TVE RS e FM Cultura: quanto valem a cultura e a comunicação pública?

Guilherme Castro
Cineasta, jornalista e professor
O Pacote Sartori é o atraso, porque afeta com violência a produção de conhecimento e de cultura do Rio Grande do Sul ao pretender a extinção de nove Fundações Estaduais. A economia que será feita é insignificante, representa 0,4 % do total de gastos** e, por outro lado, o valor jogado fora em saber, arte e cultura é incalculável. Pesquisas desenvolvidas ao longo do tempo, oferecendo bases, estratégias e prestando serviços ao desenvolvimento da sociedade, serão abruptamente solapadas. Perdem-se bens insubstituíveis e infinitamente mais valiosos do que a pequena economia pretendida. Ainda, de antemão abandonam políticas de arrecadação de tributos, oferecem amplos e secretos benefícios em renúncia fiscal (9 bilhões) ao mesmo tempo em que propõem privar à sociedade de serviços muitas vezes indispensáveis.
Causa alarme, talvez porque conheça mais de perto*, especialmente a proposta de extinção da Fundação Piratini, TVE RS e FM Cultura. Bem entendido que a comunicação pública difere da governamental (propaganda oficial) e não compete, mas complementa e precisa fazer contrapontos, com a comunicação privada. A Piratini tem um Conselho Deliberativo composto em maioria por representações da sociedade e atende a interesses públicos, por isso, faz comunicação pública. Os serviços de comunicação prestados pelas emissoras TVE RS e FM Cultura são imprescindíveis à cultura e à comunicação social, e perdê-los trará enormes e irreparáveis danos ao Rio Grande do Sul frente a quase zero de economia. Traço breves argumentos:
Dado a relevância, começo lembrando que é a única emissora aberta dedicada à programação infantil de qualidade, ou seja, é apenas na TVE RS que as camadas mais pobres da população encontram programas infantis educativos. Mas há vários outros motivos.
No Rio Grande do Sul temos orgulho de toda a diversificada e rica cultura que produzimos (e que também nos produz ao formar a ideia sempre em movimento de povo que compartilhamos), mas o único espaço de TV e Rádio para a quase totalidade dos valores e manifestações artísticas são as emissoras da Fundação Piratini, TVE RS e FM Cultura. Essa é parte importante do papel insubstituível da comunicação pública: a riqueza cultural que temos enfrenta intransponíveis obstáculos em qualquer espaço nas emissoras privadas. As empresas de comunicação privada atendem a interesses comerciais e trabalham diuturnamente com produtos massificados, por isso é tamanha a desqualificação, repetição e inacessibilidade desses veículos.
Por outro lado, no Rio Grande do Sul, a TVE RS é a maior produtora de conteúdo local, próprio e terceirizado (há várias formas importantes de financiamento e parcerias). Junto à FM Cultura, sempre com muitas dificuldades, cobrem e abrem espaços exclusivos a infinitas pautas e debates, programas culturais e educativos, cobertura de eventos do interior e da capital, memória e História do Rio Grande, promoção de valores e campanhas, expressões de todos os artistas, cidades, estilos, do popular, do erudito, dos negros, das tradições, do carnaval, dos imigrantes, do Brasil e sobretudo do Rio Grande do Sul; enfim, abrem espaços únicos em diversificados programas a todos os matizes culturais. São também os canais para novos projetos e formatos de programas de rádio e televisão e é por ali que quase sempre passam os novos nomes, que depois se tornam conhecidos do público (há muitos exemplos).
Acabar com a TVE RS e com a FM Cultura afetará com gravidade toda a indústria criativa (cujo potencial é tão falado entre nós hoje em dia), que tem em suas bases justamente a riqueza e diversidade da produção artística. Atinge profundamente a indústria do audiovisual (a TVE RS é janela insubstituível), a música (a FM Cultura é insubstituível), a literatura, o teatro, o nativismo e eventos do interior, além de todos os eventos culturais. Sem chances de chegar ao público, o prejuízo à arte e à cultura será de enorme dimensão.
O acervo em imagens e sons históricos e da memória do Rio Grande do Sul que há nos arquivos da Fundação Piratini são também indispensáveis e igualmente sem valor calculável. Dada a inexistência de local para nova guarida a esse acervo, o fim da Fundação acarretará perda total, o que não poderia ser nem cogitado.
Enquanto serviço de informação, a TVE RS e a FM Cultura são igualmente imprescindíveis. No contexto histórico de concentração da mídia nas mãos de poucos grupos que prestam especial desserviço para a informação, educação e cultura de nosso povo, a comunicação pública, por menor que seja, é uma das últimas possibilidades de jornalismo com olhares mais amplos, reflexivos, alternativos e comprometidos em primeiro lugar com o interesse público. A grande maioria das pautas que encontram espaço na TVE RS e FM Cultura são simplesmente ignoradas pelas emissoras privadas.
É preciso também verificar que não é minimamente possível nem razoável imaginar a continuidade dos serviços da TVE RS e da FM Cultura com a extinção da Fundação Piratini, a demissão dos funcionários e a venda dos equipamentos. Por acaso contratarão nova equipe e comprarão novos equipamentos? Para produzir quais programas e como? O que farão com a concessão? Entregarão a quem? Fica evidente que a medida é terminativa e sem volta.
Provocando todo esse estrago e prejuízos à cultura, à economia criativa e às artes do Rio Grande do Sul, a extinção da Fundação Piratini representaria apenas o corte de 0,02933% do custo do Executivo, que equivale a 0,26% da renúncia fiscal dada pelo Governo no mesmo período. Além disso, se o custo acumulado pela Fundação Piratini é de 26,8 milhões, o Governo do Estado gasta 80,6 milhões e o Banrisul outros 48,8 milhões em publicidade nas redes privadas de comunicação**. Assim, fica muito evidente que há soluções a serem buscadas, se for dado o devido valor à cultura gaúcha e à comunicação social pública.
Ocorre que nos últimos dias têm sido cada vez mais contundentes as manifestações da sociedade civil afirmando que os serviços de comunicação da TVE RS e FM Cultura são essenciais, indispensáveis e devem permanecer. Que os Deputados escutem e compreendam. Preocupante.
*Enquanto realizador audiovisual, integrei e presidi o CEC RS e a APTC RS, integrei o Conselho Deliberativo e fui Diretor da Programação da TVE RS, integrei o Conselho e a Diretoria da FUNDACINE RS.
**Dados levantados junto ao Portal da Transparência da SEFAZ pelo Parecer Jurídico dos Sindicatos dos Radialistas e dos Jornalistas e pelo press kit produzido pela Fundação.
 
 

