No imaginário popular, a informação trazida pela grande mídia, seja escrita seja rádio-televisiva, caracteriza-se pela objetividade e neutralidade. A própria mídia reafirma reiteradamente o caráter deontológico de sua atuação.
No entanto, a realidade é bem diferente. Todas as sociedades, inclusive a brasileira, são compostas de classes com condições de vida, interesses econômicos e visões de mundo antagônicos. Nelas, os aparelhos políticos servem predominantemente para permitir que setores economicamente dominantes mantenham seu poder, o que implica a possibilidade de subalternizar e explorar outras classes. As grandes empresas, essencialmente dedicadas ao lucro e que vendem informação, servem para manter essa “ordem constituída”.
Porém o lucro dessas empresas, que advém, sobretudo, da venda de publicidade e propaganda, repousa essencialmente na audiência. Audiência que representa igualmente uma imensa massa de eleitores e consumidores potenciais cujas consciências precisam ser moldadas. Para tanto, a mídia necessita apresentar os fatos de modo tal a convencer a maioria dessa massa de auditores, telespectadores e leitores da pertinência de certos fatos e de certas ideias.
Para atingir esse objetivo, toda a grande mídia, esse verdadeiro “poder não eleito”, tende a usar mais ou menos as mesmas técnicas: seleciona as notícias; enfatiza certos fatos em detrimento de outros; prestigia acontecimentos, discursos, eventos – dando-lhes muito espaço – ou, ao contrário, minimiza-os, apresentando-os sob forma de flashes intercalados com notícias de menor interesse, etc.
Mídia e linguagem
Nesse combate político, cultural e ideológico, a linguagem em geral [imagens, mímicas…] e a linguagem verbal em particular têm um papel central. Entre os recursos linguístico-discursivos usados, um dos mais relevantes – e que engloba muitos outros – é o fato de ela produzir e reproduzir uma linguagem e um discurso “de massa”, empobrecido, no qual, sobretudo, palavras semanticamente complexas são usadas apenas com um de seus conteúdos referenciais. Na televisão especialmente, isso se dá até mesmo em programas de variedade ou de esporte.
Além disso, a mídia consegue, através da nomeação, criar fatos (as guerras de conquista de territórios e de matérias-primas passam a ser guerras humanitárias) e categorias sociais (os rebeldes no Iraque ocupado pelos EUA, congêneres dos partisans, résistants, partigiani da luta contra o nazi-fascismo na Europa, passaram a ser chamados de terroristas). Nomeando, ela cria sentimentos de aversão em relação a certos setores sociais. Ao chamar, sistematicamente, alguns moradores de bairros pobres que cometem ou são suspeitos de cometer atos ilícitos, de sujeitos, indivíduos, elementos, ela aproxima-os dos marginais, ladrões, foras da lei, dentre outros. Ao contrário, quando exponentes das classes dominantes cometem delitos, continuam sendo chamados de deputados, senadores, juízes, executivos, diretores, etc. Retomando Bourdieu, em alguns contextos de enunciação, as palavras “fazem coisas, criam fantasias, medos, fobias ou, simplesmente, falsas representações” . (BOURDIEU, 1996, 19).
Isso pode culminar, em situações de forte contraste social, político e econômico, em um poder da mídia tão grande que a “atualidade argumentativa passa a ser essencialmente tributária das escolhas feitas pelos meios de comunicação dominantes.” (SCHEPENS, 2006, 1). Tivemos um exemplo paradigmático disso quando a mídia brasileira, com raríssimas exceções, promoveu e defendeu com unhas e dentes o impedimento da presidenta Dilma Roussef, eleita em final de 2014, com 54% dos votos. Nesse caso, a atualidade argumentativa criada pela mídia, e mais especificamente pela Rede Globo, deu-se através da imposição da palavra inglesa impeachment, que refletiria uma ação prevista pela constituição brasileira, em contraste com a realidade objetiva, descrita de modo mais pertinente pela palavra golpe.
Tendências
Após a concretização desse processo anticonstitucional e a posse de um presidente e de um governo interinos, a mídia brasileira serve-se agora de outros recursos para confirmar o fundamento de suas escolhas anteriores e impedir que novas leituras possam ser feitas acerca do governo interino. Esses recursos dizem respeito não apenas ao uso de palavras, mas também a aspectos morfossintáticos, paraverbais – como a entonação – e não verbais – tais como a mímica. Vejamos algumas das tendências de construção desse discurso.
A eufemização, que serve para relativizar, ocultar e justificar medidas antissociais, golpistas, ilegais, anticonstitucionais e antipopulares do governo interino, assim como dos setores econômicos que os apoiam. Assim, o que está em curso não seria uma reforma trabalhista, mas uma modernização trabalhista, com uma diversificação profissional do trabalhador, conforme anunciado na maior parte dos grandes veículos. A manchete do jornal O GLOBO de 17 de maio anunciava que “Temer vai propor flexibilizar jornada de trabalho e salário”, justificando essa medida no subtítulo “Reforma trabalhista daria mais força às negociações coletivas”, quando sabemos que é exatamente o contrário que está sendo proposto.
A nova conjuntura política e econômica decorrente do golpe institucional contra a presidenta Dilma é positivada e supervalorizada, por meio do uso de palavras com conotação positiva, consideradas “bonitas” pelo sentimento linguístico da maioria. Fala-se em novo governo, retomada econômica, retomada da confiança, aumento dos investimentos, expectativa da sociedade e dos mercados, recuperação do poder de compra, salvação do país, etc.
