O Pelé do Futebol

Luiz Cláudio Cunha

Pelé. O apelido resume o personagem mais conhecido do futebol, o brasileiro mais famoso no planeta, o jogador mais completo e mais admirado do esporte mais popular do mundo, praticado atualmente por 265 milhões de jogadores em diferentes categorias, sob o mando global da FIFA, uma entidade que reúne 211 organizações esportivas, 18 membros mais do que a ONU.

Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, nascido em 1940, é um mineiro de Três Corações que conquistou corações e mentes do mundo do futebol pelos superlativos que envolvem sua carreira de 21 de anos de futebol, a maioria ainda insuperáveis, quase meio século após abandonar os campos em 1977, jogando pelo time americano do Cosmos, de Nova York.

É o maior artilheiro da história mundial, com 1.284 gols em 1.315 jogos, o jogador com mais gols feitos num único ano (127 em 1959). Foi goleador por 11 anos do campeonato paulista, o mais difícil do país, artilheiro em nove anos sucessivos (1957-1965). Estreou no time do Santos aos 16 anos, no campeonato de 1957, já como seu maior artilheiro, com 17 gols. Quatro anos depois, Pelé marcou 111 gols em 75 partidas disputadas e fez o Santos campeão em 1961, marcando 47 gols naquele campeonato, outra vez como artilheiro.

Em setembro de 1964, na partida contra o Botafogo em Ribeirão Preto, o Santos perdeu por 2 a 0 e foi vaiado, com Pelé e tudo. Na saída do jogo, ele avisou: “Tem a volta em Santos”. Em 21 de novembro, na Vila Belmiro, Pelé e o Santos deram a volta prometida sobre o adversário. Ganharam por 11 x 0. Pelé fez oito gols, o recorde de sua história: três em apenas 13 minutos. O melhor jogador em campo não foi ele, mas o desconhecido Machado, o arqueiro do time perdedor, explicou o centroavante Coutinho: “Se não fosse o goleiro, Pelé fazia mais dez”.

O ataque mais lendário do futebol: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe /Reprodução

Pelé tem 59 títulos de campeão na biografia. Dez pelo campeonato paulista, seis pela Taça Brasil, tri pelo Torneio Rio-São Paulo, bi da Libertadores, bi do mundial interclubes e tri mundial pela seleção, entre os mais importantes. A partida final do primeiro título de clubes em 1962 foi em Lisboa, na casa do poderoso Benfica de Eusébio. A primeira partida, no Maracanã, tinha sido vencida duramente pelo Santos por 3 a 2, dois gols de Pelé.

Na partida de volta, no Estádio da Luz lotado com 70 mil torcedores, a Europa viu uma noite luminosa do Santos e seu maior astro. O Santos goleou por 5 a 2, com três gols de Pelé, no que foi considerada uma das maiores atuações individuais da história do futebol. A Europa conhecia, enfim, o lendário ataque do Santos formado por Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe.

O mundo viu e se extasiou com centenas de gols de Pelé. Mas não viu o gol que o próprio Pelé considera o mais bonito de todos.

Em agosto de 1959, com 19 anos, campeão do mundo um ano antes na Suécia, Pelé disputava um jogo na rua Javari, contra o Juventus de São Paulo. O Santos vencia por 3 a 0 e Pelé não tinha aparecido em campo, era vaiado por não jogar bem. Então, pouco antes do final do jogo, o gênio apareceu. Pelé recebeu um passe da direita, deu um chapéu no primeiro adversário, um segundo no zagueiro atrás e um terceiro no outro defensor. Quando o goleiro saiu, Pelé deu um quarto e último chapéu, antes de cabecear para o gol vazio, sem deixar a bola cair ao chão.

O jogo parou. O estádio paralisou, antes de irromper um aplauso de quase cinco minutos dos 10 mil felizes torcedores que testemunharam aquele momento histórico. Até o time adversário e o juiz cumprimentaram o autor do gol, que não foi filmado. O único registro é essa foto de Raphael Dias Herrera, do jornal A Tribuna, de Santos, do momento final em que Pelé cabeceia para o gol vazio, com o goleiro Mão de Onça já batido no chão:

O gol mais bonito de Pelé, segundo Pelé. Foto: Raphael Dias Herrera / A Tribuna

Outro gol inesquecível, também sem registro, foi o que Pelé marcou em 1961 no Maracanã, num jogo contra o Fluminense pelo Torneio Rio-São Paulo.

Aos 40 minutos, quando a partida estava 1×0 para o Santos, Pelé pegou a bola perto de sua área e disparou rumo ao gol adversário. Nessa louca arrancada, sem trocar passe com ninguém, apenas fintando e driblando, ele ultrapassou metade do time do Flu até ficar sozinho diante do goleiro Castilho, marcando o seu segundo gol no jogo.

O juiz da partida, Olten Aires de Abreu, descreveu: “Numa caminhada tortuosa e torturada, que durou quase um minuto e meio de posse de bola, Pelé driblou sete adversários, acaba fulminando com um drible da vaca ao goleiro Castilho e faz o gol. Os 130 mil que vaiavam passaram a bater palmas. As duas torcidas, em reverência, aplaudiram de pé por seis minutos. Quando me dei conta, o estádio inteiro estava aplaudindo. O que eu ia fazer? Aplaudi também e quando o Pelé se aproximou, o cumprimentei. Foi uma honra! ”.

Foi um gol tão impressionante que um jovem jornalista que cobria o jogo para o jornal O Esporte, o palmeirense Joelmir Betting, não se conteve. Pagou do próprio bolso e mandou fazer uma placa, descerrada uma semana depois no estádio como marca inédita daquela proeza.

A placa do gol de placa

Nascia ali a expressão ‘gol de placa’. Quarenta anos depois, em 2001, Pelé retribuiu a gentileza e deu ao jornalista uma placa, que dizia: “Gratidão eterna ao Joelmir Betting. Gratidão eterna do autor do gol de placa ao autor da placa do gol”.

Pelé não tinha ainda 18 anos quando se tornou o jogador mais jovem a marcar numa Copa do Mundo, em 1958, na Suécia. Ainda é o maior artilheiro da Seleção Brasileira, com 77 gols em 92 jogos (Ronaldo fez 62 em 98 partidas).

É o único atleta a vencer por três vezes o campeonato mundial por seu país.

No final de 2000, a FIFA decidiu escolher o Atleta do Século. Um jurado de especialistas e ex-jogadores, reunidos pela revista da FIFA, escolheu Pelé, com 72,8% dos votos. Dois argentinos ficaram atrás do brasileiro: Di Stéfano, com 9,8%, e Maradona, com 6%. Garrincha e Zico fecharam a lista dos 8 melhores, com 1%.

Quem não teve a chance de ver Pelé em ação tem uma boa oportunidade com o filme ‘Pelé Eterno’, onde ¼ dos melhores gols dele estão reunidos em duas horas de documentário de pura arte, êxtase e deslumbramento. O filme de 2004 reduz a pó (por favor, sem trocadilho…) a tese de quem imagina que Maradona possa ter sido igual ou até mesmo melhor que Pelé.

Um ano antes, em 1999, a revista France Football reuniu 30 vencedores de sua tradicional Bola de Ouro para escolher o melhor jogador de futebol do Século 20. A seleção de craques do júri incluía Di Stéfano, Eusébio, Cruijff, Beckenbauer, Rummenigge, Paolo Rossi, Platini, Gullit, Ronaldo, Matthaus, Baggio, Van Basten e Zidane, entre outros.

O escolhido como o melhor do século por 17 dos 30 jurados foi Pelé. Quatro votaram em Di Stéfano e três, em Maradona, os mais votados.

A Bola de Ouro, prêmio tradicional da revista francesa, tinha um grave problema. Até 1995, era um troféu restrito aos jogadores em ação na Europa. O resto do mundo, incluindo Pelé, não existia. Por isso, o maior ganhador até agora é o argentino Messi, sempre jogando pelo espanhol Barcelona. Isso produziu notórios absurdos.

Em 1958, ano em que Pelé se revelou no Mundial da Suécia, o ganhador foi o francês Kopa, que não passou do terceiro lugar na copa. Em 1962, ano em que Garrincha garantiu o bicampeonato do Chile jogando praticamente só numa seleção desfalcada pela lesão de Pelé, logo na segunda partida, a Bola de Ouro foi conferida ao meio-campo checo Masopust, que o Brasil venceu na grande final em Santiago. E em 1970, ano da gloria suprema de Pelé na campanha memorável do tri no México, o prêmio foi dado ao desapercebido alemão Gerd Muller, cuja seleção foi batida pela Itália na semifinal.

Até que, em 2016, numa admirável revisão histórica, a France Football decidiu retificar seus critérios que privilegiavam só os jogadores da Europa na Bola de Ouro. Assim, corrigiu seus equívocos flagrantes e concedeu o prêmio de 1962 ao imparável Garrincha (no lugar do checo Masopust) e o de 1986 ao desempenho excepcional de Maradona no seu único título, a Copa do México (no lugar do russo Belanov, que ninguém mais lembra…}.

O troféu de 1970, enfim, foi dado atribuído a Pelé (no lugar de Gerd Muller), assim como o de 1958 (quando o vencedor foi Kopa). Além desses dois, a revista concedeu a Pelé outras cinco Bolas de Ouro: em 1959 (no lugar de Di Stéfano), 1960 (Luís Suárez), 1961 (Sívori), 1963 (Yashin) e 1964 (Dennis Law). Com esta necessária correção histórica, Pelé passou a ter sete Bolas de Ouro, contra seis de Messi.

Para quem duvida da genialidade incomparável de Pelé diante de tantos craques, nada melhor do que ouvir as estrelas do futebol com mais autoridade para identificar o astro maior. O craque holandês Cruijff disse: “Pelé foi o único jogador de futebol que ultrapassou os limites da lógica”. O kaiser Beckenbauer, que desfilou sua elegância como o imperador supremo do time da Alemanha, decretou: “Pelé é o maior de todos os tempos. Ele reinou supremo por 20 anos. Não há ninguém para comparar com ele”.

O húngaro Puskas, atacante mortífero do grande Real Madrid, afirmou: “O maior jogador da história foi Di Stéfano. Recuso-me a classificar Pelé como jogador. Ele estava acima disso”. O artilheiro da Copa de 58 na Suécia, o francês Just Fontaine, confessou: “Quando vi Pelé jogar, senti que deveria pendurar minhas chuteiras”. O inglês Bobby Moore, capitão do time inglês que venceu a Copa de 1966, reconheceu: “Pelé foi o jogador mais completo que já vi, ele tinha tudo. Dois pés bons. Magia no ar. Rápido. Poderoso. Poderia derrotar pessoas com habilidade. Poderia superar pessoas. Com apenas um metro e meio de altura (!), ele parecia um atleta gigante em campo. Equilíbrio perfeito e visão impossível. Ele foi o maior porque ele poderia fazer qualquer coisa e tudo em um campo de futebol. ”

Bobby Charlton, companheiro de Moore na seleção inglesa, disse: “Eu às vezes sinto que o futebol foi inventado para esse jogador mágico”. O francês Michel Platini, ganhador de três Bolas de Ouro, definiu: “Há Pelé, o homem, e depois Pelé, o jogador. E jogar como Pelé é jogar como Deus”. O argentino Di Stéfano, estrela maior do Real Madrid, não tem dúvidas: “O melhor jogador de todos os tempos? Pelé. Lionel Messi e Cristiano Ronaldo são grandes jogadores com qualidades específicas, mas Pelé foi melhor”.

A camisa 10, por acaso, caiu nas costas do jovem Pelé, em 1958, quando o titular Dida se machucou, antes da Copa do Mundo. E, a partir daí o 10 virou marca de excelência, sinônimo de qualidade, ponto de destaque de qualquer time. O 10, ensinou Pelé na prática, é a camisa do craque, a camiseta que todo garoto quer vestir quando joga com o fardamento de seu time. Messi é o 10 no Barcelona, como Neymar no PSG ou Platini e Zidane na França. O craque nota 10, além do gol de placa, é outro legado de Pelé.

Além dos gols inesquecíveis, Pelé virou adjetivo e marca de genialidade. Quando se quer destacar alguém pela arte e pela excelência, a medida é o Rei do Futebol.

Shakespeare é o Pelé do teatro, Stradivari é o Pelé dos violinos, Nureyev é o Pelé do balé, Michael Jordan é o Pelé do basquete, como Federer é o Pelé do tênis e Ayrton Senna era o Pelé das pistas.

Esse é Pelé.  O Pelé do futebol. O eterno.

 

 

JOÃO SOUZA (1935-2022): Morre um gigante do jornalismo brasileiro

Luiz Cláudio Cunha *

O caminhar era sereno, o tom de voz sempre aveludado, o gestual das mãos incontrolavelmente suave. Nada ali permitia um desassossego, uma grosseria, uma palavra rude, um atropelo, um trejeito de brutalidade. Assim foi o jornalista gaúcho João Borges de Souza até segunda-feira, 13 de junho passado, quando tombou mansamente aos 87 anos, num hospital da Grande Porto Alegre, vencido por uma parada cardiorrespiratória e pelo mal de Alzheimer, que há três anos dissolvia sua amorosa memória. Apesar disso, João Souza, como ele era conhecido, ficará para sempre na nossa lembrança como um dos gigantes do jornalismo brasileiro.

Alto, com 1m80 onde se acomodava um físico enxuto de 75 kg sem gorduras, João Souza desfilava sua elegância pelos gabinetes de políticos e salões dos palácios com o habitual terno de feitio impecável sempre combinando com a gravata ajustada, o que lhe dava o perfil de um lorde inglês importado para os pampas. O contraste dos cabelos precocemente grisalhos com o tom escuro da pele lhe conferia a altiva dignidade de um príncipe etíope, que chamava ainda mais a atenção por ser um dos primeiros negros do Rio Grande do Sul em cargo importante em redações dominadas secularmente por jornalistas que se consideravam brancos, herdeiros da alvura dos imigrantes alemães, italianos e portugueses.

Apesar disso, João não se considerava um intruso racial. Perguntado anos atrás, numa entrevista com três repórteres, se ele tinha sentido na pele o racismo estrutural do Rio Grande, ele respondeu que não. “Quando insistimos na pergunta”, lembra a jornalista Núbia Silveira, sua amiga e confidente de meio século, “ele nos fuzilou com o olhar, sem dizer nada, como se perguntasse: Não acreditam em mim?”.

Repórter sagaz, editor talentoso, líder sindical corajoso em tempos de ditadura, João Borges tornou-se uma referência de gentileza, firmeza e dignidade no seu perene e aberto confronto contra a brutalidade, a tibieza e a desonra que pervertem costumes e corporações nos tempos sombrios do arbítrio. Comandou em diferentes cargos o Sindicato de Jornalistas de Porto Alegre no período mais trevoso da ditadura militar, nos governos dos generais Garrastazú Médici e Ernesto Geisel, quando muitos jornalistas, em vez de entrevistar, eram compulsoriamente entrevistados por militares hostis da repressão na antessala dos cárceres ilegais.

Não me reconhece, camarada?

Por sua liderança e presença sempre do lado certo da História, João tem seu nome engastado em momentos memoráveis do jornalismo. Sem nunca ter frequentado universidade, um João quase adolescente abraçou o jornalismo, por devoção ao ofício e à ideologia, colaborando com a Gazeta Sindical, de São Paulo, ligada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em 1956, aos 21 anos, trocou o amadorismo pela profissão, contratado como repórter do jornal Tribuna Gaúcha, porta-voz do PCB no Sul, que sobreviveu entre 1946 e 1958. Na época, muitos dos colegas de João alternavam a redação com horas ou dias vividos nas prisões políticas da capital gaúcha.

Quatro anos antes da chegada de João, a primeira redação do jornal comunista era ponto fixo de confusão. Na antiga Rua da Ladeira (atual General Câmara), uma transversal íngreme que ligava a praça do Palácio do Piratini à tradicional Rua da Praia (atual Andradas), no centro da capital, funcionava a Tribuna com o seu parque gráfico no porão. Para atrapalhar a circulação, a repressão fazia ali prisões, espancamentos, tumultos que marcavam cada edição do diário. Com as portas sempre fechadas, para conter a polícia, elas se abriam apenas para sair algum militante com discurso furibundo, que distraía a polícia para longe, enquanto pacotes do jornal eram rapidamente desviados para militantes em pontos seguros da Rua da Praia, uma quadra abaixo.

Numa obra clássica sobre o jornalismo “subversivo” no Estado, A imprensa Operária do Rio Grande do Sul 1873-1974, o jornalista João Batista Marçal conta detalhes que o jovem João Souza viu de perto. A polícia, com ideia fixa, não estranhava o número elevado de grávidas em elevado estado de gestação que costumava sair daquele endereço, mesmo nos momentos mais conturbados do cerco policial. Na verdade, eram militantes quase virginais saindo dali com resmas de jornais impressos enrolados na falsa barriga. Algumas eram amigas ou conhecidas de João.

O repórter e pupilo Paulo de Tarso Riccordi contou ao jornalista Lourenço Cazarré, nascido em Pelotas como João Souza, uma história que ressalta o lado bem-humorado do amigo. No começo dos trepidantes anos 1960, João estava na rua, cobrindo uma manifestação de protesto. Ele estava tão próximo da notícia que, em dado momento, começou a levar bordoada de um guarda da Polícia de Choque da Brigada Militar, que fazia a repressão. João identificou o agressor, na hora, como integrante clandestino do partido.

– O que houve, camarada? Não estás me reconhecendo? – reclamou o jornalista.

Sem cessar a pancadaria, agora menos intensa, o guarda respondeu com a discrição possível:

– É claro que estou, camarada. Mas preciso baixar a borracha porque os meus comandantes já andam desconfiados de mim, estão achando que sou comuna ou brizolista…

E o guarda fingia com o cassetete, enquanto João fingia que apanhava.

Da conturbada Tribuna Gaúcha, João migrou no final de 1954 para o matutino A Hora, um empreendimento de empresários trabalhistas vinculados a João Goulart. Pretendia ocupar o vazio deixado pelo Diário de Notícias, o principal jornal dos Diários Associados de Chateaubriand, incendiado em agosto pelo povo enfurecido com o suicídio de Getúlio Vargas. O jornal definhou e morreu, por inanição, em março de 1962. Antes de acabar A Hora¸ João migrou para a Última Hora gaúcha, no início de fevereiro de 1960, que seria lançada duas semanas depois, participando dos números zeros experimentais do jornal revolucionário de Samuel Wainer, sempre antipatizado pela direita e pelos militares por sua visceral ligação com Getúlio Vargas. Foi, certamente, o primeiro repórter a cobrir o movimento sindical, uma novidade em jornal, fora da imprensa comunista que João integrou.

João resistiu lá mesmo com o turbilhão do golpe de 1964, que fechou o jornal esquerdista de Wainer, renascido como a Zero Hora direitista de Ary de Carvalho. João sobreviveu no novo jornal como repórter e editor de política, até ser demitido em meados de 1965, acusado de integrar uma célula do PCB na redação de ZH sob o comando de João Aveline. Com a ajuda do amigo Tarso de Castro, João exilou-se um tempo na Secretaria de Saúde, como assessor de imprensa, até ressurgir como editor de política do novo jornal que Breno Caldas estava criando, no final da trepidante década de 1960, para disputar as bancas com Zero Hora, seu maior concorrente.     

Tem rolo, chama o João

João não queria o velho ranço conservador da Caldas Júnior, mas buscava o novo. E o novo era a Folha da Manhã, a ousada tentativa de renovação de Breno Caldas, o dono da empresa. Lançado em 1969, sob a direção do ex-capitão Erasmo Nascentes, que chamou João para ser seu editor de política, desde a primeira edição. O jornal só ganhou um fôlego renovador em 1972, quando Nascentes passou a direção para o jornalista José Antônio Severo, líder de um projeto avançado que trazia inovações gráficas, uma linguagem mais moderna, grandes reportagens, jornalismo investigativo e uma postura mais crítica da realidade, novidades numa empresa conhecida por seu conservadorismo e alinhamento com o regime, que gozava da simpatia dos outros dois jornais da casa, o Correio do Povo e a Folha da Tarde.

O novo jornal era o filho rebelde, o matutino malcomportado da casa. Lá, o progressista editor político João Souza, aos 37 anos, sentia-se em casa, ao lado de gente nova, talentosa, de sangue quente. Em momentos distintos, João teve ao seu lado nomes brilhantes que viriam a formar uma seleção da imprensa brasileira – Elmar Bones, Rosvita Saueressig, Caco Barcellos, Jefferson Barros, Yara Rech, Luís Fernando Veríssimo, Núbia Silveira, Edgar Vasques, Assis Hoffmann, Gilberto Pauletti, Luiz Carlos Merten, Xico Vargas, José Antônio Vieira da Cunha, Carlos Alberto Kolecza, Juarez Fonseca, José Onofre, Geraldo Canalli e Carlos Urbim, entre outros.

Apesar de tanto talento concentrado, o jornal entrou em crise, dirigido na sequência por Ruy Carlos Ostermann e Walter Galvani, que sucederam a Nascentes e Severo. Após o auge de sucesso do início dos anos 1970, o projeto renovador da FM – que reforçou seu tom investigativo e denunciador sob o comando de Ostermann – entrou em crise, até sucumbir uma década depois, a partir de um conflito interno com Breno Caldas. O jornal acabou fechando em 1980, com apenas 11 anos de vida. João e outros remanescentes foram deslocados para a Folha da Tarde.

A Caldas Júnior cercada pela polícia: o dono, Breno Caldas, cruza o piquete grevista vaiado como ‘caloteiro’

Lá, João precisou usar de sua experiência sindical para conduzir um dos episódios mais graves da imprensa gaúcha: a greve, primeira e única, que levou ao fim a maior empresa jornalística do Estado, a Caldas Júnior de Breno Caldas. Durante 56 dias, entre dezembro de 1983 e fevereiro de 1984, os jornalistas e gráficos do Correio do Povo e da Folha da Tarde esbravejaram por atrasos de sete meses nos salários. Um recorde de paralisação, em tempos em que a duração média de uma greve no setor privado não passava de três dias, graças ao rigor da Lei 4.330 da ditadura, que os líderes sindicais tachavam de “lei antigreve”.

A decisão de fazer a greve foi tomada na noite de segunda-feira, 12 de dezembro, numa assembleia de 300 pessoas que lotou a ‘oficina de chumbo’, um salão de 100 metros quadrados, no segundo andar do prédio do jornal, que marcava a transição de uma era: muitos foram demitidos a partir de julho, quando a modernização do parque gráfico do jornal trocou a composição a quente, com chumbo, para a fotocomposição, a frio.

No dia seguinte, a sede da Caldas Júnior amanheceu cercada por tropas da Brigada Militar para conter os piquetes grevistas, que tentavam bloquear os caminhões com o jornal impresso. O dono, Breno Caldas, teve que atravessar o piquete de funcionários, vaiado e chamado de ‘caloteiro’.                                                                                                              

A densa tese de mestrado da historiadora Clarice Gontarski Esperança –  A greve da oficina de chumbo – o movimento de resistência dos trabalhadores da Caldas Júnior – , aprovada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2007, conta detalhes inéditos desse conflito. O advogado dos grevistas, Luís Burmeister, revela a importância de João Souza, que havia sido presidente do Sindicato dos Jornalistas entre 1974 e1978. “A militância era enlouquecida. Eram tempos da Libelu, a Liberdade e Luta, uma corrente de origem estudantil, trotskista. Aí, os caras que achavam que a Libelu era meio devagar criaram a Avalu, Avançar a Luta”. O jeito foi chamar sindicalistas mais experientes, alguns ligados ao PCB. E chamaram o João: “Quem fazia a moderação da coisa era o João Souza, um cara muito jeitoso e muito habilidoso, ao velho estilo de ficar por trás das coisas, mas ser uma palavra importante. Quando tinha algum rolo, que precisava decidir alguma coisa, o que fazer amanhã, a gente chamava o João Souza”, lembra Burmeister na tese de Esperança.

A greve, moderada por João, também demitido pela empresa, acabou vitoriosa. Foi declarada legal pela Justiça do Trabalho. Na passeata da vitória, após tantos dias de tensão, puxava o cordão o mais ilustre funcionário do Correio do Povo – o poeta Mário Quintana, o editor da página literária dos sábados, o lendário ‘Caderno H’. Apesar da fama, o poeta recebia uma merreca de salário, cerca de 192 mil cruzeiros, o equivalente a menos de dois salários mínimos atuais. Na flor dos seus 78 anos, o poeta desfilou sorridente no desfile vitorioso da greve, com o inseparável cigarro entre os dedos, sorrindo como uma criança. Quem o via ali, lembrava de uma advertência de Quintana: “Poeta não é profissão. É um estado de espírito, ou coma. Minha profissão é jornalista. Assim está escrito na minha carteira profissional”.

Quintana lê o boletim da greve, a passeata da vitória, o poeta na vanguarda:  a Caldas Jr. acaba sem poesia

Dois Paulos, um mentiroso

Na carteira de João, também. Além do jornalismo, ele se preocupava com os princípios éticos da profissão. Como presidente do sindicato, percorria com destemor e altivez os corredores dos quarteis militares ou da Polícia Federal, sempre que um jornalista detido pela ditadura precisava de seu conforto e apoio.

Quando nem a família tinha acesso, era o João, munido de sua autoridade e prestígio, que conseguia o contato pessoal que dava mais esperança para os familiares angustiados pelo desaparecimento. João amparava seus colegas, dentro e fora dos cárceres da repressão.

João Souza, Paulo Riccordi e Paulo Brossard: João provou que o Paulo mentiroso não era o repórter…

Em 1974, editor de política da Folha da Manhã, ele escalou o repórter Paulo de Tarso Riccordi para entrevistar o novo senador eleito, Paulo Brossard. Era o personagem central de uma fragorosa derrota da ditadura, quando a oposição – reunida no MDB –  consagrou-se conquistando 16 das 22 cadeiras do Senado em disputa, além de arrematar 161 das 364 cadeiras da Câmara dos Deputados. Entrevista feita e publicada, Brossard apoquentou-se com o que leu no jornal. Procurou Breno Caldas para queixar-se do repórter, negando o que havia dito. O dono da empresa não hesitou. Acreditou no amigo e determinou a demissão de Riccordi.

João esperou o retorno do repórter, para provar que ele estava certo. A entrevista, feita na fazenda de Brossard, em Bagé, fora gravada em várias fitas cassetes. “João levou a Breno Caldas o meu bornal de lona lotado com dez fitas gravadas”, contou Riccordi a Núbia Silveira. E assim a verdade do repórter sobreviveu à mentira do futuro senador.

Às vezes, era mais importante que os jornalistas protegessem João, nosso presidente, em vez do contrário. Em dezembro de 1975, Audálio Dantas, o presidente do sindicato paulista ligou para mim, autor desse texto, então chefe da sucursal em Porto Alegre da revista Veja. O II Exército, em São Paulo, acabava de divulgar uma nota, sustentando a falsa versão de ‘suicídio’ do jornalista Vladimir Herzog nos porões do DOI-CODI, na verdade morto sob tortura. Botar o sindicato em confronto direto com o Exército daria o pretexto para sua intervenção. Assim, os próprios jornalistas criaram um movimento nacional para exigir a verdade no IPM militar. Audálio não poderia pedir que João fizesse isso no Sul, para não correr o mesmo risco. Ligou para mim e me encarregou da coleta de assinaturas, um episódio contado aqui pelo JÁ:

João Souza é apenas um dos 1.004 signatários do histórico manifesto “Em nome da Verdade”. Somente 11 dos 25 sindicatos de jornalistas do país protestaram contra a morte de Vlado.

A entidade gaúcha, presidida por João, foi uma das primeiras a se manifestar.

Nos tempos de Médici e Geisel

Sou testemunha de dois episódios que mostram a dignidade e a coragem de João Souza na defesa dos jornalistas.

Em 1974, poucas semanas antes passar o bastão de ditador para o sucessor, o general Emílio Garrastazu Médici fez uma última visita, de caráter sentimental, ao seu Rio Grande natal na condição de presidente. Não lembro qual o programa daquela sua incursão, mas, quase um mês antes, com a antecedência recomendável, apresentei o burocrático pedido de credenciamento que se exigia da imprensa para cobrir eventos da Presidência da República. Esse procedimento era sempre comandado pelo QG do III Exército (atual Comando Militar do Sul).