As perspectivas para um Brasil pós-golpe em 2017

O mar não está para peixe. Vê-se, a olho nu, o Brasil derretendo. O golpe nos projetou num limbo institucional que ignorávamos existir. À beira da realidade de um estado falido, assistimos o ministério público insolente desafiar a representação popular. E o faz com uso de seus podres poderes de intimidação, prática que só conhecíamos do lobby “da bala”, das entidades representativas das polícias. E isso só é possível porque o Congresso Nacional atravessa sua maior crise ética da história, com bancadas insignificantes, ultra-conservadoras em sua maioria, pulverizadas por quase três dezenas de partidos, que não dizem quais são seus programas, seus ideais, seus escopos e sequer têm militância espontânea (coisa diversa de militância paga). Afinal, algumas centenas de parlamentares com contas a acertar com a justiça facilitam a ousadia do órgão de persecução penal. E o discurso falso-moralista que reduz os problemas do Brasil ao campo da corrupção conseguiu conquistar massas de corações e mentes providas de um par de neurônios apenas.
O Supremo Tribunal Federal (STF), guardião maior da constituição, perdeu todas as oportunidades para defender o poder legítimo e colocar freios ao oportunismo político dos perdedores das eleições de 2014 e ao corporativismo abusado de algumas carreiras de estado. Enquanto o País vivia uma de suas maiores crises políticas e éticas com o afastamento trapaceado da Presidenta da República, o excelso sodalício decidia se consumidores poderiam entrar com sua própria pipoca nos cinemas ou se eram obrigados a comprá-la ali… Chega a ser um quadro surreal.
Paralelamente, a economia desfalece. A agressividade da operação “Lava Jato” sobre grandes ativos empresariais dizimou perto de 30% do produto interno bruto e levou consigo milhares de empregos. O esmagamento da produção petrolífera com conteúdo nacional levou ao colapso não só as indústrias de equipamentos, mas também estados da federação que deixaram de recolher impostos e auferir royalties. O estado do Rio de Janeiro é o mais concreto exemplo do estrago causado por falta de estratégia persecutória e econômica.
Nesse ambiente, o mercado encolhe e o apetite empresarial entra em regime de jejum. Investimentos deixam de ser feitos e desaparecem as perspectivas para um projeto soberano de desenvolvimento nacional.
A conjuntura política e econômica é propícia para aventuras e aventureiros, sejam eles parasitários ou populistas fascistas. Só estes nada têm a perder. Uns podem contar com a benevolência de rentistas e patrões ao norte do globo terrestre; outros se aproveitam do desânimo e das fobias coletivas para oferecer saídas fáceis e sem qualquer apego à realidade, para iludir as massas com falso sentimento de serem um povo unido, submissos a uma “nova ordem” que substitua a antiga, apodrecida com a corrupção e com o “comunismo” perverso.
É nesse contexto que se descortina 2017. O que esperar dele? Mais do mesmo, se as instituições não tomarem coragem de reinventar sua prática. Os desafios são enormes para o judiciário e para o legislativo. O executivo, coitado, de protagonista de um projeto de democracia inclusiva, passou a ser reboque da história, sem qualquer autonomia para realizar políticas públicas, para governar. O golpe desfigurou o sistema constitucional presidencialista e o transformou num parlamentarismo de matilha, comparável à dinâmica duma massa de caninos famintos farejando por restos aqui e acolá, num aterro sanitário.
O que esperar do judiciário? Difícil dizer. Um personagem emerge com poderes desproporcionais: o Sr. Ministro Gilmar Mendes, presidente do tribunal superior eleitoral (TSE) e da 2ª turma do STF. Nessa dupla condição, é ele que pauta os processos nos órgãos jurisdicionais em que funciona. E, só por isso, é o homem mais poderoso da putrefeita república. Dele dependem os destinos do Sr. Michel Temer e dos principais atores do legislativo. No TSE, pautar ou não pautar as ações do PSDB contra a chapa de Dilma nas eleições de 2014 pode significar vida ou morte do governo nascido do golpe parlamentar; na 2ª turma do STF, pautar feitos da “Lava Jato” num dia de quorum completo ou quorum incompleto pode significar rejeição ou admissão de denúncias, concessão ou denegação de habeas corpus ou, até mesmo, condenação ou absolvição de réus. Quem mais pode tanto? Não é de estranhar, pois, que o Presidente do Senado, Senador Renan Calheiros, arquivou de plano pedidos de impedimento manejados naquela casa legislativa contra Gilmar. Afinal de contas, depende dele se Renan será ou não condenado e quando o será…
Na Procuradoria-Geral da República o corporativismo venceu a esperança, quando o Sr. Rodrigo Janot resolveu se assumir como mais um dos muitos justiceiros que pululam no ministério público federal. Saiu do armário. Afinal, com o golpe, os tempos são mais propícios para o perfil de moralista-punitivista. Dá mais sustentação do que ser crítico do nosso falido sistema de justiça. Remar a favor da maré e fingir que a crise é problema dos outros torna a vida mais confortável. Por isso, a escolha de José Bonifácio como seu vice (independentemente de se tratar de pessoa competente e correta em sua atuação) já foi prenúncio dos novos tempos de maior clareza política: Bonifácio foi Procurador-Geral do Estado de Minas Gerais no governo de Aécio Neves e sucedeu, no governo FHC, Gilmar Mendes na AGU. Não tem como alguém ser mais próximo do tucanato de alta plumagem. A operação “Lava Jato”, que Janot se recusou a civilizar por medo de desgaste com a mídia golpista e com seu entourage de justiceiros, poderá finalmente fechar seu movimento fortíssimo e entrar no pianíssimo, deixando de lado seu ativismo de oposição. Afinal, já fez o servicinho que se esperava dela, que era inviabilizar o governo da Presidenta legitimamente eleita. Agora que pode vir a se aproximar demais de personagens do outro lado do rio, é melhor botar esses meninos para estudar no exterior ou se mudarem para capitais mais atrativas.
Judiciário e Ministério Público Federal estão, por conseguinte, na área de influência do PSDB. O fato de Rodrigo Janot ter jantado há anos com José Genoino não muda em nada essa constatação.
As perspectivas são, nessa constelação de condições, muito propícias para um redimensionamento da importância dos perdedores da última eleição presidencial no governo do País, com franco apoio do complexo judicial em sua cúpula. Para Temer, não sobrará muito a não ser se inclinar a essa realidade e se transformar em marionete da direita que milita por um projeto de desnacionalização política e econômica do Brasil. Para quem odiava ser vice decorativo e sonhava tanto em ser presidente, ter sua jovem esposa como primeira dama apresentável nos salões da república, ocupar seus dias penteando a vaidade, este é um mal menor. O PMDB nunca teve convicção de nada a não ser de se servir das facilidades que o poder proporciona, independentemente de quem puxa os fios. Ser presidente decorativo da matilha fuçadora nem é tão ruim assim. O palácio da alvorada tem seus encantos.
Mas se houver um problema de sustentabilidade do governo Temer, a guilhotina está pronta para lhe cortar o pescoço no TSE. O timing está na mão do clemente verdugo, presidente da corte. E, em saindo Temer, os mestres em conchavos conspirativos do PSDB saberão fazer o sucessor em eleições indiretas. Ficará todo mundo feliz nesse parlamentarismo de matilha, pois até o atual PGR poderá fazer de Bonifacio seu sucessor, garantindo dias mais tranquilos para a governabilidade do presidente biônico.
No Congresso, espera-se a substituição dos presidentes da Câmara e do Senado, provavelmente tucanos ou filotucanos. É como se vivêssemos num mundo paralelo, nada fácil e que demanda muito Sonrisal para suportar. Mas o rebuliço não se fará esperar. Quando aparecer a extensão do envolvimento de parlamentares com o esquema de propinas desnudado pela Lava Jato, muitos terão que se despedir do mandato. Talvez seja até mesmo o caso de se cogitar de novas eleições, pois esse Congresso não terá legitimidade de ser parceiro do governo falido ou da escolha de um chefe de governo biônico.
Por fim, o povo. Ah, o povo… nesses tempos anda tão esquecido, a não ser quando o MBL se arroga qualidade de “povo”, com a batição de panelas Le Creusot nas varandas Gourmet da Asa Sul, da Av. Faria Lima, da Av. Vieira Souto ou dos edifícios das vizinhanças do Farol da Barra. Aí dão um jeito de ser lembrados, mesmo que se trate de uma fraude. Mas o verdadeiro povão, aquele que ganhou inclusão com os programas de bolsa família, Pronatec e Minha Casa, Minha Vida, se não souber se articular e reagir à altura, estará regressando à miséria, com uma volta a três décadas atrás, sem programas de inclusão social e de renda para os mais pobres. O tucanato nunca se preocupou com eles mesmo e há os que pensam que investimento social é jogar dinheiro fora, pois alimentaria meia dúzia de parasitas petistas. O resultado pode ser uma queda vertiginosa dos índices de desenvolvimento humano, de matrículas em escolas e universidades públicas por alunos e estudantes de baixa renda, com a reintrodução do Brasil no mapa da fome. É preciso reagir maciçamente contra essa partilha do estado e de seus recursos por aqueles que o tomaram de assalto. Se não for por via de provocação de instituições, já que estas foram capturadas pelo golpe, há de ser pela articulação da parte mais esclarecida da sociedade com os movimentos populares.
E os militares? Até agora estão quietinhos. Mas podemos ter certeza de que estão muito incomodados. As Forças Armadas brasileiras são compostas de pessoas da classe média urbana. Têm por isso perfil mais conservador. Mas adotam uma doutrina do interesse nacional que esbarra frontalmente com aquilo que se esta bagunçando no governo do golpe. A prisão e condenação, com estardalhaço, do Almirante Othon, pai da energia nuclear brasileira; o desmonte de indústrias estratégicas, como a naval, preparada para renovar a frota da marinha de guerra, ou a aeronáutica, que tem em sua carteira a Força Aérea Brasileira como um dos principais clientes, não podem ser aceitos sem reação. Não seria de sua tradição de defesa do Brasil. Sabem nossos bravos soldados muito bem como os governos de 2003 a 2016 se preocuparam seriamente com seu reequipamento, recuperando os anos perdidos do governo de FHC. Voltar atrás e desistir do papel estratégico do Brasil na geopolítica é crime de lesa pátria, praticado para atender a podres interesses alienígenas e garantir o ganho de uma elite egoísta e sem visão do mundo e da história.
Em resumo, temos muito a esperar do ano vindouro menos tranquilidade. O acirramento da crise é inexorável com um desfecho barulhento ao jeito de um clímax numa ópera wagneriana. Se o que vier depois nos ajudar a ver luz no fim do túnel, será um ganho. Fica para as corporações das carreiras de estado, para o parlamento e para a população a lição de que não se briga com constituição pactuada, pois o rebuliço que se segue não compensa as vantagens auferidas por poucos gananciosos ávidos por poder.
Que Deus mostre que é brasileiro em 2017!