Os tropeços, irregularidades, ações ilícitas, etc. do governo interino são amenizados e apresentados de modo a torná-los menos transparentes e a confundir o telespectador ou leitor. Logo após a divulgação das conversas comprometedoras entre o então ministro Romero Jucá com Sérgio Machado, o Jornal Nacional da Globo, de 23 de maio, noticiou: “Romero Jucá é levado a se licenciar”. A forma passiva tem como efeito retirar ou diminuir a responsabilidade do sujeito da frase, colocando-o quase numa posição de vítima da ação de outra entidade. E, na sequência, o âncora relatou que Jucá foi elogiado por Temer por sua atuação enquanto ministro, numa tentativa de amenizar a possível culpa do personagem. Ainda durante os poucos minutos em que divulgou a notícia ainda recente da revelação da conversa entre Jucá e Machado, o âncora do JN acentuou a má qualidade do áudio e o fato de a Folha de São Paulo não ter publicado a totalidade da conversa, fragilizando assim o enunciado e fortalecendo o enunciador das “conversas gravadas [que] derruba[ra]m o ministro do planejamento do PMDB”.
Os malfeitos do governo interino são acobertados pela mídia dispersando seu registro em meio a notícias de provável forte efeito sobre a grande massa dos telespectadores ou contrapondo aqueles malfeitos aos de partidos da agora oposição. No mesmo programa de notícias do dia 23 de maio, as revelações da Folha de São Paulo foram rapidamente anunciadas em flashes dispersos, em meio a outras notícias, entre elas a denúncia contra o governador de Minas Gerais, do PT.
Assim como aconteceu com essa última notícia sobre o governador Fernando Pimentel, que quase se sobrepôs à gravação de conversas comprometedoras do ministro do planejamento Jucá, muito mais relevantes no atual contexto político, tende a haver, na mídia, um transbordamento dos tropeços, atuais e passados, da presidenta Dilma, de seus ministros e aliados. Notícias sobre esses erros ou supostos erros invadem todas as instâncias das notícias. O governo destituído, também graças à ação da mídia, como vimos, continua sendo demonizado e desprestigiado, assim como seus membros e seu entorno (CUT, MST, etc.), por meio de palavras negativamente conotadas, inseridas em contextos enunciativos relacionados sobretudo à crise econômica. A mídia focaliza situações difíceis, fenômenos negativos, etc. como exclusivamente decorrentes dos governos do PT. Fala-se, por exemplo, da perda de leitos nos hospitais, durante o governo da Dilma; da queda de confiança, nas últimas décadas; da situação complicada comparada com outros países do Mercosul; do esgotamento de um modelo, etc.
Em muitos casos, o descrédito recai, covardemente, sobre a individualidade dos protagonistas do governo destituído. Durante o processo de impeachment, a revista Isto É (abril 2016) apresentou, numa reportagem que atingiu o auge da misoginia, a presidenta Dilma como uma “histérica”, propensa a “explosões nervosas”, a “surtos de descontrole”, por causa da iminência de seu afastamento (sic), que grita, xinga, ataca, tendo perdido condições emocionais para conduzir o país”.
A política externa dos governos do PT, ainda que não tenha sofrido variações ao longo desses 14 anos, é hoje chamada de política “partidária”, irresponsável”; além disso, muitos dos governos da América Latina com os quais o Brasil mantinha relações são chamados agora de governos esquerdistas.
O que a mídia tem procurado mais escamotear, menosprezar e desqualificar, após o início do processo de golpe institucional contra a presidenta Dilma, são os inúmeros e variados atos promovidos pela população em protesto contra o golpe e, agora, contra o governo usurpador. As técnicas usadas são mais sutis porque, até recentemente, atos públicos a favor do impeachment eram supervalorizados e apresentados como democráticos e populares. As atuais manifestações, apesar de serem mais frequentes, maiores e mais universais, ganham muito pouco espaço na mídia, quando não são literalmente ignoradas. É mais uma vez através da manipulação dos conteúdos referenciais de determinadas palavras que a mídia tem conseguido desqualificar esse movimento multitudinário. A mídia tem desqualificado sistematicamente essas manifestações por advirem de movimentos sociais, especificando tratar-se de sindicatos (CUT), partidos (PT, entre outros) e outras organizações, como o MST e o MTST. É mais uma estratégia para impor à massa de telespectadores e leitores apenas uma acepção do lexema “movimento social”, muito mais amplo, cunhado como foi através da história das ações coletivas de homens e mulheres na defesa de seus direitos, na luta contra as injustiças e os desequilíbrios sociais.
Essa estratégia da mídia não só desqualifica os homens e as mulheres que saem às ruas para protestar, mas menospreza toda a esquerda, assimilando-a a uma grande massa de manobra, alienada, de um partido político ou de organizações específicas. Por outro lado, esses atos são mostrados a partir de ângulos geralmente desfavoráveis e sem jamais entrevistar os participantes e dar a eles a possibilidade de evidenciar sua heterogeneidade, a seriedade de suas reivindicações e a riqueza de seus pontos de vista sobre os fatos políticos em curso.
Do conjunto dessas estratégias de manipulação das informações, o que fica para o telespectador desinformado é uma visão simplista, generalizante, preconceituosa da situação social e política do Brasil.
Florence Carboni – Linguista. Professora do Departamento de Línguas Modernas e do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Patrícia Reuillard – Linguista. Professora do Departamento de Línguas Modernas e do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.