Desencontros antidemocráticos: de volta aos anos 60

Marilia Verissimo Veronese
Doutora em Psicologia Social pela PUCRS, Docente e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UNISINOS
Vivemos tempos tristes, de fragmentação e incompreensão mútuas. Tal qual no período do golpe de 64, brigas e desencontros entre familiares e amigos acontecem. Lembro de minhas primas mais velhas me contando dos desentendimentos entre nosso tio Alberto (simpatizante do integralismo, ultraconservador) e nosso tio Dirceu (pai delas), trabalhista e fervoroso brizolista, defensor da igualdade e da justiça social.
Há até uma passagem curiosa da época, na qual conta-se que correu um boato em Santo Ângelo-RS, no início da ditadura, que Brizola estaria escondido na casa de meu tio. A polícia invadiu o local fazendo uma busca e ele bradava “pois eu ficaria honrado se esse grande brasileiro estivesse aqui, mas ele não está…”, enquanto minha tia pedia desesperada que se calasse, ou poderia ser preso. Aliás, a parte progressista da família só não foi presa na Santo Ângelo de 1964 graças à intervenção de Dom Aloísio Lorscheider, bispo da igreja católica ligado à teologia da libertação. Eram outros tempos e eu nem era nascida ainda, mas imagino como seriam os almoços de domingo com esses dois tios discutindo…
Quem, como eu, nasceu durante a ditadura e só presenciou a luta contra ela, a campanha das Diretas Já, a constituinte de 1988, as conquistas (parciais, incompletas) que foram a duras penas adquiridas, por exemplo nas áreas da saúde e combate à miséria, encontra-se hoje pasmo, incrédulo.
Na manifestação do dia 31/8, gritávamos novamente “Diretas Já!”. Tive um déja vu. Aos 16 anos, em 1984, saí as ruas com esse brado. Apanhei da polícia a cavalo, de cassetete na cabeça, que batia a esmo em adolescentes de 15, 16 anos pedindo somente para votar pra presidente da república. Essa semana estou fazendo 49, próxima dos 50 e com uma filha de 20 anos, e respirando gás lacrimogêneo jogado sobre manifestantes enquanto a passeata ainda era plenamente pacífica. A tropa de choque provavelmente “defendia” a sede do governo gaúcho, sita na esquina da Ipiranga com a Érico Verissimo (para os não gaúchos entenderem, trata-se do prédio da RBS/Zero Hora). E novamente a juventude que me cercava bradava “Diretas Já”! Como pode? Como?
Porque a vida parece andar em círculos. A trajetória a humanidade é tudo, menos linear. Limito-me a comentar as últimas décadas.
Cada vez que um governo minimamente progressista e defensor dos interesses populares ascende ao poder executivo – e bota minimamente nisso! –, a plutocracia que rege os destinos desse país há 500 anos reage e começa a gritar e espernear. Boa parcela da mídia comercial de massa, única fonte de informação de muita gente, imediatamente acompanha, pois sempre viveu de concessões e favores dessa plutocracia, até estabelecer-se definitivamente como parte dela. O brado é sempre o mesmo: “Corrupção! Mar de lama!”. Carlos Lacerda é uma figura que se reproduz infinitamente no Brasil. O jornalista Juremir Machado costuma chamar os replicadores dessa ideia de “lacerdinhas”. Sim, bom apelido para gente que acredita em grotescas manipulações midiáticas, ou mesmo inventa suas próprias mentiras e distorções em sites proto-fascistas do tipo Revoltados on line e outros do mesmo feitio.
Jango foi deposto por um golpe civil-midiático-militar e os setores conservadores da sociedade brasileira aplaudiram. Veio uma ditadura que mentiu, torturou, matou, estuprou, endividou o país, exterminou índios e considerou “progresso” a destruição de biomas inteiros, a exemplo do estado do Mato Grosso. Precarizou o ensino público propositalmente e deixou um legado de desigualdade e injustiças. Há alguns anos, a Globo fez um ridículo “mea culpa”, lido no ar pelo boneco de cera William Bonner*. Aliás, fazendo um parêntesis, lembro desse golpista sendo entrevistado por Marilia Gabriela, declarando que a edição que o JN fez do discurso Collor x Lula em 1989 foi “muito corajosa”. Foi é manipuladora e eu a classificaria ainda como criminosa.
Voltando à vaca fria, a patética declaração pedia “desculpas pelo equívoco do apoio à ditadura militar”. Daqui a 50 anos, provavelmente outro boneco vai ler no ar um pedido de desculpas pelo apoio ao golpe de 2016… isso se algo não for feito antes no sentido de democratizar os veículos de comunicações no Brasil, pluralizando-os e retirando o controle de umas poucas famílias riquíssimas que contratam vassalos como Bonner. Segundo os artigos 220, 221 e 222 da Constituição Federal, bastaria regular a comunicação no país para proibir monopólios, propriedades cruzadas (de vários meios, várias mídias); era preciso regulamentar o capital que gere isso tudo e criar também TVs públicas, comunitárias, geridas pela sociedade civil. Não havendo meios de comunicação democráticos, a democracia é infalivelmente fraca e parcial. (Detalhe do § 2º do artigo 220 – “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Hahahaha!).
