A morte quase obscura de um líder exemplar no país do capitão cafajeste

Luiz Cláudio Cunha*                                                               

A notícia, incompleta, saiu quase escondida na edição impressa de quarta-feira, 13 de janeiro de 2021, do maior jornal brasileiro. “Morre Alencar Furtado, ex-deputado cassado pela ditadura”, informou secamente a Folha de S.Paulo, numa única coluna de 30 linhas e 144 palavras, espremidas no canto inferior da sétima página do primeiro caderno, distante da honra da primeira página do dia.

As duas manchetes principais da A7 foram dedicadas a um candidato azarão de nome irrelevante na disputa pela Câmara dos Deputados e a uma nova investida da Lava Jato sobre propinas ao filho de um ex-ministro.

A “nossa pátria mãe tão distraída”, como acusa o verso de Chico Buarque em Vai Passar, não se apercebeu que, na madrugada de segunda-feira, 11, morria simplesmente um dos gigantes da política brasileira e da luta contra a ditadura. Não era apenas um “ex-deputado cassado”, que morria de insuficiência renal aos 95 anos, em sua casa em Brasília, onde se recuperava de um AVC (acidente vascular cerebral) sofrido pouco depois do Natal.

Alencar era muito mais do que isso: na condição de líder do MDB na Câmara dos Deputados, foi o último dos 4.682 cassados pelo regime militar de 1964, o 173º parlamentar castigado pelo AI-5 no espaço de 13 anos. Foi a 36ª cassação do Governo Ernesto Geisel, o derradeiro ato punitivo do quarto general-presidente, em 30 de junho de 1977, antecipando-se à linha-dura militar irritada pela histórica aparição de Alencar três dias antes em rede nacional de TV, tocando num tema sensível para o aparato repressivo do regime: a tortura e o desaparecimento de presos políticos.

O fim irrisório de um gigante: Alencar morre, quase oculto, em 30 linhas de uma remota página interna

O MDB havia descoberto uma brecha na lei restritiva da ditadura que permitia um único programa de 40 minutos, gravado, em rede nacional obrigatória de TV para debate de assuntos partidários. Quando o regime percebeu a manobra, tentou sustar no TSE, mas a Justiça Eleitoral garantiu a sua realização. Para aproveitar bem aquela nesga de luz nas telas censuradas da TV dos brasileiros, o MDB escalou seus quatro principais comandantes. Na transmissão, o presidente, deputado Ulysses Guimarães, condenou o AI-5. O líder no Senado, Franco Montoro, centrou fogo no alto custo de vida. O presidente do Instituto Pedroso Horta, deputado Alceu Collares, criticou o arrocho salarial. O líder na Câmara, Alencar Furtado, por fim, avançou corajosamente na delicada questão dos direitos humanos, produzindo uma das peças mais contundentes, líricas, inesquecíveis da história política brasileira.

Na noite de segunda-feira, 27 de junho, com a voz eloquente de advogado curtido em mais de 400 juris populares e a expressão seca de um rosto marcado desde criança pelo sol inclemente do semiárido cearense, Alencar despontou no horário nobre da TV, antes do Jornal Nacional, dizendo o indizível, atacando o inatacável, eternizado nesse trecho:

Sempre defendemos os direitos humanos. Hoje, menos do que ontem, ainda se denunciam prisões arbitrárias, prisões injustas e desaparecimento de cidadãos. O programa do MDB defende a inviolabilidade dos direitos da pessoa humana, para que não haja lares em prantos, filhos órfãos de pais vivos — quem sabe? — mortos, talvez. Órfãos do talvez ou do quem sabe. Para que não haja esposas que enviúvem com maridos vivos, talvez, ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe e do talvez.

