Apresentação

Pois aquele que hoje
Derrama seu sangue comigo,
Será meu irmão.
William Shakespeare,
em “Henrique V”, ato IV, cena 3
 
Raul Ellwanger

Raul Ellwanger

Após mais de cinco décadas do golpe patronal-militar de 1964, a revelação das atrocidades oficiais e a memória da resistência popular tem trazido à opinião pública fatos, nomes, documentos e revelações que ajudam a recompor a verdade daqueles anos dolorosos. Cada grão dessas lembranças vai somando na construção do verdadeiro quadro social e cultural da época, desde o grande evento mediático dos tiranos (paradas militares, manchetes jornalísticas, inaugurações), até pequenos gestos de solidariedade e amor esquecidos na sombra dos calabouços ou silenciados no abrigo dos lares. Fazer luz sobre a época ditatorial permite ao cidadão de hoje orientar sua participação pessoal e política, fazendo da pedagogia da memória uma ferramenta para aperfeiçoar a vida atual.
O presente volume quer trazer à luz um aspecto especial e peculiar da vida dos resistentes, com a edição de poemas criados em situação de ameaça, coerção, dor física, desamparo e amedrontamento. Com sua carga de beleza e fantasia, de ilusão política, de devaneios e amores, de reflexões e autocríticas pessoais, estas obras urgentes misturam o poder natural da palavra poética com a dramática situação de vida daquelas moças e moços.
Ora na clandestinidade ou sob tortura, ora em sequestro incógnito ou no exílio, ora na arriscada vida cotidiana, a opositora e o opositor ao regime recorreram à poesia para se expressar. Seria o jogo poético um lenitivo para suas dores, seriam suas odes canções de esperança, seriam suas rimas gritos de liberdade, seriam somente o derrame de suas tristezas, seriam apenas um consolo ante o andar lento do tempo encarcerado, seriam simples vocações poéticas e nada mais?
Alguns foram cantores de uma só canção, outros seguiram no generoso ofício de poetar. Alguns deitaram suas estrofes sob ameaça de violência imediata, no interior mesmo de prisões, na antessala do choque elétrico. Outros, durante intermináveis dias e noites de longas condenações ilegais nos insalubres presídios e quartéis, na revista corporal indecorosa. Alguns terão entornado em ocultos papelotes de cigarro seus sonetos de amor por um noivo ou uma visitante solidária. Houve mesmo rabiscos de grampos no reboco de paredes. Alguns escreveram no bojo de jornadas de lutas de rua, em confronto físico com os esbirros. Decerto também escreveram na calada da noite, em seus lares à pouca luz, ocultando estrofes na frincha dos colchões.
Subversiva por natureza, foi a poesia com frequência vitimada pelos totalitarismos. São figuras emblemáticas alguns magníficos poetas, como Federico Garcia Lorca executado na Espanha, Nazim Hikmet prisioneiro na Turquia, Pablo Neruda exilado do Chile e Juan Gelman exilado da Argentina, Mario Benedetti exilado e Liber Falco assassinado no Uruguai, Otto René Castillo incinerado na Guatemala, José Martí mutilado e assassinado em Cuba, o catalão Joaquín Amat Piniella e seus poemas encontrados com sessenta anos de atraso, também Javier Heraud morto no Perú, os assassinados na Argentina Tilo Wenner e Roberto Santoro, Ernesto Cardenal oprimido na Nicarágua, incluindo a Roque Dalton “justiçado” por companheiros em El Salvador. Desde a época da Inconfidência Mineira até o regime de 1964, nossos vates sentiram o peso da perseguição, como Thiago de Mello e Ferreira Gullar que provaram o pão amargo do exílio nas últimas décadas, como Fernando Batinga (preso no Estádio Nacional de Santiago) e José Falcón no Chile, onde este último termina por suicidar-se.
Na presente seleção, onde as lacunas são inevitáveis, destacamos a figura do poeta cachoeirense Nilton Rosa da Silva, assassinado no Chile, e de Manoel Raymundo Soares, militar paraense vitimado em Porto Alegre, de quem publicamos trechos de cartas à esposa. Aqueles que ofereceram seu sangue pela liberdade, se tornam carne e unha de seus povos, ainda mais quando o fizeram longe de seu torrão.
Dois poetas prisioneiros se destacam no Brasil: Alex Polari e Pedro Tierra. Sob grave sevícia e ameaça de vida, encontraram a fortaleza espiritual para registrar o sentimento coletivo de toda uma época e a percepção sensível de sua delicada situação pessoal. Entregaram à sociedade brasileira e mundial seu brado de protesto, sua denúncia das desumanidades, sua perplexidade juvenil ante um mundo bárbaro e, acima de tudo, ofertaram toda a imensa beleza guardada em seus corações. Contaram para isso com a coragem de mães e pais, amigos companheiros e advogados, que sob grave risco escoavam precários manuscritos até solidárias mãos, para salvá-los e tentar publicá-los. Assim, estes braços fraternos velaram pelo nascimento e existência de obras que hoje são pérolas da cultura democrática do Brasil.
A seleção que se reúne neste volume abdica de qualquer valoração estética. Busca apenas redescobrir e colocar ao alcance do público atual a faceta quase perdida de alguns dos nossos “poetas da dura noite”. Nem poderia a perseguição ser critério de excelência artística. Ambicioso seria esperar de todo versejador ameaçado que realizasse a façanha de José Hernandez, poeta argentino que no exílio rio-grandense construiu seu épico “Martin Fierro”, marco da poesia popular e telúrica do extremo meridional da América. Nos basta com dizer da bondade, da beleza e da generosidade de homens e mulheres que ousaram atrever-se a lutar e vencer no terreno da arte durante os momentos mais terríveis de suas vidas frágeis e desamparadas.