Um governo sem compaixão

Jorge Barcellos – Doutor em Educação
A reivindicação do discurso de proteção aos desamparados, o discurso de compaixão que ocupou a política de bem-estar social, discurso que fazia do Estado o protetor da sociedade e de seus servidores foi apontado como característica do discurso político por Hannah Arendt em sua obra Sobre a Revolução. Sua característica se define pelo apoderamento pelo Estado do sofrimento dos pobres, indigentes e excluídos para converte-lo em argumento por excelência da política e sempre incluiu o horizonte do serviço público em sua argumentação. Por esta razão os servidores públicos tiveram reconhecidos em seus estatutos inúmeros direitos de proteção ao trabalho que transformaram tais instrumentos legais em referência: do direito a liberação de horas de trabalho para realizar estudos a liberação de horas para tratamento de familiar doente, o Estado sempre nutriu compaixão pelos servidores públicos e a iniciativa privada, através da legislação social, em muito imitou os direitos conquistados pelos servidores públicos.
Da explosão do sofrimento das classes pobres que insuflou os revolucionários da Revolução Francesa a determinar o curso do seu movimento à política contemporânea nos estados onde desde 2008 ocorre a retomada da ascensão neoliberal, vemos a substituição paulatina dos pobres e vítimas do passado pelos servidores públicos no presente. Hoje, as condições dos trabalhadores do serviço público integram a questão social e o desmonte das suas proteções foram incluídas no desmonte geral das proteções da sociedade salarial, que vão desde a redução dos direitos do trabalho, segurança e previdência, então característicos do processo de descidadania neoliberal:  é a passagem dos trabalhadores de plenos direitos à trabalhadores sem direito algum repercutindo agora  em seu equivalente  dos servidores públicos de plenos direitos a servidores sem direito algum.
Esses processos de desterritorialização de direitos, de trabalhadores e servidores públicos colocam a questão de que pensar a cidadania no mercado é tão importante quanto a cidadania no serviço público. A redução dos espaços democráticos, expressão do que Arendt chama de pobreza, não é a carência de meios, mas a necessidade do sistema da miséria aguda, a desumanização de homens vítimas do capital em todos os espaços, e por esta razão, atinge trabalhadores e servidores públicos indistintamente. Não é o que se vê na irrupção de servidores públicos estaduais em greve por terem seus salários parcelados pelo governo de José Ivo Sartori, incapazes de atender suas necessidades básicas? Isso não é o equivalente da irrupção dos pobres da Revolução Francesa? Também os servidores públicos sofrem coerções de seu processo vital, tem urgência em conservar a vida e por isto o lamento de servidores que sequer tem condições de ir para a escola ministrar suas aulas. Sartori diz que este é um momento em que todos devemos dar nossa parcela de sacrifício, mas o que Arendt diz é que de “indivíduos submetidos a semelhante pressão não se pode exigir sacrifícios que se podem pedir a cidadãos”. Quer dizer, Arendt defende que antes de exigir qualquer sacrifício, qualquer idealismo aos pobres, devemos faze-los primeiros cidadãos “o que implica em mudar as circunstâncias de suas vidas privadas, em grau tal, que sejam capazes de usufruir do público”.
Não é o mesmo que ocorre com os servidores públicos atingidos pelo pacote de maldades do governador José Ivo Sartori? O governador, que já vinha desagregando a cultura do serviço público em nosso estado com sua suas medidas de parcelamento salarial, retirando as condições de existência digna de seus servidores sob a justificativa que deveriam “abraçar o sacrifício conjuntamente”, nesse instante deixou de atender minimamente o contrato social que tem com eles, que garante pelo serviço público prestado a justa remuneração.  Quando José Ivo Sartori começou a parcelar salários de servidores públicos perdeu o direito de exigir sacrifícios simplesmente porque eles deixaram de serem cidadãos, foram reduzidos a uma condição inferior, foram privados de responder a qualquer demanda de sacrifícios porque já foram sacrificados à exaustão. Por isso, agora, o pacotão de maldades anunciado por José Ivo Sartori agudiza a superesploração do servidor público e reduz ainda mais sua condição de cidadania. Ele reduz os servidores à condição de extrema pobreza e não se trata somente da incapacidade de satisfazer necessidades vitais do servidor, se trata também de sentir “vergonha de ser condenado à escuridão e não ter direito à plena luz da vida púbilca”, como assinala Myriam Revault D’Allonnes em El Hombre Compassional (Amorrourtu Ediciones).
Por isso, a sugestão de demissão de 1200 servidores públicos é a face atual das palavras de John Adams recuperadas por Arend e por D’Allones: assim como na época de Adams, a humanidade não prestava atenção alguma ao pobre, não o viam, a sociedade atual, frente a imediata demissão de 1.200 servidores públicos… não os veem. Como é possível inúmeras manifestações nas redes sociais virem apoiar a iniciativa do governador de demissão? Há, com certeza, o desconhecimento da maioria do público das suas funções, somada ao novo pensamento de direita efervescente por todo o Estado. Mas o que tais afirmações fazem é corroborarem a prerrogativa de que, assim como os pobres do passado de Adams, os servidores públicos do presente têm suas vidas duplamente mortificadas: por sua indigência, já que sofrem com a redução de direitos consagrados e por que seu novo sofrimento que se aproxima, a demissão, ignorada pela massa da sociedade que vê o serviço público como seu bode expiatório. Essa cegueira social, essa ignorância do papel e do valor dos servidores das diversas instituições públicas a serem fechadas é a prova de que vivemos uma sociedade infame, sociedade que vê como indignidade narrar a vida desses servidores, que vê tais vidas como invisíveis. O governo Sartori conseguiu produzir assim um déficit social pois transformou os servidores públicos em nova camada de pobres sociais, mas também produziu um déficit simbólico, pois sequer os servidores públicos atingidos são vistos como parte da sociedade quel integram.
O que José Ivo Sartori conseguiu com sua política de massacre do servidor público foi a invisibilidade do servidor e Arend defende, segundo D’Allones, justamente que a inexistência social e política é um dos estigmas da pobreza. Os servidores públicos são os novos pobres graças a Sartori, mas, ao contrário dos revolucionários jacobinos, que fizeram da compaixão o motor de sua ação, o governador aprisiona os servidores a sua pobreza, mostrando-se um governo sem compaixão, mas com piedade.  Sem compaixão porque em sua etimologia designa a sensibilidade ao sofrimento do outro sem implicar um sentimento de superioridade, mas com piedade porque este justamente é um sentimento assimétrico, é preciso que o governo se sinta numa posição superior para julgar e portanto, inferiorizar o servidor: a piedade humilha o seu objeto.  Por isso, nas diversas entrevistas do governador, ele sempre vem com seu olhar de…pena para com a situação do servidor, mas não se trata de compaixão, é só olhar o significado do pacotaço de Sartori, que dizima servidores e órgãos públicos ao seu prazer. Para onde foi a compaixão no serviço público? Não para o do governador, mas para as demais categorias de servidores públicos dos demais níveis, que sofrem conjunto com os servidores do estado, o co-sofrimento de categoria. Sartori só manifesta piedade, só sente tristeza de ter de demitir servidores, mas isso não afeta ele próprio: por isso o valor dos estudantes que vão as ruas contra as medidas de Sartori, eles sentem compaixão, são também golpeados pelas medidas do governador.
Que sentimento falta nas relações do governador com seus servidores? O de solidariedade. O princípio deveria nortear as relações do governador com seus servidores pois os órgãos de estado são também uma comunidade, tem interesses que devem ser compartilhados. Ao contrário, Sartori parte do princípio que é preciso explorar o servidor público, e ele o faz porque não tem interesse na sua existência e, por isso seu pacotaço é a proposta de liquidação imediata de fundações, de servidores, de equipamentos “o apetite do poder requer a existência dos mais fracos”, diz D’Allonnes. A perversão das medidas de Sartori está no fato de que, em primeiro lugar, generaliza as instituições, dilui singularidades, homogeneiza tudo como massa indiferenciada: ora, CEEE e Sulgás estão longe de serem empresas que dão prejuízo para serem defenestradas, ao contrário, dão lucro e são sustentáveis; mesmo fundações que não dão lucro, como a TVE, estão dentro das responsabilidades do Estado, que dizer, respondem por atributos do Estado.
A forma indistinta em que Sartori adota a mesma justificativa de “redução de custos” para justificar a extinção de inúmeras fundações indiferencia seu objeto. Por isso é que a ausência de compaixão tem um nome: crueldade. A ausência de amor ao servidor é substituída pela incitação as formas desumanas de tratamento do servidor: Sartori age como o “cirurgião que corta um membro gangrenoso com seu ferro cruel e caridoso para salvar o corpo do paciente” (Allones). Ora, a autora de Ensaio sobre a autoridade lembra que para Anna Arendt na relação política o mundo também é um mundo de relações, há uma distância entre governantes e governados sim, mas há um inter esse, há coisas que separam e unem servidores e seu governador. Tudo isso não existe no governo Sartori, o que o pacotaço revela que existe é outra coisa, a repugnância de seu projeto neoliberal de governo para com o servidor público. Um governo sem compaixão é um governo que instaura qualquer coisa, menos uma sociedade em que os homens possam ser irmãos.
A ausência da compaixão, essa falta de esforço em procurar outra saída, de sequer apresentar o problema a quem serão atingidos, às suas vítimas, para encontrar juntos uma saída, generaliza a distância que separa Sartori do serviço público. É a perversão do estado, a ausência de qualquer amor pelo do governador pelo seu servidor e vice-versa. As origens desta tese são complicadas, mas em resumo, foram desenvolvidas por Pierre Legendre em sua obra “O amor do censor: ensaio sobre a ordem dogmática” (Forense, 1983), que pode ser assim resumida: as grandes burocracias da modernidade ocidental organizam a lei em sistemas e um censor onisciente (função simbólica invariavelmente ocupada pelo governante) cuja obra prima do seu poder é se fazer amar. A leitura de Pierre Legendre é a exploração social da psicose psicanalítica lacaniana, a mesma proposta retomada recentemente por Elisabeth Roudinesco em seu “A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos”.
Num e noutro está em discussão a ruptura com os princípios de solidariedade e harmonia entre atores diversos como nas figuras emblemáticas de Sade, no fenômeno do nazismo ao terrorismo contemporâneo. A perversão do homem chega ao Estado: a parte obscura do governo Sartori, essa atitude que exibe e que não cessa de dissimular, é a perversão do seu poder: ele oferece como espetáculo público o sacrifício simbólico de seus servidores como discurso de governo, e assim aniquila de uma vez por todas a preocupação da liberdade no governo. Deveríamos ser capazes de deixar os órgãos públicos que funcionam livres para cumprir sua missão pública, como a TVE, a FZB ou FEE, mas como isso contraria os interesses do grande capital desejoso demais de acessar riquezas públicas, é preciso não um governante que se faça amar pelos servidores públicos como sugere Legendre, ao contrário, é esta ausência de amor do governador pelo servidor mas pelo capital que deveria nos horrorizar:  a proposta de demissão sem piedade de pessoas e a venda imediata de propriedades é a declaração de amor do governador ao capital. E, portanto, perversão dos fins do estado social, do estado de direito, e da boa administração pública e nesse sentido, a ausência de compaixão do governador é a prova maior de que a tese de Roudinesco está presente entre nós. O pacotaço de José Ivo Sartori é, numa frase, a perversão do ato de bem governar.

A religião é o ópio do povo?