 

Uma rua, dois cassados

Os profissionais de sangue e tortura dos DOI-CODI, que em seus porões de trabalho produziam aqueles órfãos, quem sabe?, e aquelas viúvas, talvez, detestaram a imprevista tirada poética de Alencar. No dia seguinte, 28, perguntado sobre o programa, o chefe do SNI, general Joao Baptista Figueiredo, respondeu: “Vi. Não gostei e acho que ninguém gostou.” Mas, nem o SNI que o general comandava se incomodou muito. No texto da Apreciação Sumária Nº 25, que o Serviço Nacional de Informações distribuiu a Geisel e aos principais gabinetes do Planalto na manhã de quarta-feira, 29, dois dias após a transmissão da TV, o programa do MDB foi citado superficialmente e a lancinante intervenção de Alencar acabou resumida em treze palavras irrisórias.[1] Quem acreditasse no SNI poderia, talvez, imaginar até que Alencar poderia se safar, quem sabe.

Apesar do descuido do araponga, o destino do líder do MDB já não dependia de um talvez, mas de quem sabia. Na tarde daquela quarta-feira, o ministro da Justiça, Petrônio Portella, telefonou para o secretário-geral do MDB, deputado Thales Ramalho, para confirmar o que se previa: “Thales, vamos ter reação”. Pediu que contasse apenas a Ulysses, mas fora do prédio do Congresso, indício claro de que o lugar deveria estar grampeado pelo SNI. Mais tarde, no seu apartamento, Thales antecipou a informação ao presidente do MDB.  “Vamos ter a cassação do Alencar”. Ulysses devolveu com outra pergunta, que denunciava os temores que sobrevoavam Brasília nas últimas horas: “Só do Alencar?”.[2]

A boataria dizia que uma dezena de oposicionistas, incluindo todos os quatro participantes do programa, seriam punidos. O alvo central era o líder da Câmara, que além de invadir o terreno proibido dos órfãos e viúvas, tinha pronunciado em seu mandato cerca de 40 discursos da tribuna com denúncias de torturas e críticas à política econômica do governo. Várias vezes, Alencar cobrou em seus discursos o desaparecimento do deputado Rubens Paiva, preso em janeiro de 1971 pela Aeronáutica, no Rio de Janeiro, torturado e morto no DOI-CODI carioca e até hoje desaparecido.

O ministro do Exército, Sylvio Frota, como Figueiredo, também viu e não gostou do MDB na TV. Na manhã de quinta-feira, 30, Frota mandou o telegrama 665 aos quartéis dizendo ter informado a Geisel sobre a repercussão negativa do programa, que ele classificava como “uma ação comunista para atacar os brios das Forças Armadas”.[3] O Planalto previa que a cassação do líder mais aguerrido da oposição teria repercussão internacional, e seria um abalo ainda maior se fosse punido também o presidente nacional do MDB. No último momento, Geisel tirou Ulysses da mira e trocou sua iminente cassação por um processo na justiça eleitoral, como responsável pelo programa.

O procurador-geral da República, Henrique Fonseca de Araújo, requisitou as fitas gravadas pela TV e abriu o inquérito naquele mesmo dia. Tempos depois, Ulysses foi absolvido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O líder do MDB na Assembleia paulista, Alberto Goldman, explicou anos mais tarde ao jornal O Estado de S.Paulo a súbita contenção de Geisel: “Ulysses só não foi cassado por seu histórico, porque sua figura tinha mais respaldo. Ele vinha do PSD, presidia a legenda e tinha uma postura mais moderada. Alencar era mais duro, incisivo, acusador. Geisel usou a cassação porque precisava enfrentar os militares radicais e mostrar que não era mole”.

A violência do AI-5 excluiu da vida pública brasileira mais do que um parlamentar duro. José Alencar Furtado era um predestinado ao combate. “Nasci no Araripe, cidade pequenina lá do Ceará. Minha cidade só tem uma rua. Mas tinha dois cassados da época da ditadura, eu e o Miguel Arraes”, contou ele.[4]

Hoje com 20 mil habitantes, Araripe, no extremo sul cearense, quase fronteira com Pernambuco, era ainda menor em 1925, quando Alencar nasceu. O menino Arraes, seu conterrâneo, nove anos mais velho, saiu da cidade ainda adolescente para concluir o ginásio numa cidade próxima e maior, Crato. Os dois não se conheceram na terra natal, mas a História sangrou seus destinos pela mesma lâmina afiada da ditadura.