Em 2016 a situação foi um tanto distinta, guardando, contudo, algumas semelhanças com 1964. O projeto da plutocracia – arrocho salarial, exploração do trabalho, desmonte da CLT (o segundo governo Vargas foi um ótimo exemplo do que falo aqui), transferência de recursos públicos para os rentistas através do sistema da dívida pública – foi derrotado nas urnas em 2002, 2006, 2010 e 2014. Aí eles não aguentaram e começaram um movimento duro de desestabilização do governo Dilma, fraco em muitos pontos e tendo mesmo cometido erros políticos na relação com vários setores da sociedade. Tendo se abraçado ao diabo (Temerário e o resto da corja), tendo compactuado com a corrupção há séculos existente – embora Dilma individualmente tenha feito esforços notáveis para evitar sua continuidade, como a urgência das leis anticorrupção que enviou aos deputados, derrubada pelo congresso nacional mais corrupto dos últimos 30 anos -, esse governo não pode evitar a traição e o golpe “palaciano”, midiático-parlamentar, com ampla conivência do STF.
O sistema político apodreceu-se por dentro e no excelente artigo Reforma política: democracia ou plutocracia?**, Francisco Fonseca explica o caso: “distorções as mais distintas foram ocorrendo, tornando o sistema político um mosaico de perversidades: coligação nas eleições aos cargos proporcionais, que implica que o eleitor vote num partido/candidato e eleja outro, de outro partido; a lógica de que os partidos derrotados também governam, em razão da referida necessidade de maioria parlamentar a qualquer custo; a controversa desproporcionalidade da representação na Câmara dos Deputados; o estímulo ao personalismo na vida política, associado ao descrédito que o sistema político confere tanto ao subsistema de partidos como ao Parlamento (…).”
Foi tudo muito vergonhoso. A infâmia e o show de horrores que vimos em 17/4 e 30/8 deste ano nos mostraram que se encerrou um ciclo. Os plastificados e botoxados deputados e senadores – muitos deles denunciados por corrupção, sob investigação e tendo participado de áudios vazados como aquele no qual o corrupto Romero Jucá afirma: “Rapaz, a solução era botar o Michel. Aí parava a porra toda [Lava-Jato]” ***, com patéticos discursos mencionando Deus e a família, decretaram o impedimento. (Conferir a extensão do cinismo deles é possível nesta matéria aqui****)
A presidenta (sim, está correto e consta no dicionário da língua portuguesa), abandonada pela cúpula corrupta do seu próprio partido, manteve a dignidade e a cabeça erguida, pois não tinha crime do qual envergonhar-se, a não ser a inabilidade política. Mas não foi citada nem uma vez na Lava-jato, ao contrário de alguns dos parlamentares imundos que a impediram, campeões em denúncias de corrupção, muitos com bens já bloqueados pela justiça.
O ciclo ao qual me referi antes seria o iniciado em meados dos anos 80, pós-redemocratização, constituição de 1988 e relativo consenso em torno da ampliação de direitos, que havia inclusive, a duras penas, sobrevivido à fúria neoliberal dos anos FHC. Mas agora, a plutocracia ataca com tudo: exige desmanche da CLT, cortes de gastos sociais, precarização da saúde e educação públicas. Ainda mais do que jáestavam precarizadas! Há que pagar os juros e amortizações de uma dívida pública já paga mil vezes, há que transferir mais riqueza aos já muito ricos rentistas.
Novamente, parte da classe média é convencida que essa é a “saída da crise”. Inacreditavelmente, parte dela acredita que piorando a situação a situação melhorará mais adiante. E cortam-se programas que combatiam a miséria, que integravam os pobres à universidade, que permitiram alguma mínima mobilidade social. Que, diga-se de passagem, desagradam sobremaneira à plutocracia, pois no Brasil ela ainda é escravagista.
Diante de tudo isso, os que habitam a caverna de Platão contemporânea aplaudem o golpista Temer, o corrupto Jucá, a vitória do bandido Cunha, que certamente será “salvo” pelos coleguinhas (deu-lhes o impedimento de bandeja, por vingança*****), em cima do sofrimento de milhões de pobres e de trabalhadores, de seu cotidiano massacrante e semiescravo, sem oportunidades de mobilidade social minimamente equânimes. A igualdade de oportunidades, tão cara ao liberalismo clássico, aqui no Brasil é uma quimera da qual falsos “liberais” dão risada, evitando-a a qualquer custo há séculos.
Pessoas brigam com seus pares que têm uma perspectiva crítica na análise do processo. Estabelecem-se discussões semelhantes àquelas dos meus tios nos idos dos anos 60. Os que saíram às ruas para defender a plutocracia, de camisa verde e amarela, hoje fazem que não sabem de nada e ignoram – ou fingem ignorar – a ampla corrupção que ajudaram a manter intocada.
Os que sempre saíram às ruas pela democracia, agora saem novamente.  Pedem novas eleições. Os representantes da plutocracia nacional não querem nem ouvir falar, pois sabem-se rejeitados nas urnas. Melhor seguir manipulando, a mídia hegemônica ajuda e faz o serviço sujo.
Estamos mesmo precisando de grandes brasileiros como Leonel de Moura Brizola ou meu tio Dirceu Rodrigues. Este texto é em homenagem à sua memória. Mas, por ora, teremos nós mesmos que fazer a resistência e continuar a luta da democracia contra a plutocracia. Tentemos ser um pouco mais grandiosos também, com humildade e com muita força de vontade.
* https://www.youtube.com/watch?v=bABCjGS-_M4
** http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1843
***http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/2016/05/em-gravacao-juca-sugere-pacto-para-deter-lava-jato-diz-jornal.html
****Essa matéria ilustra bem a pusilanimidade e o escárnio da corja que votou “por deus e pela família”: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/redesocial/2016/04/1763233-um-sim-pelo-impeachment-para-a-mulher-um-afago-no-whatsapp-para-a-amante.shtml
*****http://www.tijolaco.com.br/blog/o-brasil-envergonhado-cunha-o-ladrao-vinga-se-de-dilma/
 
 

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