Porto Alegre, junho de 2019

2 comentários em “Apresentação”

  1. O que eu falo para todo mundo desse negócio de jornal é o seguinte: não teve perseguição a jornalistas que justifique essa farra do boi, esse negócio aí do “salário ditadura”, “aposentadoria ditadura”. Isso não aconteceu. Até tiveram alguns que foram impedidos de trabalhar,mas você resume isso numa reunião em que o Juracy Magalhães chama os donos de jornais no Rio. O Juracy Magalhães era Ministro da Justiça do Castelo Branco e a reunião era com o fim de demitir os comunistas das redações. Aí tem dois episódios. Dessa reunião, Juracy disse assim: “Por que o senhor contrata tanto comunista?”. Aí o doutor Roberto disse: “porque eles sabem fazer jornal. O senhor quer discutir comigo o problema de comunista na redação, vamos discutir o conteúdo do jornal. O que o senhor está insatisfeito com o conteúdo do jornal e não com perseguições pessoais?”.
    O segundo é mais engraçado. No meu inquérito, um coronel do SNI [Serviço Nacional de Informações] para o doutor Roberto, eu estava na sala, pedindo a ele a lista dos comunistas d‟OGlobo, que um cara ia lá pegar. Ele pegou e mandou embrulhar a folha de pagamento e deu para o cara. Aí ligou o filho do Zé Américo, que foi comandante do exército aqui, Reinaldo de Souza. O Leônidas Pires Gonçalves era o chefe do Estado Maior naquela época. E aí ele disse que o pessoal estava chateado que ele tinha mandado uma lista, mas não era aquela lista. Ele [Roberto Marinho] disse: “olha, eu não sou polícia, eu não tenho que descobrir comunista. Quem tem que descobrir comunistas são vocês. Vocês vejam aí a lista e vejam os comunistas que tem no Globo”. Eu não sei nem se o menino da TV contou isso no livro dele…
    Henrique Caban. Entrevista concedida ao centro de cultura e memória do jornalismo.

  2. Este livro é único e relevante, tanto para o RS e como referência geral, pela temática e reunião de autores vítimas da opressão que se sobrepuseram ao tempo fazendo versos. Haverá excluídos por diversos motivos, mas é um exemplo a ser seguido.

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