Escola sem partido e o sistema de museus

JORGE BARCELLOS
A educação brasileira recebeu a colaboração de diversas instituições que em seu interior criaram ações educativas. Fundações assistenciais, órgãos públicos descentralizados, sociedades de economia mista e principalmente museus, desde a década de 80, tomaram consciência da importância da educação e começaram a ofertar inúmeros programas e serviços, inclusive com traduções para turistas e atividades próprias para portadores de necessidades especiais.
Fundações de Assistência Social e Comunitária, seja em seus centros comunitários ou mesmo em instituições de recuperação de menores, incorporaram educadores em suas equipes; diversos órgãos públicos desenvolveram atividades de formação escolar, seja para criar vivências de aprendizagem sobre a correta destinação do lixo urbano (DMLU) ou os cuidados necessários com a água e o meio ambiente (SMAM) e  museus públicos e privados ampliaram iniciativas educacionais com suas exposições. É o que se chama de Educação em instituições não escolares, realizada por centenas de educadores que acompanharam em seu meio o esforço legal que a democratização do pais promoveu com a Constituição Federal, de 1988,  e foram capazes de incluir em seus programas e ações objetivos do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996.
Nesse contexto, educadores de museus colaboraram com a fixação do aluno no sistema de ensino pela produção de ações educativas fora do ambiente escolar incorporadas pelas escolas. E fizeram isso na maior parte das vezes sem qualquer investimento direto do poder público, sem fundo algum governamental a não ser os próprios recursos de suas instituições. Esse trabalho era muito importante para as escolas para aprimorar conteúdos de ensino, mas não era incomum que, frente a inexistência de quadros, muitos diretores tomassem a iniciativa de incluírem em seus programas atividades extra classe, incluindo visita à museus ou apelando para a prestação de serviços de profissionais de instituições públicas para suprir carências de carga horária de professores que não eram contratados pelo Estado.
Em meados de 2016, a ocupação de escolas públicas estaduais promovidas por estudantes que reividicavam melhorias na educação e nomeação de professores terminou por interromper o afluxo de estudantes em muitas instituições públicas. Parte destas reivindicações, como lembra a pesquisadora Russel Dutra da Rosa, pedia o arquivamento do PL 44/2016 que pretende transferir recursos públicos para Organizações Sociais privadas realizarem a gestão escolar, incluindo a contratação de diretores e professores sem concurso público e o PL 190/2015 do programa Escola sem Partido (ESP).
Boa parte dos professores não se deram conta nesta luta que os profissionais da educação que desenvolviam projetos longe do ambiente escolar também eram afetados pelo  PL 190/2015. O projeto ESP ataca diretamente o trabalho não apenas de professores das escolas mas  educadores de diversas instituições públicas, principalmente de museus, porque visam limitar a liberdade de expressão de qualquer  professor. É o caso de muitos museus da cidade, que tem entre sua programação cultural a promoção de exposições de caráter “politico”, versando sobre Direitos Humanos, questões de gênero, etc. Segundo a proposta da lei, estes profissionais de ensino também podem ser afetados: é  um erro conceber o projeto “escola sem partido” como um projeto voltado unicamente para escolas, ele quer atingir um tipo de educação critica desenvolvida em diversos espaços. A escola é apenas um deles. Não se trata apenas de afetar o trabalho de professores: ora,  nossos museus contam com “monitores”  cumprindo papel similar a de um professor pelo qual recebem treinamento, ou mesmo professores formados, geralmente em história, responsáveis pelas visitas. Por ser um espaço educativo, todo o trabalho de museus coloca-se sob o horizonte e alvo do projeto ESP. Diz Rosa: “O movimento atua em todas as esferas do governo, já tendo protocolado quatro projetos na Câmara dos Deputados e um no Senado, no âmbito federal. Na esfera estadual, são 12 projetos protocolados até o momento com um aprovado no estado do Alagoas. E na esfera municipal 2 projetos foram aprovados em Santa Cruz do Monte Carmelo-PR e Picuí-PB.”(Jornal Já, 2/08/2016).