Miguel Arraes era o governador de Pernambuco em abril de 1964, quando foi derrubado e preso pelos militares. Na sexta-feira, 10 de abril, um dia antes da ‘eleição’ presidencial do chefe do golpe, general Castello Branco, o Comando Supremo da Revolução divulgou o primeiro listão de cassados pelo regime militar. Eram exatos 100 nomes, uma lista aberta pelo líder comunista Luís Carlos Prestes e pelo ex-presidente João Goulart, além de 40 deputados federais. O ex-governador Leonel Brizola ocupava o 10° posto no índex.

Assim, na linha caprichosa do tempo, os dois garotos de Araripe, curtidos pela vida do sertão, cinzelados pela disputa política e castigados pelo regime militar, acabariam abrindo e fechando o ciclo punitivo que define o arbítrio do golpe de 1964. Arraes era o 4º nome da primeira lista de 100 cassações. E Alencar acabou sendo, em 30 de junho de 1977, aos 51 anos, o último punido da longa relação de 4.682 cassados em 13 anos de ditadura.

Arraes e Alencar, os filhos de Araripe: o pioneiro da primeira lista e o último cassado pela ditadura

Quase um terço dos cassados, 1.261, eram das Forças Armadas. Já no sábado, 24 horas após o listão dos 100 primeiros, o tacape do golpe caiu sobre 122 militares legalistas que apoiavam Goulart: 77 do Exército, 31 da Aeronáutica, 14 da Marinha. No domingo, outros 62 decapitados, mais da metade deles militares.

O general cristão

A rajada de punições da ditadura era ampla, geral e irrestrita. Mais de 300 professores, quase 500 legisladores sagrados pelo voto popular – de deputados federais a estaduais, de senadores a vereadores, além de 50 chefes de Executivo, de governadores a prefeitos. Três ex-presidentes – Jango, Jânio e Juscelino – e três ministros do Supremo Tribunal Federal.

A guilhotina era democrática. Decepou diplomatas, agrônomos, procuradores, carteiros, desembargadores, motoristas, sindicalistas, escrivães, policiais, promotores públicos, juízes, taifeiros, engenheiros, telegrafistas, médicos, guardas-civis, estivadores, eletricistas, ferroviários, advogados, jornalistas, bancários, dentistas, músicos, guardas-florestais, fiscais do Imposto de Renda, serventes, auditores militares. Até garçons e porteiros! Na vesga ótica militar deviam ser grave ameaça à segurança nacional e, por isso, foram degolados na fúria revolucionária.

A lógica estúpida dos militares se sustentava na arrogância incontestável do arbítrio. Ela está expressa no primeiro ato institucional, editado pelo Comando da Revolução em 9 de abril de 1964, no alvorecer da ditadura. Nem número tinha, o que acabou depois sendo necessário pelos 17 atos e 104 atos complementares decretados em sequência até 1969, tentando dar uma fachada legal ao processo de violência institucional do golpe.

O AI-1, que 48 horas depois levou ao pioneiro listão da centena de cassados, estabelecia na sua introdução, para eliminar qualquer dúvida sobre a origem e os limites de seu inexcedível poder:

[…]A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. […]. Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.

 

No penúltimo de seus 11 autossuficientes artigos, o AI-1 firmado pelos chefes do Exército, Marinha e Aeronáutica determina, para tranquilidade geral da nação: “No interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, os Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão suspender os direitos políticos pelo prazo de dez (10) anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses atos. ”

Treze anos depois, em junho de 1977, Alencar Furtado seria o último cidadão do país punido sem qualquer apreciação da Justiça.

A nova ordem ‘revolucionária’ se bastava e não se submetia a ninguém. Tudo fazia e nunca se justificava. Em seu depoimento à Comissão da Verdade, em 2014, Alencar deu a dimensão desse estado de truculência ao lembrar a história do engenheiro Virgildásio de Senna, que tinha assumido a prefeitura de Salvador pelo PTB em abril de 1963. No abril seguinte, foi atropelado sem sutilezas pelo golpe de 1964.