Naquela ocasião, contrariando o que acontecera em visitas anteriores, fui informado de que minha credencial havia sido negada. Foi uma surpresa. Até então eu era, nos padrões da segurança do regime, um repórter confiável, segundo os arquivos nada confiáveis do SNI do regime: não tinha militância política, não participara da luta armada, não era terrorista, nem jogara pedra ou bomba na polícia….

Enfim, eu era um zero à esquerda, limpo como uma folha em branco. Aquele veto era apenas um exemplo do poder arbitrário do regime militar, que abonava ou bania quem e quando quisesse, segundo o humor da hora. Vi naquela surpreendente rejeição uma forma de peitar os militares com a ajuda de meu prontuário absolutamente anódino e inofensivo.

Resolvi questionar o veto, coisa que jornalista sensato ou bem-comportado não costumava fazer naqueles tempos chumbados.

Apresentei meu plano a duas instâncias inevitáveis. Uma, a direção da Veja, que topou o desafio. A outra foi o Sindicato de Jornalistas, então presidido por João Souza, o ícone da categoria. Foi uma conversa evidentemente confidencial, com a qual busquei sua bênção e a cobertura da nossa entidade de classe. João topou o confronto, com a firmeza e a serenidade de sempre, vendo ali o pretexto ideal para que os jornalistas questionassem os critérios volúveis e estúpidos que os militares usavam, de forma aleatória, para controlar e intimidar a imprensa, que vivia sob o tacão do AI-5.

Minha ideia era linear: contestar o veto, para que o III Exército tentasse justificar minha surpreendente exclusão do time de credenciados, aproveitando o precedente de que eu tinha sido autorizado a cobrir visitas presidenciais anteriores, sem qualquer objeção. Se o QG, como de hábito, respondesse que o veto estava mantido, sem maiores explicações, para um repórter abusado como eu, nosso próximo passo seria cobrar a credencial na Justiça.

Estávamos dispostos a ir até ao Supremo Tribunal Federal para escancarar o mau-humor e o caráter discricionário dos militares. Nas nossas estimativas, seria difícil para o Exército justificar o arbítrio. Ganhando no Supremo, a gente estaria denunciando esse abuso específico contra a imprensa, um detalhe no oceano de violências com que a ditadura tentava manietar brasileiros de todas as categorias. Era um detalhe menor, mas era o que podíamos fazer para incomodar o governo de plantão. João ficou animado com a oportunidade, e me deu seu integral apoio: o Sindicato dos Jornalistas me proporcionaria a mais ampla cobertura jurídica.

Se aquele caso fosse adiante, seria um dos primeiros embates no STF da luta permanente entre Ditadura x Imprensa, que se aprofundaria a seguir.

João e eu chegamos a avaliar os próximos passos. Concordamos no nome que o sindicato contrataria para nos representar na Justiça: Werner Becker, um dos mais importantes advogados do Rio Grande do Sul, com atuação frequente e vitórias eloquentes no STF. Era pessoa de nossa confiança, minha e do João.

Cinco anos depois, Werner seria o advogado que o Sindicato dos Jornalistas colocaria à minha disposição para nos defender, a mim e ao fotógrafo JB Scalco, testemunhas involuntárias que fomos do sequestro dos uruguaios Universindo Díaz, Lilián Celiberti e seus dois filhos em Porto Alegre, em novembro de 1978, numa operação clandestina binacional da Operação Condor. O braço nacional da Condor era comandado pelo delegado do DOPS e torturador Pedro Seelig, chefe de Didi Pedalada e João Augusto da Rosa, identificados e denunciados pelos repórteres de Veja.

Em 1979, Werner, conhecido por sua verve e inteligência, foi interpelado pelo advogado Oswaldo Lia Pires, que defendia Seelig e seus comparsas no processo aberto pela Justiça Federal. Ao cruzar com Werner, numa das primeiras audiências, Lia Pires teve a má ideia de ser engraçadinho com nosso advogado:

– Ué, dr. Werner, nunca vi testemunha com advogado!

O nosso defensor rebateu na pleura:

– Quando polícia vira bandido, dr. Lia Pires, testemunha precisa de advogado…

Voltando a 1973. Daquela vez, contudo, nem precisamos chamar o Werner para nos assessorar em nossa insidiosa e subversiva manobra – por culpa do próprio Exército.

De repente, não mais que de repente, a sucursal da Veja, recebeu um telefonema do QG do III Exército informando que minha credencial estava liberada para a cobertura da visita de Médici, quando faltavam duas ou três semanas para a viagem presidencial.

Sem qualquer explicação ou esclarecimento, como acontecera no anúncio do veto, o comando do Exército nos comunicou a liberação da credencial. É da índole dos regimes autoritários não justificar seus atos e decisões, para não ter depois que explicar o que aconteceu ou deixou de acontecer. Assim, ganhei de novo a credencial perdida – e vi desaparecer a oportunidade de consumar nossa emboscada jurídica contra os militares.

João e eu ficamos frustrados pela chance desperdiçada.

João Souza foi a única pessoa, fora da redação de Veja, que soube, compartilhou, estimulou e se preparou para nossa iminente batalha jurídica. Não sei, até hoje, o que levou os militares a vetarem e, depois, liberarem minha credencial. Por razões óbvias, esse não era um tema que João e eu abordássemos em nossas conversas ao telefone, foco inevitável dos grampos de escuta ilegal que a repressão do regime espalhava com volúpia e paranoia – especialmente em sucursais de jornalistas e em sindicatos não apelegados.

Conto isso pela primeira vez, aqui no OBSERVATÓRIO e no jornal JÁ, para mostrar a importância de João Souza, como figura pétrea de dignidade, firmeza e coragem que nos inspirava e dava confiança naqueles tempos tão desesperançados e desconfiados.

Em novembro de 1976, o regime militar enfrentava o seu primeiro grande teste eleitoral após a derrota na eleição anterior, de 1974, que elegeu Brossard. Para dar um retrato nacional da eleição daquele ano, Veja escolheu para sua cobertura 20 grandes cidades interioranas, já que os cidadãos das capitais, pelos humores do regime, não tinham a chance de escolher seus prefeitos.

A cidade gaúcha selecionada pela revista foi minha terra natal, Caxias do Sul, segundo maior colégio eleitoral do Estado. Empenhado pessoalmente na vitória da Arena, o partido da ditadura, o general-presidente Ernesto Geisel estivera lá duas vezes antes do pleito. Não adiantou.

O candidato do MDB, Mansueto Serafini, ganhou com a maior votação individual do Estado, 43 mil votos, doze mil a mais do que o candidato de Geisel, o arenista Victor Faccioni.

Entusiasmados, os caxienses foram às ruas para festejar: mais de dez mil pessoas e um cortejo de quatrocentos automóveis que entupiram a centralíssima avenida Júlio de Castilhos na tarde de quinta-feira, 18 de novembro.

Eu estava lá, com o fotógrafo Ricardo Chaves, o Kadão, para documentar o festejo. De repente, dois grandes jipes militares, cada um com onze soldados armados de fuzis-metralhadoras e baionetas caladas, começaram a abrir caminho trafegando lentamente e acintosamente entre a multidão. Era a carranca verde-oliva da ditadura atravessando a avenida e a alegria popular – como fazia desde 1964.

Na frente da prefeitura, eu me postei acintosamente diante dos veículos militares e anotei suas placas. Um soldado desceu do jipão, me interpelou, pediu muitas explicações e minutos depois Kadão e eu fomos detidos, sob os olhares de dezenas de jornalistas que cobriam a festança do povo.

Colocados na carroceria descoberta do jipe, fomos levados para o quartel do 3º Grupo de Canhões Automáticos Antiaéreos (3º GAAAc). O comandante daquela unidade, coronel Eugênio de Almeida Baptista, nos recebeu de pé, cara fechada, no alto de uma pequena escadaria que dava acesso ao saguão principal da caserna. Tinha os braços cruzados sobre o peito, o nariz empinado e batia o pezinho direito no chão, sinalizando no coturno sua enorme irritação.

– Vocês são todos uns ordinários e sem-vergonhas! A vontade que eu tenho agora é de enfiar a mão na cara de vocês! – fuzilou-nos à queima-roupa, mal-educado, sem sequer se apresentar.

– Boa tarde – retruquei. – Como é seu nome?

Empreguei um estudado tom baixo e sereno que desarmou o valentão. Em suma, puxei o tapete dele.

Depois que o comandante se identificou com nome e posto, apresentei-me:

– Coronel, meu nome é Luiz Cláudio Cunha. Sou jornalista e chefe da sucursal da revista Veja. Qual é o problema com a gente?

O coronel, talvez surpreso com minha identificação, amansou um pouco. Mas, ainda visivelmente irritado, perguntou por que eu anotara as placas das suas preciosas viaturas.

Expliquei que a aparição imprevista daqueles veículos bélicos em uma festa popular necessariamente deveria estar registrada na minha reportagem. Daí a anotação.

– Eles estavam lá para controlar a turba… – tentou justificar o militar.

– Turba não, coronel – interrompi. – Massa. O que há lá no centro da cidade é apenas uma massa de gente pacífica, alegre, comemorando uma vitória democrática. Seus jipes estavam ali só para atrapalhar.

– Neste caso, eu boto todas as viaturas do quartel aqui no pátio para o senhor anotar as placas… – disse ele, desafiante.

– Não precisa, coronel. Só me interessam aquelas duas que se infiltraram na festa. Aliás, não sei nem por que estou aqui, em vez de estar cobrindo a comemoração. Eu estou preso, coronel?

– Na-não! – gaguejou ele. – Estamos apenas co-conversando…

– Bem, sendo assim, estou perdendo meu tempo. Eu não vim a Caxias para conversar com o senhor. Vim para cobrir a eleição e seu resultado. Já que me tirou do meu local de trabalho, o senhor poderia, por favor, me mandar de volta para lá antes que os festejos acabem – pedi, com a petulância e o atrevimento que me cabiam.

Antes de me liberar, o coronel solicitou-me que não divulgasse as placas das suas viaturas.

– Repare bem: estou pedindo, não proibindo.

E, antes de nos devolver ao centro da cidade – dessa vez transportados no seu carro particular, uma Variant verde, quase oliva –, o coronel me apresentou mais uma solicitação:

– E, por favor, fale a verdade!

Quando voltamos ao centro já corria por lá a notícia de nossa detenção. Em Porto Alegre, preocupado com nossa segurança física, João Souza, o diligente presidente do sindicato, denunciou nossa “prisão”, comunicada a ele pelos coleguinhas de Caxias do Sul. E, de imediato, acionou o governador Synval Guazzelli, no Palácio Piratini.

Pouco depois, João recebeu a notícia tranquilizadora: Kadão e eu já estávamos trabalhando no meio da “turba” que tanto inquietava o coronel.

Mas aquela festa ficou marcada por grave incidente, provocado pelos militares.

O vitorioso Mansueto Serafini desfilou em um DKW amarelo, saudado por foguetes e escolas de samba e acompanhado pelos operários que saíam das fábricas no final da tarde. Fez a volta na praça e foi carregado pela multidão por cinco quadras, até o edifício onde morava. Só não discursou porque os companheiros o lembraram da ordem expressa do coronel Baptista:

– Não transforme a passeata da vitória num comício político!

Mas aquela festa ordeira acabou em violenta desordem. Súbito, com a ajuda de vinte homens da Brigada Militar, a tropa do Exército entrou em choque com a multidão, distribuindo cacetadas e lançando oito bombas de gás. Dois vereadores do MDB e mais de vinte pessoas foram atendidas nos hospitais. Minutos depois as emissoras de rádio e TV e os jornais foram proibidos de noticiar a confusão.

A reportagem de capa da Veja da semana seguinte falou a verdade, como pedia o coronel: relatou toda a confusão provocada pela “turba” fardada – e ainda publicou as placas dos dois jipes enxeridos (EB-21-18-488 e EB-21-15-467).

Algumas semanas depois, sem choro nem vela, o coronel Baptista foi exonerado e transferido. Nunca mais se ouviu falar dele.

Mas é preciso falar sempre de João Souza, que nos momentos mais tensos sempre foi uma presença serena, firme, inabalável, digna, consciente do que devia fazer e do que não podia se eximir. Ele nos representava e nos protegia.

Esse foi João Souza, orgulho da raça.

Da raça dos jornalistas.

 

*Luiz Cláudio Cunha é jornalista, autor de Operação Condor – O Sequestro dos Uruguaios [Ed. L&PM, 2008, Porto Alegre]   –   cunha.luizclaudio@gmail.com

 

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A banalidade do mal na erosão ética da política

Luiz Cláudio Cunha*

O vento constante que soprava do mar sobre a cidade de Osório, no litoral gaúcho, distante apenas 15 km das ondas do Oceano Atlântico, amenizou a temperatura de 30° na manhã daquele sábado ensolarado, 10 de abril de 2021. Isso permitiu que o encontro informal dos três políticos da cúpula do MDB gaúcho fosse ainda mais descontraído, trocando o hábito sufocante do paletó e gravata do asfalto pelos adereços mais confortáveis da praia — sandálias, bermuda, tênis, camiseta e calça jeans.

Foi uma longa, relaxada conversa de quatro horas coroada por um almoço, na casa de veraneio do presidente do partido no Rio Grande do Sul, o deputado federal Alceu Moreira, que recepcionou o prefeito da capital gaúcha, Sebastião Melo, e o secretário-geral do MDB, o deputado estadual Gabriel Souza, que também preside a Assembleia Legislativa. Ao final, o secretário Souza resumiu o teor do encontro para o repórter Paulo Egídio com uma frase crua e cínica que resume a inevitável decadência moral daquele que foi o mais prestigiado partido da história política gaúcha: “OK ter filiados adeptos ao bolsonarismo, mas o MDB nunca foi bolsonarista. O apoio ao Bolsonaro foi um momento tático eleitoral de 2018”, confessou candidamente o presidente da Assembleia gaúcha.

A frase foi publicada na edição virtual de domingo, 11, da mais importante colunista política do Estado, Rosane de Oliveira, no jornal de maior prestígio do Sul, a Zero Hora, sob um título ameno como a temperatura da praia: “Em almoço no litoral, líderes do MDB gaúcho concordam em posicionar o partido ao centro”. Apesar da gravidade da confissão, não se registrou nenhum abalo sísmico no Estado, que engoliu em seco, sem qualquer reação, rejeição ou indignação a palavra que, mais do que tudo, soava como uma autoconfissão.   

Os chefes maiores do MDB sulista admitiam ousadamente, enfim, que era OK ter adeptos do bolsonarismo entre seus filiados, uma brutal contradição em termos que deveria envergonhar a sigla que carrega, na sua longa história, a honra de ter combatido e resistido à ditadura sempre louvada pelo capitão que arrebatou devotos e adesões irrestritas dentro da legenda. Ninguém do partido reclamou, nem se sentiu injuriado pela gentil admissão de que, OK, um filiado do MDB velho de guerra agora, de repente, poderia ser um assumido bolsonarista!…

Assustadoramente normal

O prefeito, o presidente do partido e o seu secretário-geral, nas suas levianas reflexões – tão despojadas quanto os trajes praianos que vestiam – exprimiam na essência a “banalidade do mal”, expressão definida seis décadas atrás pela filósofa e pensadora política Hannah Arendt (1906-1975), em seu trabalho de maior repercussão como jornalista: a série de cinco artigos que publicou, entre fevereiro e março de 1963, na renomada revista The New Yorker, sobre o juízo em Jerusalém em 1962 do tenente-coronel Adolf Eichmann, sequestrado dois anos antes na Argentina pelo serviço secreto de Israel. Coordenador e gerente do Holocausto nazista que exterminou seis milhões de judeus, ele foi julgado num processo de cinco meses, condenado e enforcado na madrugada de 1º de junho de 1962. O conjunto de cinco artigos foi transformado, no ano seguinte, no livro mais popular da ativa vida intelectual de Arendt: Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal.    

Hanna Arendt viu em Eichmann o que Pedro Simon não viu em Jair Bolsonaro: a banalidade do mal

Ao saber do iminente julgamento de Eichmann, Arendt se ofereceu à revista para cobrir o processo que testaria, na prática, a teoria por ela desenvolvida em seu primeiro e mais aclamado ensaio, As origens do totalitarismo, de 1951. Ali, examinava as raízes do Nazismo e do Stalinismo e os fundamentos de “uma nova forma de governo”, o Totalitarismo, que diferia essencialmente das outras três formas conhecidas de opressão – o despotismo, a tirania e a ditadura. Em Jerusalém, Arendt imaginava ter a chance de ver a justiça administrada ao homem de perfil totalitário sobre o qual ela havia escrito.

Mais do que uma pensadora original, Hanna Arendt era, também, uma sobrevivente do Holocausto gerenciado por Eichmann. Judia alemã de nascimento, escapou duas vezes das garras da Gestapo. Na Berlim radicalizada de 1933, no alvorecer do nazismo, denunciada por um livreiro por propaganda contra o Reich, ela e a mãe foram presas por oito dias. Dali escapuliu e procurou refúgio em Paris, mas acabou presa outra vez e internada no sul da França, em Gurs, um antigo centro de refugiados da Guerra Civil Espanhola que, sob a ocupação nazista, virou um campo de concentração para judeus não-franceses e inimigos do regime colaboracionista de Vichy. Quando conseguiu escapar dali, junto com a mãe e o marido, Arendt cruzou a Espanha rumo a Lisboa, de onde alcançou sua nova pátria em Nova York, em maio de 1941.

Duas décadas depois, ao publicar seu relato sobre o impacto de ver Eichmann ao vivo no tribunal, Arendt confessou ter ficado impressionada, certamente surpresa, com a inesperada imagem de vulgaridade e o comportamento daquele homem meio calvo, que parecia apenas um medíocre burocrata, até brando, em contraste com o horror dos crimes terríveis de que foi acusado. “Eichmann era terrivelmente, assustadoramente normal”, espantou-se ela.[1]

Essa insidiosa, maligna banalidade anotada nos anos 1960 acabou se infiltrando, contaminando, conspurcando em 2018 um dos lugares mais admirados do Brasil pela força de seu povo, pela beleza de sua terra, pelo valor de sua história política, econômica e cultural: o Rio Grande do Sul.

A naturalidade do Bem

Delimitada pelo Império no início do Século 19, a velha Capitania de São Pedro alçou-se duas décadas depois à Província e, com a República, transformou-se em Estado, hoje com números superlativos. Sexto mais populoso do país — com mais de 11 milhões de habitantes (equivalente a uma Bélgica) espalhados por 281 mil km² (do tamanho do Equador) onde se espraiam os pampas de largos horizontes, os campos verde-amarelo mansamente ondulados de milho e soja e as suaves colinas da serra perfumadas pelos vinhedos, hortênsias e flores de bergamota —, o Rio Grande do Sul ostenta índices invejáveis para um país tão desigual. Tem a 4ª melhor taxa de alfabetização (comparável a Singapura), é o 7º com mais estudantes de nível superior completo (quase 10% da população), alcança a 4ª posição em renda per capita (Porto Alegre é a 2ª capital, só atrás de Vitória) e atinge o 4º posto no ranking do PIB nacional.

Aos habitantes originais das tribos Charrua e Minuano juntaram-se os africanos e portugueses, mesclados com os castelhanos que porejavam pelas fronteiras com os vizinhos do Cone Sul, reforçados pela linhagem laboriosa dos imigrantes italianos e alemães que começaram a chegar da Europa no final do Século 19.  Esse caldeirão de sangue, talento, interesses e culturas tão diversas gerou um povo guerreiro e afirmativo que explica o protagonismo dos gaúchos em movimentos, levantes, rebeliões e sagas que moveram, para a frente, a história do Estado e do Brasil em dois séculos.

As revoluções Farroupilha (1835-1845), Federalista (1893-1895) e a de 1923 colocaram o Estado ou parcelas dele, em tempos distintos e por razões diferentes, em ousado confronto com as oligarquias locais, a hegemonia federal do Rio de Janeiro e as leis da época que favoreciam o continuísmo no poder e a dependência econômica. A Revolução de 1930, iniciada no Sul, tirou o país do atraso da Velha República do café-com-leite, e a brava Campanha da Legalidade de 1961 conteve o Exército golpista em Brasília e garantiu a posse constitucional de João Goulart na crise entornada pela ébria renúncia de Jânio Quadros.

A Revolução Farroupilha e a Campanha da Legalidade: dois séculos de gente que reclama, briga e não se agacha

Essa linda, guerreira história de mais de 200 anos dominados pela naturalidade do bem de repente foi confrontada, humilhada pela banalidade do mal que prevaleceu na eleição presidencial de 2018 no Rio Grande do Sul. Pela maioria dos votos válidos, 63,2% (3,9 milhões de eleitores), o capitão Jair Bolsonaro teve quase o dobro de seu opositor no segundo turno, o professor de ciência política da USP Fernando Haddad, com 36,7% (2,2 milhões). O tosco e abrutalhado capitão venceu o advogado – mestre em Economia e doutor em Filosofia – em 407 dos 497 municípios gaúchos. Porto Alegre, a 3ª capital do país com menor taxa de analfabetismo (2,18%, atrás de Florianópolis e Curitiba), deu a vitória a Bolsonaro em todas as dez zonas eleitorais da cidade.

O capitão candidato, que no início parecia apenas uma excrescência folclórica e nostálgica do passado autoritário de 21 anos, acabou dominando corações e mentes da maioria dos 8,3 milhões de eleitores gaúchos. O resultado final no Rio Grande foi a nona maior vitória estadual de Bolsonaro, que venceu as eleições do segundo turno em 21 capitais e 16 dos 27 Estados brasileiros, incluindo os três do extremo sul, os de maior nível de escolaridade. Em Santa Catarina, que tem a capital mais alfabetizada do país, o capitão arrebatou sua segunda maior vitória nacional, com 75% dos votos, três de cada quatro eleitores. No primeiro turno, quando recebeu quase 50 milhões de votos no Brasil, Bolsonaro desconcertou os dois principais candidatos a governador no Sul – Eduardo Leite (PSDB), que teve 35,9%, e José Ivo Sartori (MDB), que tentava a reeleição, com 31,1%.

O frankenstein eleitoral

Ambos reafirmaram a “posição antipetista”, e tentaram atrair o voto bolsonarista – um recatado, outro arreganhado.

Leite foi cuidadoso: “Os gaúchos votaram na maioria em Bolsonaro, e eu respeito isso. Sei que apoiá-lo seria um gesto natural de quem deseja vencer esta eleição. Mas não quero vencer a eleição e perder a alma. Eu tenho uma posição firme: não arredar pé dos meus princípios e valores. Lamento que ele não tenha feito uma autocrítica sobre frases e pensamentos que não respeitam a democracia e a existência pacífica e natural de outros seres humanos”. E mais não disse, nem fez o candidato tucano no resto da campanha.

Sartori foi mais escancarado, irrestrito: “O apoio a Bolsonaro dialoga com a necessidade de combate permanente à corrupção, apoio à Lava-Jato, mais segurança e um novo pacto federativo. Não é hora de omissão”. Sartori, arrebatado, jogou-se no colo do capitão já no dia seguinte ao primeiro turno de 7 de outubro, tentando sugar sem rebuço a simpatia e o apoio explícito dos 3,3 milhões de gaúchos (52% dos votos válidos) que optaram por Bolsonaro.

Ao contrário de Leite, que não falou mais no capitão no segundo turno, Sartori rasgou as vestes da compostura e colou-se como uma craca no áspero rochedo de Bolsonaro. Tentando um equilíbrio instável na onda conservadora com o seu jacaré de arrivismo, o governador chegou ao extremo de juntar sua imagem à de Bolsonaro nos cartazes de campanha, gerando um horrendo frankenstein eleitoral que não deixava nenhuma margem de hesitação: ‘Sartonaro’.

Sartori: no cartaz do terrível  frankenstein eleitoral e com o silêncio que abençoou o mal

O malabarismo não deu certo. O jacaré de Sartori perdeu o equilíbrio em seu balouçante, oportunista adesismo, e afundou na derrota por pouco mais de 420 mil votos (53,6% a 46,3%). O outro grande perdedor foi o líder maior do MDB gaúcho, o ex-senador Pedro Simon, mentor político de Sartori, um professor de filosofia que Simon arrebanhou para a política e para o MDB em 1976. Carinhosamente chamado de ‘Gringo’, como são conhecidos os imigrantes de origem italiana da serra gaúcha, Sartori ganhou dez das 13 eleições que disputou – incluindo duas para prefeito de Caxias do Sul, terra natal de Simon, e uma para governador. Sua devoção e subordinação ao mentor político, contudo, não lhe permitiam a iniciativa e a ousadia de assumir por conta própria o truque do “Sartonaro” sem o assentimento prévio do velho senador.

As digitais do envergonhado apoio de Simon ao capitão, assim, são perceptíveis a olho nu nos grandes cartazes de campanha que, sem qualquer objeção do líder máximo do MDB sulista, nivelaram para sempre a figura decente e cordial de Sartori e o retrato do ríspido e indecente Bolsonaro. A preferência de Simon ficou dissimulada até duas semanas antes do segundo turno, em 28 de outubro, quando ele concedeu uma desastrada entrevista ao principal jornal gaúcho, a Zero Hora. Numa afirmação surpreendente, de grande repercussão, o maior líder do MDB anunciou seu “apoio crítico” a Bolsonaro, um escorregão que colocou em xeque a biografia do ex-senador e tornou gelatinoso o seu pétreo compromisso com a ética.

Emparedado por Carlos Rollsing, um jovem e talentoso repórter de 35 anos, o veterano político então com 88 anos chegou ao extremo de implorar pelo que é impossível a um jornalista sério: não fazer a pergunta que deve ser feita. Um trecho desse patético confronto:

Rollsing Pelo o que entendi da sua manifestação, o senhor vai acatar a decisão do MDB gaúcho de apoiar  Bolsonaro, mas fico em dúvida se o senhor vai apoiar ele pessoalmente e se vai votar nele. Como será?

Simon – Eu vou ficar fora da campanha. Não participo.

Rollsing O que o senhor vai fazer então? O que significa apoiar criticamente?

Simon – Eu não sei, respeito a decisão do partido, está feito, mas eu fico fora da campanha.

Rollsing – Não é um apoio explícito então?

Simon – É um apoio crítico.

Rollsing – E o que significa um apoio crítico?

Simon – Não vou participar da campanha. Vou fazer essas análises de um e de outro lado, que eu acho que devem ser feitas.

Rollsing Mas o senhor vai votar no candidato Bolsonaro

Simon – Não me faz essa pergunta (risos). Eu peço, por favor, que não me faça essa pergunta.

O claudicante, errático desempenho do ex-senador diante do repórter incisivo mostra suas vísceras na resposta seguinte, que prova o desconcerto interior que já consumia Simon em dúvidas e remorsos:

RollsingO senhor acha que esse apoio ao Bolsonaro agora, que tem saudosismo da ditadura e já relativizou atos como a tortura, é coerente com a história do senhor e do MDB?

Simon – Não. Acho que hoje, realmente, eu fico me perguntando o que o doutor Ulysses estaria fazendo…

Rolssing, o repórter incisivo, faz a pergunta certeira: Pedro Simon, acuado, implode a ética e afronta a História

É realmente deplorável ouvir o ex-combativo senador Simon se fazer essa pergunta, inadmissível para quem conviveu intimamente com o principal líder do MDB por mais de um quarto de século, no coração da política nacional, inclusive como o estratégico coordenador da campanha das Diretas-Já (1983-84). Simon lembra como ninguém daquela tarde de 5 de outubro de 1988, fecho glorioso de um ano e meio de debates até chegar à promulgação da nova Constituição. Ali, Ulysses trovejou: “Traidor da Constituição é traidor da pátria… Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações”.

