manhã de 7 de abril de 2011.

Um rapaz com 23 anos, ex-aluno da Escola Municipal Tasso da Silveira, no bairro de Realengo, na zona oeste do Rio de Janeiro, invadiu a instituição armado com dois revólveres calibres .32 e .38 e abriu fogo contra alunos deixando 12 crianças mortas (10 meninas e 2 meninos) e 17 feridas. Uma sobrevivente que foi entrevistada pela TV Record logo após o crime revelou que o assassino atirava nas meninas para matar e nos meninos para ferir.

Após ser baleado na perna por um policial, o atirador se matou.

Os investigadores apuraram que a motivação seria vingança por conta do bullying que sofria. O jovem já havia chamado de “irmão”  o atirador que matou 32 pessoas na Universidade Virginia Tech, nos E.U.A., em 2007. Este último venerava os autores de Columbine. O autor do massacre em Realengo também se identificava com o atirador de Taiúva.

Ele chegou a deixar um vídeo onde dizia ter sido vítima de “bullying”. “Muitas vezes, aconteceu comigo de ser agredido por um grupo e todos os que estavam por perto debochavam, se divertiam com as humilhações que eu sofria sem se importar com meus sentimentos”, declarou em a nota suicida. Nela também havia instruções de como deveriam ser feitas a retirada de seu corpo e o sepultamento. Nenhuma pessoa “impura” poderia tocar no cadáver. Análises do computador do jovem mostraram que ele constantemente fazia pesquisas sobre terrorismo e se identificava com Osama Bin Laden.

15 dias após o massacre nenhum familiar compareceu ao Instituto Médico Legal para liberar o corpo do atirador: ele foi enterrado como indigente.

Padrões se repetem

Mesmo com um intervalo de tempo, parece que o efeito de um atentado em massa se desdobra em cascata.

Em setembro de 2011, 5 meses após Realengo, uma criança de 10 anos atirou contra sua professora e, em seguida, cometeu suicídio na escola Professora Alcina Dantas Feijão, no município de São Caetano do Sul, do ABC paulista.  O crime ocorreu às 15h50min, após uma discussão em sala de aula. A arma foi um revólver calibre .38 que pertencia ao pai da criança, um guarda civil. Ambos foram socorridos com vida, mas após duas paradas cardíacas o menino foi declarado morto às 16h50. A professora sobreviveu. Os investigadores chegaram a afirmar que o menino era “manco”, que sofria gozações dos colegas e esta seria a motivação do crime, mas abandonaram a tese.

Em outubro de 2017 um adolescente de 14 anos matou dois colegas e feriu outros quatro ao disparar uma pistola .40 da mãe, que assim como o pai, era policial militar. O crime ocorreu no Colégio Goyases, em Goiânia (GO). Segundo os colegas, o jovem era constantemente chamado de “fedorento”.

Este ano, o ataque ocorrido na escola paulista Raul Brasil, em Suzano, no dia 13 de março, deixou 10 mortos e 11 feridos, por dois jovens encapuzados que abriram fogo nas dependências da instituição. Suspeita-se que os atiradores tenham sido frequentadores do Dogolachan, onde são celebrados como heróis.

Acompanhe as reportagens da série:

Repressão aos crimes virtuais desafia polícia gaúcha

Por Tiago Lobo

Ameaças inspiradas no atentado de Suzano pegaram as forças policiais do RS de surpresa. Desde junho de 2010, com a criação da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI), foi a primeira vez que a Polícia Civil Gaúcha teve que investigar possíveis tiroteios em massa no Estado. Com falta de efetivo e investimento em tecnologia, a Civil conseguiu reagir antes que o pior acontecesse.

Com aproximadamente 500 procedimentos abertos, entre inquéritos e termos circunstanciados, a pasta comandada a pouco mais de um mês pelo Delegado André Anicet, conta apenas com quatro policiais entre inspetores e escrivães. Apenas um deles possui formação em área relacionada: sistemas de informação.

A DRCI atua a partir de denúncias. Entre os principais casos estão golpes na internet (estelionato) e extorsão sexual – quando uma pessoa é chantageada por alguém de posse de fotos nuas, por exemplo.

As ameaças pelo estado vieram à tona a partir da repercussão de Suzano. Até então, segundo o delegado e o inspetor Amaral, que está há 3 anos na delegacia, ameaças de tiroteios em escolas não eram uma realidade no RS.

A escalada começou a partir do alerta à Rede Marista. A maioria das ameaças partiram de adolescentes passando trotes. A polícia segue recebendo e apurando denúncias, mas o volume vem caindo.

Os autores podem responder por apologia ao crime, ameaça, associação criminosa e até responder por ato terrorista. Mobilizar forças de segurança a partir de um mero trote e provocar alarde e pânico na sociedade também é crime.

O delegado revela, com certa cautela, que de todas as denúncias recebidas até agora, duas eram potencialmente mais preocupantes. Anicet ressalta que mensurar potencial é difícil, mas nestes dois casos os autores teriam meios para perpetrar um ataque – ambos já foram identificados e detidos.