João Alberto Wohlfart – Professor de Filosofia
Num contexto de ruptura institucional e num país mergulhado numa ditadura parlamentar-jurídico-midiática, é preciso questionar acerca do papel das religiões neste contexto. O velho filósofo Karl Marx, novamente odiado pelos golpistas, afirmou em seu tempo que a religião é o ópio do povo. No contexto do século XIX, o filósofo observou que em tempos de crise econômica, de fome e de miséria, a religião aparece como um consolo porque volta os olhos para outro mundo e impede a leitura e interpretação da realidade.
A religião oficial desembarcou em terras brasileiras com os primeiros colonizadores. Isto não significa dizer que os povos originários não tivessem religião, mas ela foi negada e reprimida. Os colonizadores do velho continente implantaram em terras brasileiras o colonialismo, o imperialismo, a religião oficial, a cruz e a espada. Todos estes componentes foram aqui estabelecidos num casamento perfeito que deveria durar eternamente. Esta condição para o Brasil e para a América Latina seria uma condição imutável inscrita na mente e na vontade divina, portanto os homens e mulheres mortais não deveriam sequer pensar em modificá-la.
Um intelecto minimamente esclarecido e com posicionamento crítico diante do cenário nacional e internacional que se desenha aos nossos olhos, deve olhar com outros olhos a postura da religião oficial diante dos séculos de escravagismo que obscureceram a História do Brasil. A religião oficial abençoou o escravagismo como algo natural, necessário e como uma lei natural inscrita no interior da própria sociedade. Sabe-se que os índios e os negros eram tidos como uma espécie humana de qualidade inferior, razão pela qual seria legítima a sua escravidão. Como se não bastasse, os índios eram tidos como uma raça sem alma e vistos como selvagens e incivilizados.
Considerando um longo caminho histórico de casamento da Religião com a monarquia patriarcal, ela sempre esteve do lado da monarquia, do patriarcalismo, do colonialismo, do racismo etc. Na época do Brasil Colônia e Império, as bênçãos divinas foram abundantemente derramadas para a sustentação de tal estrutura social e como expressão máxima de introdução da cultura e da Religião europeia. Foi preciso neutralizar a cultura indígena e africana, consideradas pecaminosas e supersticiosas por natureza, para implantar e impor a doutrina verdadeira e os costumes do centro do mundo. Ainda no tempo cronológico do século XX, os negros não eram admitidos à casta do sacerdócio católico porque eram considerados incapazes de assumir as virtudes de santidade de tal condição.
Parece evidente de que as religiões pressupõem uma visão dualista de mundo, de homem e de sociedade. Alguns são os detentores da graça divina, enquanto outros são naturalmente incapazes e impotentes para tal dádiva. Alguns levam uma vida de perfeição segundo a lógica da alma e do espírito, enquanto outros são submetidos às inclinações da carne e do corpo. Alguns são religiosos abertos à graça divina, enquanto outros se deixam arrastar pela lógica do pecado e do mundo. Com estes requisitos, a religião sacramentou uma estrutura social absolutamente imutável e constituída segundo a vontade divina. Trata-se de uma espécie de racionalidade fundamental, de contornos teológicos e religiosos, que naturaliza o patriarcalismo, o colonialismo, o racismo e do machismo. E como Deus é o protótipo da ordem masculina, as mulheres não passam de reprodutoras e contaminadoras do sagrado.
De uma longa história chegamos ao cenário atual. Em outro artigo destacamos um hiato neste tempo histórico quando a Igreja Católica, em pleno tempo de ditadura militar, adotou outra postura ao denunciar as atrocidades da ditadura e ao assumir a causa da transformação social como carro-chefe de sua ação evangelizadora. Mas, depois de duras repressões advindas do centro do catolicismo, ela abandonou a causa da transformação social, de forma que na atualidade é irrelevante a sua ação neste universo.
Como a Religião Católica se tornou imperceptível no processo de transformação social, com forte refluxo para a sacristia e para os templos, este espaço passou a ser ocupado por outras religiões, especialmente neopentecostais. Estas religiões têm dupla incidência, pois estão presentes em todas as esferas da política, especialmente no congresso nacional, e nas bases populares. A ação delas em várias instâncias da política, da economia e da sociedade é determinante no refluxo conservador e neoliberal. Os grupos religiosos neopentecostais que somam forças gigantescas de manipulação das massas e de composição de um quadro político nacional ultraconservador, têm como expressão final o enriquecimento de uma pequena elite e a exclusão de massas sociais das benesses do desenvolvimento econômico.
Com estas colocações, como interpretar hoje a frase do velho Karl Marx segundo a qual a “religião é o ópio do povo”? Não é uma simples frase, ela reflete a posição do filósofo diante catolicismo do século XIX. Esta posição de Marx enfureceu muita gente à sua época, em tempos posteriores e na atualidade. No presente, novamente pesa uma fúria mortal contra o pensador, porque a sua crítica contra a estrutura da sociedade capitalista e contra a sua lógica interna é radical. As contradições apontadas por Marx ao capitalismo são basicamente as mesmas que na atualidade estão falindo o capitalismo, a sociedade humana e o sistema vida do Planeta Terra.
Uma análise cuidadosa do cenário brasileiro atual indica que a postura de Karl Marx é de suma atualidade. A evidência imediata da atualidade desta posição é o retorno de fundamentalismos religiosos fanáticos e ultraconservadores, inclusive católicos. Há posições extremamente fechadas que não abrem brechas para diálogo, nem com outras religiões, nem entre religiões e nem com outras posições filosóficas. Mas o universo social está coberto por uma espécie de névoa religiosa, que não apenas fecha os olhos do povo diante do golpe e da ditadura, mas os legitima autoritariamente. Por trás de tantos discursos religiosos moralistas e devocionistas, há uma concentração diabólica de uma ideologia que impõe autoritariamente a ordem ditatorial estabelecida. Os fiéis religiosos mais santos e retos em sua prática religiosa, também oriundos de quadros católicos, falam religiosamente contra a corrupção, mas a repõe e a potencializam em dimensões muito mais gigantescas.
É um fenômeno curioso que em tempos de ditadura, de ruptura institucional, de perda de direitos historicamente conquistados e de entrega do país para o grande capital, seja um tempo de efervescência religiosa. Os autoritarismos e fundamentalismos religiosos são intensamente evidenciados e pronunciados contra os movimentos sociais, contra a democracia, contra as maiorias historicamente excluídas, contra os trabalhadores. As religiões estão na base de articulação política do atual estágio de desenvolvimento do neoliberalismo, que tem como dogmas fundamentais a privatização da economia, a retirada do Estado, a financeirização da economia, a superconcentração de renda e a massiva exclusão social. Há uma proximidade evidente entre a dogmatização econômica e a dogmatização religiosa, em posturas autoritárias que tem a mesma plataforma fundamentalista.
Percebe-se, facilmente, que posturas religiosas tipicamente angelicais, devocionais, com os seus discursos fundamentalistas, escondem a afirmação do projeto golpista neoliberal e a condenação de qualquer movimento de transformação social. Na atualidade, temas como democracia, movimentos populares, reforma agrária, soberania nacional, libertação quase não entram nas religiões e não fazem parte do discurso religioso. As religiões, inclusive a Católica, incorporam em suas agendas temáticas autoritárias, ortodoxas e ultraconservadoras, como a condenação das esquerdas, dos movimentos feministas, e das questões de gênero, etc.
A crítica de Marx contida na frase “a religião é o ópio o povo” é muito forte e de permanente validade. Todas as religiões incorrem na tendência de mediocrizar e infantilizar os seus fiéis e integrar o poder opressor. Em momentos de crise, de desintegração social e de miséria pública, a religião ofusca a realidade e impede a sua transformação. Na maioria dos países com incidência das ditaduras militares, estes trágicos acontecimentos foram amplamente encobertos pelas religiões. No momento atual, autoritarismos jurídicos, parlamentares, midiáticos, econômicos e políticos têm um fundo de dogmatismo e fundamentalismo religioso. As múltiplas formas de moralismos sociais amplamente difundidos na atualidade pela burguesia dominante têm uma sustentação religiosa. Os grandes retrocessos na economia, na política e na área social são amplamente amparados por fanatismos religiosos, como é o caso da bancada evangélica do congresso nacional. O juridicismo social que criminaliza os movimentos sociais difunde uma onda de condenação comparável à condenação das almas ao inferno no apogeu do domínio da inquisição católica.
O fenômeno religioso é uma faca de dois gumes. Pode representar uma força de libertação e de transformação social. Pode, também, contribuir com a alienação social, com a perda da consciência crítica, com a legitimação do poder econômico estabelecido e sustentar ditaduras. Na atualidade, muitas denominações religiosas são aliadas do sistema econômico e exploram os fiéis com proselitismos religiosos. Hoje o Papa Francisco é a voz profética de um novo mundo e de uma nova sociedade, mas os seus quadros hierárquicos e fiéis de base estão pouco sintonizados. Salvaguardando estes casos isolados, as religiões não têm perfil de denúncia das injustiças e de luta pela transformação social.
 
 
 

PEC 241/55: a necessidade de ousar na discussão de alternativas

Ricardo Dathein
Professor da Faculdade de Economia/UFRGS
Um dos problemas da esquerda é uma certa falta de ousadia nas propostas econômicas. Isso se refletiu em todos os governos petistas e também aparece atualmente em declarações e em documentos críticos. Isso também esteve na raiz dos fracassos, pois sem um projeto econômico global, que dê consistência a medidas específicas, acaba-se gerando uma lógica de medidas discricionárias, inclusive em termos de políticas de desenvolvimento, e em desconexão com a política macroeconômica.
No excelente documento “Austeridade e retrocesso: finanças públicas e política fiscal no Brasil” aparecem alguns destes problemas. Por exemplo, quando se pergunta quem perde com o projeto de austeridade do governo, a resposta é “a população mais pobre, isto é, aqueles que são os principais beneficiários dos serviços públicos”. Observe-se que a pergunta é sobre “quem perde”, e não sobre “quem mais perde”. Esse foco no prejuízo aos pobres pode ser um problema na luta política.
Ora, as próprias políticas sociais não deixam de ser subsídios ao setor empresarial, pois significam que o governo está arcando com um custo que, de outra forma, teria que ser assumido pelos próprios trabalhadores, o que exigiria maiores salários (e custos para as empresas), ou então com a redução da qualidade do trabalho (o que também é um custo para as empresas). Mas, além disso, as medidas significarão cortes severos de investimentos (em infraestrutura, por exemplo), de forma que também desse modo os custos aumentarão para as empresas. E os investimentos públicos são uma forma de acrescer a demanda para as empresas e de aumentar a própria taxa de lucro (como ocorre em todos os países que mais crescem no mundo e como foram no período Lula, mesmo que fracamente). Ou seja, os cortes de gastos significarão enorme prejuízo para as empresas, assim como para as prefeituras e para a população em geral, além de certamente para a população mais pobre também pela via dos menores investimentos públicos e pelo menor crescimento econômico.
O documento “Austeridade e retrocesso” mostra como o aumento consistente e altamente benéfico dos gastos sociais foi sustentável enquanto a carga tributária aumentou e enquanto a economia cresceu, mas surgiu uma crise com conflito distributivo quando isso não mais se compatibilizou. O grande aumento salarial (em dólares, tendo em vista a taxa de câmbio) prejudicou, efetivamente, setores industriais exportadores. Isso revela a incapacidade de nossa economia gerar crescimento sustentável de produtividade derivada de inovações e investimentos produtivos. Assim, a única alternativa percebida por nossa elite é o corte de salários e gastos sociais, para com isso recuperar seus níveis de rentabilidade. Mas, nesse contexto, pensar que simplesmente eliminar a austeridade e reduzir os juros seria suficiente é ilusão. A ênfase do documento em mostrar que a crise está fortemente correlacionada com a virada da política econômica, em janeiro de 2015, não é suficiente e nos leva a equívocos. Explica o curto prazo, mas não um desempenho estrutural medíocre há muito tempo, e a incapacidade de nossa economia produzir mudanças estruturais necessárias para garantir a sustentabilidade do crescimento e, com isso, a própria hegemonia política.
Quando o documento “Austeridade e retrocesso” faz propostas em relação à “insensatez do superávit primário”, cita a possibilidade de variantes, como “metas fiscais ajustadas ao ciclo econômico”, “meta de resultado fiscal estrutural”, “bandas fiscais” ou “retirar todo investimento público do cálculo do superávit primário”. Essa última alternativa, por exemplo, é muito problemática, pois admite que o “arrocho” deve ficar sobre os gastos correntes. Mas o que são esses gastos correntes, se não gastos com educação, saúde e segurança, em geral via pagamento de salários. Portanto, são outra forma de investimentos públicos, não diretamente em capital físico, mas que também geram maior potencial de crescimento econômico, além de maior bem-estar social.
Ora, o que devemos defender é a eliminação desse tipo de medidas (como metas de superavit primário), e não sua atenuação. A ideia de que devemos “amarrar nossas mãos” e fazer a “lição de casa” significa eliminar nossa liberdade e admitir nossa incapacidade. Que na Europa existem essas medidas, mas de forma atenuada, não é argumento que deveríamos usar. A Europa hoje é um exemplo de fracasso de políticas econômicas, e não exemplo a ser citado ou copiado, portanto.
A mesma discussão já ocorria durante os governos petistas, que mantiveram a política do chamado “tripé macroeconômico” (taxa de câmbio flutuante, metas de inflação e metas de superávit primário). Esse conjunto de políticas é contraditório com as políticas de desenvolvimento econômico e há comprovação empírica de que não gera melhor desempenho econômico em relação a países que não os adotam. Mesmo assim, o debate em geral centrou-se apenas em propor metas atenuadas.
Também neste caso deve-se propor seu abandono. Desde 1999 estas políticas são adotadas, sempre com fracos resultados, sempre impedindo a adoção de forma mais forte de políticas de desenvolvimento que, essas sim, poderiam resultar em melhor equilíbrio de contas públicas e sustentabilidade das políticas sociais.
O documento “Austeridade e retrocesso”, em sua última parte, coloca muito bem a discussão sobre a estrutura tributária brasileira, com propostas que se negam a ficar restritas aos temas da agenda neoliberal. Até porque, em primeiro lugar, deve-se considerar que as medidas atuais vêm de um governo ilegítimo. Assim, não aceitar barganhas tem um cunho preliminarmente político. Em segundo lugar, qualquer barganha neste contexto vai resultar em uma solução péssima. É como se hoje tivéssemos uma proposta pior que às impostas à Grécia, e que sua atenuação, para ficar no nível da Grécia, pudesse ser considerado um avanço!
É importante também se levar em conta o problema do crescimento demográfico. Na estimativa do documento “Austeridade e retrocesso” o gasto do governo federal (sem juros) se reduziria de cerca de 20% do PIB em 2016 para 16% em 2016 e 12% em 2036. Mas o problema é muito maior, pois a população vai continuar crescendo. A partir das estimativas da ONU (Department of Economic and Social Affairs, Population Division. World Population Prospects: The 2015 Revision), em 2026 e em 2036 os gastos sociais federais teriam se reduzido em 6,5% e 10,3% reais por habitante, respectivamente. Isso só não é pior porque há uma estimativa de forte redução da taxa de crescimento demográfico. Além disso, o percentual de pessoas com mais de 65 anos passará, em relação à população total, de 7,8% (16,3 milhões) em 2015 para 15,6% (36,4 milhões) em 2035. Ou seja, 20 milhões de pessoas a mais nessa faixa etária. E o percentual de pessoas com mais de 80 anos passará de 1,5% (3,1 milhões) em 2015 para 3,6% (8,4 milhões) em 2035, ou 5,3 milhões de pessoas a mais, com fortes necessidades de atendimento de saúde.
O que produz a incerteza atual, no Governo Temer, também é a total falta de uma estratégia de desenvolvimento, em uma sociedade partida, considerando-se que, apenas com a redução do tamanho do Estado, o mercado terá capacidade de tomar seu lugar. Ainda mais em um país subdesenvolvido isso é uma grande ilusão. Não quer dizer que não possa haver, em algum momento, uma retomada econômica, mas que deve permitir apenas uma trajetória de crescimento “normal”, medíocre, algo como 2% ao ano. A imposição constitucional do Estado mínimo transformará o Brasil talvez na experiência mais radical de neoliberalismo do mundo, condenando-o à decadência social e econômica. A situação é tão surrealista que talvez a elite esteja cavando sua sepultura. Não é uma ação inteligente, nem sob uma perspectiva política conservadora. Por outro lado, temos que considerar que propostas muito restritas, como redução de taxas de juros e fim da austeridade não são suficientes, assim como apenas um crescimento impulsionado por consumo e aumentos de salários. Necessária é uma estratégia de desenvolvimento concomitantemente produtiva e social, que produza coesão social, com a dinâmica produtiva baseada em forte impulso de investimentos públicos e em inovações. Essa discussão aparentemente será feita ao longo da próxima jornada política.
 