Simon deveria lembrar, portanto, que a figura aberrante a quem dava o seu surpreendente “apoio crítico” em 2018 era o capitão Jair Bolsonaro que, em vez de amaldiçoar, louva sempre que pode a ditadura que Ulysses e os homens do Bem mais odiavam. O candidato que ganhava o apoio de Simon lamentou várias vezes que sua louvada ditadura tenha torturado e matado de menos, que mais gente deveria ter sido morta, e confessou, triunfal, que torturadores notórios eram os seus heróis e os autores de seus (poucos) livros de cabeceira. Nos seus 32 anos de presença ativa no Senado ao longo de quatro mandatos, desde 1979, Simon coincidiu boa parte de sua vida no Congresso com os sete baldios mandatos de Jair Bolsonaro na Câmara, eleito deputado federal sete vezes consecutivas a partir de 1990. Já deveria então, sem qualquer apoio, ser um crítico severo de Bolsonaro!

No fígado do capitão

Bolsonaro nunca deixou de ser um ilustre desconhecido do baixíssimo clero da Câmara, um parlamentar irrelevante, quase inútil, que conseguiu aprovar apenas dois projetos e uma emenda em 28 anos ordinários de Parlamento. A emenda do capitão-deputado autorizava o uso da fosfoetanolamina, a polêmica “pílula do câncer”, sintetizada na década de 1980 por um químico do interior paulista denunciado por curandeirismo pela Universidade de São Paulo (USP), em 2016. Um ano antes, a Academia Brasileira de Ciência condenou o uso da droga em seres humanos.

Apesar disso, a visão populista de deputados e senadores acabou aprovando uma lei incauta que liberava o uso da pílula, sem qualquer avaliação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A carreira milagreira da “pílula do câncer” só acabou dissolvida por decisão do Supremo Tribunal Federal, que arquivou o pedido de liberação. Nessa jornada brancaleônica, o capitão Bolsonaro foi um demagogo defensor do clamor popular contra a ciência, antecipando o papel atual de charlatão, como garoto-propaganda da cloroquina e outras sandices terapêuticas que ele prescreve com o fervor de um cientista maluco.

Mesmo com essa enxovalhada folha corrida, o capitão bobalhão ganhou o valioso “apoio crítico” de Pedro Simon. Numa reunião com empresários em 2017 em Porto Alegre, local de residência do ex-senador, Bolsonaro já ensaiava sua candidatura presidencial apresentando sua maior virtude: “Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar”. Admirador confesso do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, notório comandante do maior centro de tortura de São Paulo, o DOI-CODI da rua Tutoia, na ditadura, ainda assim Bolsonaro recebeu a estranha adesão do ex-senador, mesmo sendo o admirado autor de um texto de forte repercussão publicado pelo jornal O Globo em 28 de abril de 2010. Nesse dia o STF julgava uma ação da OAB que dizia o óbvio: a anistia do Governo Figueiredo não podia se aplicar aos crimes de tortura – imprescritíveis – praticados pelos agentes da repressão durante o regime militar.

O título do artigo de Simon atingia o capitão no fígado: “Não se anistia o nazismo. Nem a tortura”. Numa advertência clara, que cabia com perfeição na ficha de Brilhante Ustra, o herói torturador de Bolsonaro, Simon escreveu:

Ninguém, neste país, tinha ordens para torturar. Nem mesmo o AI-5, a lei mais dura do período mais sangrento do regime de 64, mencionava ou liberava o uso da tortura. Os torturadores têm algo em comum: eles têm vergonha do que fizeram. É um crime, portanto, sem pai nem mãe.

Anistia não é esquecimento, é perdão. Não se pode esquecer o que não se conhece. Também não se pode perdoar o que não foi punido – privilégio imaculado de todos os torturadores que ainda existem no país.

O nazismo não merecia a amnésia, muito menos a anistia. A tortura, também. […]

Punir os torturadores, de hoje e de ontem, não é revanchismo. É uma obrigação moral e ética de um país que deve olhar sem medo para trás, para encarar sem receios o caminho que tem pela frente.

Vamos lavar e cicatrizar nossas feridas, acatando o pedido da OAB e os clamores de um país consciente de seu passado e confiante em seu futuro.[2]

Pedro Simon e seu crítico apoio, o capitão e seu torturador predileto, o coronel Brilhante Ustra

Não se sabe se Simon, ao melhor estilo FHC, esqueceu o que escreveu, ou obliterou o que pensava. O fato é que o texto foi tão notável que, logo após ser recebido na redação no Rio de Janeiro, o gabinete do senador recebeu em retribuição um telefonema agradecido do então diretor de redação de O Globo, Ascânio Seleme, que elogiou: “Parabéns, senador, pelo senso de oportunidade e pela contundência do artigo”. Dezoito anos depois, ao declarar seu inesperado apoio crítico ao capitão que sempre defendeu a morte, a tortura e os seus executores, o ex-senador mostrou aos seus admiradores que tinha perdido o senso de oportunidade, a contundência e a coerência.

A admiração de velhos companheiros da luta contra a ditadura foi gravemente atingida pela súbita conversão de Simon ao Jair Messias da violência e da estupidez. Um dos mais chocados foi um histórico fundador do MDB, o advogado João Carlos Bona Garcia, que ingressou na guerrilha aos 17 anos, dois anos após o golpe de 1964, como militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), integrada entre outros por Carlos Lamarca e Dilma Rousseff. Participou de duas ações da VPR no Sul atacando carros pagadores do Banco do Brasil e do Bradesco. Bona Garcia acabou preso, torturado e, no final de 1970, banido do país quando 70 prisioneiros políticos foram libertados depois do sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bücher no Rio de Janeiro.

Em três décadas, os caprichos da história viraram o mundo de Bona Garcia de cabeça para baixo. Na democracia, o subversivo caçado pela repressão, odiado pelos militares e desterrado pela ditadura virou subchefe da Casa Civil do governador Pedro Simon, em 1986, e chefe da Casa Civil doze anos depois do governador Antônio Britto. Em 1998, o ex-assaltante de banco tornou-se executivo de banco: foi diretor do Banrisul, o banco estatal gaúcho, e presidente do Sindicato dos Bancos do RS. O ex-preso político Bona Garcia, naquele mesmo ano, foi indicado juiz da justiça militar gaúcha e, em 2002, o ex-torturado alcançou a presidência do Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul.

A vida não é só eleição

As reviravoltas da vida não fizeram Bona Garcia, como Simon, perder o sentido de orientação política, nem desnortearam seus princípios éticos, nem turvaram sua memória. Em 15 de outubro de 2018, quatro dias após a perturbadora entrevista de Simon à Zero Hora, Bona Garcia contrariou o seu amigo e companheiro de partido para não contrariar sua própria consciência e sua história.

Condenando o que chamou de “cheque em branco do MDB” ao capitão, Bona Garcia, mesmo fazendo críticas ao PT, abriu o seu voto em Fernando Haddad. E deu uma explicação ao repórter Luís Eduardo Gomes, do site Sul21, que certamente encharcou Simon de vergonha. Disse Bona Garcia, em tons proféticos:

Acho que a vida não se restringe a uma eleição. Porque você vai estar dando um cheque totalmente em branco a um candidato que todo mundo conhece, suas posições sempre foram muito ruins para a democracia — uma pessoa racista, preconceituoso em relação às mulheres, apoiou e apoia ainda a ditadura militar que houve no País, apoiou e apoia a tortura, defende os torturadores. Todo mundo conhece isso.

O Bolsonaro tem anos e anos de vida parlamentar e todo mundo conhece a posição que ele tem, o que ele pensa sobre todos os problemas da vida nacional.

Do passado, do presente e do que pensa para o futuro.

Ele pode agora, como é época de eleição, vestir uma roupagem de conciliador, prometer unir o País, porque ele também quer votos.

Então, ele vai se apresentar como um moderado para ter os votos do pessoal mais de centro.

Agora, a vida dele não é essa. O posicionamento dele não é esse.

O que ele vai fazer, sabe-se lá o que é.

Mas você não pode comprar o Bolsonaro pelo que ele foi a vida toda.[3]

Simon ficou com Bolsonaro, Bona Garcia e Brum Torres ficaram com a ética

Uma nova e lamentada baixa nas fileiras históricas do MDB veio com o protesto veemente de outro fundador do partido, o filósofo João Carlos Brum Torres, que foi secretário estadual de Planejamento dos Governos Antônio Britto (1995-1999) e Germano Rigotto (2003-2007). Mestre em Filosofia pela Universidade de Paris, doutor em Ciência Política pela USP, com pós-doutorado em Ciência Política pela Universidade de Berkeley (EUA), Brum Torres mostrou, aos 72 anos, o que Simon não demonstrou aos 88: consciência política.

Cinco dias após a desastrada entrevista do ex-senador, e um dia após o público puxão de orelhas de Bona Garcia, Brum Torres avançou o sinal e, em protesto veemente, anunciou sua desfiliação do MDB, o único partido de sua vida.

Saiu com requintes de crueldade, explicando:

Vou sair porque achei grotesco o MDB sair correndo para se atirar nos braços de Bolsonaro. 

Pode ter sido pragmatismo eleitoral, mas para tudo existe limite.

Um homem que escolhe como livro de cabeceira a obra de um torturador como Brilhante Ustra contraria os princípios nos quais eu acredito.[4]

Pedro Simon levou 32 anos para construir, em quatro mandatos consecutivos de senador em Brasília, uma merecida mística de campeão da ética, de crítico do regime militar, de inimigo da corrupção, de arauto contra a impunidade, de pregoeiro da luta contra todas as injustiças, escorado em fundas convicções católicas e sincera devoção franciscana.

O show do ectoplasma

Ninguém definiu melhor o dramático, teatral contorcionismo gestual de Simon na tribuna, no palanque e nas palestras do que o seu velho parceiro de política, Ulysses Guimarães, na “Ode ao Campeão”, publicada em um livro biográfico:

Há bons oradores, populares ou parlamentares.

Simultaneamente, bom no palanque e bom na tribuna, no Brasil só conheço um: Pedro Simon.

No palanque, fica em transe.

Dá ‘show’, mágica sessão de ectoplasma.

Possesso, funde-se com a multidão, rege o silêncio e o aplauso.

Fala com a goela, com os olhos, com as mãos, com o tórax convulso, baila com as pernas. Campeão da tribuna e do microfone.[5]

Simon, por Ulysses: “show, ectoplasma, transe, possesso, fala com a goela, os olhos, as mãos, o tórax convulso”

Em dezembro de 1976, ainda como deputado estadual e presidente do MDB gaúcho, Simon fez o discurso mais emotivo e forte do enterro de João Goulart, na volta derradeira a São Borja, sua terra natal, doze anos depois do golpe militar de 1964 — o golpe sempre louvado pelo capitão que Simon abençoou como candidato em 2018. Único presidente da História brasileira a morrer no exílio, Jango incomodava até mesmo num caixão.

“Jango era um grande estorvo para os militares, eles não queriam que ele voltasse nem morto. Jango era querido pelo povo. Havia uma multidão espontânea acompanhando seu caixão quando chegou a São Borja. A multidão se amontoou, baixou o caixão do carro funerário e o levou para a igreja, desafiando aos militares que queriam enterrá-lo às pressas. O povo não parecia ter medo”, lembrou Simon 37 anos depois do enterro ao repórter Darío Pignotti, do jornal argentino Página 12.

Simon revelou ao jornal de Buenos Aires que, antes do sepultamento apressado, procurou o comandante do III Exército em Porto Alegre, general Fernando Belfort Bethlem, solicitando uma autópsia no corpo do presidente. O general, sem dar maiores explicações, recusou o pedido.[6] Hoje, o Brasil ainda espera pela autópsia do voto de Simon em Bolsonaro, capaz de dissecar as vísceras que revelem as razões mais entranhadas dessa carcomida opção eleitoral do velho senador.

Simon em São Borja, 1976, no enterro de Jango:  o auge da emoção. Gen. Bethlem: sem autópsia

Como naquele dia sombrio em São Borja, os brasileiros se acostumaram anos depois a acompanhar semanalmente em Brasília, pelas imagens da TV Senado, as teatrais, performáticas exibições de Simon na tribuna do Senado, falando sobre tudo e sobre todos. Geralmente discursava às segundas e sextas-feiras, quando os outros senadores ainda não tinham chegado ou já haviam deixado a capital, e o microfone era destravado para as longas, fluviais intervenções do senador gaúcho, liberado da ditadura do relógio e das restrições do regimento da casa.

O silêncio de cemitério

É natural, portanto, que os brasileiros estranhem o inusitado, estrondoso silêncio que o habitualmente loquaz político gaúcho, mesmo sem tribuna, mantenha nos últimos dois anos, os mais trepidantes e assustadores desde o fim da ditadura em 1985. A aberrante presidência do capitão Jair Bolsonaro, regalado antes da eleição com o explícito apoio crítico do sempre rigoroso Simon, é um prato cheio para a língua afiada do ex-senador. Seja pela economia destrambelhada de seu ministro Paulo Guedes, ou pela aloprada política de combate ao ‘globalismo marxista’ do ex-chanceler Ernesto Araújo, ou pela gestão piromaníaca do ministro que derruba florestas e polui o meio-ambiente, Ricardo Salles.

Junte-se a isso a língua solta e o raciocínio travado do pior presidente da República brasileira, hoje o chefe de Estado mais polêmico e detestado no mundo, por sua figura tosca, ignorante, rombuda, boçal, que ataca mulheres, ofende jornalistas, afronta magistrados, destrata governadores e prefeitos, prega o armamentismo, incentiva os bandoleiros milicianos, alimenta o fundamentalismo religioso, desacata o bom-senso, deprime os brasileiros e envergonha o Brasil no mundo.

Tudo isso, além da doentia, neurastênica aversão de Bolsonaro à ciência, à medicina e às recomendações básicas dos especialistas – como o uso de máscara e o respeito ao distanciamento social – no combate à maior crise sanitária da história. Mais do que folclórica, sua esquizofrênica obsessão pela cloroquina e outras nulidades terapêuticas se soma à absoluta letargia pelo círculo de morte e dor que se alastra, sem controle, pelo país angustiado, sitiado pelo Covid-19 e pela inércia de um governo abilolado.

A falta de empatia do capitão, fator marcante de sua personalidade psicopata, mas previsível em um declarado “especialista em matar”, ficou ainda mais flagrante na quinta-feira, 29 de abril de 2021, quando o Brasil ultrapassou a dolorosa marca dos 400 mil mortos – o segundo maior do mundo, só atrás dos Estados Unidos. Como sempre, um detalhe que trombou com o silêncio pétreo de Bolsonaro, fiel ao seu mantra favorito: “E daí? ”

Pedro Simon e a gargalhada demente de Jair Bolsonaro: o mesmo e cruel silêncio de cemitério de 400 mil vidas

O mórbido mutismo do capitão, diante de tanta morte, já não assombra mais ninguém, todos habituados ao riso catatônico, à gargalhada convulsiva que Bolsonaro se deleita em exibir na proporção em que cresce a escala de mortos. O que espanta, de fato, é que toda essa tragédia humanitária conflui para o silêncio solidário de quem nunca se calou, de quem sempre tudo falou: Pedro Simon. Não seria por falta de assunto, com certeza, que o velho senador se calaria agora, diante da pauta irrecusável de sandices e patifarias que se renova diariamente no desgoverno Bolsonaro. A única explicação para a cúmplice pasmaceira de Simon é que ele continua um passivo refém de seu apoio crítico.

Crítico, esse apoio nunca foi, diante de tanta coisa a ser criticada e sempre sufocada. O apoio, apesar de tudo isso, persiste pelo silêncio teimoso, inexplicável, que agora trava a língua do “ex-Simon”, conforme a ferina definição que o senador um dia recebeu do jornalista Josias de Souza, colunista do UOL e da Folha de S.Paulo. Para um político que se notabilizou durante tanto tempo como o grilo falante da consciência nacional, o gritante mutismo de Pedro Simon simboliza a erosão ética que hoje corrói a figura pública que, no passado, foi o retrato tonitruante da oposição mais altiva, corajosa, intimorata contra a ditadura. O atual comportamento flácido do ex-senador, diante de tanta iniquidade, contaminou a dobradiça reunião da cúpula do MDB em Osório, no início de abril, que apenas reflete a licenciosa aderência de Simon a Bolsonaro.

É triste ver, num personagem tão carismático da política brasileira, a indecisão ou a imprecisão de atitudes que degeneram sua imagem pública. É mais comum que grandes líderes, à medida que envelheçam, se tornem mais sábios, mais transcendentais, mais decisivos.

A aliança com o demônio

Pedro Simon era um guri, em junho de 1941, com apenas 11 anos completados cinco meses antes. Naquele verão do hemisfério norte, a noite abafada de sábado prometia um domingo quente na fronteira oriental da Polônia, invadida dois anos antes pelas tropas de Hitler, no início das hostilidades da II Guerra Mundial (1939-1945). O inferno vivido pelos poloneses escancarou-se, ainda pior, para os soviéticos que viviam nas repúblicas da Ucrânia, Belarus, Lituânia e Letônia, às 3h15 da madrugada de 22 de junho de 1941, quando uma barragem de artilharia clareou a escuridão de todas as fronteiras com fogo e pólvora, dando início à maior operação militar da História — a invasão nazista da União Soviética.

Para essa empreitada, Hitler mobilizou nove exércitos, 225 divisões, 10 mil tanques, 4 mil caças e bombardeiros, 750 mil cavalos e 4,5 milhões de homens —  uma força militar dez vezes maior do que o Grande Armée que Napoleão reuniu em 1812 para o frustrado plano de conquistar a Rússia do imperador Alexandre I.[7]

Ao raiar daquela manhã de domingo, 22 de junho, o secretário particular John Colville, diante da importância da notícia, ousou despertar o premier inglês Winston Churchill na residência oficial de Downing Street, 10, para confirmar a invasão da União Soviética. Desde a véspera seu chefe recebia nervosas informações da Inteligência britânica sobre a crescente concentração de tropas alemãs na fronteira.

Ao ouvir a boa nova, que trazia Stálin para a aliança contra Hitler, Churchill respondeu com um largo sorriso de satisfação. Era assim mesmo uma reação surpreendente do principal líder conservador do mundo, que construiu sua carreira política como histórico adversário das esquerdas e, principalmente, dos bolchevistas. À noite, em um discurso especial no rádio pelo poderoso microfone da BBC, o bulldog britânico reforçou para o mundo:

Ninguém foi um oponente mais consistente do comunismo nos últimos vinte e cinco anos. Não direi nenhuma palavra do que falei sobre isso. Mas tudo isso se desvanece diante do espetáculo que agora se desenrola. O passado, com seus crimes, suas loucuras, suas tragédias, desaparece … O perigo russo é, portanto, nosso perigo, e o perigo dos Estados Unidos, assim como a causa de qualquer luta russa por um lar é a causa da liberdade de homens e povos livres em todos os quadrantes do globo.

Churchill não repetiu no rádio o que dissera a Colville, logo após ser informado do início da grande invasão. Com o bom-humor que o caracterizava, reforçando a gravidade histórica do momento, o primeiro-ministro inglês confidenciou ao seu discreto secretário privado:

— Se Hitler invadisse o inferno, eu faria pelo menos uma referência favorável ao diabo na Câmara dos Comuns![8]

Winston Churchill, Pedro Simon e o demônio: um ‘favorável’, outro ‘apoiador crítico’

Ao fazer essa declaração privada, Churchill tinha 66 anos — idade em que Simon, meio século depois, ainda completava a metade de seu segundo mandato de senador. Naquele momento, mais do que suas idiossincrasias ideológicas, o líder do Reino Unido mostrava a aguda percepção e a grandeza histórica que o elevaram à condição de maior britânico de todos os tempos, em eleição promovida em 2002 pela rede BBC – à frente de figuras notórias como a Princesa Diana, Charles Darwin, William Shakespeare, Isaac Newton, John Lennon e o almirante Horatio Nelson.[9]

Em julho de 1999, ano em que Simon concluiu seu segundo mandato de senador, o grupo RBS e o jornal Zero Hora fizeram uma pesquisa de 1,7 milhão de votos coletados em sete semanas, com 360 urnas espalhadas pelo Rio Grande do Sul, para descobrir quem eram os 20 gaúchos mais marcantes do Século 20, o mesmo de Churchill.

Simon não aparece entre os 50 mais votados por seus conterrâneos.[10]

Entre o Churchill de 1941, com sua calibrada simpatia pelo diabo, e o Simon de 2018, apoiador crítico do satânico capitão, existe mais do que a sutileza semântica e a diferença temporal de largos 77 anos. O governante britânico soube reconhecer com determinação, na dura circunstância histórica da guerra, quem era o verdadeiro demônio a ser exorcizado. O ex-senador brasileiro não soube discernir com clareza, na polarizada refrega de uma disputa acesa no cenário eleitoral, quem era o mefistofélico vetor da truculência e do autoritarismo.

A mira certeira de Churchill apontou ao mundo quem era o verdadeiro inimigo da liberdade: o ex-cabo Adolf Hitler. A míope adesão de Simon ajudou a camuflar a fantasia verde-oliva de quem era a real ameaça à democracia: o ex-capitão Jair Bolsonaro.

Num país de poucas referências éticas e raros paradigmas morais, a desastrada declaração de Pedro Simon, às vésperas de uma incerta disputa eleitoral, funcionou como um crime de lesa-memória, ou lesa-pátria, por dissimular o genuíno abismo que se abria no plano da democracia com a eleição de um livre atirador de convicções fascistas, de ideário regressista e promessas extremistas, agravadas pela congênita ignorância e pelo rombudo negacionismo que amplificaram a dor e as mortes na mais grave crise sanitária da história.

Simon conhecia a folha corrida de Bolsonaro, o que o impedia de conceder seu louvado apoio. O veterano comandante do MDB tem a experiência política para analisar, com a frieza da idade e a sabedoria da vida, o crítico desempenho do capitão na trágica metade de seu mandato. Assim, a surpreendente, abjeta declaração eleitoral de Simon, antes do segundo turno de 2018, ficou reduzida ao apoio, sem qualquer valor crítico, o que rebaixa e deprime a biografia do senador no ocaso de sua carreira pública, no estertor de seus 91 anos de vida, comemorados em 31 de janeiro passado.

O bobalhão mascarado na praça

Pedro Simon, que era exemplo de conduta e atitude para jovens que o tinham como farol e linha reta na política, acabou descarrilando no tramo final de uma jornada que parecia segura e reta. De repente, como se fosse um Ricardo Salles qualquer, o sábio senador abriu a sólida porteira de ética de sua vida pública e deixou passar, num atropelo, a boiada da truculência desatinada de uma tropa sem freios e sem juízo que segue, bovinamente, o berrante de seu messias. O apoio crítico de Simon podava, a partir dali, o receio de quem ainda tinha um certo constrangimento, um pudico recato em declarar seu voto num capitão tão rugoso, tão áspero, tão achavascado. Com a porteira da ética escancarada, Simon, ostentando o flamante distintivo de sua pregressa autoridade moral, abriu passagem para a boiada da estupidez bolsonarista.

Nada retrata melhor o estágio de apodrecimento da política bolsonarizada do Rio Grande do Sul do que um fato público e deprimente ocorrido em Porto Alegre, no feriado de quarta-feira, 21 de abril, Dia de Tiradentes. Uma passeata a favor do presidente Bolsonaro acontecia, como de hábito, na avenida Goethe, no Parque Moinhos de Vento, bairro de alta classe média.

De repente, entre as pessoas fantasiadas de verde-e-amarelo, com as tradicionais faixas pedindo golpe de Estado e a exótica ‘intervenção cívico-militar com Bolsonaro’, apareceu algo diferente, em tom marrom: um imbecil coberto com uma capa e um capuz em forma de cone e duas aberturas para os olhos. Se a cor fosse branca, seria um perfeito exemplar da Ku Klux Klan, o grupo de supremacistas brancos surgido no sul dos Estados Unidos, logo após o final da Guerra Civil, em 1865, com seu discurso de ódio, cruzes em fogo, linchamentos de negros, enforcados e pendurados em árvores, e persistente pregação fascista.

Essa horda de celerados chegou ao pico da agitação, nos Estados Unidos, logo após a Primeira Guerra Mundial e antes da Grande Depressão, no período de 1920-1925, arrebanhando multidões ensandecidas de até 4 milhões de fanáticos. Pois um ridículo herdeiro deles, nesse feriado de Tiradentes, estava lá, no endereço mais tradicional do bolsonarismo de raiz da capital gaúcha. Armado de um microfone, o exótico exemplar do racismo importado, carinhosamente tratado pelos manifestantes como ‘Carrasco’, bradava na praça do Moinhos de Vento: “O que nós viemos fazer aqui, gente? Viemos acabar com o comunismo… Alguém quer o comunismo aqui ainda? ”. E os bolsonaristas, divertindo-se com a cena patética, respondiam num coro desafinado: “Nãããããooooo!”. Em volta do mascarado, nas árvores da praça, pendiam bonecos enforcados. Negros, claro.

Ninguém da civilizada e branca sociedade de Porto Alegre mostrou pública indignação ou revolta com essa exibição pública de estupidez – nem mesmo o ex-senador Pedro Simon. Os únicos a reclamar foram cinco negros – os vereadores Bruna Rodrigues e Daiana dos Santos (do PCdoB), Karen Santos e Matheus Gomes (do PSOL) e Reginete Bispo (do PT) –, integrantes da bancada afrodescendente da Câmara Municipal de Porto Alegre, que na sexta-feira, 23, registraram um boletim de ocorrência contra os organizadores da manifestação na Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância.

Porto Alegre: um imbecil, fantasiado de Ku Klux Klan, replica o racismo made in USA, com a marca da SS nazista

O grau de erosão ética da política no sul do país, como em outras capitais e Estados brasileiros, pode ser constatado pela naturalidade com que um bobalhão, fantasiado com a roupa exótica de um movimento estrangeiro, racista e radical, aparece numa praça tradicional de Porto Alegre e faz livremente, sem qualquer contestação, sua pregação de ódio, agora mais preocupado com os comunistas do que com os negros. A brandura com que se recebe tais manifestações de estupidez dá uma boa medida do grau de letargia ou apatia com que a sociedade, cada vez mais inerte ou cúmplice, acata o que antes era repelido com nojo e indignação.

Só isso explica a sonolência da política gaúcha para a manifestação da cúpula do MDB, em Osório, admitindo como ‘OK’ ter bolsonaristas entre os filiados do MDB, legenda que lutou contra a ditadura defendida por Bolsonaro. Uma derramada desfaçatez que começou lá em novembro de 2018, com a cínica declaração de Pedro Simon em apoio ao capitão da truculência, hoje impávido e galhofeiro, insano e frio diante da morte massiva de 400 mil brasileiros.

A afinidade perturbadora

Nesse sanatório geral em que internaram à força o Brasil e seu povo, é importante notar as semelhanças e diferenças que existem entre as cidades de Osório, em abril de 2021, e Wannsee, em janeiro de 1942.

Osório, no litoral gaúcho, é conhecida como a ‘Cidade das Lagoas’, coração de uma rede de 23 lagoas, muitas delas interligadas, e a ‘Cidade dos Bons Ventos’. São eles que amenizam o calor da primavera, compensando o termômetro elevado mesmo em abril.

Wannsee, 20 km a sudoeste da capital alemã, Berlim, se derrama placidamente sobre dois lagos, alimentados pelo rio Havel, com um centro de diversões aquáticas e uma das praias internas mais extensas da Europa. As diversões ali se congelam em janeiro, o mês mais frio do ano, quando a temperatura chega à média de 3 graus negativos.

A Osório de 2021 é, portanto, bastante diferente da Wannsee de 1942. Na cidade gaúcha, em 10 de abril, três próceres políticos, com as vestes despojadas do clima quente, gastaram quatro horas de uma conversa relaxada e franca, animada por um almoço, para carimbar como simples “tática eleitoral” a submissão de um grande partido, de história e tradição, a um aventureiro de visão militarista e credo de extrema-direita na luta pelo supremo cargo de presidente da República.

Na Wannsee de 1942, um número cinco vezes maior, todos homens, com roupas grossas e capas pesadas para enfrentar o frio, se reuniram de forma mais breve e acelerada numa grande mansão de três andares, uma villa, às margens do Grosser Wannsee, o lago maior do distrito. Em vez dos arrastados 240 minutos da quente Osório, o grupo da gélida Wannsee resolveu e discutiu suas questões em contados 90 minutos daquele sinistro 20 de janeiro de 1942 .