No dia 5 de abril, um domingo, o prefeito da capital baiana foi almoçar com amigos. Ao voltar no início da noite para casa, no bairro do Campo Grande, encontrou a rua cercada por tropas do Exército, escoltadas por dois canhões de campanha e holofotes enormes. Ele perguntou a uma pessoa o que estava acontecendo: “Estão prendendo o prefeito”, disse o morador, sem reconhecer o prefeito ao seu lado.  Virgildásio evitou a casa sitiada e procurou logo a maior autoridade do Exército na Bahia, o general Mendes Pereira, comandante da IV Região Militar. Ali mesmo, no quartel da Mouraria, o general deu voz de prisão ao prefeito, com uma explicação surreal: “Você está preso porque somos cristãos! ”.

O general Mendes Pereira justifica a prisão do prefeito Virgildásio e dos ‘comunistas’: “Somos cristãos!”

 Alencar lembrou à Comisão Nacional da Verdade que Virgildásio foi preso, cassado pelo AI-1 e solto dias depois. Pouco antes de liberar o prefeito, um porta-voz do comando militar ocupou o microfone de uma rádio de Salvador para esclarecer os fatos, sem maiores explicações ou qualquer justificativa, com a crueza típica e arrogante daqueles novos tempos: “O prefeito Virgildásio de Senna foi preso porque tinha que ser preso. E agora vai ser solto porque tem que ser solto. Boa noite!”.

Ao longo da ditadura, as cassações se distribuíram de forma desigual.

O provisório Comando Supremo da Revolução, no exíguo espaço de 15 dias que separou o golpe da posse do primeiro general-presidente, cassou 280 pessoas, mais de 18 a cada 24 horas. Castello Branco, o primeiro general-presidente, fez a faxina mais ampla, cassando 2.927 pessoas. O segundo presidente, Costa e Silva, decepou 631 nomes da vida pública.

A Junta Militar de 1969 — formada pelos três ministros militares, que reinou sobre o país por apenas dois meses, em setembro e outubro, logo após a trombose cerebral que tirou Costa e Silva do poder — cassou nesse curto espaço de tempo 205 pessoas, uma média de 3,4 punições por dia. O terceiro presidente, Emílio Médici, o mais sanguinário do período militar, usou o AI-5 por 603 vezes. O quarto presidente, Ernesto Geisel, abrandado pela faxina punitiva mais extensa de seus antecessores, cassou 36 vezes, encerrando a série de violência revolucionária com Alencar Furtado.

A matemática do arbítrio

Essa inédita contabilidade sobre a violência ‘revolucionária’ começou a ser feita em São Paulo no início de 1977, por um trio emérito de intelectuais: os jornalistas Mylton Severiano da Silva (o Myltainho) e Hamilton Almeida Filho (o HAF) e o historiador Joel Rufino dos Santos, que resolveram contar, literalmente, a saga dos cassados no Brasil.  Com a ajuda da pesquisadora Beth Costa e uma equipe de quatro pessoas, foi folheada toda a coleção do Diário Oficial, página por página, desde março de 1964 até a cassação de Alencar. Foram quase três mil cópias xerox, coladas em 680 páginas, com a matemática da violência revolucionário sobre 4.682 pessoas.

De início, o levantamento se destinava a um livro, que teria o título de Os Cassados. Mas acabou formatado para uma revista de oposição em São Paulo, a Extra – Realidade Brasileira. Antes que fosse publicada, porém, a ditadura impôs censura prévia à publicação. Decididos a não aceitar a intervenção dos militares, os seus editores desistiram da reportagem sobre os cassados e preferiram fechar a revista. E o material coletado em São Paulo, para sobreviver, acabou tomando o rumo inesperado de Porto Alegre.

Alencar na manchete e na matéria principal do CooJORNAL: o último dos cassados em 13 anos de ditadura

A reportagem inédita de quatro páginas, com a foto de Alencar Furtado na capa, foi a manchete do mensário gaúcho CooJORNAL em julho de 1977, com grande repercussão nacional, pois o número de 4.862 cassados era muito superior ao que se sabia até então.

