Marília V. Veronese – Psicóloga Social e Professora
Costumamos ignorar, ou não dar a devida atenção, às desigualdades – grandes/estruturais ou pequenas/cotidianas -, que presenciamos constantemente e que fazem nossas sociedades injustas e indignas. A norma sob a qual vivemos é branca, cis (identidade sexual igual à designada), heterossexual, masculina e rica/classe média, adulta (mas jovem), “saudável” e sem deficiências. O que acontece com quem não preenche tais requisitos? Negros, índios, mestiços (não-brancos em geral), gays/lésbicas, transgêneros e travestis, pobres, periféricos, portadores de alguma deficiência, crianças e velhos?
Bom, esses terão muito mais chance de experimentar as agruras de uma sociedade estruturalmente injusta, cindida entre quem é plenamente cidadão e quem não é, quem acessa as benesses da civilização e quem fica de fora. Tendem a ser expulsos – ou nem sequer incluídos – do contrato social. Esse pacto foi o que fundou o Estado moderno, com o objetivo de organizar a sociedade numa forma viável, pacífica e justa de vida coletiva, na qual o mais forte não esmagasse o mais frágil.
Nas aulas sobre contratualismo, quando eu “testava” meus alun@s do curso de economia pra ver quem era mais hobbesiano ou mais rousseauniano, sempre havia quem achasse que o homem é mesmo o lobo do homem e não tem jeito. Thomas Hobbes postulava que a natureza humana era violenta e todos se matariam uns aos outros, caso o Estado não centralizasse o poder e terminasse de uma vez com a bagaça, ficando conhecido pela expressão “o homem é o lobo do homem”. Já Jean Jacques Rousseau acreditava numa natureza humana pacífica e bondosa, mas achava que a ganância por acumular mais do que o semelhante corrompia o homem, vivendo em sociedade em regime de propriedade privada. Nesse caso, caberia ao Estado garantir a justiça e a igualdade entre os humanoides. “Deixa a Bangu pra ver o que acontece!” disse um aluno uma vez, certo do caos completo e aniquilação geral sem a repressão do Estado. Em gradientes variáveis, cada um/a deles/as tinha uma posição, mais próxima ao pessimismo de Hobbes ou ao otimismo de Rousseau, em relação à natureza humana.
Poderemos viver juntos?, perguntava-se o sociólogo Alain Touraine. Seremos mesmo os piores inimigos uns dos outros? Iguais, mas diferentes; juntos, mas separados. “O inferno são os outros”, já dizia o existencialista Sartre. Esse tema foi e é objeto das mais variadas interpretações e mais apaixonadas impressões.
Conforme se combinem as vulnerabilidades citadas anteriormente, mais a situação fica difícil para o sujeito em sociedade. Se for mulher, pobre e negra, os piores trabalhos e as menores remunerações serão as delas (conforme mostra a pesquisa do IPEA[1]). Se for travesti, ou preto e periférico, a expectativa de vida é bem menor do que a média da população em geral. Se for negro, pobre, gay e morador de rua… melhor seria fugir pras montanhas e viver de mel silvestre e gafanhotos, como aquele cara cabeludo que viveu há uns 2000 anos atrás e mandou todo mundo se amar e viver solidariamente, sem julgar ninguém (alguns não souberam interpretar sua mensagem – ou são mesmo muito canalhas e manipuladores – e preferem dizer que ele mandou “dar pancada em gay”, estimulando violência e ódio).
A chamada constituição cidadã de 1988 visou incluir mais gente no contrato ou pacto social. Aquela combinação que diz assim, “Olha, pra viver pacificamente em sociedade tem de ter maior igualdade, mais gente deve ser incluída nas benesses da civilização, nessa invenção moderna chamada de cidadania”. O direito a ter direitos, individuais e coletivos. O direito a sair da condição de “inferioridade” produzida e legitimada, de não mais vivenciar conflitos sociais que causam privações, dor, sofrimento e humilhação cotidiana, aquilo que a psicóloga social Bader Sawaia chama de “sofrimento ético-político”.
Agora que o projeto democrático-constitucional iniciado em 1988 está sob forte e virulento ataque, corremos o risco de aprofundar ainda mais as desigualdades, e não somente mantê-las intocadas (o que já seria terrível). No que consistia esse projeto? Na ampliação da democracia, dos direitos sociais, da participação popular, através de comitês, conselhos, mecanismos pluripartites de gestão das políticas públicas e universalização de direitos como saúde e educação básica.
Os direitos sociais, econômicos e culturais são aqueles vinculados ao trabalho e renda, à educação e à saúde, chamados direitos de segunda geração, ligados à ideia de igualdade. A primeira geração de direitos, ligada à ideia de liberdade, refere-se ao direito de ir e vir, votar e ser votado, não ser preso arbitrariamente… e a terceira geração, ligada à ideia de fraternidade, são os direitos ao meio ambiente saudável, à autodeterminação dos povos, patrimônio comum da humanidade e livre comunicação. Liberté, egalité, fraternité! Ideias liberais iluministas. Será que os que são contra os direitos humanos – trogloditas de internet! – mas colocam bandeira da França no perfil das redes sociais sabem que os ditos cujos nasceram lá? Quer dizer, há controvérsias, há origens variadas e mais antigas, mas deixemos essa discussão para outro texto! Modernamente, o lema da revolução francesa é a gênese da tradição de direitos humanos.