O mentor do encontro era o tenente-general Reinhard Heydrich, chefe do temido RSHA, o Escritório Central de Segurança do Reich, que controlava a Gestapo. Ele convocou os 14 homens que seriam os principais responsáveis pela organização, transporte, logística e execução da chamada ‘Solução Final’, o nome elegante e dissimulado que aqueles executivos da morte davam para a eliminação física dos judeus da Europa.

Havia ali sete militares, todos integrantes da SS, e oito civis com formação de doutorado. Apesar disso, eram todos – como se gaba o capitão Bolsonaro – especialistas em matar.                                             

A villa do Lago Wannsee: 15 homens dão o seu apoio crítico à ‘Solução Final’ do Holocausto do Reich de Hitler

Heydrich convocou para secretário da Conferência de Wannsee um metódico tenente-coronel da SS que tinha um especial talento para burocracia: Adolf Eichmann, o oficial assustadoramente normal que impressionaria Hannah Arendt duas décadas depois no julgamento de Jerusalém. A reunião, de fato, teve o objetivo de unificar todos os departamentos do Reich numa política integrada de extermínio, que já acontecia na prática. Eram executivos tratando friamente, como o inverno que açoitava a villa do lado de fora, um plano pan-europeu de genocídio. Ao final do encontro, definidos os princípios técnicos necessários para o extermínio, Heydrich deu a Eichmann as instruções sobre o que deveria constar da ata da conferência: nada verbal, nada explícito. “Certas conversas e jargões em excesso tiveram de ser traduzidas por mim em linguagem de escritório”, reconheceu Eichmann, burocraticamente, no tribunal de Jerusalém.

A intenção implícita da conferência convocada por Heydrich era garantir que, pela simples presença em Wannsee, todos os presentes do mecanismo de morte do Reich fossem cúmplices e acessórios dos assassinatos que estavam prestes a acontecer. Quando encerrou o encontro, satisfeito com o consenso macabro atingido sem maiores discussões, Heydrich relaxou – e se aqueceu com um conhaque.

Existem flagrantes diferenças na época, no clima, na temperatura, na duração, no número de participantes e nos objetivos das reuniões da brasileira Osório e da germânica Wannsee, distantes 11 mil km uma da outra e separadas por quase 80 anos no tempo.

Mas, existe uma única, uma gritante, uma perturbadora afinidade entre a longa conversa de quatro horas dos três chefes do MDB sulista e o rápido encontro de 90 minutos dos 15 comandantes da cúpula de execução do III Reich. Em Osório e em Wannsee, por razões diversas, por motivos diferentes, por circunstâncias muito singulares, sobrevoou o local e seus participantes o espectro assustador que Hannah Arendt detectou em Jerusalém: a banalidade do mal.

Na paz, como na guerra, alguns homens lidam com as causas e os efeitos de suas decisões anestesiados para as consequências éticas e morais que tornam a humanidade melhor ou pior. Por erro de julgamento, por equívoco acidental ou por deliberada intenção, atos e fatos marcam para sempre o destino de pessoas, de grupos, de corporações, de Estados e de povos inteiros, definindo a marcha da História.

Nesse processo, o homem sempre perde o passo quando sucumbe à banalidade do mal.

E compromete sua humanidade quando é corroído, por dentro, pelo mal da banalidade.

*Luiz Cláudio Cunha, jornalista, é gaúcho de Caxias do Sul, como Pedro Simon, e nunca apoiou Jair Bolsonaro.
cunha.luizclaudio@gmail.com

 

REFERÊNCIAS

[1] ARENDT, Hanna. Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil. . Nova York: Viking Press, Penguin Group, 1963, p. 276.

[2] SIMON, Pedro. “Não se anistia o nazismo. Nem a tortura”. O Globo. Opinião, p. 2. Publicado em 28 de abril de 2010. https://www.oabrj.org.br/noticias/artigo-nao-se-anistia-nazismo-nem-tortura-pedro-simon. Acesso em 26/4/2021.

[3] BONA GARCIA, João Carlos. “Bona Garcia, fundador do MDB-RS, lamenta apoio a Bolsonaro e abre voto em Haddad”. Entrevista a Luís Eduardo Gomes. Publicado no site SUL21, em 15/outubro/2018. https://www.sul21.com.br/entrevistas-2/2018/10/bona-garcia-fundador-do-mdb-rs-lamenta-apoio-a-bolsonaro-e-abre-voto-em-haddad/ Acesso em 31/03/2021.

[4] BRUM TORRES, João Carlos. “Por apoiar Bolsonaro, MDB-RS perde um filiado histórico”. In Coluna de Rosane de Oliveira. Publicado em Zero Hora, 16/outubro/2018. https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/rosane-de-oliveira/noticia/2018/10/por-apoiar-bolsonaro-mdb-rs-perde-um-filiado-historico-cjnc3yi0d05is01pirxu4i98c.html Acesso em 31/03/2021.

[5] DUARTE, José Bacchieri. A fascinante história de Pedro Simon: Sua vida. Seu tempo. “Ode ao Campeão”, p. 13-15. Porto Alegre: Ed. AGE, 2001.

[6] PIGNOTTI, Darío. “Un testimonio en el caso Goulart”. Publicado no jornal Pagina 12, em 13 de dezembro de 2013. https://www.pagina12.com.ar/diario/elmundo/4-235550-2013-12-13.html. Acesso em 21/01/2021.

[7] CLAUSEWITZ, Carl Phillip von (1780-1831). A campanha de 1812 na Rússia e as Guerras de Libertação de 1813-1815 (Der feldzug 1812 in Russland und die befreiungskriege von 1813-15), p.52. Berlim: Ed. F. Dümmler, 1906.    

[8] ZIMMERMAN, Dwight Jon. “Churchill’s Deal with the Devil: the Anglo-Soviet Agreement of 1941. Publicado no Defense Media Network, em 12 de julho de 2011. https://www.defensemedianetwork.com/stories/churchills-deal-with-the-devil/. Acesso em 23/04/2021.

[9]BBC News, em 21 de agosto de 2002. 100 Great British heroes. Publicado em ordem alfabética em  http://news.bbc.co.uk/2/hi/entertainment/2208671.stm. A lista em ordem numérica está publicada em https://en.wikipedia.org/wiki/100_Greatest_Britons.  Acessos em 15/04/2021.

[10] Entre os 20 mais votados, nomes conhecidos como os dos ex-presidentes Getúlio Vargas e João Goulart, o poeta Mário Quintana, o escritor Érico Veríssimo, os cantores Teixeirinha e Elis Regina, a Miss Universo Ieda Maria Vargas e o compositor Lupicínio Rodrigues. Entre os 50 mais citados, aparecem Leonel Brizola, Luiz Carlos Prestes, os jogadores Tesourinha e Everaldo, o escritor Barão de Itararé e a apresentadora Xuxa.  In “Lista dos 20 gaúchos que marcaram o século XX, segundo o jornal Zero Hora”. Publicado https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_dos_vinte_ga%C3%BAchos_que_marcaram_o_s%C3%A9culo_XX_segundo_o_jornal_Zero_Hora. Acesso em 15/04/2021.

A morte quase obscura de um líder exemplar no país do capitão cafajeste

Luiz Cláudio Cunha*                                                               

A notícia, incompleta, saiu quase escondida na edição impressa de quarta-feira, 13 de janeiro de 2021, do maior jornal brasileiro. “Morre Alencar Furtado, ex-deputado cassado pela ditadura”, informou secamente a Folha de S.Paulo, numa única coluna de 30 linhas e 144 palavras, espremidas no canto inferior da sétima página do primeiro caderno, distante da honra da primeira página do dia.

As duas manchetes principais da A7 foram dedicadas a um candidato azarão de nome irrelevante na disputa pela Câmara dos Deputados e a uma nova investida da Lava Jato sobre propinas ao filho de um ex-ministro.

A “nossa pátria mãe tão distraída”, como acusa o verso de Chico Buarque em Vai Passar, não se apercebeu que, na madrugada de segunda-feira, 11, morria simplesmente um dos gigantes da política brasileira e da luta contra a ditadura. Não era apenas um “ex-deputado cassado”, que morria de insuficiência renal aos 95 anos, em sua casa em Brasília, onde se recuperava de um AVC (acidente vascular cerebral) sofrido pouco depois do Natal.

Alencar era muito mais do que isso: na condição de líder do MDB na Câmara dos Deputados, foi o último dos 4.682 cassados pelo regime militar de 1964, o 173º parlamentar castigado pelo AI-5 no espaço de 13 anos. Foi a 36ª cassação do Governo Ernesto Geisel, o derradeiro ato punitivo do quarto general-presidente, em 30 de junho de 1977, antecipando-se à linha-dura militar irritada pela histórica aparição de Alencar três dias antes em rede nacional de TV, tocando num tema sensível para o aparato repressivo do regime: a tortura e o desaparecimento de presos políticos.

O fim irrisório de um gigante: Alencar morre, quase oculto, em 30 linhas de uma remota página interna

O MDB havia descoberto uma brecha na lei restritiva da ditadura que permitia um único programa de 40 minutos, gravado, em rede nacional obrigatória de TV para debate de assuntos partidários. Quando o regime percebeu a manobra, tentou sustar no TSE, mas a Justiça Eleitoral garantiu a sua realização. Para aproveitar bem aquela nesga de luz nas telas censuradas da TV dos brasileiros, o MDB escalou seus quatro principais comandantes. Na transmissão, o presidente, deputado Ulysses Guimarães, condenou o AI-5. O líder no Senado, Franco Montoro, centrou fogo no alto custo de vida. O presidente do Instituto Pedroso Horta, deputado Alceu Collares, criticou o arrocho salarial. O líder na Câmara, Alencar Furtado, por fim, avançou corajosamente na delicada questão dos direitos humanos, produzindo uma das peças mais contundentes, líricas, inesquecíveis da história política brasileira.

Na noite de segunda-feira, 27 de junho, com a voz eloquente de advogado curtido em mais de 400 juris populares e a expressão seca de um rosto marcado desde criança pelo sol inclemente do semiárido cearense, Alencar despontou no horário nobre da TV, antes do Jornal Nacional, dizendo o indizível, atacando o inatacável, eternizado nesse trecho:

Sempre defendemos os direitos humanos. Hoje, menos do que ontem, ainda se denunciam prisões arbitrárias, prisões injustas e desaparecimento de cidadãos. O programa do MDB defende a inviolabilidade dos direitos da pessoa humana, para que não haja lares em prantos, filhos órfãos de pais vivos — quem sabe? — mortos, talvez. Órfãos do talvez ou do quem sabe. Para que não haja esposas que enviúvem com maridos vivos, talvez, ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe e do talvez.

 

Uma rua, dois cassados

Os profissionais de sangue e tortura dos DOI-CODI, que em seus porões de trabalho produziam aqueles órfãos, quem sabe?, e aquelas viúvas, talvez, detestaram a imprevista tirada poética de Alencar. No dia seguinte, 28, perguntado sobre o programa, o chefe do SNI, general Joao Baptista Figueiredo, respondeu: “Vi. Não gostei e acho que ninguém gostou.” Mas, nem o SNI que o general comandava se incomodou muito. No texto da Apreciação Sumária Nº 25, que o Serviço Nacional de Informações distribuiu a Geisel e aos principais gabinetes do Planalto na manhã de quarta-feira, 29, dois dias após a transmissão da TV, o programa do MDB foi citado superficialmente e a lancinante intervenção de Alencar acabou resumida em treze palavras irrisórias.[1] Quem acreditasse no SNI poderia, talvez, imaginar até que Alencar poderia se safar, quem sabe.

Apesar do descuido do araponga, o destino do líder do MDB já não dependia de um talvez, mas de quem sabia. Na tarde daquela quarta-feira, o ministro da Justiça, Petrônio Portella, telefonou para o secretário-geral do MDB, deputado Thales Ramalho, para confirmar o que se previa: “Thales, vamos ter reação”. Pediu que contasse apenas a Ulysses, mas fora do prédio do Congresso, indício claro de que o lugar deveria estar grampeado pelo SNI. Mais tarde, no seu apartamento, Thales antecipou a informação ao presidente do MDB.  “Vamos ter a cassação do Alencar”. Ulysses devolveu com outra pergunta, que denunciava os temores que sobrevoavam Brasília nas últimas horas: “Só do Alencar?”.[2]

A boataria dizia que uma dezena de oposicionistas, incluindo todos os quatro participantes do programa, seriam punidos. O alvo central era o líder da Câmara, que além de invadir o terreno proibido dos órfãos e viúvas, tinha pronunciado em seu mandato cerca de 40 discursos da tribuna com denúncias de torturas e críticas à política econômica do governo. Várias vezes, Alencar cobrou em seus discursos o desaparecimento do deputado Rubens Paiva, preso em janeiro de 1971 pela Aeronáutica, no Rio de Janeiro, torturado e morto no DOI-CODI carioca e até hoje desaparecido.

O ministro do Exército, Sylvio Frota, como Figueiredo, também viu e não gostou do MDB na TV. Na manhã de quinta-feira, 30, Frota mandou o telegrama 665 aos quartéis dizendo ter informado a Geisel sobre a repercussão negativa do programa, que ele classificava como “uma ação comunista para atacar os brios das Forças Armadas”.[3] O Planalto previa que a cassação do líder mais aguerrido da oposição teria repercussão internacional, e seria um abalo ainda maior se fosse punido também o presidente nacional do MDB. No último momento, Geisel tirou Ulysses da mira e trocou sua iminente cassação por um processo na justiça eleitoral, como responsável pelo programa.

O procurador-geral da República, Henrique Fonseca de Araújo, requisitou as fitas gravadas pela TV e abriu o inquérito naquele mesmo dia. Tempos depois, Ulysses foi absolvido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O líder do MDB na Assembleia paulista, Alberto Goldman, explicou anos mais tarde ao jornal O Estado de S.Paulo a súbita contenção de Geisel: “Ulysses só não foi cassado por seu histórico, porque sua figura tinha mais respaldo. Ele vinha do PSD, presidia a legenda e tinha uma postura mais moderada. Alencar era mais duro, incisivo, acusador. Geisel usou a cassação porque precisava enfrentar os militares radicais e mostrar que não era mole”.

A violência do AI-5 excluiu da vida pública brasileira mais do que um parlamentar duro. José Alencar Furtado era um predestinado ao combate. “Nasci no Araripe, cidade pequenina lá do Ceará. Minha cidade só tem uma rua. Mas tinha dois cassados da época da ditadura, eu e o Miguel Arraes”, contou ele.[4]

Hoje com 20 mil habitantes, Araripe, no extremo sul cearense, quase fronteira com Pernambuco, era ainda menor em 1925, quando Alencar nasceu. O menino Arraes, seu conterrâneo, nove anos mais velho, saiu da cidade ainda adolescente para concluir o ginásio numa cidade próxima e maior, Crato. Os dois não se conheceram na terra natal, mas a História sangrou seus destinos pela mesma lâmina afiada da ditadura.

Miguel Arraes era o governador de Pernambuco em abril de 1964, quando foi derrubado e preso pelos militares. Na sexta-feira, 10 de abril, um dia antes da ‘eleição’ presidencial do chefe do golpe, general Castello Branco, o Comando Supremo da Revolução divulgou o primeiro listão de cassados pelo regime militar. Eram exatos 100 nomes, uma lista aberta pelo líder comunista Luís Carlos Prestes e pelo ex-presidente João Goulart, além de 40 deputados federais. O ex-governador Leonel Brizola ocupava o 10° posto no índex.

Assim, na linha caprichosa do tempo, os dois garotos de Araripe, curtidos pela vida do sertão, cinzelados pela disputa política e castigados pelo regime militar, acabariam abrindo e fechando o ciclo punitivo que define o arbítrio do golpe de 1964. Arraes era o 4º nome da primeira lista de 100 cassações. E Alencar acabou sendo, em 30 de junho de 1977, aos 51 anos, o último punido da longa relação de 4.682 cassados em 13 anos de ditadura.

Arraes e Alencar, os filhos de Araripe: o pioneiro da primeira lista e o último cassado pela ditadura

Quase um terço dos cassados, 1.261, eram das Forças Armadas. Já no sábado, 24 horas após o listão dos 100 primeiros, o tacape do golpe caiu sobre 122 militares legalistas que apoiavam Goulart: 77 do Exército, 31 da Aeronáutica, 14 da Marinha. No domingo, outros 62 decapitados, mais da metade deles militares.

O general cristão

A rajada de punições da ditadura era ampla, geral e irrestrita. Mais de 300 professores, quase 500 legisladores sagrados pelo voto popular – de deputados federais a estaduais, de senadores a vereadores, além de 50 chefes de Executivo, de governadores a prefeitos. Três ex-presidentes – Jango, Jânio e Juscelino – e três ministros do Supremo Tribunal Federal.

A guilhotina era democrática. Decepou diplomatas, agrônomos, procuradores, carteiros, desembargadores, motoristas, sindicalistas, escrivães, policiais, promotores públicos, juízes, taifeiros, engenheiros, telegrafistas, médicos, guardas-civis, estivadores, eletricistas, ferroviários, advogados, jornalistas, bancários, dentistas, músicos, guardas-florestais, fiscais do Imposto de Renda, serventes, auditores militares. Até garçons e porteiros! Na vesga ótica militar deviam ser grave ameaça à segurança nacional e, por isso, foram degolados na fúria revolucionária.

A lógica estúpida dos militares se sustentava na arrogância incontestável do arbítrio. Ela está expressa no primeiro ato institucional, editado pelo Comando da Revolução em 9 de abril de 1964, no alvorecer da ditadura. Nem número tinha, o que acabou depois sendo necessário pelos 17 atos e 104 atos complementares decretados em sequência até 1969, tentando dar uma fachada legal ao processo de violência institucional do golpe.

O AI-1, que 48 horas depois levou ao pioneiro listão da centena de cassados, estabelecia na sua introdução, para eliminar qualquer dúvida sobre a origem e os limites de seu inexcedível poder:

[…]A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. […]. Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.

 

No penúltimo de seus 11 autossuficientes artigos, o AI-1 firmado pelos chefes do Exército, Marinha e Aeronáutica determina, para tranquilidade geral da nação: “No interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, os Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão suspender os direitos políticos pelo prazo de dez (10) anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses atos. ”

Treze anos depois, em junho de 1977, Alencar Furtado seria o último cidadão do país punido sem qualquer apreciação da Justiça.

A nova ordem ‘revolucionária’ se bastava e não se submetia a ninguém. Tudo fazia e nunca se justificava. Em seu depoimento à Comissão da Verdade, em 2014, Alencar deu a dimensão desse estado de truculência ao lembrar a história do engenheiro Virgildásio de Senna, que tinha assumido a prefeitura de Salvador pelo PTB em abril de 1963. No abril seguinte, foi atropelado sem sutilezas pelo golpe de 1964.

No dia 5 de abril, um domingo, o prefeito da capital baiana foi almoçar com amigos. Ao voltar no início da noite para casa, no bairro do Campo Grande, encontrou a rua cercada por tropas do Exército, escoltadas por dois canhões de campanha e holofotes enormes. Ele perguntou a uma pessoa o que estava acontecendo: “Estão prendendo o prefeito”, disse o morador, sem reconhecer o prefeito ao seu lado.  Virgildásio evitou a casa sitiada e procurou logo a maior autoridade do Exército na Bahia, o general Mendes Pereira, comandante da IV Região Militar. Ali mesmo, no quartel da Mouraria, o general deu voz de prisão ao prefeito, com uma explicação surreal: “Você está preso porque somos cristãos! ”.

O general Mendes Pereira justifica a prisão do prefeito Virgildásio e dos ‘comunistas’: “Somos cristãos!”

 Alencar lembrou à Comisão Nacional da Verdade que Virgildásio foi preso, cassado pelo AI-1 e solto dias depois. Pouco antes de liberar o prefeito, um porta-voz do comando militar ocupou o microfone de uma rádio de Salvador para esclarecer os fatos, sem maiores explicações ou qualquer justificativa, com a crueza típica e arrogante daqueles novos tempos: “O prefeito Virgildásio de Senna foi preso porque tinha que ser preso. E agora vai ser solto porque tem que ser solto. Boa noite!”.

Ao longo da ditadura, as cassações se distribuíram de forma desigual.

O provisório Comando Supremo da Revolução, no exíguo espaço de 15 dias que separou o golpe da posse do primeiro general-presidente, cassou 280 pessoas, mais de 18 a cada 24 horas. Castello Branco, o primeiro general-presidente, fez a faxina mais ampla, cassando 2.927 pessoas. O segundo presidente, Costa e Silva, decepou 631 nomes da vida pública.

A Junta Militar de 1969 — formada pelos três ministros militares, que reinou sobre o país por apenas dois meses, em setembro e outubro, logo após a trombose cerebral que tirou Costa e Silva do poder — cassou nesse curto espaço de tempo 205 pessoas, uma média de 3,4 punições por dia. O terceiro presidente, Emílio Médici, o mais sanguinário do período militar, usou o AI-5 por 603 vezes. O quarto presidente, Ernesto Geisel, abrandado pela faxina punitiva mais extensa de seus antecessores, cassou 36 vezes, encerrando a série de violência revolucionária com Alencar Furtado.

A matemática do arbítrio

Essa inédita contabilidade sobre a violência ‘revolucionária’ começou a ser feita em São Paulo no início de 1977, por um trio emérito de intelectuais: os jornalistas Mylton Severiano da Silva (o Myltainho) e Hamilton Almeida Filho (o HAF) e o historiador Joel Rufino dos Santos, que resolveram contar, literalmente, a saga dos cassados no Brasil.  Com a ajuda da pesquisadora Beth Costa e uma equipe de quatro pessoas, foi folheada toda a coleção do Diário Oficial, página por página, desde março de 1964 até a cassação de Alencar. Foram quase três mil cópias xerox, coladas em 680 páginas, com a matemática da violência revolucionário sobre 4.682 pessoas.

De início, o levantamento se destinava a um livro, que teria o título de Os Cassados. Mas acabou formatado para uma revista de oposição em São Paulo, a Extra – Realidade Brasileira. Antes que fosse publicada, porém, a ditadura impôs censura prévia à publicação. Decididos a não aceitar a intervenção dos militares, os seus editores desistiram da reportagem sobre os cassados e preferiram fechar a revista. E o material coletado em São Paulo, para sobreviver, acabou tomando o rumo inesperado de Porto Alegre.

Alencar na manchete e na matéria principal do CooJORNAL: o último dos cassados em 13 anos de ditadura

A reportagem inédita de quatro páginas, com a foto de Alencar Furtado na capa, foi a manchete do mensário gaúcho CooJORNAL em julho de 1977, com grande repercussão nacional, pois o número de 4.862 cassados era muito superior ao que se sabia até então.

O jornal da imprensa alternativa era editado em Porto Alegre pela primeira cooperativa de jornalistas do país. Fundada em 1974, a CooJORNAL cresceu e, três anos depois, era integrada por mais de 300 jornalistas vivendo a utopia de uma imprensa sem patrão e sem hierarquia, respirando o ar limpo e democrático do cooperativismo na atmosfera rarefeita e sufocante da ditadura.

Aquela edição do CooJORNAL com Alencar Furtado na capa vendeu 34 mil exemplares, a maior vendagem de sua história. Sofreu então a primeira ação ostensiva da ditadura, incomodada com a crescente relevância do pequeno jornal de Porto Alegre, que ganhava destaque entre os títulos mais conhecidos da chamada ‘imprensa nanica’ – um influente nicho de jornais de esquerda, oposicionistas, insurretos, onde brilhavam publicações semanais ou mensais do centro do país como Movimento, Opinião, Versus, Em Tempo, Bondinho e o irreverente O Pasquim, um abusado semanário carioca que se multiplicou com até 200 mil exemplares nas bancas.

Inquieta com o atrevimento do CooJORNAL, a ditadura apelou para a violência camuflada, envergonhada, mas sempre letal: mandou os agentes da Polícia Federal cumprirem uma discreta agenda de visitas aos assustados anunciantes do jornal, pressionando as empresas a cancelar os poucos anúncios que sustentavam as edições sempre ousadas do CooJORNAL.

Os militares mostravam um azedume cada vez maior com a pauta criativa do jornal, que recontava episódios da história recente brasileira, dava voz aos dissidentes do regime, replicava textos de intelectuais de esquerda e ouvia personagens execrados pela ditadura, muitos deles membros ilustres da lista dos 4.862 cassados pelo arbítrio.

O mau humor dos generais pode ser resumido pelo trecho da Informação Confidencial Nº 031 da Agência Central do SNI, de 19 de agosto de 1980, três anos após a cassação de Alencar Furtado. O redator do SNI se lamuriava, no relatório, daquilo que era o exato motivo de orgulho para os associados da cooperativa:

O periódico CooJORNAL, editado pela Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, caracteriza-se por divulgar artigos hostis ao governo. Apesar de a referida publicação ter tiragem de, apenas, 35 mil exemplares, seus artigos são comumente comentados pelos demais órgãos de imprensa, e passa, deste modo, a ter repercussão nacional.

Isso é o Brasil, gente!

Os bastidores da bombástica reportagem do Coojornal mostravam o medo endêmico que permeava o país, em meados de 1977, penúltimo ano de Geisel no Planalto. Naqueles tempos sem internet, e-mail ou celular, a remessa de matérias ou filmes fotográficos de uma cidade para outra era feita de forma quase artesanal, um pouco amadora, sempre voluntária.

Um repórter procurava aleatoriamente um passageiro no aeroporto, com destino à sede do jornal ou revista, e pedia o favor de levar em mãos um envelope lacrado com o material, que seria entregue no aeroporto de destino para alguém destacado pela publicação. O passageiro dizia seu nome e fones de contato, para evitar desencontros, e o repórter no aeroporto de origem passava pelo telefone os dados do portador, dando seu nome e descrição física, como o traje que vestia, para que fosse melhor identificado na fila do desembarque, no saguão do aeroporto de destino.

Bones, o editor, Myltainho, Hamilton e Rufino, que revelaram os 4.682 cassados: esse era o Brasil da ditadura

Era um arranjo que funcionava, quase sempre, dando agilidade e segurança para o envio de material. O que podia atrapalhar era a sensação de perigo e o temor que, eventualmente, poderiam intimidar o portador, em matérias politicamente mais sensíveis. Foi o que aconteceu e quase impediu a manchete dos cassados no Coojornal, como relatou com precisão o seu editor, jornalista Elmar Bones, na carta aos leitores do número 18 do mensário, de julho de 1977:

Encomendamos a reportagem a três colegas de São Paulo que já tinham um levantamento amplo sobre o assunto. Um levantamento, pelo que sabemos, ainda não feito no país. Durante dois dias eles trabalharam sem parar. Na segunda-feira, 4, as seis horas da manhã o repórter Hamilton Almeida Filho saiu direto da máquina para o aeroporto de Congonhas. […] No voo das 8h30 da Cruzeiro, Hamilton localizou um cidadão de maneira afáveis, simpático. Era um funcionário do Ministério da Fazenda que, prontamente, aceitou trazer o envelope.

No aeroporto de Porto Alegre, era outro o homem. Nervoso, gaguejando, travou o seguinte diálogo com a pessoa que foi apanhar o envelope:

— Olha, me desculpe, eu derramei cafezinho no material, ficou inutilizado.

— Não, mas o senhor pode me dar assim mesmo. Deve dar para ler, a gente arruma…

—Mas ficou imprestável, joguei fora…

— Isso é um absurdo, como é que o senhor fez isso? O senhor sabia o que tinha no envelope? Era uma reportagem.

A esta altura o homem mudou o tom de voz e explicou:

— Aconteceu o seguinte: abri o envelope e li o que tinha dentro. Aquele assunto…. Eu sou um funcionário do governo, não podia desembarcar com aquilo. Tinha autoridades me esperando, não posso me comprometer…. Eu destruí o material. Você deve compreender a minha situação.