O jornal da imprensa alternativa era editado em Porto Alegre pela primeira cooperativa de jornalistas do país. Fundada em 1974, a CooJORNAL cresceu e, três anos depois, era integrada por mais de 300 jornalistas vivendo a utopia de uma imprensa sem patrão e sem hierarquia, respirando o ar limpo e democrático do cooperativismo na atmosfera rarefeita e sufocante da ditadura.

Aquela edição do CooJORNAL com Alencar Furtado na capa vendeu 34 mil exemplares, a maior vendagem de sua história. Sofreu então a primeira ação ostensiva da ditadura, incomodada com a crescente relevância do pequeno jornal de Porto Alegre, que ganhava destaque entre os títulos mais conhecidos da chamada ‘imprensa nanica’ – um influente nicho de jornais de esquerda, oposicionistas, insurretos, onde brilhavam publicações semanais ou mensais do centro do país como Movimento, Opinião, Versus, Em Tempo, Bondinho e o irreverente O Pasquim, um abusado semanário carioca que se multiplicou com até 200 mil exemplares nas bancas.

Inquieta com o atrevimento do CooJORNAL, a ditadura apelou para a violência camuflada, envergonhada, mas sempre letal: mandou os agentes da Polícia Federal cumprirem uma discreta agenda de visitas aos assustados anunciantes do jornal, pressionando as empresas a cancelar os poucos anúncios que sustentavam as edições sempre ousadas do CooJORNAL.

Os militares mostravam um azedume cada vez maior com a pauta criativa do jornal, que recontava episódios da história recente brasileira, dava voz aos dissidentes do regime, replicava textos de intelectuais de esquerda e ouvia personagens execrados pela ditadura, muitos deles membros ilustres da lista dos 4.862 cassados pelo arbítrio.

O mau humor dos generais pode ser resumido pelo trecho da Informação Confidencial Nº 031 da Agência Central do SNI, de 19 de agosto de 1980, três anos após a cassação de Alencar Furtado. O redator do SNI se lamuriava, no relatório, daquilo que era o exato motivo de orgulho para os associados da cooperativa:

O periódico CooJORNAL, editado pela Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, caracteriza-se por divulgar artigos hostis ao governo. Apesar de a referida publicação ter tiragem de, apenas, 35 mil exemplares, seus artigos são comumente comentados pelos demais órgãos de imprensa, e passa, deste modo, a ter repercussão nacional.

Isso é o Brasil, gente!

Os bastidores da bombástica reportagem do Coojornal mostravam o medo endêmico que permeava o país, em meados de 1977, penúltimo ano de Geisel no Planalto. Naqueles tempos sem internet, e-mail ou celular, a remessa de matérias ou filmes fotográficos de uma cidade para outra era feita de forma quase artesanal, um pouco amadora, sempre voluntária.

Um repórter procurava aleatoriamente um passageiro no aeroporto, com destino à sede do jornal ou revista, e pedia o favor de levar em mãos um envelope lacrado com o material, que seria entregue no aeroporto de destino para alguém destacado pela publicação. O passageiro dizia seu nome e fones de contato, para evitar desencontros, e o repórter no aeroporto de origem passava pelo telefone os dados do portador, dando seu nome e descrição física, como o traje que vestia, para que fosse melhor identificado na fila do desembarque, no saguão do aeroporto de destino.

Bones, o editor, Myltainho, Hamilton e Rufino, que revelaram os 4.682 cassados: esse era o Brasil da ditadura

Era um arranjo que funcionava, quase sempre, dando agilidade e segurança para o envio de material. O que podia atrapalhar era a sensação de perigo e o temor que, eventualmente, poderiam intimidar o portador, em matérias politicamente mais sensíveis. Foi o que aconteceu e quase impediu a manchete dos cassados no Coojornal, como relatou com precisão o seu editor, jornalista Elmar Bones, na carta aos leitores do número 18 do mensário, de julho de 1977:

Encomendamos a reportagem a três colegas de São Paulo que já tinham um levantamento amplo sobre o assunto. Um levantamento, pelo que sabemos, ainda não feito no país. Durante dois dias eles trabalharam sem parar. Na segunda-feira, 4, as seis horas da manhã o repórter Hamilton Almeida Filho saiu direto da máquina para o aeroporto de Congonhas. […] No voo das 8h30 da Cruzeiro, Hamilton localizou um cidadão de maneira afáveis, simpático. Era um funcionário do Ministério da Fazenda que, prontamente, aceitou trazer o envelope.