A juventude, as ocupações e o movimento contra o golpe

No dia 10 de novembro, no Sindicato dos Bancários, em Porto Alegre, ocorreu o debate A juventude, as ocupações e o movimento contra o golpe, promovido pelo Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito. O propósito do evento foi aprofundar o entendimento do perfil inovador das novas formas do fazer político, estreitar relações com esses novos grupos de jovens e favorecer um ambiente de efetivo apoio e solidariedade do referido comitê às ações e lutas protagonizadas pelos estudantes em defesa da democracia e dos interesses do país. Participaram do evento representantes de algumas das 39 ocupações da UFRGS – Instituto de Letras, Faculdade de Educação, Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia e Licenciatura em Educação do Campo (Campus Litoral Norte), Biologia Marinha (CECLIMAR e UERGS Campus Osório) – e do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (Campus Sapucaia). A coordenação da mesa ficou a cargo da Profa. Russel Teresinha Dutra, professora da Faculdade de Educação da UFRGS e coordenadora da Frente Gaúcha Escola sem Mordaça. É importante destacar que o evento foi aberto ao público e contou com uma plateia diversificada, com a presença de professores, estudantes secundaristas e universitários, profissionais liberais e artistas, entre outros.
Os participantes destacaram a razão principal das ocupações, qual seja a oposição a três iniciativas do atual governo: PEC 55 (ex PEC 241), a MP 746 (Reforma do Ensino Médio) e o PL 193 (Projeto Escola sem Partido).
– a apropriação dos espaços ocupados: um espaço que era apenas uma sala de aula, mantida por outros, passou a ser o local de atividades múltiplas, que está agora sob a responsabilidade desses estudantes em termos de gestão e zelo. Como eles mesmos afirmam, foi preciso ressignificar os espaços. A sala de aula deixou de ser apenas o lugar de troca de conhecimentos, para ser o lugar onde se cozinha, onde se dorme, onde se estuda, onde se fazem longas assembleias; lugar onde os aprendizados são outros e vão muito além do conhecimento acadêmico.
– a forma de organização, que se dá através de comissões (limpeza, alimentação, segurança, cultura). Em algumas ocupações, há rotatividade dos membros das comissões e sua constituição busca sempre contemplar gênero e cor.
– a gestão horizontal das ocupações: não há um líder que coordene ou represente o grupo interna ou externamente; a representação é rotativa. Assim, quando é preciso dar uma entrevista ou participar de uma reunião, os representantes são escolhidos pelo grupo em assembleia. Vale lembrar que todos os temas são discutidos em longas assembleias, onde se faz e se aprende democracia, ao se ouvir, entender, ceder em suas opiniões para se chegar a um consenso do grupo;
– a definição de atividades culturais: são realizadas leituras e discussões sobre os temas tratados nas medidas que motivaram as ocupações e as consequências dessas medidas, assim como rodas de conversa sobre assuntos variados – literatura, racismo, preconceito, urbanismo, direito, tradução, etc. – shows e saraus. Além dessas atividades, também são preparadas aulas, que têm o objetivo de levar o conhecimento adquirido para fora das unidades ocupadas, para a população, buscando mostrar os prejuízos das medidas propostas;
– a necessidade de se construir um movimento unificado, entre os vários setores da sociedade para poder enfrentar e evitar que as medidas propostas pelo governo Temer sejam aprovadas.
Do diálogo entre os presentes, surgiram as seguintes sugestões de encaminhamentos para o movimento das ocupações:
(1) Necessidade diálogo para que haja maior participação e presença docente nas ocupações, além de os  docentes organizarem o seu próprio movimento de luta;
(2) Proposta de articulação das ocupações das Universidades e Institutos Federais, em andamento, com os estudantes do Ensino Médio que fizeram ocupações nas escolas estaduais no primeiro semestre de 2016;
(3) Obtenção da assinatura de diversas instituições e entidades em um manifesto contra a criminalização da UBES, UNE e UJS pelo Ministro da Educação, que está responsabilizando o movimento estudantil pelos prejuízos decorrentes do adiamento da realização do ENEM nas escolas ocupadas;
(4) Na continuidade do encaminhamento (3), ação contra o Ministro da Educação, responsabilizando-o por não ter transferido os locais de prova do ENEM, em procedimento que deveria ter sido análogo às providências tomadas para a realização das eleições municipais;
(5) Realização de Assembleia Geral com todas as categorias que conformam as IES e IFs (docentes, discentes e técnicos-administrativos);
(6) Organização de possível viagem a Brasília contra a PEC 55 que tramita no Senado Federal (antiga PEC 241).
Comissão de Acompanhamento das Ocupações Estudantis
 

Aragão chama Dallagnol de fascista!

É um delírio pensar que se controla a corrupção com uma corporação descontrolada.

É evidente que o Senhor Dallagnol, por melhor que se ache, por mais ungido que se sinta para erradicar a corrupção no Brasil, não pode pretender ter comando sobre o processo legislativo de um projeto que de iniciativa popular não tem nada senão a casca. Foi gestado in camera por um grupinho de procuradores justiceiros, que, tendo logrado criar no País um ambiente de obsessão pela agenda do “combate” à corrupção, não teve dificuldade de juntar 2 milhões de chamegões desavisados. Foram intensamente apoiados pela direita política que tinha só um objetivo: enlamear a esquerda representada pelo PT. E, para se cacifar, esse grupo fez o papel que se esperava dele, tendo o Senhor Dallagnol se prestado a apresentar um pífio PowerPoint em que Lula era representado como o próprio capeta, princípio e fim de todo o mal na terra. Agora, que seus parceiros de caminhada política veem-se na iminência de serem colhidos pelo monstrinho que cevaram, mostra indignação por aquilo que chama de “manobra” e quer a seu lado todos os brasileiros.
A mim ninguém perguntou se estou com Dallagnol e sua trupe de justiceiros. Mas, mesmo não perguntado, digo-lhe NÃO. HISTERIA FALSO-MORALISTA NÃO!
Já vimos ontem onde esse processo de inoculação de apoios obsessivos chegou. Fez ressurgirem em pleno século XXI fantasmas de um fascismo que se esperava superado.
Por fascismo entendo essa pratica politica oportunista que se aproveita das fobias coletivas para incutir ao público o ódio a um inimigo comum: o judeu, o índio, o corrupto, o político, o comunista… seja lá o que for. E, mobilizado esse ódio, busca, com a promessa populista de soluções não realizáveis, com argumentação simplória de autoridade, estabelecer seu domínio totalitário sobre a sociedade e o estado.
É isso que essa campanha pelo “combate” à corrupção está trazendo. O só uso do substantivo “combate” já diz a que essa campanha veio: a uma guerra, com inimigos a serem eliminados.
Foi assim que um pai dominado pela ira obsessiva matou seu filho único em Goiânia e depois se suicidou. Foi assim que ontem um grupelho de fascistas desvairados assaltou o plenário da Câmara dos Deputados para pedir a volta da ditadura militar. Foi assim que senadores resolveram jogar seu carro oficial sobre um grupo de estudantes que bloqueava o acesso ao Palácio da Alvorada.
O que mais estamos esperando? Mais mortes? Mais mártires? Um Horst Wessel?
Estamos jogando nossa democracia arduamente conquistada no lixo da história. E fazemo-lo mesmo sabendo que o preço a pagar será altíssimo para nossos filhos e nossos netos. Convertemo-nos numa república bananeira, onde resultados eleitorais são desrespeitados pelos perdedores sob os cândidos olhares do judiciário e do ministério público!
E agora essa: a pretensão de que a coleta de 2 milhões de chamegões desavisados bastam não só para apresentar a iniciativa popular fake (porque, na verdade, trata-se de iniciativa corporativa), mas também para comandar o parlamento! O sonho parece ser Deltan Dallagnol para presidente do Congresso, se é que o congresso para esses obsecados ainda faz sentido, já que sujeito a “manobras”.
Isso é puro fascismo, desrespeito profundo ao processo político, ao mandato e à soberania popular.
Não seremos reféns dessa corporação. O Congresso tem o direito e o dever de adequar esse projeto ao que é política e funcionalmente comportável pelo País e não pode ser levado a jogar a sociedade à aventura de aniquilar garantias processuais em nome de um”combate” em que sequer valem os costumes da guerra expressos nas convenções da Haia e de Genebra.
Pensar que corrupção se controla com uma corporação empoderada e descontrolada é um delírio.
Urge, isso sim, pacificar o País, ainda que para isso se calem os protagonistas da guerra do ódio e da violência estrutural e institucional.
Assina:
Eugênio Aragão – Ex-Ministro da Justiça

Artigo originalmente publicado no site Conversa Afiada.