Tremia o homem e não havia como reclamar dele. A solução foi esperar uma cópia providencialmente guardada em São Paulo e, desta vez, remetida pelas vias normais. Ao saber do fato, inédito em sua carreira de 15 anos de jornalismo, Hamilton exclamava do outro lado da linha:

— Isso é o Brasil, minha gente!

Esse era o Brasil, gente, e tudo aquilo aconteceu antes que Alencar Furtado fosse o personagem central na primeira página do Coojornal.  O Brasil do medo era produto, também, das trapaças e embustes engendrados pelos agentes da repressão. Uma armadilha dessas levou à cassação do deputado federal Marcos Tito, do MDB mineiro, o penúltimo punido pelo AI-5, duas semanas antes de Alencar Furtado. Em 24 de maio de 1977, Tito subiu à tribuna da Câmara para fazer um duro discurso contra a ditadura. Dias depois, o deputado Sinval Boaventura, da ARENA mineira, arauto da linha-dura militar, denunciou que Tito havia, de fato, lido um manifesto do clandestino PCB (Partido Comunista Brasileiro). Em 14 de junho, três semanas após seu discurso, Tito foi cassado.

A armadilha da Aeronáutica

Ele não foi vítima de um dedo-duro, mas alvo deliberado de uma maligna farsa do serviço secreto da Aeronáutica, o CISA (Centro de Informações da Aeronáutica). A revelação foi feita 40 anos depois pelo repórter Marcelo Godoy, de O Estado de S.Paulo, que entrevistou durante cinco horas, no Clube da Aeronáutica, no Rio, um anônimo coronel, codinome ‘Paulo Mário’, que trabalhou 28 anos no Núcleo do Serviço de Informações de Segurança, a contrainteligência da Aeronáutica.[5]

O CISA foi criado e chefiado pelo brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, a face mais radical da Força. Como major-aviador, em 1959, chefiou com outros militares a fracassada Revolta de Aragarças, contra o presidente Juscelino Kubitschek, quando Burnier planejava até bombardear os palácios do Catete e das Laranjeiras, no Rio.

Em carta ao presidente Geisel, o lendário brigadeiro Eduardo Gomes definiu Burnier assim: “Um insano mental inspirado por instintos perversos sanguinários, sob o pretexto de proteger o Brasil do perigo comunista”.   

Ulysses e Tito: o penúltimo cassado pelo ardil do CISA de Burnier, o ‘insano mental’ da FAB

 Tito agora era o alvo do CISA criado pela mente perversa de Burnier. “O deputado estava assumindo uma posição que estava nos incomodando muito”, justificou o agente ‘Paulo   Mário’ ao Estadão. “Realizamos algumas operações fundamentalmente de contrainteligência muito produtivas. Nenhuma com violência, mas foram ações que você faz para expor o inimigo a uma situação ridícula, que ele não contribuiu para aquilo, para desmoralizá-lo e acabar com ele”. O ardil montado pelo CISA foi trivial. Agentes da Aeronáutica escolheram uma edição de abril de 1977 do jornal Voz Operária, órgão oficial do ilegal PCB, que era impresso na Europa e despachado por correio para o Brasil.

Aquela edição trazia um editorial do partido, que acusava o regime de usar o medo e o arbítrio como método de governo. O CISA manipulou o texto, suprimiu cinco dos seus 24 parágrafos, disfarçando a origem da manifestação, e mandou entregar o documento no gabinete do parlamentar no Congresso. O papel foi recebido por um assessor de Tito, que o repassou ao deputado. “Levamos como se fosse coisa de estudante inconformado, pedindo para ele ler no plenário da Câmara. Ele caiu e leu. Acabou levando uma ferroada, cassado e posto na rua”, contou o coronel do CISA.

Duas semanas após a cassação de Tito, quem levou a ferroada foi Alencar Furtado, em 30 de junho, cassado pela manifestação na TV sobre os órfãos e viúvas do talvez e do quem sabe. Até chegar ao seu último ato político como parlamentar, com a dolorosa honra de ser o último dos 4.682 cassados do país, o líder do MDB foi muito além de um histórico, lírico discurso de denúncia sobre torturas e assassinatos da ditadura em rede nacional de TV.

Alencar Furtado foi figura crucial para a definição do perfil mais oposicionista do MDB e sua orientação política mais aguda, na luta mais aberta contra a ditadura e seu partido, a ARENA. Na primeira eleição em 1966, cerceado pela legislação restritiva dos militares, o MDB elegeu apenas sete das 23 cadeiras de senador em disputa. Na Câmara, conseguiu conquistar só 132 cadeiras de deputado federal entre as 409 vagas em disputa.

Na eleição seguinte, em 1970, o partido da oposição encolheu. Além das cassações anteriores e do endurecimento gerado pelo AI-5, o MDB convivia com o ufanismo oficial insuflado pelo tricampeonato da seleção do Brasil no México e a euforia nascente do ‘milagre econômico’ cozinhado pelo ministro Delfim Netto. Dessa vez, elegeu apenas seis senadores e conquistou somente 87 vagas na Câmara dos Deputados. A perda avassaladora de quase 50 cadeiras do MDB no Congresso, além da repressão e das regras eleitorais viciadas, foi atribuída aos 30% de votos brancos e nulos, expressão clara do desencanto e do protesto de um eleitorado descrente.

Combativo na juventude, Alencar Furtado integrou a Esquerda Democrática, dissidência da UDN nascida logo após a queda do Estado Novo, em 1945, que deu origem ao PSB, Partido Socialista Brasileiro, fundado no Ceará com a ajuda de Alencar.

Na década de 1950, seguindo a saga dos sertanejos, Alencar migrou do Nordeste para o Sul, fincando raízes em Paranavaí, no fértil norte do Paraná.  Lá se elegeu deputado federal na primeira eleição do MDB, em 1966, sagrado com 40 mil votos. Na disputa seguinte, em 1970, reelegeu-se com o apoio consagrador de 86 mil eleitores.

O bloco do MDB na rua

Em Brasília, o pequeno gigante de Araripe, com pouco mais de 1m65 de altura, deu força e veemência ao então burocrático MDB, que seguia a férrea, mas moderada liderança de Ulysses Guimarães. Alencar assumiu o protagonismo, na bancada emedebista de 87 deputados, de um grupo mais agressivo de 23 parlamentares que ganharam o justo carimbo de ‘Autênticos’. Centravam fogo na convocação de uma Constituinte, no fim da tortura, na volta dos exilados e na anistia aos presos políticos.  Ao lado dele estavam os nomes mais intensos e críticos da esquerda do MDB, como Marcos Freire (PE), Chico Pinto (BA), Fernando Lyra (PE), Lysâneas Maciel (RJ), Freitas Nobre (SP), Alceu Collares (RS), Jaison Barreto (SC), Amaury Muller (RS), Marcondes Gadelha (PB), Nadyr Rossetti (RS), Paes de Andrade (CE), Santilli Sobrinho (SP) e Marcos Tito (MG).

Foi de Alencar e seu grupo a ideia mobilizadora de uma anticandidatura presidencial, desafiando a ‘eleição’ de cartas marcadas do general Ernesto Geisel no Colégio Eleitoral, em janeiro de 1974. A ideia era percorrer o país para denunciar o paradoxo de uma eleição sem povo e a farsa de uma disputa sem adversário. O MDB, tangido pelos Autênticos de Alencar, iria sair do conforto dos gabinetes para sentir o clima irrespirável das ruas.

Na convenção do MDB que lançou o anticandidato, em setembro de 1973, Ulysses advertiu ao país:

[…] Não é o candidato que vai percorrer o país. É o anticandidato, para denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição que homizia o AI-5, submete o Legislativo e o Judiciário ao Executivo, possibilita prisões desamparadas pelo habeas corpus e condenações sem defesa, profana a indevassabilidade dos lares e das empresas pela escuta clandestina, torna inaudíveis as vozes discordantes, porque ensurdece a Nação pela censura à Imprensa, ao Rádio, à Televisão, ao Teatro e ao Cinema. […]

 

A caravana do anticandidato percorreu então capitais e estados com sua bandeira de volta à democracia, eleições diretas, anistia e Constituinte. Os brasileiros form encorajados, daí, a ouvir a verdade sobre a ditadura.

Ulysses combinara com Alencar e os Autênticos que, momentos antes do início da sessão de eleição, ele renunciaria para dar mais força à denúncia da farsa. Mas, Ulysses não cumpriu o acordo e se manteve na falsa contenda até a proclamação do resultado na disputa no Colégio Eleitoral. Aí, como estava previsto, Geisel foi ‘eleito’ com 400 votos, contra 76 dados a Ulysses. Em protesto, Alencar e 20 deputados dos Autênticos presentes no Congresso se abstiveram, acusando no microfone o jogo da ditadura.

Ulysses encerrou seu perene discurso evocando os versos de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso/Viver não é preciso”. Ali, com as velas “paridas de sonho, aladas de esperança”, como disse o anticandidato, começou a longa navegação iniciada por Alencar e seus argonautas nas águas revoltas da ditadura.

O MDB perdeu na falsa eleição de janeiro, como se previa, mas dez meses depois ganhou de forma inesperada e estrondosa nas eleições reais e gerais de novembro de 1974. Elegeu 16 das 22 cadeiras do Senado em disputa, conquistou 165 das 364 vagas existentes na Câmara dos Deputados. Os 6 milhões de votos para senador em 1970 viraram mais de 14 milhões em 1974. Os votos para deputado no MDB subiram de 4,7 milhões em 70 para 11 milhões em 74, garantindo 44% das cadeiras da Câmara.

Quatro anos depois, na sucessão também indireta de Geisel em 1978, a força da ditadura ficou ainda menor. O candidato oficial, general João Figueiredo, derrotou o anticandidato do MDB, general Euler Bentes Monteiro, por apenas 89 votos. Foram 355 contra 266 para o anticandidato, que recebeu mais do que o triplo dos votos obtidos quatro anos antes por Ulysses. As velas dos Autênticos estavam aladas de esperança.

Baioneta não é voto!

Na campanha verdadeira das ruas, Ulysses assumiu a odisseia do confronto mais direto com a ditadura, como queriam os Autênticos de Alencar. Em seu momento mais homérico, na noite de 13 de maio de 1978, em campanha pelo candidato do MDB na Bahia, ele se deparou com os cães e soldados do governador arenista Roberto Santos. Uma tropa de 400 PMs cercava o local do comício, na praça Dois de Julho, em Salvador, bloqueando a passagem da comitiva do MDB, que incluía os senadores Tancredo Neves (MG) e Saturnino Braga (RJ).

O moderado Ulysses perdeu a paciência. De dedo em riste, rompeu o cordão militar, indiferente aos latidos e ameaças da repressão e, ali mesmo, resolveu fazer um discurso inesperado para a tropa que tentava contê-lo. Uma fala e um gesto do mais autêntico MDB que entraram para a história:

Soldados da minha pátria! Enquanto ouvíamos as vozes livres que aqui se pronunciaram, ouvíamos o ladrar dos cães lá fora! O ladrar, essa manifestação zoológica, é do arbítrio, do autoritarismo que haveremos de vencer. Meus amigos, foi uma violência estúpida, inútil e imbecil. Saibam que baioneta não é voto e cachorro não é urna!

A odisseia e a ira de Ulysses, na Bahia, com Tancredo e Saturnino: “Baioneta não é voto, cachorro não é urna! ”

Em 1982 aconteceu a primeira eleição direta para governador, desde 1960. A ousada navegação iniciada uma década antes pelos Autênticos de Alencar alcançou novos portos. Apesar do voto vinculado, truque da ditadura que obrigava o eleitor a votar em candidatos de um mesmo partido, a oposição conseguiu eleger dez governadores, nove pelo MDB e um pelo PDT nos 22 Estados em disputa. Assim, na primeira brecha que o eleitor teve para votar diretamente, os três maiores Estados do país sagraram nomes da oposição: São Paulo (Franco Montoro) e Minas Gerais (Tancredo Neves), ambos do MDB, e Rio de Janeiro (Leonel Brizola), do PDT.

Dois anos depois, a quimera dos Autênticos desaguou no maior oceano de povo da história política brasileira, a campanha das Diretas-Já, com milhões de pessoas nas avenidas e praças clamando pelo voto para presidente e pela Constituinte.  Em 1985, enfim, a ditadura acabou afogada nas águas rasas de seu porto seguro, o Colégio Eleitoral, onde emergiu o vitorioso da oposição, Tancredo Neves, o primeiro presidente que não era general desde 1964. Três anos mais tarde, para completar o sonho de Alencar e seus Autênticos, a Constituinte legou ao país a Constituição-Cidadã de 1988. O resto é história.

Ulysses: com Alencar (esq.), ondulando com o povo nas praças, navegando com milhões nas ruas das Diretas-Já

Alencar Furtado morreu em janeiro de 2021, quando se completava o segundo ano do mandato presidencial de Jair Bolsonaro. Por razões distintas, são as duas faces do que era o Brasil e do que o Brasil virou.

Um é admirável pelo exemplo, o outro é repulsivo pelo que faz e diz. Alencar dedicou a vida à luta pela democracia, à bandeira dos direitos humanos e pela defesa dos cidadãos. Bolsonaro empenha sua palavra na defesa da ditadura, no desrespeito a avanços civilizatórios e no ataque contumaz a princípios consagrados em sociedades democráticas. Alencar lembrava das viúvas, ‘quem sabe’, e dos órfãos, ‘talvez’, produzidos pela ditadura. Bolsonaro fala sempre em defesa dos agentes da repressão que torturaram, ‘certamente’, e que mataram, ‘com certeza’, maridos, mulheres e filhos, produzindo as viúvas e órfãos dos dissidentes caçados a ferro e fogo pelo aparato de guerra interna armado pelo regime militar.

Um especialista em matar

O apreço pela vida de Alencar e a atração pela morte de Bolsonaro é a primeira e mais forte distinção entre os dois. O capitão, com os seus polidos coturnos de psicopata, escancarou sua mente doentia em 2017 em Porto Alegre, quando já era candidato a presidente, confessando numa reunião com empresários: “Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar”.

Três anos antes da aparição do Covid-19, ele já fazia sua opção preferencial pelo vírus em detrimento da vacina: “Minha especialidade é matar, não curar ninguém. Aprendi a atirar com tudo que é tipo de armas, sou paraquedista, sou mergulhador profissional. Sei fazer sabotagem, sei mexer com explosivos. Vocês [brasileiros] nos treinam, nos pagam para isso”.                                                    

Jair Bolsonaro: um especialista em matar, não em curar, e seus três Zeros, devotados às armas como o pai

Em maio de 1999, no Governo FHC, quando nem ele sonhava em ser presidente, Bolsonaro deu uma entrevista ao ‘Câmera Aberta’, da TV Bandeirantes, e arreganhou sua face genocida: “Através do voto você não muda nada neste país, nada…Só vai mudar, infelizmente, no dia em que nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro… e fazendo o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil. Começando com o FHC…. Matando! ”.

Vinte e dois anos depois, já presidente, o capitão coveiro realizou o seu sonho, legando ao país um vasto necrotério de mais de 270 mil mortes — nove vezes mais do que o total que ele sonhava para a ditadura dos seus devaneios.

O necrófago Governo Bolsonaro conseguiu, com sua incompetência e negacionismo endêmicos, superar a marca fúnebre dos outros dois governantes que, no passado, registravam as duas maiores mortandades da história brasileira.

O imperador Dom Pedro II (1825-1891) amargou na Guerra do Paraguai (1864-1870), o maior conflito armado na história da América do Sul, um número de mortos que oscila em torno de 50 mil brasileiros.

Prudente de Morais (1841-1902), o terceiro presidente da República recém proclamada, mobilizou o Exército para enfrentar em 1896 a rebelião messiânica que o beato Antônio Conselheiro liderou por 11 meses no vilarejo de Canudos, no interior mais pobre da Bahia, que só acabou com o massacre de 25 mil pessoas – incluindo a degola de velhos, mulheres e crianças.

Jair Bolsonaro, o 38º presidente da República — o pior presidente de nossa história, quem sabe, o mais estúpido governante do planeta, talvez —, não mexeu literalmente um único dedo enquanto o registro de vítimas chegava à marca de 270.917 mortes em 11 de março de 2021, exatamente um ano depois que a OMS classificou a Covid-19 como uma pandemia mundial. A primeira morte de Covid no Brasil aconteceu em 16 de março de 2020, em São Paulo. Apenas três meses depois, na última semana de junho, o país alcançou num único trimestre o mesmo número de baixas que teve em cinco anos e três meses do Século 19 na Guerra do Paraguai, a mais longa e sangrenta do continente: 50 mil mortos, uma letalidade só possível pela inação, teimosia e negacionismo do estúpido Bolsonaro.

Durante todo esse tempo, o que o capitão-presidente fez, de forma doentia e mórbida, foi debochar da doença, escarnecer dos doentes, desdenhar os mortos, desconhecer a ciência e desacreditar os médicos e profissionais da saúde.

Lágrimas na tela e um cafajeste

O país se habituou às emoções derramadas nas telas de TV por profissionais treinados, pelo ofício, no relato de tragédias e desastres do cotidiano. Mas, os dramas humanos e a angústia sufocante imposta pela rotina do Covid-19 romperam as comportas de emoção de rostos familiares aos brasileiros. Em momentos distintos, em programas variados, veteranos repórteres, apresentadores, âncoras e correspondentes se debulharam em lágrimas irreprimíveis, como nos casos de Natuza Nery (GloboNews), Guga Chacra (correspondente da Globo em Nova York), Fátima Bernardes (Rede Globo), Flávio Fachel (Globo/Rio) e Ilze Scamparini (correspondente da Globo em Roma). Solidários e fragilizados, todos eles choraram, com o recato possível, diante das câmeras de TV no Rio, em São Paulo, nos Estados Unidos, na Itália, vertendo as lágrimas que dão humanismo e sentimento ao jornalismo.

Antes que algum filho Zero de Bolsonaro faça alguma piadinha cretina sobre isso, insinuando que deve ser tudo chororô produzido pela Rede Globo, é conveniente lembrar que a dor é um sentimento que perpassa o ser humano, e não fica restrito aos estúdios de TV. Mais gente, mundo afora, para espanto do debochado clã Bolsonaro, também chora pelos mortos e louva a vida.

Assim, na TV, foi possível também testemunhar a emoção genuína e a dor comovente de gente chorando, sem controle, como o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio, a repórter Sara Sidner da CNN na Califórnia, o ator espanhol Miguel Herrán (que faz o personagem ‘Rio’ na série Casa de Papel ), o governador da Bahia Rui Costa e muitos, milhares, milhões de profissionais da saúde no mundo todo que combatem, ganham e perdem todos os dias a guerra exaustiva, infindável contra o Covid-19.

Enquanto isso, o divertido capitão Jair Bolsonaro ri, debocha, zomba e escancara sua alegria esquizofrênica diante de uma nação angustiada pela doença, esmagada pela dor, aflita pela cura, desorientada pela falta de empatia de um presidente desequilibrado

O capitão no seu hilário, cômico, irresistível, desopilante país de 275 mil mortos e 11 milhões de doentes

Por tudo o que faz e, principalmente pelo que não faz, Bolsonaro merece todos os adjetivos degradantes que definem sua personalidade necrófila, de desprezo pela vida, de raciocínio tosco, de comportamento abrutalhado, de pensamento demente.

Jair Bolsonaro é um viúvo de civilização, quem sabe?, e um órfão de humanidade, talvez. No momento mais macabro de sua história, o Brasil precisa enfrentar o desafio quase insuperável da pandemia convivendo com um governante patético no Palácio do Planalto.

Sua imagem de um esquizofrênico sorridente, em meio a tanta tristeza, é o retrato acabado de um cafajeste no poder.

O Brasil do admirável Alencar Furtado não merece a figura asquerosa de Jair Bolsonaro.

 

* Luiz Cláudio Cunha, jornalista, foi consultor da Comissão Nacional da Verdade e é autor de Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (L&PM, 2008). E-mail: cunha.luizclaudio@gmail.com 

 

 REFERÊNCIAS

[1] Apreciação Sumária nº 25, do SNI, de 29 de junho de 1977. In Elio Gaspari, A Ditadura Encurralada, 2004, p. 426.

[2] Depoimento de Thales Ramalho a Gaspari, op. cit., p. 427.

[3] Telegrama 665/Ministério do Exército, de 30 de junho de 1977. Arquivo Golbery do Couto e Silva. In Gaspari, op. cit., p. 428.

[4] Depoimento de 1h26 de Alencar Furtado à Comissão Nacional da Verdade, em Brasília, em 19/setembro/2014, na condição de vítima civil da ditadura.

[5] Marcelo Godoy. ‘O complô para cassar o deputado’. O Estado de S. Paulo, 8/dezembro/2018.

Naqueles tempos em que mataram Vlado

Luiz Cláudio Cunha*

O telefone tocou na sucursal da revista Veja em Porto Alegre e ecoou a voz firme, mas sempre cordial:

– Bom dia, companheiro Luiz Cláudio. Aqui é o Audálio Dantas!

Nem precisava se identificar. A voz inconfundível do jornalista de 46 anos ainda preservava um doce e sedutor sotaque alagoano, que não esqueceu suas origens nem quando o menino de Tanque D’Arca, no árido agreste de Alagoas, trocou aos 12 anos sua terra natal de apenas 5 mil habitantes pela mais populosa cidade do continente, São Paulo.

Era um telefonema improvável naquela manhã, na segunda quinzena de dezembro de 1975. Improvável porque, naqueles dias tormentosos, o presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo tinha, com certeza, coisas mais importantes a fazer do que telefonar para o sul do país. Naquele momento Audálio liderava, com firmeza, serenidade e coragem, o sentimento de indignação e revolta que envolvia a morte, sob torturas, do jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, nos porões do DOI-CODI do II Exército.

Outubro de 1975: Audálio Dantas, desolado diante do caixão do amigo Vlado, assassinado no DOI-CODI

O fim inesperado do diretor de jornalismo da TV Cultura, horas após se apresentar espontaneamente para um depoimento no centro da repressão paulista, em 25 de outubro de 1975, marcava o auge da investida da facção mais radical da direita militar, em aberta hostilidade ao quarto presidente da ditadura, general Ernesto Geisel.

Herzog era o 22º jornalista morto ou até hoje desaparecido pela repressão do regime. Só nos dois anos iniciais do Governo Geisel, a ditadura tinha registrado cerca de 60 desaparecidos políticos. Na escalada de violência de outubro de 1975, Herzog era o 12º jornalista preso no espaço de uma semana só na cidade de São Paulo, varrida por uma onda de detenções que atingiu mais de 200 pessoas – incluindo líderes sindicais, médicos, estudantes, professores universitários, advogados e membros da oposição legal, reunidos no MDB.[1]

Vítima de um falso ‘suicídio’, segundo a fantasiosa nota oficial do II Exército, Herzog, judeu nascido na Iugoslávia em 1937, foi sepultado dois dias depois, na segunda-feira, 27, na área do Cemitério Israelita do Butantã reservada aos mortos comuns, os honrados, não no espaço distante onde a fé judaica garantia espaço aos suicidas, execrados pelo judaísmo. A congregação do Chevrah Kadisha, que administra o cemitério, não encontrou nenhum indício de suicídio no corpo de Herzog, descartando assim o enterro segregado.

As vozes da solidariedade, como lembrou Audálio Dantas, começaram a ecoar a partir de segunda-feira, dia do enterro. A Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ) e a Organização Internacional dos Jornalistas (OIJ), que na época representavam mais de 230 mil profissionais de imprensa de todo mundo, protestaram. Mas, o medo ainda calava a maioria no Brasil. Dos 25 sindicatos de jornalista do país, apenas 11 se manifestaram contra o assassinato de Vlado – entre eles, o de Porto Alegre.

Audálio se mostrou surpreso e desalentado com a falta de apoio dos sindicatos operários, incluindo os do vibrante ABC paulista. Até o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, onde despontava um líder barbudo em ascensão chamado Luiz Inácio Lula da Silva, calado estava, calado ficou. O estrondoso e constrangedor silêncio do ABC sindical brotou na morte de Vlado, em outubro de 1975 e perdurou, de forma ainda mais embaraçosa, três meses depois, em janeiro de 1976, quando Manoel Fiel Filho, operário como eles, apareceu também ‘suicidado’ no mesmo DOI-CODI que matou Herzog.[2]

O ‘probleminha’ da tortura

A crise no coração da repressão do regime forçou a ida de Geisel a São Paulo na quinta-feira, 30, véspera do tenso culto ecumênico na catedral da Praça da Sé, centro maior da Igreja Católica na capital. O aparelho repressivo não queria nem mesmo investigar a morte do jornalista. Confrontado pelos generais Ednardo d’Avila Mello, comandante do II Exército, e pelo general Sylvio Frota, ministro do Exército, Geisel bateu pé pela investigação de um inquérito policial-militar, o IPM. “Não pode haver crime, ou morte, dentro de uma organização militar sem ser apurado”, trovejou o presidente, segundo Elio Gaspari, em A ditadura encurralada.

Rendido, naquele mesmo dia Ednardo informou, em nota, a instauração de um IPM para “apurar as circunstâncias em que ocorreu o suicídio do jornalista Vladimir Herzog”. O detalhe bizarro é que antes de mesmo de começar, o IPM já apontava sua teimosa conclusão dos fatos ainda não apurados: ‘suicídio’.

General Ernesto Geisel e o seu ‘probleminha’: Herzog e a simulação de suicídio no DOI-CODI

A suspeita precipitação não incomodou Geisel, que parecia no início interessado na correta apuração do crime. Duas décadas depois, em 1997, Geisel definiu tudo aquilo como um ‘probleminha’:

Não sei se o inquérito estava certo ou não, mas o fato é que apurou que o Herzog tinha se enforcado. A partir daí o problema do Herzog, para mim, acabou. (…). É possível que aquilo tenha sido feito para encobrir a verdade. Mas o inquérito tem seus trâmites normais, suas normas de ação, eu não iria interferir no resultado. (…). É preciso ver o seguinte: o presidente da República não pode passar dias, ou semanas, com um probleminha desses. É um probleminha em relação ao conjunto de problemas que ele tem.[3]

A farsa do IPM durou 47 dias, carimbando como ‘suicídio’ a morte de um jornalista moído sob torturas num enredo fantasioso que desperdiçou 299 folhas de papel imprestável. O IPM foi concluído em 12 de dezembro, uma sexta-feira, mas os seus pífios resultados só foram divulgados uma semana depois, dia 19, a sexta-feira seguinte.

Nasceu daí a ideia de contestar o falso IPM. Todos sabiam que um confronto direto com os militares poderia dar a eles o pretexto de uma intervenção no sindicato, sujeito à dura legislação que submetia o sindicalismo aos humores do Ministério do Trabalho. A solução seria transformar o sindicato em mero intermediário de uma contestação ao IPM organizada e assinada pelos jornalistas, uma ação coletiva que protegeria a entidade presidida por Audálio Dantas de qualquer ameaça de intervenção. O manifesto, ‘Em Nome da Verdade’, começou então a sua épica jornada de coleta de assinaturas, com ênfase central em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Porto Alegre, que concentravam a maioria dos jornalistas do país.

Era essa a explicação para o inesperado telefonema que atendi na sucursal gaúcha de Veja.

Audálio, diante da urgência do caso, me deu o prazo de uma semana para colher as assinaturas dos jornalistas de Porto Alegre. O ato de assinar um documento de aberta contestação à mentirosa versão do falso suicídio de Herzog era um gesto de coragem e dignidade dos jornalistas, a primeira contenda pública com o regime militar desde o advento do AI-5, em dezembro de 1968, exatos sete anos antes. O risco de represálias era elevado. Como havia dúvidas se os jornais publicariam o manifesto, os signatários de São Paulo e Rio, além da coragem, contribuíam com uma caixinha para custear a sua eventual publicação como matéria paga, um texto ‘a pedido’.

Os grandes jornais, ao contrário dos jornalistas, ainda mantinham uma postura de apoio, velada simpatia, disfarçada indiferença ou calculado silêncio diante da força e da censura do regime que eles sustentaram, antes e depois do golpe militar de 1ºde abril de 1964, uma data coerente com o ‘suicídio’ de Herzog.