O universo dos museus está em expansão no Brasil. Segundo dados do Ministério da Cultura, compreende 3.025 museus onde cerca de 48,2% possui área educativa própria encarregada de fazer exposições. Isso significa setores e equipes que produzem materiais educativos que podem se tornar alvo do programa ESP: textos de exposição, catálogos, informativos e material didático oferecido por professores e pesquisadores a outros professores. Se o projeto ESP veda conteúdos que estejam em conflito com as convicções religiosas e morais da família, uma exposição como “Os segredos da anatomia”, promovida pelo Museu de História da Medicina em 2015, pode ser considerada ofensiva às convicções morais da família por mostrar o corpo humano; o mesmo poderia se dizer da exposição “22 anos de Nuances”, realizada no Memorial do Rio Grande do Sul em 2013, que jamais poderia ter sido realizada porque tratar da luta pelos direitos LGBT em Porto Alegre, e, segundo os defensores da ESP, ofenderia (sic) as convicções de saúde sexual da família. O que ocorreria com as direções desses museus e seus professores? Seriam notificados extrajudicialmanete e coagidos através de penas e ameaças para a retirada de suas exposições como propõem o site do ESP? Seriam objeto de delação anônima de professores e monitores de museus visando cercear a livre iniciativa de programação de museus? Está claro o caráter fascista de tal iniciativa: eles violam o principio de autonomia tanto do pesquisador como do professor.
A própria forma de interpretar conteúdos de exposição seria posto em questão. O movimento ESP já demonstrou que, em qualquer situação, seu pressuposto é de que o capitalismo não se fundamenta em uma lógica que produz exclusão já que gera empregos. Como então explicar os processos de história dos mais diferentes níveis, seja história politica, econômica ou cultural sem tomar uma perspectiva de análise critica? Nesse sentido, toda a linha do tempo da exposição História do Rio Grande do Sul, do Memorial do Rio Grande do Sul precisaria ser revista.  Nenhum pesquisador sério de nossas instituições de memória faz uma exposição sem uma pesquisa detalhada, aproximando perspectivas sociológicas, econômicas e políticas. Na concepção dos defensores da ESP,  uma exposição que mencionasse o genocídio de populações indígenas seria considerada doutrinadora, assim como uma exposição sobre Direitos Humanos. Qualquer atividade que promovesse um debate na semana do negro que apontasse as diferenças quanto a taxas de desemprego também seria considerado ideológico.
O Movimento ESP está construindo o caminho para afetar não apenas o trabalho do professor em sala de aula, mas a programação e a pesquisa de exposições de diversos museus porque já retirou do Plano Nacional de Educação as metas e estratégias de promoção de equidade étnico- racial e de gênero. Se o ESP já chegou a processar o INEP, órgão responsável pelo ENEM por incluir o tema da violência contra a mulher na redação e  considerar o critério de avaliação a respeito aos direitos humanos como doutrinação de esquerda, o que resta as instituições museológicas e aos profissionais dedicados em instituições como o Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo ou as atividades de recuperação de menores promovidas pelo CASE POA 1 da da FASE?
A questão é que os educadores que trabalham fora da escola também são protegidos pelo Art. 5 da Constituição Federal: tem direito a livre manifestação do pensamento (inciso IV); tem direito à livre expressão intelectual (inciso IX) e tem direito ao exercício de sua profissão se atendidas as exigências legais (inciso XIII). A ESP critica conteúdos que são necessários a formação cidadã promovidas por várias outras instituições que não apenas as escolas: aspectos de cultura afro-brasileira e indígena são temas frequentes de exposições em museus. Os defensores da ESP estão contra as metas do PNE que buscam a superação das desigualdades educacionais pelo fim da discriinação e defesa da diversidade e dos direitos humanos, justamente temas retratados em diversas atividades dos museus que integram o Sistema Estadual dos Museus do Rio Grande do Sul.
Tanto como nos professores da rede pública, o projeto ESP produz insegurança e desconfiança entre profissionais de educação.  Por isso precisamos incorporar na Frente Nacional Escola Sem Mordaça, criada na última quarta-feira na UFRGS, os profissionais de Educação de instituições não escolares, pois  num pais onde professores não são livres, nenhum educador o será.
 

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