Bandido bom é bandido morto?

Marino Boeira – Jornalista
A crise econômica em que vive o País, ampliada pelos efeitos nocivos que a caça moralista da Lava Jato faz às grandes construtoras (em vez de punir os empresários, pune as empresas) e pela nova política do governo de cortar os grandes investimentos, têm tido um efeito perverso sobre a sociedade, ao gerar um crescimento acentuado da pobreza.
Com o aumento da pobreza, como consequência direta, cresce a criminalidade e a partir dela, um sentimento geral de insegurança.
Estimulada pelos meios de comunicação, a solução apontada para enfrentar essa insegurança é de endurecer a legislação penal, aumentar a repressão policial e criar mais e mais presídios.
Nessa espiral de causas e efeitos que se acumulam permanentemente, as pessoas são levadas a acreditar que a sociedade brasileira se divide prioritariamente em vítimas e bandidos e a partir dessa percepção, cresce também o clamor público por punições cada vez maiores para os infratores, até se chegar a reivindicação básica de se instaurar a pena de morte no País.
O slogan da campanha é aquela velha afirmação de que “bandido bom é bandido morto”.
Para os defensores dessa tese, a recomendação é de que antes de aceitá-la em definitivo, percam alguns minutos lendo a descrição que Richard Evans faz em seu livro O Terceiro Reich, sobre as novidades que o nazismo introduziu no sistema penal alemão a partir de 1934.
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Logicamente, se recomenda essa leitura para as pessoas de boa fé e razoavelmente bem informadas sobre a tragédia que foi para a humanidade o surgimento do nazismo.
Para os seguidores do deputado Bolsonaro, que sonham com a implantação de um regime fascista no Brasil, a leitura é inútil.
Vamos ver aqui algumas dessas “novidades’ dos nazistas.
O famoso incêndio do Reichstag (a sede do parlamento alemão), que serviu de desculpa, em 1933, para Hitler, recém escolhido Chanceler, eliminar toda oposição comunista e social democrata, é o primeiro momento em que a justiça alemã foi transformada para atender os desejos pessoais do Fuhrer.
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Hitler queria que o anarquista holandês Marinus van der Lubbe fosse declarado culpado pelo incêndio e executado por isso. Ocorre que, quando isso ocorreu, em 28 de fevereiro de 1933, a legislação penal não previa a pena de morte para este tipo de crime.
Ele obteve então do Presidente Hindenburg um decreto, em 29 de março, aplicando retroativamente a pena de morte para o caso e Lubbe foi executado pouco depois.
Em 1934, os nazistas criaram um Tribunal Popular, à margem do Tribunal de Reich, para julgar com rapidez os crimes políticos.  De 1934 a 1939, quase 4 mil pessoas foram julgadas por este tribunal, todas condenadas à morte ou à prisão, a maioria comunistas.
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O tribunal inovou também no sentido de condenar à morte as mulheres, preservadas dessa punição na República de Weimar, que antecedeu o regime nazista.
Outra inovação foi no sentido de que os prisioneiros depois de cumprirem suas penas, eram passíveis de detenções por tempo indefinido, desde que fossem declarados incompatíveis com a nova sociedade alemã.
As novas leis se tornaram cada vez mais restritivas e puniam desde a distribuição de panfletos criticando o regime até fazer piadas sobre figuras de liderança do Partido Nazista ou do Estado.
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Em 1936, Hans Frank, então comissário de Justiça do Reich e chefe da Liga de Advogados Nazistas, mais tarde Governador Geral da Polônia ocupada, onde ganhou o apelido pouco nobre de “carniceiro da Polônia”, declarou que “o juiz tem o papel de salvaguardar a ordem concreta da comunidade racial, eliminar elementos perigosos e processar todos os atos nocivos à comunidade. A ideologia nacional-socialista, em especial conforme está expressa no programa do Partido e nos discursos de nosso líder, é a base para interpretação das fontes legais”.
E os juízes alemães, mesmo aqueles que não pertenciam ao partido nazista, trataram de cumprir as novas leis, sem questioná-las.
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Evans, cita um caso típico, fruto de suas pesquisas nos anais de um tribunal alemão da época: “Um carroceiro nascido em 1899, cumpriu um grande número de penas de prisão por pequenos furtos na década de 1920 e começo dos anos 30, inclusive 11 meses por roubar uma bicicleta e 7 meses pelo furto de um casaco. A cada vez que era solto, ele voltava à sociedade com um punhado de marcos como pagamento pelo trabalho na prisão; com sua ficha, não conseguia arranjar um emprego durante a Depressão, tampouco persuadir as autoridades da previdência a lhe conceder benefícios. Em junho de 1933, foi sentenciado por roubar um guiso, um pouco de cola e outras quinquilharias durante uma bebedeira e após cumprir a pena, foi sentenciado a confinamento de segurança retroativo na penitenciária de Brandenburg e jamais foi solto”.
Tribunais especiais e vários tipos de organizações policiais, inclusive a temida Gestapo (seu símbolo das caveiras é hoje copiado por esquadrões da morte do mundo inteiro, inclusive no Brasil), foram restringindo cada vez mais 10948_logoas liberdades públicas, sob a indiferença da maioria do povo alemão, quando não de apoio e com a resistência apenas dos comunistas e de alguns segmentos de trabalhadores.
Tudo isso aconteceu quando a Europa ainda vivia sob um regime de paz.
Em 1938, os nazistas chegaram ao ápice, ao incluir na lista dos que deveriam ser levados para os campos de concentração, homens até então considerados apenas vagabundos ou bêbados, caso de um homem de 54 detido em Duisburg, acusado de comportamento antissocial.
“De acordo com informações do escritório de previdência daqui, C. pode ser classificado como pessoa perigosa. Não se importa com a esposa e os dois filhos, de modo que estes têm que ser sustentados pelos cofres públicos. Jamais assumiu o dever do trabalho a ele designado. Entregou-se à bebida. Esgotou todos os pagamentos de benefícios. Recebeu várias advertências do escritório da previdência e é descrito como exemplo clássico de uma pessoa antissocial, irresponsável e preguiçosa”
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Levado para o campo de concentração de Sachsenhausen, o homem durou apenas 18 meses antes de morrer, conforme registros do campo, de fraqueza física.
Quando a guerra começou em 1939, os nazistas deixaram de lado qualquer desculpa e passaram a considerar cada opositor, por menos importante que fosse, como um alvo para as forças policiais e um suspeito previamente condenado nos seus diversos tribunais.
Os que sonham em instaurar no Brasil um sistema policial parecido, deviam lembrar de como ele terminou na Alemanha nazista.

2º Grande Ato Contra a PEC 241/55: Frente de Esquerda e a lição dada pelos Anarquistas

Adriana Lameirão – Doutoranda em Ciência Política no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFRGS.
Há um consenso geral sobre o ato do dia 11 de novembro: foi lindo e emocionante! Portanto, não serei mais uma a falar mais do mesmo.
Quero abordar outro aspecto que me emocionou muito e que me deu esperança de que é possível construir uma unidade na esquerda: a unidade dos anarquistas nesse ato.
Os anarquistas participaram desse ato agrupados em um grande bloco anarquista.
Mas, foi mais do que um simples agrupamento de todos os coletivos anarquistas. Foi uma unidade! Unidade, essa, fruto de uma construção que vem sendo realizada há alguns meses.
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Essa construção teve como ponto de partida o entendimento comum a todos os coletivos de que era necessária essa unidade dos de baixo frente aos ataques do andar de cima (elite política e econômica). Unidade imprescindível para criar o ????? ???????, única força capaz de enfrentar esses ataques.
A partir daí, ações e atividades construídas coletivamente começaram a ser realizadas. Mas não ficou só nisso: foram realizadas avaliações sobre os pontos positivos e negativos das atividades. Além disso, os problemas que surgiram foram expostos e resolvidos. Não foi uma tarefa fácil tampouco agradável, pois consumiu tempo e energia de várias pessoas. Mas, tratava-se de um desgaste necessário em prol da unidade.
E essa unidade construída manifestou-se no bloco anarquista participante desse ato. Nesse bloco não havia o nosso coletivo e o coletivo deles; os(as) nossos(as) companheiros(as) e os(as) deles. Éramos todos um só: os anarquistas. E todos, da saída até a dispersão, cuidavam uns dos outros, independentemente de ser membro ou não do seu coletivo.
Além disso, não era um grupo fechado em si mesmo. Nele também cabiam pessoas de outros grupos e movimentos com os quais companheiros(as) anarquistas desenvolvem algum trabalho de base ou profissional, como o movimento da população de rua, por exemplo.
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Todos éramos um! E esse sentimento expressou-se fortemente quando a rampa do trensurb foi tomada por pessoas de diversos movimentos, tremulando suas bandeiras. Tão logo isso aconteceu, o bloco anarquista puxou o cântico “?????, ?????, ????? ???????”, a plenos pulmões.
É isso! Somente a unidade dos de baixo pode criar o poder popular e derrubar o golpe, que é, antes de tudo, contra o povo.
A lição dada é essa: enquanto parte da esquerda olha com preconceito para os anarquistas, inclusive usando adjetivações como black blocs ou vândalos para se referir a este grupo de esquerda, é, justamente, esse grupo que deu o primeiro passo para a unidade da esquerda e apontou caminhos de como ela pode ser alcançada.
(Fotos de Thais Ratier/JÁ)