União na conspiração

No Rio de Janeiro, antes mesmo do golpe, a conspiração conseguira unir os três grandes concorrentes da imprensa carioca: O Globo, o Jornal do Brasil e os Diários Associados.[4]  Roberto Marinho, Nascimento Brito e Assis Chateaubriand fundaram, em 26 de outubro de 1963, a cinco meses da derrubada de João Goulart, a ‘Rede da Democracia’, que ecoava em transmissão conjunta das rádios Jornal do Brasil, Globo e Tupi uma catilinária em cadeia nacional contra a ‘ameaça vermelha’ e a iminente tomada do poder pelos comunistas ligadas ao presidente Jango.[5]

Marinho, Brito e Chateaubriand: O Globo, JB e Associados, adversários, mas unidos em rede pelo golpe

No dia seguinte ao golpe vitorioso, 2 de abril de 1964, o Globo de Roberto Marinho festejava em editorial a intervenção militar: “Ressurge a Democracia!”. Em um trecho, tentava dar o amparo do Art. 176 da Constituição para o uso do arbítrio, definindo dessa forma as Forças Armadas: “São instituições permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade do presidente da República E DENTRO DOS LIMITES DA LEI”. Assim mesmo, em maiúsculas de tom quase verde-oliva, para camuflar a violência e vender a ideia de que o fora-da-lei era o presidente Goulart.

O Jornal do Brasil conseguiu ser mais rápido que O Globo no gatilho da adulação. Na véspera, 1º de abril, o jornal de Nascimento Brito saudou a vitória da democracia “contra a ameaça de uma república sindicalista” ou “a implantação de um regime comunista”, o que dava no mesmo. O JB já dava o movimento militar como vitorioso, enquanto os tanques dos generais Olympio Mourão Filho e Carlos Luís Guedes ainda rodavam de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro. No dia seguinte, 2 de abril, os dois jornais trombaram no seu entusiasmo. “Fugiu Goulart e a democracia está sendo restabelecida”, mentiu O Globo, desmentido na manchete daquele dia do Jornal do Brasil: “Goulart resiste no sul e o Congresso empossa Mazzilli”.[6]

O apoio ao golpe no JB não era restrito aos donos da empresa, condessa Pereira Carneiro e seu genro, Nascimento Brito. A cúpula do jornal – Alberto Dines (editor-chefe de 1962 a 1973), Carlos Lemos (chefe de redação), Wilson Figueiredo (editorialista) e Luiz Orlando Carneiro (chefe de reportagem) –, responsável pelo que era publicado, também festejou a derrubada de Jango, em franca oposição à redação do JB, na maioria integrada ou por simpatizantes do governo ou militantes da esquerda.[7] Daqueles quatro, doze anos depois, só aparece o nome de Alberto Dines no manifesto dos 1004 jornalistas contestando o ‘suicídio’ de Herzog.

Alberto Dines, Carlos Lemos, Wilson Figueiredo e Luiz Orlando, a cúpula do JB em 1964: apoio ao golpe

Uma década após o golpe, Alberto Dines era um bravo defensor de Vladimir Herzog contra as perfídias cometidas por jornalistas a serviço dos órgãos de repressão, numa campanha sórdida de delação contra a direção de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, que Vlado assumira em setembro de 1975, quase dois meses antes de morrer sob torturas no II Exército.

Um colunista do jornal Shopping News, Cláudio Marques, que ecoava notas e rumores oriundos dos porões militares, costumava fazer piadas sobre os hóspedes forçados do ‘Tutoia Hilton’, referência maliciosa ao endereço do DOI-CODI da rua Tutoia. Outro desafeto ostensivo de Vlado e da TV Cultura era Lenildo Tabosa Pessoa, militante extremista da direita católica e colunista do Jornal da Tarde.  Os torpedos canalhas dos dois jornalistas eram regularmente replicados, de forma combinada, por dois deputados da Arena, o partido da ditadura, na Assembleia paulista: Wady Helou e José Maria Marin. Na sua coluna semanal do ‘Jornal dos Jornais’, na Folha de S.Paulo, Dines era uma trincheira permanente de defesa de Vlado contra os libelos maldosos da dupla Marques-Pessoa e seus aliados.

Um outro grande jornal carioca da época, o Correio da Manhã, conhecido pela histórica tradição como liberal e independente, surpreendeu por sua meteórica adesão na hora crucial do golpe. Três anos antes, o Correio apoiara a posse de Jango, contestada pelos ministros militares diante da renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961. O jornal sustentou a posse de Juscelino Kubitschek em 1955, desafiada por focos militares de amotinados, e criticou a construção de Brasília, maior bandeira de JK.

Mas, nas 48 horas decisivas para a derrubada de Jango, o jornal produziu dois sucessivos editorais de impacto no vórtice da crise. O primeiro, “Basta! ”, saiu no 31 de março. O segundo, “Fora! ”, no dia seguinte, 1° de abril, quando Jango ainda permanecia presidente no Palácio Laranjeiras, no Rio. Dali, só por volta das 13h, Jango tomou o rumo da Base Aérea do Galeão e, de lá, voou para Brasília.

Já no final da manhã de 1° de abril, o Forte de Copacabana mudou de lado e, legalista, virou golpista, como relata o repórter Mário Magalhães. O quartel ao lado, o QG da Artilharia de Costa, foi tomado às 11h30, pouco antes da decolagem do avião presidencial para Brasília. Nos seus últimos momentos no Palácio do Planalto, Jango percebeu que a situação militar se deteriorava e, na noite daquela quarta-feira, 1º de abril, o Dia da Mentira, embarcou para Porto Alegre, onde aterrissou já na madrugada de quinta-feira, dia 2.

A tensa reunião da madrugada na residência do comandante do III Exército, general Ladário Telles, mostrava ao insone presidente que a tropa decisiva do Sul estava dividida. Jango só desistiu de fazer uma reunião com os generais no próprio QG do Exército ao ser informado que, se fosse lá, seria preso. Decidido a não resistir, Jango perambulou nas horas seguintes por algumas de suas fazendas na região de São Borja, na fronteira com a Argentina, até voar definitivamente em 4 de abril para o Uruguai. Só voltaria ao Brasil doze anos depois, morto, num caixão oriundo do exílio argentino.

O “Fora!”, editorial de 40 linhas e 475 palavras da quarta-feira, 1º de abril, do Correio da Manhã  foi publicado, portanto, quando Jango ainda permanecia no Palácio Laranjeiras. Nas primeiras cinco linhas, as 57 palavras iniciais resumiam o resto: “Fora! A Nação não mais suporta a permanência do Sr. João Goulart à frente do governo. Chegou ao limite final a capacidade de tolerá-lo por mais tempo. Não resta outra saída ao Sr. João Goulart que não a de entregar o governo ao seu legítimo sucessor. Só há uma coisa a dizer ao Sr. João Goulart: Saia!”.

O presidente, desalentado e surpreso, leu o editorial e comentou com um amigo: “Olha o que o Correio da Manhã está dizendo aqui…”

Ainda hoje não se sabe, com certeza, quem escreveu os dois editoriais que transformaram o Jango protegido de 1961 no Jango execrado de 1964, na soleira do abandono político. Quase 15 anos após o golpe de 1964, o redator-chefe, Edmundo Moniz, negou à Folha de S. Paulo ter sido o autor dos textos que dramatizaram o divórcio entre o presidente acuado e a mídia engajada no golpe: “Eu só sou autor daquilo que eu assino… O artigo foi feito pela redação, não posso dizer o autor dos artigos, eles são de responsabilidade do jornal. Os dois editoriais talvez fossem escritos por muita gente. Toda a redação mexeu. Não escrevi o artigo, mas o alterei”.

Edmundo Moniz, o editorial sem autor, e Cony: um corte aqui, uma alteração ali, uma pequena frase

A redação toda, na verdade, não mexeu, mas o time de editorialistas, sim. A equipe liderada pelo trotskista Moniz era integrada por intelectuais do nível de Otto Maria Carpeaux, Osvaldo Peralva, Carlos Heitor Cony e Newton Rodrigues. O próprio Cony esclareceu, na sua coluna na Folha, em novembro de 2002: “Minha participação limitou-se a cortar um parágrafo e acrescentar uma pequena frase. Hora e meia mais tarde, Moniz telefonou-me outra vez, lendo o texto final que absorvia a colaboração dos editorialistas, e, embora o conteúdo fosse o piloto elaborado por Carpeaux, a linguagem traía o estilo espartano do próprio Muniz”. [8]

Nos meses seguintes, apesar dos seus candentes “Basta!” e “Fora!”, o Correio da Manhã insistia teimosamente em algemar a palavra ‘Revolução’ de 1964 entre aspas, quase subversivas. Criticava os duros atos institucionais do regime e chegou a denunciar casos de tortura. A dona do jornal, Niomar Moniz Sodré Bittencourt, foi presa por dois meses pela ditadura, em janeiro de 1969. Nove dias depois, os militares deram um ‘basta’ na proprietária do Correio e lhe deram um ‘fora’ de dez anos da política, cassando seus direitos pelo AI-5. Descarnado e sem alma, o jornal foi arrendado meses depois a um grupo de empreiteiros, sem jamais recuperar seu prestígio. Morreu sem choro nem vela em 1974.

Em São Paulo, o envolvimento dos grandes jornais antecedia o golpe, começando na conspiração para derrubar Jango. No início de 1962 oficiais das Forças Armadas, falando em nome de um trio histórico de conspiradores – o marechal Odylo Denys, o almirante Sílvio Heck e o brigadeiro Gabriel Grun Moss –, foram a São Paulo para um encontro com Júlio Mesquita Filho, dono de O Estado de Paulo, a quem entregaram um documento sobre as normas que iriam orientar o governo militar após a queda de Jango.

O grupo, integrado pelos generais Cordeiro de Farias e Orlando Geisel, foi mais explícito com o dono do Estadão: o regime discricionário teria de ficar no poder por pelo menos cinco anos. Animado com a conversa, Mesquita chegou ao ponto de sugerir oito nomes para o futuro ministério revolucionário, incluindo entre eles Mem de Sá, Roberto Campos, Dario de Almeida Magalhães e Milton Campos. Todos os quatro chegaram lá.

Com o jurista Vicente Rao, advogado da mineradora americana Hanna, Mesquita chegou a fazer o rascunho de um Ato Institucional para fechar o Senado, a Câmara e todas as Assembleias estaduais e cassar mandatos – o mesmo instrumento de força que a ditadura anos depois faria seu jornal engolir com o Ato Institucional nº5, na forma de versos de Camões e receitas de bolo.[9]

“Até ali [o AI-5], nós vínhamos divergindo em caso e número, mas não em gênero, porque sabíamos que o processo tinha que ser aquele, achávamos que devia ser aquele”, reconheceria anos depois Ruy Mesquita, irmão de Júlio e também diretor de O Estado de S. Paulo.[10]

Em entrevista a Audálio Dantas, em 2005, Mesquita foi além: “Não só apoiamos, como conspiramos”.[11] Ao contrário do pai, o jornalista Ruy Mesquita Filho, o Ruyzito, um dos herdeiros do Grupo Estado, é um dos 1004 signatários do manifesto contra o ‘suicídio’.

Ruy Mesquita e Ruyzito: o pai, ao contrário do filho, não assinou o manifesto contra a farsa do Exército

O outro grande jornal paulista, a Folha de S.Paulo, tinha um envolvimento até logístico, além de ideológico, com o golpe militar. As peruas Chevrolet C-14, da frota que transportava jornais para as bancas, muitas vezes foram usadas para levar ou trazer gente torturada na Oban, a Operação Bandeirantes, núcleo integrado da repressão.

Carlos Eugênio Paz, o chefe do Grupo Tático de Ação (GTA) da organização guerrilheira Aliança Libertadora Nacional, reforça: “A ALN queimou vários carros da Folha como represália à participação do Grupo Folha no financiamento da repressão e ao uso de seus carros na repressão direta. Ao fazer isso, atuando na guerra, o Grupo Folha era passível de sofrer as sanções e as represálias da guerra. O Grupo Folha apoiou o golpe de estado, financiou, participou diretamente da repressão e jamais fez autocrítica disso”.[12]                                                                                         

Octávio Frias: a perua da Folha, queimada pela guerrilha, e o vespertino que virou porta-voz da repressão

A redação de policiais

O vespertino do grupo, a Folha da Tarde, era a ponta avançada do extremismo radical da empresa, o porta-voz oficioso da repressão política. Até 1968 era um jornal de esquerda, mais inquieto, que concorria diretamente com o irmão mais novo do Estadão, o Jornal da Tarde. No comando da redação estava um jornalista egresso da Última Hora janguista, Jorge Miranda Jordão, que tinha sob seu comando alguns jornalistas ligados à ALN, grupo da luta armada liderada por Carlos Marighella. O advento do AI-5 virou o fio do jornal. Houve uma limpeza na redação e, a partir de julho de 1969, a Folha da Tarde converteu-se num diário que o jornalista Cláudio Abramo resumiu numa palavra: “Sórdido”.

O dono do Grupo Folha, Octávio Frias de Oliveira, trocou o esquerdista Jordão por Antônio Aggio Jr., um jornalista especializado em cobertura policial. Um redator da editoria de ‘Mundo’ cumpria dupla jornada: trabalhava à tarde no jornal e, de manhã, no DOPS comandado pelo delegado Sérgio Fleury, o mais ilustre nome da máquina de tortura brasileira. “Muitos jornalistas andavam armados na redação. O Aggio mesmo circulava com uma maleta em forma de violino. Era uma carabina turca”, revelou a jornalista Beatriz Kushnir, autora de um livro cortante sobre o colaboracionismo da grande imprensa com a ditadura e a censura.[13]

Os antigos militantes de esquerda foram substituídos por policiais que escreviam, mantendo até o duplo emprego entre redação e o aparato repressivo. A FT, inexpressiva nas bancas, passou a ser conhecida como “o jornal de maior tiragem” – uma piada lúgubre sobre a taxa de ‘tiras’ (policiais) que infestavam sua redação, também conhecida como ‘delegacia’.

Assim como Chateaubriand e Marinho no Rio, as famílias Mesquita e Frias em São Paulo integravam o centro ideológico da mídia no golpe, concentrado no IPES. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, fundado no Rio em novembro de 1961, três meses após a renúncia de Jânio Quadros, reunia a nata do empresariado, nacional e multinacional, com todos os nomes, sobrenomes e siglas que ainda hoje enfeitam as listas das maiores empresas do país. Um empresário de origem americana no Rio, Gilbert Huber Jr., dono da então poderosa Listas Telefônicas, articulou-se com um empresário de uma multinacional em São Paulo, João Batista Leopoldo Figueiredo, ex-presidente do Banco do Brasil no Governo Jânio e tio do futuro presidente Figueiredo.

Acabaram recrutando militares da reserva – um deles, o general Golbery do Couto e Silva.

Parecia um inocente clube de homens de negócios. Mas, na sua face oculta, sob siglas e codinomes, o IPES concentrava a execução metódica de um pensado plano da burguesia nacional para combater, de forma clandestina, os seus três principais inimigos: o Governo Jango, a aliança nacionalista do PTB e o comunismo, que aparentemente resumia tudo aquilo. O braço político ostensivo do IPES era o IBAD, Instituto Brasileiro de Ação Democrática, que apesar do nome tinha ligações com o MAC, Movimento Anticomunista, e com a organização da direita católica Opus Dei.

O fundador do IBAD em 1959 foi o integralista Ivan Hasslocher, dono da Promotion, uma agência de publicidade que promovia o lobby do IBAD e seu braço parlamentar, a ADP – Ação Democrática Popular, um núcleo conservador de 160 parlamentares da centro-direita no Congresso reunido em torno da UDN, PSD e PSP. A ADP fazia contraponto à Frente Parlamentar Nacionalista, que orbitava no universo do PTB e dos aliados da esquerda. Segundo o historiador uruguaio de nascimento René Dreifuss, a ADP tinha sua ação política patrocinada pela estação no Rio de Janeiro da CIA, a agência de inteligência americana focada em campanhas políticas e grupos de pressão.[14]

Homens da mesma linha de pensamento e com igual propósito juntaram, a partir de 1962, as duas entidades: nascia o complexo IPES/IBAD, matriz ideológica e operacional da conspiração que daria o golpe e, depois, forneceria os quadros e dirigentes do aparato estatal que sustentou o regime militar. O IPES operava como centro estratégico, e o IBAD, como unidade tática. O monstro crescia junto com a conspiração. Em 1963, os 80 membros originais do IPES pularam para 500. Eram sócios 26 dos 36 líderes da FIESP, a maior federação industrial do país. A entidade se espalhava pelas capitais do país.

Intelectuais a soldo

 A articulação dos empresários com os militares era feita pelo Grupo de Levantamento da Conjuntura (GLC) do IPES, comandado pelo general Golbery, que atuava sobre o I (Rio) e III (Porto Alegre) Exércitos. A ‘ordem de serviço com calendário’ do GLC, que definia a estratégia de ação, tinha uma edição limitada de 12 exemplares, que não eram registrados nas atas do IPES. A equipe de Golbery distribuía nos quartéis uma circular bimestral mimeografada, sem citação da fonte, avaliando a atividade ‘comunista’ no país, apontando o dedo para subversivos infiltrados no governo e mapeando suas ações.

Golbery e o QG do golpe, no 27º andar do Avenida Central: 3 mil grampos de telefone só no Rio

Só no Rio de Janeiro o GLC de Golbery tinha três mil telefones grampeados[15]. O grupo do general ocupava quatro das 13 salas que o IPES havia alugado no 27° andar do Ed. Avenida Central, na av. Rio Branco, no centro da cidade. A conta do telefone era faturada em nome do general da reserva Henrique Geisel, irmão de Ernesto.O GLC escrutinava a produção diária da imprensa do país, um total de 14 mil edições no ano, e produzia mensalmente cerca de 500 artigos, disseminados pelos jornais ou divulgados em forma de palestras.

Neste trabalho era fundamental manipular a expressão da sociedade. O objetivo central do Grupo de Opinião Pública (GOP) do IPES era disseminar seus objetivos na imprensa falada e escrita. Dissimulado, o grupo evitava o nome “opinião pública”, preferindo as expressões “divulgação” e “promoção”. O GOP era “a base de toda a engrenagem”, definia o general Heitor Herrera, um dos líderes do IPES. José Luís Moreira de Souza, dono da Denison Propaganda, dizia que “conquistar a opinião pública” era a essência da ação política do grupo. O principal articulador do GOP era um ex-comissário de polícia, José Rubem Fonseca, que nas décadas seguintes se consagraria como o maior contista vivo do país, ganhador em 2003 do Prêmio Camões, o Nobel dos escritores de língua portuguesa.

Rubem Fonseca coordenava, entre outros, jornalistas no Rio, como Glauco Carneiro e Wilson Figueiredo (o editorialista golpista do JB ), e em São Paulo, como Ennio Pesce[16] e Flávio Galvão, estrelas do Estadão. Intelectuais de respeito estavam no balaio de Fonseca e do IPES: a escritora Nélida Piñon (secretária da entidade no Rio), o cronista Odylo Costa, filho, o poeta Augusto Frederico Schmidt e a romancista Rachel de Queiroz – todos irmanados na agitação golpista em favor do general Castello Branco, primo de Rachel.[17]

Rubem Fonseca, Nélida Piñon e Rachel de Queiroz: escritores assalariados pelo golpe

O que acontecia na grande imprensa do Rio e São Paulo se repetia na grande imprensa gaúcha, que teve conivência e complacência com o golpe, antes e depois de 1964.

O Diário de Notícias, o principal órgão Associado no sul, foi depredado e incendiado pela população de Porto Alegre, em agosto de 1954, ao ecoar o tiro do suicídio de Getúlio Vargas, atribuído à forte oposição da imprensa, onde se destacava o grupo de Chateaubriand. Sua adesão ao golpe, em 1964, não impediu sua decadência, até fechar em 1979.

A Zero Hora  já nasceu depurada e lavada ideologicamente em 4 de maio de 1964, um mês e quatro dias depois que o general Olympio Mourão Filho desencadeou o golpe, mobilizando as tropas da 4ª Divisão de Infantaria que ele comandava em Juiz de Fora, em Minas Gerais. Herdou do jornal Última Hora as máquinas e a antiga sede na rua Sete de Setembro, no centro de Porto Alegre, mas livrou-se rapidamente do logotipo, da cara e da comprometedora intimidade ideológica de seu antecessor nas bancas e de seu dono no expediente, Samuel Wainer, identificado com o getulismo, a esquerda e o Governo Jango.

A Última Hora gaúcha era a edição mais jacobina da ágil rede de jornais de Wainer, que além do Rio e São Paulo publicava edições simultâneas e vibrantes em outros nove centros do país – capitais como Belo Horizonte, Recife, Niterói, Curitiba, Porto Alegre e outras quatro cidades do interior paulista, inclusive a emergente região sindical do ABC.[18]

Era natural, portanto, que herdasse também todos os inimigos e a santa ira da nova ordem militar. A UH de Porto Alegre sentiu o golpe, literalmente. Tentou manter a linha editorial e o sonho de uma resistência de Jango ao levante militar até o dia 5 de abril. Resfolegou na impossível neutralidade por mais três semanas e, afinal, sucumbiu em 25 de abril do ano da graça de 1964. O diretor da edição gaúcha, Ary de Carvalho, ainda procurou manter a equipe, a marca e a estrutura do velho jornal. Viajou ao Rio, para uma conversa de negócios com Wainer, então exilado na Embaixada do México. Carvalho fez a proposta, e Wainer topou vender as máquinas de escrever, as oito máquinas fotográficas, as quatro lambretas, os dois carros e o arquivo de fotos – mas não aceitou vender o título do jornal.

Da Ultima Hora de Samuel Wainer para a Zero Hora de Ary de Carvalho: a mudança foi além do logotipo

Wainer mandou fechar a UH. Com outros três empresários, Carvalho comprou máquinas e equipamentos da redação, segurou alguns membros da equipe e tratou de fundar um novo diário em maio de 1964. Pediu ao chefe da diagramação, o argentino de nascimento Aníbal Bendatti, uma logomarca para o novo jornal – “parecida, mas diferente da Última Hora[19]. Bendatti datilografou as palavras Zero Hora, ampliou os tipos da máquina de escrever, livrou o título antigo do retângulo e cravou a nova marca num quadrado comportado. Preservou apenas o azul dos velhos tempos na cara do diário que já nascia simpático ao regime de 1964. A simpatia dos conspiradores foi ainda maior.

Ary de Carvalho trazia ligações de família decisivas desde Birigui, cidade do interior paulista onde se iniciou em 1926 a carreira de sucesso de um antigo office-boy de uma agência local do Banco Noroeste chamado Amador Aguiar. Décadas depois, Aguiar tinha um emprego novo e o seu próprio banco, o Bradesco, ambos engajados de corpo e alma no projeto golpista do IPES. Nada mais natural, assim, do que ajudar o velho amigo de um jornal que já nascia amigo dos vitoriosos de abril de 64.

Com o dinheiro do Bradesco, Carvalho livrou-se dos antigos sócios e cresceu. Ganhou anos depois um novo parceiro, o radialista Maurício Sirotsky, que em 1962 criara a TV Gaúcha, então filiada à Rede Excelsior. Juntos compraram em Chicago, EUA, a moderna máquina de impressão em off set que tornou a Zero Hora o segundo jornal do país a adotar a novidade (o primeiro tinha sido a Folha de S.Paulo de Frias).

O esforço fez o jornal cambalear financeiramente, e, em abril de 1970, seis anos após o golpe, Carvalho vendeu as ações que tinha ao sócio e retirou-se para o Rio de Janeiro. Sirotsky, agora o único dono de Zero Hora, fizera em 1965 um movimento tático decisivo: trocou a Excelsior pela nascente Rede Globo de Roberto Marinho, a organização jornalística que mais cresceria sob a ditadura. No vácuo desse sucesso nasceu, cresceu e apareceu a RBS, a Rede Brasil-Sul de Sirotsky, hoje o grupo de mídia mais poderoso do sul do país, nascido dos escombros da Última Hora esmagada pelos tanques de 64.

O fazendeiro ancora no golpe

Até aparecer a RBS, a empresa jornalística mais influente e rica do Rio Grande do Sul era a Caldas Júnior, que editava o jornal mais importante do Estado, o Correio do Povo, operava a rádio mais ouvida, a Guaíba, e mantinha um vespertino de larga penetração, a Folha da Tarde. Atravessou sem sobressaltos a turbulência de 1964 porque era uma empresa conservadora, mantida sob o rígido controle de seu dono, Breno Caldas. Tinha apenas 25 anos quando assumiu o jornal, em 1935. O pai, fundador do Correio do Povo meio século antes, morrera prematuramente aos 45 anos, em 1913, mergulhando a empresa numa crise financeira que durou até a chegada de Breno Caldas.

Dono de jornal e fazendeiro, Breno Caldas cultivava uma previsível hostilidade contra as reformas de base de João Goulart e antipatia ainda maior contra o cunhado do presidente, Leonel Brizola – que na crise da renúncia de Jânio em 1961 requisitou a sua rádio Guaíba para montar em torno dela a “Rede da Legalidade”, que no gogó brecou o golpe militar e, com a adesão inesperada do III Exército, garantiu a posse de Jango.

Nos idos de 1962, o líder do IPES carioca, José Luiz Moreira de Souza, dono da Denison Propaganda, viajou a Porto Alegre para botar a Caldas Júnior no balaio da conspiração. Ganhou as graças de Arlindo Pasqualini, irmão de Alberto, ideólogo do trabalhismo que o IPES combatia. Arlindo, diretor da Folha da Tarde e o sucessor natural do dono da empresa, Breno Caldas, recebeu a missão de produzir uma série de artigos contra Leonel Brizola, que já não tinha a simpatia da casa desde a Campanha da Legalidade do ano anterior.[20]

A animosidade cresceu no governo Jango. Brizola pegou gosto pelo microfone e batia regularmente em Breno Caldas às sextas-feiras, no seu programa noturno na rádio Farroupilha, que curiosamente fazia parte da rede dos Diários Associados do golpista Chateaubriand. O ex-governador adotava um tom coloquial e direto ao falar na rádio: “Dr. Breno, eu sei que o senhor está me ouvindo aí no seu iate ancorado no Guaíba…”. A chicotada vinha em seguida: “O Correio do Povo, que já foi jornal do povo, hoje não é. Agora é um órgão da oligarquia, dos monopólios, dos trustes internacionais…”, batia Brizola.[21].

Breno Caldas, ancorado no iate Aventura, levando torpedos pelo programa de rádio de Leonel Brizola

A resposta vinha na primeira página da Folha da Tarde, nos artigos assinados por seu diretor, Arlindo Pasqualini, o homem do IPES dentro da Caldas Júnior. Como bom fazendeiro e criador de cavalos, Breno tinha afinidades campeiras com Jango, a quem chamava por “tu”, expressão de intimidade entre gaúchos. (Para manter a distância, Breno sempre tratava Brizola pelo cerimonioso “doutor”). Quando o golpe aconteceu, acabaram as cerimônias.

Nos primeiros editoriais após o golpe de 1964, o jornal abandonou sua histórica divisa da primeira edição de 1895 – “independente, nobre e forte” – e aderiu à facção vitoriosa, assumindo uma postura subalterna à nova ordem militar. E escancarou seu apoio em editoriais didáticos para explicar por que os revolucionários do golpe de 1º de abril estavam certos: “Aquele era o único caminho para salvar o Brasil”, dizia o jornal que se pretendia independente, nobre e forte, fazendo o coro de submissão com a grande imprensa golpista do centro do país.[22]

Falando, Breno Caldas tentava matizar o que era mais explícito nos editoriais. Em 1987, dois anos antes de morrer, em entrevista ao jornalista José Antônio Pinheiro Machado, ele reconhecia: “A Revolução de 1964, de certo modo, contou com a nossa participação, ou pelo menos com a nossa simpatia. O pessoal que foi ao poder em 1964… não é que fosse ligado a nós, não tínhamos ligações políticas com ninguém…, mas eram pessoas afinadas conosco, estávamos no mesmo caminho. Quando houve a tal conspiração do Castello Branco, eu não sabia de nada oficialmente. Até que o general Adalberto Pereira dos Santos, que comandou o movimento por aqui, fez um contato comigo, me disse que a situação era crítica, que iria acontecer alguma coisa. ‘Fique atento a uma manifestação do general Castello Branco’, me disse ele”.[23]

O retrato da mídia pelo SNI

Esse era o terreno, agreste como o sertão alagoano, que Audálio Dantas me propunha percorrer, em dezembro de 1975, para recolher assinaturas para o manifesto que contestava o IPM do ‘suicídio’ de Vlado. O pedido poderia ter sido feito ao bravo presidente do Sindicato dos Jornalistas de Porto Alegre, João Borges de Souza, mas a precaução era a mesma exigida em São Paulo: era preciso cautela, para não expor o sindicato numa atividade politicamente provocante e dar aos militares o pretexto fácil da intervenção. Isso explica por que Audálio telefonou para mim, e não para o João Borges, um dos 1004 ilustres signatário do manifesto ‘Em Nome da Verdade’.