A ampliação de direitos e a justiça social nunca foram, contudo, uma unanimidade entre os brasileiros (nem em nenhum lugar do mundo). As elites nacionais sempre quiseram manter a senzala servindo a casa grande, e morrem de medo da revolta “dos de baixo”. Já eu, sonho com o dia em que eles finalmente acabarão com a festa dos canalhas, parando de eleger para o legislativo pastores picaretas, gastadores de dinheiro público e grileiros do PP; se recusando a ser o saco de pancada geral e parando de servir às elites por migalhas. Quando o morro descer pro asfalto fora da época de carnaval, disposto a exigir seus direitos, talvez os ideais de Rousseau e o lema da revolução francesa finalmente se concretizem. Mas de verdade e para tod@s, não só para os de sempre numa enganação muito típica das democracias modernas ocidentais, que exploram e oprimem a vontade longe de suas fronteiras.
Para debater as origens da legitimação das desigualdades aqui no Brasil, recorro a Jessé de Souza. Cito, pois é um “vício” de todo pesquisador acadêmico a citação; cito porque Jessé disse com muita propriedade aquilo que penso: “O economicismo liberal, assim como o marxismo tradicional, percebe a realidade das classes sociais apenas ‘economicamente’, no primeiro caso como produto da ‘renda’ diferencial dos indivíduos e no segundo, como ‘lugar na produção’. Isso equivale, na verdade, a esconder e tornar invisível todos os fatores e precondições sociais, emocionais, morais e culturais que irão constituir a renda diferencial, confundindo causa e efeito. Esconder os fatores não econômicos da desigualdade é, na verdade, tornar invisível as duas questões que permitem efetivamente compreender o fenômeno da desigualdade social: a sua gênese e a sua reprodução no tempo”. Mas que fatores são esses aos quais Jessé alude?
As múltiplas disposições culturais que as pessoas trazem dos seus contextos de nascimento e desenvolvimento. As oportunidades brutalmente desiguais de estudo, formação, experiências enriquecedoras. Sofrer racismo na infância. Ter de trabalhar muito cedo e não ser socializado visando o aprendizado e ensino formal avançados.
Corroborando a leitura bourdiana de Jessé, o cientista estadunidense Karl Hart fez uma pesquisa e constatou que uma criança de ambiente sociocultural elevado, já aos 3 anos, terá um léxico muito mais variado do que uma que se cria em ambientes de pobreza, privação e pouca escolarização. As brutais desigualdades, porém, são camufladas e tudo se resumirá ao esforço pessoal – ou a ausência dele. A igualdade formal – letra morta da lei – é tomada como real, o que não é verdade.
A isso Jessé chama de “economicismo”, uma ideologia nefasta e que está na base da naturalização das desigualdades. Cito novamente: “Apesar de ‘invisível’, esse processo de identificação emocional e afetiva já envolve uma extraordinária vantagem na competição social seja na escola, seja no mercado de trabalho em relação às classes desfavorecidas. Afinal, tanto a escola quanto o mercado de trabalho irão pressupor a ‘in-corporação’ (tornar ‘corpo’, ou seja, natural e automático) das mesmas disposições para o aprendizado e para a concentração e disciplina que são ‘aprendidas’, pelos filhos das classes privilegiadas, sem esforço e por mera identificação afetiva com os pais e seu círculo social. ”
O brasileiro médio ainda é racista, homo e transfóbico, tem muito preconceito de classe e ajuda a reproduzir a sociedade injusta e perversa em que vivemos. Nega o massacre da juventude negra e pobre e tem uma bestial sede de vingança dos que considera “bandidos”, volta e meia se envolvendo em linchamentos por aí. Nega tudo isso, obviamente: afirma que o importante é se esforçar, que gente vagabunda não tem as coisas porque é vagabunda. Comete assassinatos lógicos ao abstrair completamente as pessoas de seu ambiente social e achar que todos têm iguais condições e predisposições, ignora o processo social opaco, como diz Jessé, de produzir “indivíduos nascidos para o sucesso” de um lado e outros “nascidos para o fracasso” de outro. As exceções a essa regra só a confirmam, pois são exceções. E a condição de exceção já é a confirmação do caráter geral da regra.
Precisamos de uma ampla reforma no pensamento social, na ação de cada um/a em sociedade, na compreensão mais profunda e complexa da gênese da desigualdade e da evitabilidade de sua reprodução, mediante ações combinadas do Estado e da sociedade civil. Os privilégios de alguns diante da ausência de direitos de outros são vergonhosos. A ostentação é ridícula. Mudar a forma de vida é essencial, tendo a solidariedade e senso de justiça como guias. E o lobo, aliás, nem merece a má fama que tem, ele é um belo animal. Só ataca se realmente precisar: Hobbes estava enganado, e nós podemos ser lobos, digo, humanos bem melhores do que temos sido.
[1] http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf
Querid@s companheir@s do Jornal Jà, meu título é em psicologia social, não sociologia 🙂