Documento desconstrói a PEC 241/55 e o discurso da austeridade

Com lançamento marcado para quinta-feira, dia 17, em Porto Alegre, estudo faz análise das finanças públicas e da política fiscal no Brasil e põe abaixo simplificações e mitos, muitos dos quais baseados em argumentos econômicos supostamente técnicos que sustentam a austeridade.
Com lançamento marcado para quinta-feira, 17 de novembro, no auditório da Afocefe – Sindicato dos Técnicos Tributários do RS, o documento ‘Austeridade e Retrocesso: Finanças Públicas e Política Fiscal no Brasil’ desconstrói a PEC 241 e o discurso da austeridade.
Elaborado por iniciativa do Fórum 21, Fundação Friedrich Ebert, GT de Macro da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP) e Plataforma Política Social apresenta uma análise aprofundada da questão fiscal, apontando seus problemas reais, denunciando os problemas fictícios e desmascarando os mitos que sustentam um discurso que se traveste como técnico, mas que atende a interesses políticos.
A força desse discurso se materializa na proposição da PEC 241, a PEC da Maldade, que pretende instituir uma austeridade permanente no Brasil a partir de diagnósticos e argumentos equivocados e falaciosos. Na verdade, trata-se da imposição de outro projeto de país, incompatível com a Constituição de 1988 doc-austeridade_capa-520x400_siteoke com a expansão de bens públicos como saúde e educação.
Leia, abaixo, o texto de apresentação. Leia a íntegra na Versão digital ou na versão PDF: Austeridade e Retrocesso
Austeridade e Retrocesso: Finanças Públicas e Política Fiscal no Brasil
Desde o final de 2014, o Brasil vem sendo submetido à retórica que propõe a austeridade como único caminho para recuperar a economia. Com o objetivo de melhorar as contas públicas e restaurar a competitividade da economia por meio de redução de salários e de gastos públicos, a austeridade se sustenta em argumentos controversos e até mesmo falaciosos. Entre os principais experimentos internacionais, vem predominando resultados contraproducentes, não resultando em crescimento, tampouco equilíbrio fiscal. O que sim é menos controverso é que tais experimentos têm como objetivo redesenhar o papel do Estado para atender interesses velados. No Brasil, o ajuste econômico ortodoxo, iniciado na gestão Levy, fracassou em retomar o crescimento e estabilizar a dívida pública, contribuindo para lançar o país no maior retrocesso econômico das últimas décadas.
Não obstante, o ajuste ajudou a criar as condições necessárias para mudança da correlação de forças políticas e para impor ao país, passando ao largo do crivo das urnas, um outro projeto de sociedade. Nesse contexto, esse documento procede uma análise das finanças públicas e política fiscal no Brasil, procurando esclarecer as principais causas da atual crise fiscal, assim como desconstruir simplificações e mitos, muitos dos quais baseados em argumentos econômicos supostamente técnicos que sustentam a austeridade. O documento também é propositivo ao apontar alternativas fiscais para um projeto de país que valorize a democracia, a distribuição da renda e da riqueza e a expansão dos direitos sociais.
Da agenda Fiesp ao austericídio
A economia brasileira entrou em uma trajetória de desaceleração no quadriênio 2011-2014 depois do desempenho extraordinário durante 2007-2010. Há fatores que escapam à política econômica e explicam essa desaceleração, dentre eles a perda de dinamismo de um ciclo doméstico de consumo e de crédito ou os desdobramentos da crise internacional. Contudo, é importante apontar que a política fiscal praticada pelo governo contribuiu para essa trajetória de queda do crescimento.
Enquanto no quadriênio 2007-2010 o espaço fiscal foi canalizado prioritariamente para investimentos públicos, no quadriênio 2011-2014 a taxa de investimento parou de crescer e, em compensação, o governo elevou significativamente os subsídios e desonerações ao setor privado. O governo fez uma aposta no setor privado e acreditou que promoveria o crescimento econômico via realinhamento de preços macroeconômicos e incentivos aos investimentos privados – a chamada agenda FIESP. Ironicamente, a FIESP passou de beneficiada das políticas de um governo para algoz do mesmo.
Como resposta ao cenário de piora nos indicadores fiscais provocada pela queda no crescimento econômico e pelas desonerações, o segundo governo Dilma tem início adotando a estratégia econômica dos candidatos derrotados no pleito de 2014, ou seja, realizou um choque de preços administrados e um duro ajuste fiscal e monetário, na esperança de que o setor privado retomasse a confiança e voltasse a investir. Joaquim Levy foi o símbolo da implementação da austeridade econômica no Brasil que consiste em uma política deliberada de ajuste da economia por meio de redução de salários e gastos públicos para supostamente aumentar lucros das empresas e sua competitividade, assim como tentar estabilizar a trajetória da dívida, com resultados contraproducentes.
O forte ajuste fiscal, em uma economia já fragilizada, agravou os problemas existentes e contribuiu para transformar uma desaceleração em uma depressão econômica. O ajuste fiscal promovido se mostrou contraproducente, pois gerou aumento da dívida pública e do déficit público.
Em 2015, por exemplo, os investimentos públicos sofreram queda real de mais de 40% no nível federal, o gasto de custeio caiu 5,3%, e o governo não logrou a melhoria das expectativas dos agentes econômicos que justificaria esse ajuste com vistas a retomar o crescimento. Pelo contrário, a economia real só piorou e as expectativas se deterioraram, apesar de toda a austeridade fiscal manifestada e praticada. Naquele ano, apesar de todo o esforço do governo para reduzir as despesas, que caíram 2,9% em termos reais, as receitas despencaram e o déficit ficou ainda maior, evidenciando o caráter contraproducente do ajuste: o austericídio.
A virada para a austeridade foi um remédio equivocado para os problemas pelos quais a economia brasileira passava. O tratamento de choque fundado em uma contração fiscal, um rápido ajuste na taxa de câmbio, um choque de preços administrados e um aumento de juros contribuiu para criar a maior crise econômica dos últimos tempos. Contudo, para determinados interesses políticos, o ajuste se mostrou funcional ao gerar desemprego, queda de salários reais e assim mudar a correlação de forças para favorecer a imposição de outro projeto de país, sem passar pelo crivo das urnas.
O novo regime fiscal e a imposição de outro projeto de sociedade
A gestão da política fiscal protagonizada pelo governo Temer lançou sinais contraditórios com relação à continuidade das políticas de austeridade. Para o curto prazo definiu-se o “keynesianismo fisioló-gico” e para o longo prazo, a “austeridade permanente”.
O afrouxamento da meta fiscal para 2016 e 2017 evidencia por um lado o pragmatismo econômico e, por outro lado, hipocrisia dos que argumentam pela austeridade e, simultaneamente, passam a defender um déficit primário recorde no novo Governo.
Como medida de longo prazo, o governo Temer propõe estabelecer um “Novo Regime Fiscal” por meio de uma proposta de emenda constitucional (PEC 241) que cria por 20 anos um teto para crescimento das despesas públicas vinculado à inflação. Enquanto a população e o PIB crescem, os gastos públicos ficam congelados.
A proposta apoia-se em argumentos falsos de que nações desenvolvidas usam regras semelhantes. Desde 2011, membros da União Europeia estabeleceram um limite para o crescimento da despesa associado à taxa de crescimento de longo prazo do PIB e não em crescimento real nulo. Na maioria desses países já existe uma estrutura consolidada de prestação de serviços públicos, diferentemente do Brasil onde há muito maiores carências sociais e precariedades na infraestrutura.
Segundo nossas estimativas, a regra implicaria reduzir a despesa primária do governo federal de cerca de 20% do PIB em 2016 para algo próximo de 16% do PIB até 2026 e de 12% em 2036.
Adicionalmente, para que o teto global da despesa seja cumprido – dado que algumas despesas como os benefícios previdenciários tendem a crescer acima da inflação – os demais gastos (como Bolsa Família e investimentos em infraestrutura) precisarão encolher de 8% para 4% do PIB em 10 anos e para 3% em 20 anos, o que pode comprometer o funcionamento da máquina pública e o financiamento de atividades estatais básicas. Essa meta não parece ser realista.
A nova regra não prevê nenhum mecanismo para lidar com crises econômicas ou outros choques. Ao contrário, tende a engessar a política fiscal por duas décadas.
Na verdade, o que o novo regime se propõe a fazer é retirar da sociedade e do parlamento a prerrogativa de moldar o tamanho do orçamento público, que passará a ser definido por uma variável econômica (a taxa de inflação), e impor uma política permanente de redução relativa do gasto público.
Em suma, trata-se da imposição de um projeto de país que dificilmente passaria no teste de um pleito eleitoral, única forma de garantir sua legitimidade.
Quem ganha? Quem não quer financiar os serviços públicos por meio de impostos e o grande capital que enxerga o Estado como concorrente quando esse ocupa setores que poderiam ser alvo de lucros privados, como saúde e educação.
Quem perde? A população mais pobre, isto é, aqueles que são os principais beneficiários dos serviços públicos. Além disso, aqueles que vislumbram uma sociedade mais justa e igualitária.
O falacioso discurso da austeridade
A austeridade é uma política deliberada de ajuste da economia por meio de redução de salários e gastos públicos supostamente com o objetivo de reduzir a dívida e aumentar lucros e a competitividade das empresas.
A recomendação de que o Estado deve cortar gastos em momentos de crise parte de uma falácia de composição que desconsidera que se todos os agentes cortarem gastos ao mesmo tempo, inclusive o Estado, não há caminho possível para o crescimento. A solução mais razoável para tratar de um desajuste fiscal em meio a uma recessão é, portanto, estimular o crescimento, não cortar gastos.
No círculo vicioso da austeridade, cortes do gasto público induzem a redução do crescimento que provoca novas quedas da arrecadação que, por sua vez, exige novos cortes de gasto. Esse círculo vicioso só pode ser interrompido por decisões deliberadas do governo, a menos que haja ampliação das exportações líquidas em nível suficiente para compensar a retração da demanda interna, pública e privada. Esta exceção é pouco provável diante de uma crise internacional como a que o mundo enfrenta nesta década, com lenta recuperação da demanda e maior competição pelos mercados.
A obsessão alarmista contra qualquer elevação da dívida pública esconde uma agenda política permeada por interesses de grupos econômicos, mas travestida como uma questão meramente técnica, seja ao defender a retração de bancos públicos, seja ao demandar a redução dos gastos sociais.
No fundo, a austeridade é principalmente um problema político de distribuição de renda e não um problema de contabilidade fiscal. Os efeitos da austeridade afetam de forma distinta os diferentes agentes econômicos e classes sociais de forma que os mais vulneráveis, que fazem mais uso dos serviços sociais, são mais afetados.
Apesar das inúmeras evidências contrárias à sua eficácia, a austeridade persiste como ideologia e sempre retorna ao debate político por ser oportuna para os grupos dominantes de poder.