Três anos depois do assassinato de Vlado no DOI-CODI, a agência do SNI em Porto Alegre fez uma avaliação secreta sobre a imprensa gaúcha. Com todos os preconceitos e vícios típicos da ditadura, o relatório enviado à Agência Central em Brasília, em 20 de novembro de 1978, reflete a visão que o aparato repressivo do regime tinha da mídia de Porto Alegre, que certamente era muito parecida com a que visitamos nos idos turbulentos de dezembro de 1975.[24] Esse era o perfil que o SNI fazia dos principais jornais gaúchos, pouco depois da morte de  Vladimir Herzog:

  1. Correio do Povo: é o jornal mais tradicional do RS, que se mantém dentro de uma linha de jornalismo conservadora, apresentando as notícias de forma realista, séria e sem deturpações. Geralmente assume posicionamento concordante com o Governo Federal. Possui muito boa credibilidade junto à opinião pública;
  2. Folha da Tarde: vespertino de linha apolítica. Usa de linguagem moderada e imparcial nos seus artigos. Não faz oposição ao governo;
  3. Jornal do Comércio: jornal inteiramente dedicado a assuntos da área econômica. É bastante favorável ao Governo Federal.
  4. Folha da Manhã: matutino que frequentemente apresenta notícias e reportagens de conteúdo crítico contrário ao governo. Através de artigos, manchetes sensacionalistas e charges, distorce os fatos, apresentando-os com inverdades ou meias verdades;
  5. Zero Hora: jornal de grande circulação no Estado. Em seu editorial posiciona-se, geralmente, favorável ao Governo Federal. Porém, no seu todo o jornal dá maior destaque para a oposição e para qualquer assunto ou movimento contrário ao governo e ao Regime Político atual. Salienta-se, também, que ZH é o único jornal do Estado que divulga notícias da Agência NOVOSTI (APN) da UNIÃO SOVIÉTICA que, muitas vezes, são incluídas no noticiário de outras agências internacionais, intercalando-se o texto das mesmas, fato ocorrido particularmente nos recentes incidentes do AFEGANISTÃO.
  6. CooJORNAL: encontra-se dentro da mesma linha de orientação dos demais jornais da imprensa “ALTERNATIVA”, que atuam no País, apresentando conteúdo frontalmente contrário ao governo, às suas instituições e ao Regime Político implantado em 31 MAR 1964.[25]

Logo depois do inesperado telefonema de Audálio, peguei o texto enviado por telex pelo Sindicato de São Paulo, intitulado ‘Em Nome da Verdade’, de autoria de Fernando Pacheco Jordão, um dos integrantes da diretoria liderada por Audálio e autor, quatro anos depois, do livro Dossiê Herzog: prisão, tortura e morte no Brasil. O teor do manifesto tinha uma breve introdução e oito perguntas básicas, quase óbvias, para desmontar a farsa do IPM. Fiz três cópias e repassei duas aos meus dois repórteres na sucursal de Veja – Pedro Maciel e Adélia [Dedé] Porto da Silva.

Fomos os primeiros a assinar, junto com os outros integrantes de revistas da Editora Abril, cuja sucursal eu chefiava, incluindo jornalistas efetivos, colaboradores free-lancers e antigos integrantes da equipe que sempre circulavam por lá. Abriam a fila os fotógrafos Ricardo [Kadão] Chaves, Olívio Lamas e Assis Hoffmann, os repórteres da revista Placar Divino Fonseca e Mário Marcos de Souza, os colaboradores da Exame Maria Iara Rech e Affonso Ritter e minha secretária, Rejane Baeta.

Coletar assinaturas para um documento que confrontava diretamente uma investigação viciada do Exército sobre a morte de Herzog só podia ser uma responsabilidade coletiva, nunca individual. Um exemplo é que em dezembro, quando o manifesto começou a correr as redações de São Paulo, o meu repórter Pedro Maciel casualmente estava lá, fechando uma matéria. Na sede paulistana da Veja, no prédio da Abril na Marginal do Tietê, o secretário de redação, o gaúcho Paulo Totti, era o encarregado de colher as assinaturas. Quando Maciel se dispôs a assinar, ali mesmo, o experiente Totti observou: “Pedro, se assinares aqui, tu serás o único gaúcho em uma lista de jornalistas paulistas. E isso vai te expor muito. É melhor esperar que o manifesto chegue a Porto Alegre, para assinar lá”.

Audálio nos deu uma semana de prazo, mas achei que a tarefa deveria ser cumprida em um ou dois dias, no máximo, para atrair menos atenção, devido à delicadeza do momento, reduzindo assim nossa presença nas redações.

Decidi concentrar nosso esforço – eu, Pedro e Dedé –  em cinco desses jornais, que reuniam o maior contingente de jornalistas: os três da Caldas Júnior (Correio do Povo, Folha da Tarde e Folha da Manhã), a Zero Hora e o CooJORNAL.

Dedé, a mais simpática do trio, ficou encarregada de visitar a CooJORNAL, a primeira cooperativa de jornalistas do país, fundada em agosto de 1974 na esteira de uma crise na Folha da Manhã, quando 21 jornalistas (1/3 da redação) se demitiram em protesto contra a demissão do repórter Caco Barcellos, autor de uma vigorosa matéria contra a violência policial. Os 66 jornalistas que fundaram a cooperativa se multiplicaram até chegar a 314 associados, editando 33 jornais e boletins para sindicatos, empresas privadas e outras cooperativas, garantindo o sustento de quase 100 jornalistas que realizavam a utopia de uma empresa sem patrões, fazendo um jornal de jornalistas.

O CooJORNAL se orgulhava de ter ‘o maior expediente do mundo’, com mais de 300 jornalistas sem patrão e sem hierarquia, todos nivelados pelo cooperativismo. O jornal, assim, era um bravo integrante da chamada ‘imprensa nanica’, ao lado de publicações do centro do país como Movimento, Opinião, Versus, Em Tempo, Bondinho, Ex e o venerando O Pasquim, o irreverente semanário carioca que chegou a vender 200 mil exemplares, um sucesso de banca que afrontava a condição de ‘nanico’.

O mensário cooJORNAL se caracterizava por uma pauta criativa, centrada em fatos históricos, remontando episódios e citando personagens da oposição, dissidentes e pensadores de esquerda, que irritavam os militares. Um bom retrato do jornal foi desenhado pela própria Agência Central do SNI, na ‘Informação Confidencial nº 031, de 19 de agosto de 1980, que registrou com inusual precisão:

O periódico CooJORNAL, editado pela Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, caracteriza-se por divulgar artigos hostis ao governo. Apesar de a referida publicação ter tiragem de, apenas, 35 mil exemplares, seus artigos são comumente comentados pelos demais órgãos de imprensa, e passa, deste modo, a ter repercussão nacional. [26]                                                         

A cooperativa e seu pequeno jornal: ‘artigos hostis’ e ‘repercussão nacional’, segundo o elogio do SNI

No perfil da imprensa desenhado pela agência gaúcha do SNI, de novembro de 1978, o órgão de informações citava Elmar Bones da Costa (editor-responsável), Carlos Rafael Guimarães (redator), Osmar Trindade (secretário da cooperativa), José Antônio Vieira da Cunha (presidente da CooJORNAL), Renan Antunes de Oliveira (repórter), o chargista Edgar Vasques e Luiz Carlos Merten (redator). Bones, Vasques e Merten integram a lista final dos 1004 signatários do manifesto de 1976 dos jornalistas.

O SNI acusava:

Relacionamos os principais dirigentes e redatores do COOJORNAL, todos de tendências ideológicas ‘esquerdistas’, que em seus artigos fazem forte oposição ao governo e ao regime implantado em MAR de 1964.[27]

Bones, Rafael, Trindade, Vieira, Renan e Vasques: os ‘esquerdistas’ do Coojornal, conforme o relatório do SNI

Na redação do cooJORNAL, portanto, Dedé pisava em solo favorável a quem discordava do falso IPM sobre a morte de Vlado. Na redação bem mais ampla da Zero Hora, Pedro Maciel transitou por terreno mais delicado. A direção do jornal estava, desde 1970, sob o comando de Lauro Schirmer, um moderado e bem-humorado profissional que, na década de 1950, flertou com a política como candidato frustrado a deputado pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB).

No perfil da imprensa que o SNI desenhou em 1978, ele ganhou uma descrição crítica, mas o araponga do serviço de espionagem confundiu o PSB com o velho PCB:

Lauro Schirmer, diretor de redação: (…) antecedentes desabonadores por sua militância no PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO (PCB) e ligações com comunistas. Na direção da gráfica (…) que imprime o jornal ZH, permite a impressão de diversas publicações, entre as quais o COOJORNAL, que se caracterizam pela forte oposição ao governo e ao regime.[28]

Apesar daquele arreganho com o PSB na juventude, Schirmer comandou a ZH por 20 anos, atravessando incólume e bem-comportado os rigores da ditadura. Em 1976, ele achou prudente não assinar o manifesto dos 1004, mas seu filho, o fotógrafo Gerson Schirmer, é um dos signatários.

O secretário de Médici, o ‘comunista’ de Breno

A assinatura mais surpreendente coletada na Zero Hora por Pedro Maciel foi a do editor-chefe Carlos Fehlberg, que ocupou o posto na redação por 17 anos. Antes de chegar lá, em 1974, foi durante quatro anos o secretário de imprensa no Palácio do Planalto do general Garrastazú Médici, o presidente mais sanguinário do ciclo militar, mentor do DOI-CODI onde acabaria morrendo Vlado, sob tortura, já no governo de seu sucessor, Ernesto Geisel. Cordato e submisso, nunca se soube – nem durante, nem depois da ditadura – de qualquer contrariedade ou manifestação pública de Fehlberg contra a violência da repressão e a prática contumaz da censura à imprensa.

O primeiro e talvez único gesto de calculada dissidência, com certeza, foi o manifesto que Pedro Maciel lhe apresentou. Apesar de seu passado submisso e silente diante da ditadura, louve-se, ele ousou firmar em 1976 o abaixo-assinado que reafirmava a tortura e a violência que levou à morte de Vlado no DOI-CODI paulista. Fehlberg garantiu, assim, seu surpreendente e digno lugar entre os 1004 jornalistas inconformados com a farsa do IPM.                                                                                                        

Surpresa na ZH: Schirmer, ex-socialista, não assinou, e Fehlberg, ex-porta-voz de Médici, assinou

Coube a mim percorrer o território mais povoado e hostil da Caldas Júnior e seus três jornais. Escolhi o meio da tarde do início da semana, segunda ou terça, quando a redação está com as editorias a pleno vapor e os repórteres já retornaram da rua. Apesar do expurgo sofrido em 1974, a Folha da Manhã  de 1976 continuava sendo, para o SNI, “um matutino de notícias e reportagens de conteúdo crítico contrário ao governo”, que por meio de “artigos, manchetes sensacionalistas e charges, distorce os fatos e apresentando-os com inverdades ou meia verdades”.[29] Minha passagem por lá foi rápida e produtiva.

Na redação ao lado, da Folha da Tarde, a colheita foi mais árdua. Para o SNI, era um “vespertino de linha apolítica”, que “usa de linguagem moderada e imparcial nos seus artigos” e “não faz oposição ao governo”. O diretor de redação, Edmundo Soares, era definido pelo SNI como “sem antecedentes”, o que devia ser elogioso e confortável para a ditadura. O número 2 do jornal, o secretário de redação da FT, Adil Borges Fortes da Silva, mereceu esse perfil do SNI:

Elemento integrado ao Regime Revolucionário de 31 MAR 1964; anticomunista; (…) combate as organizações ‘esquerdistas’ e/ou oposição ao Regime. Ao mesmo tempo, faz propaganda do governo e de suas obras.[30]

Adil, na verdade, encarnava o jornalista-símbolo que a ditadura idealizava: integrado ao regime, anticomunista, antibrizolista, inimigo das oposições e ainda propagandista do governo dos generais. Além da mão-de-ferro sobre a redação, a partir de 1962 Adil passou a assinar uma coluna sob o pseudônimo de ‘Hilário Honório’, personagem oculta por onde o colunista regurgitava todo o seu antibrizolismo e deixava escorrer toda a sua aversão ao comunismo.

Enfurecido, o então governador Leonel Brizola dizia que tinha ‘perdigueiros’ no jornal que lhe revelaram a verdadeira identidade de HH. Dias depois, o desmascarado Adil colocou a imagem de um cão no cabeçalho da coluna e deu a ela o título de ‘Perdigueiro, por HH’. A coluna sobreviveu 22 anos, até 1984, véspera da queda da ditadura, o osso autoritário a que Adil Borges Fortes se atracou com a fúria de um cão esfomeado.                                                                                                                   

Adil, o colunista da Folha da Tarde: o ‘Hilário Honório’ que deixava Brizola furioso

Como manda o protocolo, procurei o diretor e o secretário de redação da FT, em primeiro lugar, para colher suas assinaturas. Como previa, nem Edmundo Soares, nem Adil Borges Fortes concordaram com o abaixo-assinado, e recusaram educadamente meu convite. Mas a base da redação, na sua maioria, apoiou o manifesto.

Chegou então a vez do carro-chefe da Caldas Jr., o Correio do Povo, o centenário e conservador jornal gaúcho, uma versão sulista do Estadão. A redação, com móveis pesados de madeira escura, combinava com a maioria dos jornalistas, já veteranos, muitos com suas cabeleiras amadurecendo do grisalho para o branco. Não procurei inicialmente nenhum deles.

Fui direto a uma figura destoante da redação, que ocupava uma mesa à esquerda da porta de entrada, fincada em um estrado de madeira de uns 10 cm que a colocava num patamar superior em relação ao vetusto cenário de editores e redatores. Era ocupado por um jovem que tinha a minha idade e a mesma aparência: 24 anos, cabeludo e barbudo. Nessa condição, era identificado aos sussurros pela provecta redação do Correio do Povo como ‘comunista’.

O improvável Edgar Lisboa era muito mais do que sugeria sua imagem iconoclasta. Era o homem, ou jovem, de confiança extrema do dono da Caldas Júnior, o ‘doutor’ Breno Caldas – o mesmo tratamento reverencial dedicado ao ‘doutor’ Roberto Marinho por seus companheiros de O Globo. No papel, Lisboa tinha o mero título de Editor de Coluna, mas na prática era uma espécie de Diretor-Assistente do dr. Breno, que tinha um gabinete fechado, com porta de vidro, logo atrás da mesa dominante de Lisboa. Ninguém alcançava a sala de Breno Caldas sem passar por ele, ou por sua aprovação.

Lisboa, o ‘comunista’ do Correio do Povo, e o poeta Quintana, com o cigarro e o sorriso

Com a bênção de Lisboa, comecei a percorrer a redação. Pela hierarquia, fui direto à mesa do chefe de redação. Então com 62 anos, Adail Borges Fortes da Silva ocupou aquela cadeira por espantosos 39 anos. No perfil traçado pelo SNI, Adail era apresentado como “integrante do Diretório Nacional da Liga de Defesa Nacional/RS (…) comprometido com os ideais da revolução de MAR 1964”.[31] E era o irmão mais velho de Adil Borges Fortes da Silva, o ranzinza ‘Hilário Honório’ da Folha da Tarde, a cara mais reacionária e radical da família.

Apesar do parentesco e da ficha, Adail foi extremamente simpático e assinou, sem qualquer contestação, o manifesto contra o IPM de Vlado. O seu gesto de assentimento abriu uma clareira de aceitação no Correio, onde minha tarefa se mostrou muito mais fácil do que parecia – após as assinaturas pioneiras de Lisboa e de Adail.

A causa e o sorriso do poeta

Acerquei-me então de uma mesa sem máquina de escrever, ocupada por um redator de 69 anos, trajando um burocrático terno e gravata de tons escuros. Pernas cruzadas, tinha o olhar perdido nos círculos de fumaça que ele desenhava com o cigarro e que se dissolvam lentamente no ar. Minha chegada o tirou de suas divagações e, sem descruzar as pernas, abriu um sorriso doce, acolhedor, que dissolveu meus receios. Eu estava diante do maior poeta do país, Mário Quintana, o único sobrevivente de uma nobre linhagem que incluía Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes.

Desde 1953, aos 47 anos, Quintana editava a página literária de todo sábado no Correio do Povo, onde brilhava o seu lendário ‘Caderno H’, uma sucessão de epigramas construídos com sutileza, ironia e graça. Além de sua página semanal, ele copidescava o texto dos repórteres, fazia títulos e traduzia telegramas das agências de notícias. Tradução era sua praia: fluente em francês e inglês, verteu mais de 130 obras da literatura universal, incluindo Proust, Balzac, Voltaire, Virginia Woolf e Saint-Exupéry.

Quem imagina que ser poeta é uma condição inescapável de nefelibata, não deve estar pensando em Mário Quintana, que nem gostava de ser chamado assim: “Poeta não é profissão. É um estado de espírito, ou coma. Minha profissão é jornalista. Assim está escrito na minha carteira profissional”, escreveu ele. E para quem acha que poesia é a fronteira da abstração, Quintana completou: “Eu não entendo nada da questão social/ Eu faço parte dela, simplesmente…” Na ditadura do AI-5, o poeta se deparou com a censura, quando viu sua editora desistir de publicar o primeiro livro infantil – Pé de Pilão – ao tremer diante dessa frase ameaçadora: “O soldado é um cavalo montado noutro cavalo”. Ao votar na eleição de 1989, a primeira para presidente em três décadas, Quintana quebrou a discrição e, veemente aos 83 anos, abriu seu voto com um verso profético: “Esse Collor tem olho de louco. Vai acabar com todos os marajás e só vai sobrar ele”. [32]

O doce Quintana pegou o abaixo-assinado do IPM, leu rapidamente a introdução do texto que contestava o Exército, alargou ainda mais o seu sorriso, em mudo mas eloquente atestado de concordância, assinou e me devolveu. Sempre sorrindo, sem dizer nada. Nem precisava.

Nessa jornada de apenas dois dias pelas maiores redações de Porto Alegre, cumprindo a honrosa pauta de Audálio Dantas, nós conseguimos 139 assinaturas – quase 30% das 467 publicadas originalmente na edição do Unidade, o jornal do Sindicato de São Paulo. Um número espantoso que nos encheu de orgulho.

Mas, a assinatura que mais me emocionou foi a do poeta sempre jovem e quase septuagenário.

Quintana disse uma vez: “Uma boa causa não salva um mau poeta”.

A boa causa pela verdade sobre a morte de Vladimir Herzog ganhou, com Mário Quintana, a força e a perenidade do poeta imortal.

 

* Luiz Cláudio Cunha, chefe da sucursal de Veja em Porto Alegre, tinha 24 anos em dezembro de 1975, quando recebeu de Audálio Dantas a tarefa de coordenar a coleta de assinaturas no Sul para o manifesto contra o IPM do ‘suicídio’ de Herzog.

 

REFERÊNCIAS

[1]DANTAS, Audálio. As duas guerras de Vlado Herzog. Rio de Janeiro, ed Civilização Brasileira, 2012, p. 268.

[2]DANTAS, op. cit., p. 261-262.

[3] D’ARAUJO, Maria Celina. CASTRO, Celso (orgs). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 371. O que para o general Geisel era um probleminha, para o capitão Jair Bolsonaro não passava de uma fatalidade. Entrevistado na RedeTV na campanha de 2018, ele afirmou sobre a morte de Vlado: “Suicídio acontece. O pessoal pratica suicídio”. Nem mesmo o jornalista e astrólogo Olavo de Carvalho, guru de Bolsonaro, teve essa indulgência. Surpreendentemente, ele é um dos 1004 signatários do manifesto de 1976 que duvida do ‘suicídio’ de Herzog.

[4] Assis Chateaubriand, o dono dos Diários Associados, então a maior cadeia de imprensa do país, era mais poderoso que Roberto Marinho do Sistema Globo, florescido depois do golpe. No início da década de 1950, Chateaubriand foi citado pelo The New York Times como o ‘Cidadão Kane brasileiro’, versão tupiniquim do magnata americano William Randolph Hearst, que inspirou o filme clássico de Orson Welles. O americano não era páreo para o brasileiro. Diante dos 28 jornais e 18 revistas de Hearst, Chateaubriand ostentava um rosário midiático de 34 jornais, 36 emissoras de rádio e 18 de TV integrantes da rede Tupi, além da revista O Cruzeiro (a maior tiragem do país, 700 mil exemplares no auge dos anos 50).

[5] MOTTA, Cézar. Até a última página. Uma história do Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, ed. Objetiva, 2018, p.133-134.

[6] Na madrugada de 2 de abril, Jango ainda estava em Porto Alegre, discutindo a reação ao golpe, que não aconteceu. A falcatrua histórica só foi corrigida pelo Congresso 50 anos depois, em novembro de 2013, quando aprovou resolução dos senadores Pedro Simon (PMDB) e Randolfe Rodrigues (PSOL) revogando o conluio de militares e parlamentares que votaram apressadamente a vacância da presidência quando Jango ainda se encontrava em solo brasileiro. Assim, foi devolvido simbolicamente o mandato usurpado a Jango, rebaixando o general Castelo Branco à condição rasa de comandante golpista.

[7] MOTTA, op. cit., p. 136.

[8] CONY, Carlos Heitor. “Um basta no ‘basta’”, Opinião, Folha de S.Paulo, 30 de novembro e 2002.

[9] CUNHA, Luiz Cláudio. Máximas e mínimas: os ventos errantes da mídia na tormenta de 1964. Capítulo de ‘Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e memória’. Org.: Enrique Serra Padrós, Vânia M.Barbosa, Vanessa Albertinence Lopez e Ananda Simões Fernandes. Porto Alegre: ed. Corag, 2009, v. 1, p.179-222.

[10] VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

[11] Audálio Dantas. 50 anos do golpe de 1964.  Estudos Avançados, USP, SP, vol. 28, nº 80, jan/abril 2014. Disponível em  https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142014000100007. Acesso em 24nov2020.

[12] Carlos Eugênio Paz. Entrevista a Rodrigo Vianna. Blog O Escrevinhador, 17 abr. 2009. Acesso em: 19set.2009.

[13] KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. Ed. Boitempo, 2004. Aggio, que nega a acusação, contestou sem sucesso a autora na justiça.

[14] DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis, RJ: ed. Vozes, 1981, p. 103.

[15] DREIFUSS, op. cit., p. 188.

15 Ennio Pesce é um dos 1004 signatários do manifesto de 1976 contra o IPM de Herzog.

[17] DREIFUSS, op. cit., p. 188.

[18] BARROS, Jefferson. Golpe mata jornal. Desafios de um tabloide popular numa sociedade conservadora. Porto Alegre: ed. JÁ, 1999, p. 156.

[19] BARROS, op. cit., p. 158.

[20] DREIFUSS, op.cit., p. 233.

[21] PINHEIRO MACHADO, José Antônio. Breno Caldas. Meio século de Correio do Povo. Glória e agonia de um grande jornal. Porto Alegre: ed. L&PM, 1987, p. 72

[22] GALVANI, Walter. Um século de poder: os bastidores da Caldas Júnior. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995, p. 411.

[23] PINHEIRO MACHADO, op.cit., p.78.

[24] Os detalhes do relatório de cinco páginas da Informação nº 26, enviado à Agência Central do SNI em Brasília em 20/nov/1978, sob o título ‘Acompanhamento da Atuação da Imprensa no RS – 4.3.5”, produzido pelo 119 APA (Agência Porto Alegre do SNI), o setor do campo interno encarregado da subversão, estão publicados no meu livro Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios, (ed. L&PM, 2008), nas páginas 288-293.

[25] CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios. Porto Alegre: ed. L&PM, 2008, p. 290.

[26] GUIMARÃES, Rafael; CENTENO, Ayrton; BONES, Elmar. CooJORNAL: um jornal de jornalistas sob o regime militar. Porto Alegre: ed. Libretos, 2011, p. 17.

[27] CUNHA, op.cit., p. 293.

[28] CUNHA, op.cit., p. 292.

[29] CUNHA, op.cit., p. 289.

[30] CUNHA, op. Cit., p. 291.

[31] Informação nº 26, Agência Porto Alegre/SNI, de 20/nov/1978, apud CUNHA, op. cit., p. 291.

[32] CUNHA, Luiz Cláudio. A glória do texto: Mário Quintana. In Vintenário: duas décadas da IMPRENSA em revista. São Paulo: Imprensa Editorial, 2007. Revista IMPRENSA, dezembro de 1990, ano IV, nº 40, p. 334-337.

Apêndice

Além das manifestações poéticas, muitas e variadas maneiras foram usadas por prisioneiros e perseguidos para levar suas vidas avante e superar os maus momentos por que passavam. Por seu dramatismo e exemplo, trazemos três delas: a carta do raptado Dirceu Messias desde o Es­tádio Nacional do Chile; a carta do sequestrado Sargento Raimundo Soares, desde a Ilha do Presídio; e os rabiscos da sequestrada Vera Ligia Durão nas paredes da cela do DOPS em Porto Alegre. Por certo não têm voo poético, mas são verdadeiros hinos de amor à vida e à esperança.
 
Dirceu Luis Messias
Natural de Porto Alegre, trabalhador ativista do Sindicato dos Eletricitários de Porto Alegre, procurou refú­gio no Chile democrático da Unidade Popular. Nos dias imediatos ao golpe de estado de 1973, foi detido junto a co­legas da Manutenção Industrial Gemo, passando por todo tipo de sevicias. No Ginásio Chile, presenciou maus tratos ao músico Victor Jara, e já no Estádio Nacional padeceu jun­to aos demais 120 brasileiros e milhares de outros cidadãos novos períodos de padecimento.
 
Carta desde el Estadio Nacional de Chile, setembro de 1973
Querida Gorda
Hoy despertamos a las 6 de la mañana, lo que ocur­rió con todos los detenidos del Estadio. Formamos un gru­po dentro de la cancha y se dividió el grupo de los chilenos y el de los extranjeros. Posteriormente fuimos todos traslada­dos al Setor Norte Poniente, donde hubo nueva división – el camarin 3 tocó a los de Justicia Militar y los restantes a los que deben abandonar el pais y ser expulsados. Ayer (17) fué un dia no muy bueno para mi; fui interrogado nuevamente y recebi la noticia de la muerte del brasileño Wanio, ocurri­do en el Hospital de Campaña del Estadio.
 
Manoel Raimundo Soares

Manoel Raimundo Soares

Nascido em Belém do Pará, Manoel mudou-se para o Rio de Janeiro e ingressou no Exército em 1955, sendo transferido em 1963 para o Mato Grosso como represália por suas posições políticas. Após abril de 1964, teve a prisão decretada e passou a viver na clandestinidade, no Sul, vinculado ao Movimento Revolucionário 26 de Março, que planejava ações de resistência ao regime. A partir de seu sequestro em março de 1966, suportou vários meses de torturas em diferentes dependências repressivas conforme relato de outros prisioneiros, ficando um período com destino ignorado, provavelmente no sitio clandestino chamado “Dopinha”. Após reaparecer no DOPS, em 24 de agosto, cinco meses depois de sua prisão, seu corpo foi encontrado boiando no Rio Jacuí com as mãos amarradas às costas. Este famoso “caso das mãos amarradas” foi objeto de CPI da Assembléia Legislativa, que indicou mandantes e executores civis e militares, ainda impunes. A viúva Elizabeth Chalup conservou algumas cartas enviadas por Manoel, durante seus últimos meses de vida. O nome de Manoel designa atualmente dezenas de logradouros e escolas em todo o Brasil.
 