“O caso do colégio Marista foi uma mera ameça, uma Fake News”, revela o delegado.

A apuração de crimes praticados na internet começa com algumas técnicas específicas de coleta de dados e informações. Em dado momento do inquérito ela se torna um trabalho de investigação tradicional.

Atualmente o próprio delegado pode solicitar à plataformas como Facebook, Twitter e outras redes sociais, assim como empresas de telefonia, dados cadastrais de um suspeito. Informações mais detalhadas que permitam o rastreio do endereço de IP de um computador, por exemplo, ainda requerem ordem judicial. O que é visto como um entrave em casos urgentes.

Apesar do efetivo reduzido, a DRCI não age sozinha. Além das delegacias locais da Polícia Civil que atuam nas investigações, ela conta com relatórios do Gabinete de Inteligência Estratégica e da Secretaria de Segurança Pública para fazer cruzamentos de dados e estabelecer, por exemplo, se as ameaças às escolas do estado possuem alguma conexão entre si.

Investigações em andamento, mas pelo tom do delegado não parece ser o caso.

A Polícia Civil do RS ainda não possui tecnologia para rastrear usuários na Deep Web, como no fórum Dogolachan, de onde já partiram algumas ameaças, por isso as investigações contam com a ajuda da população. Denúncias levam aos autores.

Apesar disso o Delegado ressalta que, ao contrário da crença popular, “não é verdade que a Deep Web é irrastreável. Não temos estrutura pra isso no momento, mas é possível”.

O WhatsApp, por exemplo, também não é invisível ao monitoramento da polícia. Ela não pode acessar o conteúdo de trocas de mensagens por conta da criptografia da ferramenta, mas consegue saber quem e quando um suspeito se comunicou com outro pelo aplicativo.

“Acredito que o futuro da criminalidade é digital”, afirma o delegado. Pelo visto o da investigação também: o inspetor Amaral, por exemplo, conta que pediu para integrar a DRCI após alguns anos na Homicídios. Ele realizou uma capacitação via Ministério da Justiça para operação de um software desenvolvido pela polícia Canadense para rastrear conteúdo pedófilo na surface (a internet que todos nós navegamos) e Deep Web.

O caso de maior repercussão nos últimos três anos da pasta foi gerado por desinformação:  “A Baleia azul se tornou potencialmente ofensiva por causa da mídia”, opina o Inspetor.

A exposição da imprensa levou o DRCI a instaurar um inquérito para investigar se havia organização criminosa nesse caso. Suspeitos foram monitorados, identificados e apurou-se que não havia crime.

O “jogo da Baleia Azul” foi um boato que chegou ao Brasil em 2017, com a ideia de que levaria crianças a cometerem suicídio, o que supostamente já havia acontecido na Rússia.

Mas fique tranquilo: tudo não passou de um boato que a imprensa repercutiu sem apurar devidamente. Em audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília, o presidente da ONG Safernet, Thiago Tavarez, esclareceu que “essa notícia falsa que nasceu na Rússia e chegou ao Brasil de forma sensacionalista e alarmista acabou servindo de gatilho para um efeito de imitação”. Com a “Boneca Momo” (google it) não foi diferente.

Se apenas cinco servidores compõem uma das delegacias mais importantes em um momento de repercussão de tiroteios em massa planejados e incentivados pela Deep Web, o inspetor Amaral relata a sua surpresa ao se deparar com a estrutura da delegacia da mesma pasta no Rio de Janeiro, capital. 30 policiais, plantão 24h, atendimento especializado e estrutura qualificada.

“Eles estão anos-luz na nossa frente”, afirma Amaral.

Além de conduzir investigações, a delegacia ainda presta atendimento ao público: mas nem todas as pessoas que visitam a delegacia são vítimas ou deveriam estar lá… Muitas vezes não há crime: “Qual a legislação aplicável para lançar um site?”, “como deixar meu site seguro?”, “celulares que falam sozinhos” e etc despendem um tempo dos policiais para assuntos que não são trabalho de polícia.

Pergunto aos dois: com o atual efetivo da delegacia de repressão a crimes informáticos é possível dar conta? Eles não hesitam e despejam um “não” com certa frustração.

“Acho que o maior investimento em termos de Polícia e repressão deveria ser em tecnologia e pessoal. O caso Marielle, por exemplo, foi praticamente uma investigação cibernética”, defende o delegado. “Esperamos ter mais gente agora com um novo concurso. A equipe é pequena”.