A insensatez do superávit primário
O regime fiscal brasileiro é extremamente pró-cíclico, ou seja, acentua as fases de crescimento e de recessão. Assim, em contextos de baixo crescimento, a busca pelo cumprimento da meta fiscal por meio de uma política fiscal contracionista retira estímulos à demanda agregada e reduz ainda mais o crescimento econômico e a própria arrecadação.
Um segundo fator a se sublinhar sobre o regime fiscal brasileiro é sua natureza “anti-investimento”, porque, diante de uma estrutura de gastos públicos rígida, os cortes de despesa recaem primordialmente sobre o investimento público, um dos poucos gastos passíveis de contingenciamento. O mesmo regime impõe uma lógica curto-prazista à gestão da política fiscal e subordina o planejamento governamental.
Na ditadura do superávit primário, os fins são atropelados pelos meios, e tudo se submete à necessidade de cumprir a meta de curto prazo, inclusive o próprio crescimento, o emprego e o bem estar da população. Portanto, um novo modelo de gestão fiscal precisa ser constituído, de caráter anticíclico, que viabilize o planejamento e que priorize o investimento público.
Há diversas variantes institucionais para um regime fiscal, dentre essas estão as que estipulam metas fiscais ajustadas ao ciclo econômico, como a meta de “resultado fiscal estrutural”. Ou alternativamente, pode-se adotar bandas fiscais de forma análoga ao que ocorre no regime de metas de inflação. Ainda há a opção, aplicada em alguns países, de retirar todo investimento público do cálculo do superávit primário (assim como o gasto com juros é excluído desse indicador) e assim incentivar o uso do investimento público como vetor de desenvolvimento e abrir espaço para atuação anticíclica do gasto público.
Desmistificando a dívida pública
A dívida brasileira é tão grande? Qual é o parâmetro para definição de “grande”? Na verdade, poucos economistas se arriscam a definir um parâmetro ótimo para dívida pública, simplesmente porque as evidências não parecem indicar que esse patamar exista. Não há um número mágico a partir do qual a relação dívida pública/PIB torna-se problemática. Isso vai depender das especificidades de cada país.
No Brasil, a excessiva preocupação com o patamar da dívida é carregada por preconceitos ideológicos e por uma visão estreita sobre a relação entre Estado, moeda estatal e dívida pública. Uma dívida elevada pode custar muito caro, mas um Estado soberano não quebra por conta de dívidas na sua própria moeda. Por isso, a natureza da dívida pública se diferencia substancialmente da gestão de dívidas privada e o governo não incorre nas mesmas restrições para gasto e endividamento. O paralelo com a economia da dona de casa não serve para as finanças públicas.
Entre 2003 e 2013 a redução da relação dívida líquida/PIB foi expressiva, de 54,3% para 30,6%, muito embora as taxas de juros continuassem pesando no orçamento público.
A dívida externa pública, por sua vez, caiu e, a partir de 2006 o país passou a realizar uma política de acumulação de reservas cambiais, tornando-se credor externo líquido. Por conta disso, quando em 2008 a crise mundial determinou forte depreciação da moeda brasileira, a acumulação de reservas cambiais propiciou significativos ganhos patrimoniais para o Estado brasileiro.
No final de 2014, pelo critério da dívida líquida não havia um cenário de tragédia fiscal, desenhado pelos economistas da mídia e do mercado. Havia sim, condições financeiras para realizar uma política anticíclica que ampliasse o investimento público e o gasto social para impedir que a desaceleração cíclica se transformasse em uma depressão. À época, a necessária e esperada desvalorização cambial apenas contribuiria para reduzir o patamar da dívida líquida, ampliando o espaço fiscal para políticas de estímulo ao crescimento.
Apesar da redução substancial da dívida líquida, na última década a dívida bruta manteve-se relativamente estabilizada e passou a crescer a partir de 2013. Diferentemente do senso-comum, essa dinâmica da dívida bruta não é explicada pela “gastança do governo” ou o resultado primário, mas principalmente pela acumulação de ativos por parte do Estado como a acumulação de reservas cambiais e de créditos junto ao BNDES.
Essa estratégia possui méritos como, por exemplo, a redução da vulnerabilidade externa do setor público. Da mesma forma a política de expansão dos empréstimos do BNDES, em 2009, foi importante para a ação contracíclica que assegurou a recuperação rápida da economia brasileira na maior crise da história do capitalismo mundial desde a década de 1930. No entanto, não devemos negligenciar seus elevados custos.
A estratégia de acumulação simultânea de ativos e passivos, com grande diferencial de rentabilidade entre eles, explica boa parte da elevada conta de juros. Em 2015, domando-se os custos de oportunidade da manutenção das reservas internacionais e dos créditos ao BNDES com o resultado das operações de swaps cambiais, chegamos a 4,9% do PIB.
Em suma, se o objetivo for equacionar a dívida bruta é preciso desatar o nó da gestão macroeconômica, reduzir substancialmente o gasto com juros e ponderar o custo da estratégia de acumulação de ativos. A ideia que se disseminou no Brasil de que ao governo só compete controlar os gastos primários, desconsiderando os custos e benefícios fiscais das demais políticas macroeconômicas, deve ser revista e amplamente debatida.
Mito da gastança federal
O diagnóstico convencional da crise pela qual passa o país se traduz simplificadamente na seguinte narrativa: os governos do PT expandiram demais os gastos públicos, encobriram o déficit público crescente por meio da chamada “contabilidade criativa” e das “pedaladas fiscais” e esse tipo de política fiscal expansionista e nada transparente destruiu a confiança do mercado e mergulhou o paísna estagflação.
Contudo, a análise dos dados mostra que, de fato, a despesa do governo vem crescendo a um ritmo elevado e estável há tempos. As taxas médias de crescimento real do gasto do governo federal dos últimos quatro governos foram: FHC II (3,9%), Lula I (5,2%), Lula II (5,5%) e Dilma I (3,8%).
O principal fator por detrás do crescimento das despesas na esfera federal não são os gastos com pessoal, como muitos acusam. Estes crescem sistematicamente abaixo do PIB e tiveram sua menor taxa de expansão real justamente no governo Dilma I (-0,3%), ao contrário do que ocorre, por exemplo, nos estados e municípios, onde o gasto com salários e aposentadorias de servidores tem crescido a 5,5% ao ano, independentemente da coloração partidária do governante.
O motor do gasto federal tem sido os benefícios sociais (aposentadorias e pensões do INSS, benefícios a idosos e deficientes, seguro-desemprego, bolsa família, etc), que hoje consomem metade do gasto da União (mais de R$ 500 bilhões em 2015) e crescem a taxas sistematicamente superiores ao PIB pelo menos desde 1999, por influência principal de fatores demográficos, da justa formalização e dos direitos consagrados na Constituição e, adicionalmente, pela política de valorização do salário mínimo.
Porém, uma visão mais acurada dos gastos sociais mostra que tampouco nesta área houve expansão desenfreada, sobretudo frente às demandas sociais brasileiras, e que a política de valorização do salário mínimo contribuiu para este cenário, mas com impactos sobre a redução da desigualdade relevantes. Certamente é possível discutir excessos e tornar o gasto mais eficiente, mas as possibilidades de fontes de financiamento discutidas neste documento evidenciam que este é um debate que deve envolver toda a sociedade brasileira.
Vale notar que, a despeito de gastos elevados, o governo conseguiu manter resultados fiscais positivos na última década e meia pelo aumento da carga tributária (1999-2005) ou pelo crescimento mais acelerado do PIB (2006-2011). Nos governos Lula, enquanto o país crescia, não havia desajuste fiscal apesar do crescimento do gasto público. Mas a partir de 2012, com a queda do crescimento econômico e com as desonerações tributárias, houve uma piora dos resultados fiscais.
Reforma tributária, já!
A estrutura tributária brasileira é extremamente perversa com os mais pobres e a classe média e benevolente com os mais ricos. Esse sistema singular é reflexo tanto do federalismo brasileiro e da dualidade tributária (impostos e contribuições sobrepostos), quanto de algumas recomendações de política que o mainstream econômico propagou nas décadas de 80 e 90 e que foram incorporadas de forma bastante acrítica ou peculiar pelo Brasil.
A agenda de reformas da tributação sobre a renda e o patrimônio, que envolve um forte conflito distributivo, permaneceu totalmente embargada nos últimos 20 anos, não tendo o governo federal apresentado qualquer proposta de reforma mais substancial que visasse ampliar a progressividade ou mesmo corrigir as graves distorções ensejadas pela atual legislação.
O Brasil foi um dos primeiros países e até hoje um dos poucos que isentou e continua isentando de imposto de renda os dividendos distribuídos a acionistas, tal como a pequena Estônia.
De acordo com os dados das declarações de imposto de renda, as 70 mil pessoas mais ricas do Brasil, representando meio milésimo da população adulta, concentram 8,2% do total da renda das famílias, índice este que não encontra paralelo entre as economias que dispõem de informações semelhantes. Esse mesmo seleto grupo pagou apenas 6,7% de imposto de renda sobre esse montante.
Além de injusta, essa assimetria entre o tratamento tributário dispensado a dividendos e salários tem sido responsável por um fenômeno conhecido por “pejotização”, que é a constituição de empresas por profissionais liberais, artistas e atletas com o objetivo de pagar menos impostos do que como autônomos ou assalariados.
Nesse contexto, a proposta de se aumentar alíquotas do imposto de renda das pessoas físicas sem revogar a isenção de dividendos não proporciona uma redistribuição de renda tão efetiva uma vez que as alíquotas progressivas da tabela do Imposto de Renda (IRPF) só atingem os “rendimentos tributáveis”, o que não inclui atualmente a distribuição de lucros e dividendos que são as principais fontes de renda dos mais ricos. Então, qualquer proposta de reforma do imposto de renda que não passe pela tributação dos dividendos não será tão efetiva nos objetivos de contribuir com uma maior justiça fiscal e também gerar receitas extras para o governo.
Na atual conjuntura de crise, é pouco razoável crer na possibilidade de um equilíbrio fiscal com baixo crescimento. Isso implica que, no curto prazo, deveríamos no mínimo assegurar espaço fiscal para o investimento público e para gastos sociais de elevado impacto sobre o bem-estar das camadas mais vulneráveis da população.
Uma reforma tributária, que combine eficiência e equidade poderia atuar incentivando o crescimento econômico de longo prazo ao reduzir a tributação do lucro e da produção das empresas, ao mesmo tempo em que concentra o ajuste fiscal de curto prazo sobre uma pequena parcela da poupança dos mais ricos, não diretamente relacionada ao investimento, e, por conseguinte, vinculada a um maior nível de emprego e produto. Assim, ganha-se tempo para aprimorar outras propostas de reformas estruturais das despesas, debatê-las com a sociedade e pactuá-las democraticamente.
Artigo adaptado do Brasil Debate.