Carta de Manoel Raimundo Soares a sua esposa Elizabeth Soares, em 1966
Estou vivo. Estou calmo. Tão logo eu seja posto em liberdade, e isto ainda vai demorar, vamos ter uma nova lua de mel. Aproveito para lembrar-te que meu pensamento é só para ti. Durante todas as horas dos últimos dias, não sais do meu pensamento. O banquinho na cozinha, os beijos nos olhos, tudo aquilo que liga meu corpo à tua alma.
Mil beijos e um caminhão de abraços”.
Raimundo.
 
Vera Lígia Huebra Neto Saavedra Durão
Nasceu em Laginha, pequena cidade da Zona da Mata, de Minas Gerais. Estudou em Belo Horizonte, onde terminou o segundo grau. Lutou contra a ditadura e foi presa em Porto Alegre, em junho de 1970. Casou-se em 1971 com Jorge Eduardo Saavedra Durão, companheiro de clandestinidade. Concluiu o curso de jornalismo na UFF, em Niterói, após sair da prisão em 1974. Trabalhou em diversos jornais do país, como Jornal do Brasil, O Globo, Folha de São Paulo, Gazeta Mercantil e Valor Econômico. Vive no Rio de Janeiro junto ao marido, com quem têm duas filhas, Mariana e Carolina, as quais compartilham os valores democráticos e da defesa do Estado de Direito contra a volta dos regimes autoritários em todo Mundo.
Texto esculpido a estilete (talvez com um grampo de cabelo), com letra de forma impecável, na parede da cela nº 1 – masmorra chamada “fossa”, do DOPS de Porto Alegre, resgatado na memória de um preso subsequente, e identificado por associação de nomes e épocas:
“Abraços aos companheiros que por aqui passarem. Que a confiança na revolução socialista não os deixe sucumbir os incentive a lutar e a vencer.”
Vera Lucia (VAR-Palmares).

Nei Duclós

Nei Duclós

Nei Duclós (Uruguaiana, RS, 1948) estreou como poeta pregando poemas em cartolina nas árvores das praças de Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, junto a outros autores da mesma geração. Mesmo sob o ambiente opressivo do regime militar, lançou seu primeiro livro, Outubro, em 1976. Em 1979, foi a vez de No Meio da Rua, apresentando a seguir No Mar, Veremos (2001), assim como Partimos de Manhã, em 2012, todos de poesia. Publicou como romancista, como autor de literatura juvenil, de livro de contos e crônicas. Trabalhou em veículos de comunicação como Folha de S. Paulo, IstoÉ, Senhor e foi colaborador de Veja e Estadão com resenhas de livros. É formado em História pela USP desde 1998. Nos últimos anos, lançou vários e-books de poesia, contos e crônicas, e participa com ensaios, artigos, contos, crônicas e poesia nas mídias sociais. Publica poemas e contos na revista virtual Sagarana, editada em italiano. Teve poemas traduzidos para o inglês na revista novaiorquina Rattapalax. Participou de diversas antologias.
 
Carta ao companheiro exilado
Aqui, o sol obstinado
ainda banha a folhagem
a chuva nos visita
e deixa o arco-íris quando parte
As cores da saudade
abriram a palma
de nossa mão pálida
e a vontade de buscar-te
soltou-se como um raio
Descobrimos que era muito tarde
Agora, que a madrugada se acaba
e o sol nos dá na cara
não sabemos o que fazer
com esta ressaca
Batem nas portas e revistam roupas e pacotes
Estamos na praia do naufrágio
Do mar vieram boiando coisas mortas
entre elas
nossos sonhos e emboscadas
 
Cais
O passageiro não perde a vez de partir
e parte
pois é tarde
Este cais apodreceu as cordas
que soltam a sua carne
Os bares silenciam
a memória é uma cadeira que ringe
como um cofre de vime
(o que passou não é sonho
é desafio)
De pé, a mão na vista
ele toca o horizonte com a saliva
Sua boca guarda um aviso
(o tempo é um susto, uma víbora)
 
Apesar de tudo
Apesar de tudo
sou teimoso
e vivo
sou teimoso e visto
a pele dos soldados mortos
Neste carrossel de espanto
que carrego dentro dos olhos
toco melodias
que me ressuscitam
Levanto com esforço
as âncoras e parto nas naus sem volta
do meu canto
E sempre tenho que mudar as velas
arrebentadas de vento
com remendos colhidos
dos violentos panos do tempo
O tempo é novo
e eu tenho a mania insone
de rebentar em pranto
Mas sou teimoso e insisto
sou teimoso e visto
a pele dos soldados mortos
 
Outubro
Trago a nova: eu mudo
lento, e é tudo
Sinto ser assim
por estações: aos turnos
Posso voltar
ao ponto de partida
mas luto
Sei que vem outubro
Flores, fruto de seiva
romperão no mundo
(Trabalho duro:
sugar de pedras
rasgar os caules
colher ar puro)
Lento e bruto
eu mudo
Sei que vem
outubro
 
Toca
e os meus mortos
quem chora
os milhares que caem
enquanto passo?
o exílio, quem paga
e a tortura, seu fruto
quem devora?
somos herdeiros
da vida amarga e da morte
as prisões cobrem
o canto dos escravos
com a mão no horizonte
os bravos aguardam
breve
sairemos da toca

Luiz Eurico Tejera Lisboa (Ico)

Luiz Eurico Tejera Lisboa (Ico)

Luiz Eurico Tejera Lisbôa, conhecido como Ico, nasceu em Porto União (SC), em 19/01/1948, mas desde criança viveu no RS, em Caxias e Porto Alegre. Ao se intensificar a luta contra a ditadura, na década de 60, Ico liderava – com outros companheiros – o movimento estudantil secundarista, através da União Gaúcha dos Estudantes Secundários – UGES. Em novembro de 1969, foi condenado pela LSN a seis meses de prisão pela tentativa de abertura de entidade ilegal, no caso o Grêmio Estudantil do Colégio Julio de Castilhos. Como militante da ALN, fez treinamento em Cuba a partir do final de 1970 e regressou ao Brasil em 1971, no auge da repressão política. Em setembro de 1972, foi sequestrado e desapareceu em São Paulo. Em agosto de 1979 a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, onde sua esposa Suzana Lisboa teve papel protagônico, anunciou o achado de seu corpo, sendo o primeiro dos desaparecidos localizado, enterrado com nome falso no Cemitério Dom Bosco, em Perus (SP). Somente em 2012, uma análise dos peritos da Comissão Nacional da Verdade, atestou que foi assassinado, contestando a versão oficial de suicídio. Em 1993, foi publicado o livro Condições Ideais para o Amor, com poesias e cartas resgatadas por seus familiares. Em 1999, nova edição do livro, com editoração de Nei Lisboa, apresentação de Luiz Pilla Vares e texto de Noeli Lisboa.
 
Tempo Novo
Há um Novo Tempo
De novas coisas!
Todos sabem
A mudança é irreversível
Mas as velhas formas
Não cedem sem um último gesto
De desespero.
O importante é persistir
Confiar na vitória do Povo.
Avancemos
Seguros
Passo a passo.
Pois a história não se volta
Sobre sí mesma
É uma espiral infinita
Que nada consegue deter!
Porto Alegre, 11/6/66
 
Liberdade
Há um povo que sofre
Há um povo que geme
E há outros
Como eu
Que embora
Saibam desse sofrimento
E ouçam esses gemidos
Não sofrem
E não gemem.
Ah prisão de minha classe!…
Amarras de minha família
Cordames de meus vizinhos
Tendões de meus amigos
Redes de meu lar e minha escola
Todos! Todos eu rompi.
E encontrei melhor família
Na fraternidade universal
Melhores amigos
Nos companheiros de luta
E dei sentido à vida
Ao lado dos que sofrem
E dos que gemem
Ah! Prisão de minha classe…
Pouco a pouco
Aumenta a brecha de teus muros
Pouco a pouco
Encontro a minha LIBERDADE.
Santa María, 15/2/67
 
Procuro o Homem do Povo
Procuro o homem do povo
o proletário
o camponês
o assalariado
Procuro o homem do povo
o explorado
famélico
desabrigado
o que dorme na mansidão
do não saber.
Procuro o homem do povo
para ultrapassar a frieza
do vocabulário político,
e ver na “massa oprimida”
nas “contradições sociais”
na “luta de classes”
nas “análises da realidade”
o homem do povo.
Renuncio à Revolução calculada
milimétrica e friamente
no racionalismo tecnicista
dos “cientistas”
da transformação social.
Hoje
procuro o homem do povo.
quero além da ignorância
além da fome
além do frio
o homem que se consome
nessa dor.
Quero as mesmas contorções
de suas entranhas
sem alimento.
as mesmas chagas
de seu corpo maltratado.
As mesmas lágrimas
o mesmo sofrimento
a mesma angústia
de não compreender.
Hoje
quero ser um homem do povo.
Viver por um día
as estatísticas
dos levantamentos do Partido.
Fugir por um momento
ao jargão, ao palavreado
e chegar ao real.
Quero uma mente rústica
que até mesmo creia em Deus
e outras divindades.
Quero um corpo dorido
e um olhar sem luz
perdido languidamente
no incompreensível.
Quero vender meus braços
sufocar minha voz
amordaçar-me
crucificar-me todos os días.
Hoje
serei um homem do povo
porque necessito
mais do que os dados minuciosos
mais do que a ciência.
Busco o sofrimento
naquele que sofre
para amá-lo
acima dos pronunciamentos políticos
para que nasça em meu peito
o ódio incontrolável
que dê força às minhas mãos
e torne certeiros os meus golpes!
Procuro o homem do povo
porque recuso
a mistificação revolucionária
dos gabinetes.
Porque necessito
Paixão em minha luta
entusiasmo em minha voz
firmeza em meus passos
amor a meu povo
e fé na sua vitória.
18/4/68
 
Patos azuis em meu pensamento
Patos azuis selvagens
dos grandes lagos
pousaram resvalando
na limpidez de meu pensamento
esta manhã
as águas se abriram
silenciosas, ternas
como uma mulher que ama.
espadanar de espumas
carícias de luz
paraíso de cores
verdes planícies
das cobiçadas terras do sul
estive preso num iceberg
navegando no
mar das Antilhas
ao longo da ilha de Cuba
Ah!… doce calor
que me liberta…
as águas engolem as águas,
meus olhos se abrem,
caem os últimos cristais de gelo,
movo lentamente
os membros entorpecidos,
saboreando a surpresa
desta exótica liberdade
milhares, milhões
de patos azuis selvagens
dos grandes lagos
pousaram resvalando na limpidez de meu pensamento
esta manhã.
1968/1969
 
Noite singular
Dos limites do mundo
Eu espiava as coisas humanas.
Tu chegaste no seio da noite
E me levaste à outra margem.
Juntos na escuridão partimos,
Teu coração palpitante,
Meu coração palpitando,
Lado a lado
Na unidade natural de nossos caminhos.
Os grandes ventos da noite
Agrediram nossas faces
Mas nós seguimos
E nossas mãos se enlaçaram.
Os grandes ventos da noite
Agrediram nossas faces
Mas nós sorrimos
E nossas almas
Se inundaram de ternura.
 
Singular instante de tristeza
Há na simplicidade do teu gesto
um aceno inexplicável para mim,
na limpidez do teu olhar
há um momento turvo
que não posso comprender.
E o teu sorriso se torna
às vezes
sério
sem que eu saiba o porquê.
É verdade…
conheço todos os caminhos
do teu corpo.
Mas ignoro as trilhas misteriosas
De tua alma de menina e de mulher.
E embora eu te ame
e eu te deseje tanto
há nessa felicidade sem par
um instante singular de tristeza.
 
19 de janeiro
19 de janeiro
19 anos
Só.
19 de janeiro
e eu choro
de saudades
do Bolão
do menino sardento
sempre no 1º lugar
do gurizinho briguento
que ia pra rua
de bodoque
enfrentar a espátula
do filho do vizinho
do menino que tinha
um sonho encantado
uma menina linda
de rabo-de-cavalo
e fita na cabeça.
Saudades do Bolão
tão tímido que chorava
envergonhado
do apelido
que eu hoje
mergulho no tempo
só pra ouvir novamente.
Do Bolão que jurou ser
“um grande herói”
-“um dia”.
Do “campeão” de botão
Do “chutador” de sorvete
Do Bolão mentiroso
Que aos 15 anos
Já tinha mil casos de amor.
19 de janeiro
19 anos
Só.
Quanta saudade!…
 
Balada de Ham-Li
Na pequenina aldeia
de Luang-Dinh
um menino
de pele amarela
e olhos rasgados
está
silencioso
deitado no chão.
Seu nome
Ham-Li.
As mãos
as pequeninas mãos
de Ham-Li
estão crispadas
retorcidas
por uma grande dor.
Os pequeninos braços
fortes de Ham-Li
– menino camponês –
estão descarnados
e já se decompõem.
A pequenina face
de pele macia
onde brilhavam
os negros olhos rasgados
o menino Ham-li
escondeu-a no ventre aberto
para que o mundo
não visse tanto horror.
Mas ao pequenino coração
do menino Ham-li
o napalm
não poderá jamais atingir!
Entre os escombros
da pequenina aldeia
de Huang-Dinh
um menino
de pele amarela
e olhos rasgados
está
silencioso
deitado no chão.
O pequenino coração
pulsa
inalterado
sobre todo o Vietnã.
 
Longa a Marcha
É longa a marcha
– camarada –
As sombras envolverão
nossos passos mudos
em eterno caminhar
O inimigo se aproxima
e já nos alcançam
os ruídos cautelosos dos seus batedores.
Avancemos
Não se trata
simplesmente
de nossas vidas
– camarada –
Essa verdura
esse andar
sem fim
já nos deram
a medida
da nossa pequenez
É a chama que
devemos
manter acesa!
Ela ainda é tímida
incerta
bruxuleante
O dever é protegê-la
alimentá-la
eternizá-la
ela é o coração do povo
que inicia a palpitar
Dantos e Bustos
lhe ofereceram
em holocausto
a própria liberdade
Ramon entregou-lhe
a vida em Camiri
sem hesitar
O sangue de Bolívar
e San Martin
verteu em Bolívia rebelde!
E a chama agigantou-se
no peito ardente do povo.
 
À Camarada que Fica
Adeus. Doce amada.
É preciso partir.
Seguirei tranquilo por outros caminhos
pois nosso andar
busca uma mesma pousada.
Breve descansaremos na Rubra Aurora
de nosso Povo.
Mas preciso confiar-te
que dou às cegas muitos dos meus passos largos
que são frágeis as minhas pernas
e muito dura a jornada.
Só em teus olhos encontrarei a luz
Que iluminará meu caminho.
No mais profundo do teu ser
fortalecerei meu corpo,
firmarei meus passos,
acumularei energias
para o desafio do presente.
Em tuas mãos aquecerei as minhas
para enfrentar o rigor dos tempos.
E se algum dia
– meu anjo lindo –
novo amor florescer em tua vida
ainda assim
pensa sempre em mim
com carinho
porque estarei pensando em ti
e estarei sozinho.
Junho/1968.
 

Luiz de Miranda

Luiz de Miranda

Poeta nascido em Uruguaiana (RS) e já com mais de 48 anos de carreira literária, tem 41 livros publicados. Premiado em diversos países, tem uma carreira poética consagrada, onde se destacam as obras Quarteto dos Mistérios, Amor e Agonias, Trilogia do Azul, do Mar, da Madrugada e da Ventania, Trilogia da Casa de Deus, Canto de Sesmaria, e Nunca Mais Seremos os Mesmos. Miranda participou da luta armada contra a ditadura militar. foi preso em Uruguaiana, em 1969, e no Teatro de Arena, em Porto Alegre, em 1971. Mesmo caçado pela polícia política dos militares, participou em São Paulo de ações da resistência democrática.
Artefatos para cumprir a vida
I
Nasci em Uruguaiana
com todos os benefícios da memória
O rio Uruguai é o mar de infância
pendurando no rosto
a fuselagem de meus ossos
II
Quando indaguei
no transe das coisas íntimas
agora prendo nelas o tambor do meu desejoas fatias desprovidas destes dias
Quanto dói a lonjura
que fecha nossa infância
e mais se sabemos rompido
o caminho da lembrança
III
Onde tenho a injustiça
me detenho
não há entrave no meu canto
e canto (prova mais dura
de ser presente – não aparente)
o que resiste e sem demora
veste a roupa de sua hora
Para tanto
asilar as dores de cabeça
em carreiras
despedir dos relógios
a despedida
ser de resguardo
nos guardados
da esperança
Asilar o primeiro amor
o coração desabitado
e nesse arredo
suspender dos meses a solidão
arredar o medo
sem o segredo do transporte
ao visto vigiá-lo
como pedaço do próprio corpo
IV
Em todos os nortes e ventos
disponho os trastes inábeis
já auferi a vida outro trajeto
e abandono de vez
a ressaca dos domingos
Haverá quem pergunte
coisas mais solenes
haverá quem indague
no branco das camisas
nas gravatas e sapatos
minha altivez
Não isso não
a vida é corredor sem regresso
derivando derivando
aonde se abandona
o mofo do regime
V
Ah! uma canção
lonjura de pó
nas paredes que me cobrem
Tanta morte enfeixa
minha camisa de brim
que morrer faz a diferença
na distância
onde meu sonho se anuncia
Tanta morte equilibra no meu ombro
no lado esquerdo
onde escondo o pensamento
que viver é ir com todos
sem nunca se perder
VI
Na linha do horizonte
a justiça equilibra seu pronome
é deveras distante
é deveras enrolado ao falso de seu nome
nos documentos vigentes do sistema
A justiça é porto seguro
represa de vento
onde desembarcamos a vida
é porta operária
onde o tempo é arma acesa
e fantasma
VII
Onde tenho a injustiça
me detenho
Sou desembarcado
não por desejo
nos domicílios de mil novecentos
e setenta e dois
num abril que resseca minha idade
Sou desembarcado
e desde muito
teço junto aos irmãos
nova rede nova arma
Não exaspera minha descida
nesta hora
aprendi do caminho
como a serpente
o veneno de si mesma
Aprendi não de repente
a rebeldia elementar
e nos seus volumes cinzentos
fundei minha casa
Golpe a golpe
desmembramos o dia
o difícil instante
onde fundamos nossa casa
VIII
A vida é o trajeto vivo
cumpre movê-la
suspendendo nos dentes
o mal nascido
mas até amanhã
onde até dezembro
colocar a mão desprovida
o coração maduro que despencou?
O amor
ainda censurado
é permitido às palavras
nelas fazemos muradas e abrigos
em dia de boa paz
o roto amar da vida
Onde antes que a noite
permita todo seu pasmo
colocar o sal e a pólvora
e tristeza e as horas
roubadas dos relógios?
IX
Ah! canção para cumprir a vida
sempre adiada
artefato de sonho
para cobrir o que me falta
o que me resta
Todo o desigual
é uma distância sem perdão
e mofa em nossos olhos
 
In memoriam
A selva
salva
o peito
da bala.
A fala
da bala
estala
na selva.Fuzis carregados
carregam os homens
que morrem sem nome
no meio da mata.
Guerreiro
Guerrilha
Guerrilheiro
teu grito de selva repousa nas praias
teu gesto de luta dorme na história
Um homem sem pátria
dentro da noite arrasta
medalhas e glórias
da sala
sem bala
Coragem
couraça
da raça
A praça é livre
a selva é densa
não morre a crença
de um homem forte.
As garças já partiram
no sopro curvado do meio-dia
– quando um homem morria
O horror do mês presente
cospe dos montes frases de pedra
– quando um homem morria
A noite espreita o barraco
e a mulher grita o filho
– quando um homem morria
Cruzou a noite na ciranda estrelada
rumou para os campos do sem fim
na sua túnica de madrugada
levando no peito
um preito de luta
era Che Guevara que já não escuta
Fuzil
fusão
da mão
– em terra e sangue
Dormiu nos montes
e sob pontes
a terra seca comeu-lhe o rastro
a guerra louca comeu-lhe o corpo
Madrugada abriu seu manto
guerreiro abriu seu canto
madrugada já se foi
guerreiro também foi
num carro de boi
para a terra que Deus dará.
A morte é absoluta
em Che Guevara que já não escuta.
 
Ponto de Partida
A Alceu Valença
Não sonharei o impossível
nem aurora
a luz vem luzindo
sua desesperada agonia
o passado move
sua chuva de caspa e cinza
Não me queiram cordato
sou sempre o reverso
o horizonte inacabado
quando me julgam morto
renasço com os caídos e mato
para morrer de novo
à lucidez das palavras endurecidas
Alerta, neste quarto emprestado
à beira do coração
me sustento de miudezas
substantivos, verbos, adjetivos
complementos do cotidiano
e construo a esperança
como quem se salva
para salvar
Alerta na pampa
casa e coração
cinza no osso da dor
cinza no rosto do amor
arsenal da solidão
arreios da vida inteira
Não sonharei o impossível
revoa a angústia
como pássaro sem prumo
nossos mortos, nossa morte
escuro silêncio
espaço sem ar
desequilibrando no céu
o algodão das palavras
Desequilibrando no céu
as aves de pouso alto
o alarme geral
das armas e das canções
Desequilibrando, desequilibrando

Emanuel Medeiros Vieira

Emanuel Medeiros Vieira

Natural de Florianópolis (SC, 1945), formado na UFRGS em Direito, 1969, participou ativamente da militân­cia estudantil. Escritor de romances, poesias e memórias, com vinte e três livros publicados, participou de mais de cinquenta coletâneas no Brasil e no exterior. Membro da AP (Ação Popular), esteve preso durante meses na OBAN (Operação Bandeirantes) e no DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social), em São Paulo, seguindo posteriormente ao exílio. Foi vendedor de livros, editor, professor e redator de discursos. Seu romance “Olhos Azuis – Ao Sul do Efême­ro” (2009) -, foi contemplado com o Prêmio Internacional de Literatura, concedido pela UBE (União Brasileira de Es­critores).
 
Desterro
Desterro cumpriu-me
e cumpriu-se.
O rio começava atrás de casa
(como eu),
e foi embora – afluentes.
Vento sul, Campo do Manejo, Rita
Maria, Rio da Avenida, Miramar,
bala queimada, Catecipes, Praia do Muller,
procissão do Senhor Morto, Cine Rox,
gibis, Grupo Escolar Dias Velho,
Chico Barriga D’Água, paixão camuflada pela menina
da Rua de Cima – ela nunca soube.)
Só enuncio: acumulo – sobrecarregado.
O rio foi embora.
Casa demolida, mãe na soleira da porta, pitanga no
quintal, regata na Baía Sul, matracas, turíbulos, trapiche da
Praia de Fora, gaita-de-boca, groselha, tainha frita,
fogão de lenha, beliches, pé de amora.
Perdeu-se o rio: não sei do seu delta.
Perdi-me: tiro certeiro na gaivota.
A rua pequena, era a maior do mundo – coração.
Desterro inunda-me:
outrora/agora.
 
Masmorras
Clandestinidades, fugas na boca da noite
Dormir cada dia num lugar
Pensões, pulgas, esconderijos, dinheiro contado, pratos
[feitos, uma pinga para o consolo provisório.
Palavras apenas – e foi na carne que doeu.
Tudo já foi ditado, mastigado, expelido.
Foi?
O Primeiro Interrogatório.
O Segundo Interrogatório.
O Quarto Interrogatório.
O Décimo-Quinto Interrogatório
(De manhã, de tarde, à meia-noite, às quatro da
[madrugada).
Choques elétricos, pau de arara, “cadeira do dragão”,
[“telefones”, palmatórias.
O verso de T.S.Eliot na cabeça:
“As palavras se movem, a música se move
Apenas no tempo: mas aquilo que apenas vive
Pode apenas morrer. As palavras após a fala, alcançam
[o repouso. (…)
O corpo: não.
Um bafo de morte na soleira da porta.
(O processo, a burocracia, togas pretas, auditorias, fardas.)
E um dia ir embora para plagas não conhecidas
Um dia, voltamos.
(Só restará o oblívio Alguém se lembrará?)
 
Exílio
Um Atlântico nesta separação:
batido coração segue as ondas de maio.
Desterros além da anistia,
para lá dos poderes.
Velas ao vento,
não bastam os selos,
a escrita crispada.
Queria os sinais da tua pele,
vacinas, umidades, penugens,
pêlos perdidos no mapa do corpo,
o olhar suplicante, soluços.
Jornadas:
missas de sétimo-dia,
retratos arcaicos.
Outro exílio:
sem batidas na boca da noite, armas, fardas, medos,
clandestinidades.
Sol neste retorno:
casa, guarda-chuva no porão, caneca de barro,
álbuns, abraço agregador,
cheiro de pão, gosto de café,
o amanhã junta os o dois nós da memória,
um menino e o seu outro: estou melhor feito vinho velho.
Pai
Meu pai cavalgava
abraçado à sua dor oculta.
No crepúsculo: só – na soleira da porta,
cadeira de balanço, boina, olhar azul.
Antes do assobio da Inelutável
foi para a montanha.
Como um elefante em despedida
quis morrer sozinho.
Quando chegar a hora
farei como meu pai:
subirei a montanha,
 
Madona
Senhora das horas inconclusas
Senhora do torto parto
do porto inalcançável
Madona da ânsia infinita
vã peregrinação
Senhora do desassossego
Conceda-me o bálsamo do olvido
passagem silenciosa
travessia sem medo
Senhora do inútil tempo – que continua queimando
Senhora da veloz juventude
Madona de todas as velhices
Outorga-me o estatuto da ausência
 
Planalto
O Planalto é sempre –
nós é que passamos.
Ulisses, oráculo, reaparece
(num tempo que não quer profetas),
Penelópe só tece dúvidas, eclipsado o sagrado:
mercantis propósitos – só.
O Planalto é sempre
– nós é que passamos.
A memória: nossa matéria
– como lidar com tanto esquecimento?
Carece preparar os rituais de retorno:
suado feixe de
carnes/emoções?
(Qual a sua forma?)
Aqui irrompeu o pranto,
não a redenção.
Expulsos do paraíso: vagamos.
Rebanhos eletrônicos, restos de pompa,
retóricas cartorárias, tecnocratas com dentes de ouro
[– e celulares de última geração.
O Planalto é sempre
– nós é que passamos.
Mas cansou-me o pranto:
O sol inunda esta manhã
pão quente, cheiro de café torrado,
o poema arranca algo do efêmero,
fundo-me no esquecimento
(Também somos feitos daquilo que perdemos.)
Deus faz que me esquece:
depois reaparece.
 
Hiroshima
Na manhã dominical,
a bomba de Hiroshima,
a bomba,
tão clara,
exata,
cirúrgica.
Bomba geométrica,
certeira.
A bomba vem do céu,
mas não é ave.
A bomba vem de cima,
mas não é Deus.
Desce fumegante,
a bomba não negocia,
a bomba não conversa,
célere, impositiva,
acerta o alvo, cai,
a bomba queima, a bomba dissolve,
a bomba dilacera.
Alguém nasce no ano em que ela cai,
e pensa naquele 1945:
a surpresa daqueles milhares de olhos,
à espera do lúdico no matinal domingo,
parques, igrejas, passeios, visitas familiares,
percebendo – sem tempo para a reflexão –
a chegada da não-ave,
emissária de Tanatos,
que cai, cai,
na paisagem limpa (cogumelos atômicos).
 
Homem diante do mar
Homem diante do mar
(instância interrogativa).
Precária caravela.
E finita: a vida
Trapiche:
o homem só contempla
(desembarcado).
No estatuto da memória:
ele se interroga, nunca mais a ação.
No porto: a rapariga rosada estendeu um lenço.
Limo: foram-se a juventude, o trapiche, a rapariga, o lenço.
(Mátria: sou apenas um homem diante do mar.)
Desterro: instante convertido em sempre.
O homem desembarcado só pode viver de memória:
[diante do mar.