“Há motivo para pânico?”, pergunto: “as pessoas tem que ter o cuidado de sempre e se suspeitarem de alguma coisa denunciarem”, é a recomendação do delegado Anicet.
Denuncia de ameaças de tiroteios em massa podem ser feitas pelo telefone 08005102828

Clima de campanha eleitoral no ‘Caos Mauá’

Geraldo Hasse
Lembrando estar “no primeiro dia do terceiro mês do quarto ano do governo”, José Ivo Sartori assinou na manhã desta quinta-feira, 01/03, a ordem de início das obras de revitalização do Cais Mauá.
A cerimônia, mescla de evento empresarial e comício político, reuniu mais de 250 pessoas sob um toldo branco às margens do Guaíba, no Centro Histórico em Porto Alegre. “Este é um projeto de Estado, não de governo”, afirmou Sartori, após queixar-se de “alguns ranços” que, segundo ele, levam muitas pessoas a “puxar para trás”.
Por coincidência, no momento em que o governador falava, às 11h55m, um catamarã vindo de Guaíba saiu de sua rota habitual, no meio do canal de navegação, aproximou-se do cais e, em marcha lenta, soltou três prolongados buzinaços. Sorrindo diante da “surpresa”, Sartori abanou alegremente para o barco que, desde o final do governo Yeda Crusius (2007-2010), faz a linha Porto Alegre-Guaíba. Aparentemente casual, a cena foi aplaudida por parte do auditório, constituído por políticos, funcionários e empresários.
Antes de Sartori, que encerrou sua fala trocando sem querer a palavra “cais” por “caos”, parte do público também aplaudiu por duas vezes o discurso do prefeito Nelson Marchezan Júnior. Em tom veemente, ele verberou fortemente contra “os que travam a máquina pública por motivos ideológicos”, preferindo “focar nos seus eleitores e esquecendo a população em geral”.
Dirigindo-se aos investidores no projeto do Cais Mauá, Marchezan pediu desculpas “pela lerdeza da máquina pública” e lhes agradeceu “por não terem desistido”. E pediu que “não sejam lerdos como a máquina pública” – “pesada, atrasada, retrógrada”. Seu protesto era contra vereadores e deputados estaduais que lutam contra “as reformas necessárias”.
O deputado Pedro Westphalen, secretário dos Transportes, fez um pronunciamento extremamente ameno. “Este é um dia muito especial”, disse ele, lembrando que o atual governo “fez pouco” pela revitalização do “cartão-postal de Porto Alegre” porque está empenhado em outros projetos. Segundo Westphalen, a cerimônia no cais “encerra expectativas de 30 anos” e se configura como “uma obra coletiva” de diversas pessoas – foram citados os ex-prefeitos João Fogaça e José Fortunati e, especialmente, a equipe técnica liderada por Edemar Tutikian.
O empresário João Carlos Mansur, presidente do grupo Reag, que assumiu a gestão do projeto licitado em 2010 e desde então emperrado por demandas ambientais, problemas técnicos e questões políticas, usou várias vezes as palavras “orgulho” e “gratidão” para definir seu sentimento em relação ao que considera “um empreendimento nacional”.
A Reag, segundo Mansur, administra atualmente R$ 7 bilhões por meios de dezenas de fundos de investimentos. Em sua fala, Mansur deixou claro que o objetivo inicial é abrir o cais ao lazer da população. Após a ocupação pelo público, talvez já no Natal de 1919, serão iniciadas as grandes obras – um hotel e um centro comercial.

Criscio, diz que serão aplicados R$ 140 milhões na primeira fase / GH / JÁ

Como executivo do projeto, foi apresentado o consultor Vicente Criscio, que já trabalhou em contratos de reestruturação empresarial em Caxias do Sul e Porto Alegre. Numa tumultuada entrevista coletiva à imprensa, Criscio disse que a prioridade nos próximos dois anos é colocar em condições de frequência pública os armazéns A e B, situados ao lado do pórtico do Cais Mauá. Nesses primeiros movimentos, devem ser aplicados, segundo ele, R$ 140 milhões, incluindo desembolsos obrigatórios aos governos estadual e municipal. O investimento total é estimado em R$ 500 milhões.
Tanto Criscio como Mansur foram muito cumprimentados por empresários e políticos presentes ao evento no cais. “Eu quero assinar o primeiro alvará do primeiro concessionário do Cais Mauá”, disse o secretário do Planejamento de Porto Alegre, entregando um cartão de visita ao gestor do projeto de revitalização. Por esse gesto, entre outros, ficou claro que a administração municipal encara o Cais Mauá como um marco da iniciativa privada.

Obras
As obras começam no dia 5 de março. O projeto, sem investimento público, prevê 3,2 mil metros de orla com ciclovia, dez praças de lazer e mais de 11 mil metros quadrados de área verde, num espaço total de 181 mil metros quadrados de área revitalizada. Estima-se que gere 28,8 mil novos empregos diretos e indiretos.
O projeto terá três etapas. A primeira é a restauração de 11 armazéns do Cais (do A6, no extremo da Usina do Gasômetro, até o B3, próximo à rodoviária). Deve custar R$ 140 milhões.
A segunda fase, no setor Docas, prevê torres comerciais com serviço de hotelaria, centro de convenções e estacionamento e a recuperação da Praça Edgar Schneider. A última fase é a área do Gasômetro: um centro comercial.