No aeroporto de Porto Alegre, era outro o homem. Nervoso, gaguejando, travou o seguinte diálogo com a pessoa que foi apanhar o envelope:

— Olha, me desculpe, eu derramei cafezinho no material, ficou inutilizado.

— Não, mas o senhor pode me dar assim mesmo. Deve dar para ler, a gente arruma…

—Mas ficou imprestável, joguei fora…

— Isso é um absurdo, como é que o senhor fez isso? O senhor sabia o que tinha no envelope? Era uma reportagem.

A esta altura o homem mudou o tom de voz e explicou:

— Aconteceu o seguinte: abri o envelope e li o que tinha dentro. Aquele assunto…. Eu sou um funcionário do governo, não podia desembarcar com aquilo. Tinha autoridades me esperando, não posso me comprometer…. Eu destruí o material. Você deve compreender a minha situação.

Tremia o homem e não havia como reclamar dele. A solução foi esperar uma cópia providencialmente guardada em São Paulo e, desta vez, remetida pelas vias normais. Ao saber do fato, inédito em sua carreira de 15 anos de jornalismo, Hamilton exclamava do outro lado da linha:

— Isso é o Brasil, minha gente!

Esse era o Brasil, gente, e tudo aquilo aconteceu antes que Alencar Furtado fosse o personagem central na primeira página do Coojornal.  O Brasil do medo era produto, também, das trapaças e embustes engendrados pelos agentes da repressão. Uma armadilha dessas levou à cassação do deputado federal Marcos Tito, do MDB mineiro, o penúltimo punido pelo AI-5, duas semanas antes de Alencar Furtado. Em 24 de maio de 1977, Tito subiu à tribuna da Câmara para fazer um duro discurso contra a ditadura. Dias depois, o deputado Sinval Boaventura, da ARENA mineira, arauto da linha-dura militar, denunciou que Tito havia, de fato, lido um manifesto do clandestino PCB (Partido Comunista Brasileiro). Em 14 de junho, três semanas após seu discurso, Tito foi cassado.

A armadilha da Aeronáutica

Ele não foi vítima de um dedo-duro, mas alvo deliberado de uma maligna farsa do serviço secreto da Aeronáutica, o CISA (Centro de Informações da Aeronáutica). A revelação foi feita 40 anos depois pelo repórter Marcelo Godoy, de O Estado de S.Paulo, que entrevistou durante cinco horas, no Clube da Aeronáutica, no Rio, um anônimo coronel, codinome ‘Paulo Mário’, que trabalhou 28 anos no Núcleo do Serviço de Informações de Segurança, a contrainteligência da Aeronáutica.[5]

O CISA foi criado e chefiado pelo brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, a face mais radical da Força. Como major-aviador, em 1959, chefiou com outros militares a fracassada Revolta de Aragarças, contra o presidente Juscelino Kubitschek, quando Burnier planejava até bombardear os palácios do Catete e das Laranjeiras, no Rio.

Em carta ao presidente Geisel, o lendário brigadeiro Eduardo Gomes definiu Burnier assim: “Um insano mental inspirado por instintos perversos sanguinários, sob o pretexto de proteger o Brasil do perigo comunista”.   

Ulysses e Tito: o penúltimo cassado pelo ardil do CISA de Burnier, o ‘insano mental’ da FAB

 Tito agora era o alvo do CISA criado pela mente perversa de Burnier. “O deputado estava assumindo uma posição que estava nos incomodando muito”, justificou o agente ‘Paulo   Mário’ ao Estadão. “Realizamos algumas operações fundamentalmente de contrainteligência muito produtivas. Nenhuma com violência, mas foram ações que você faz para expor o inimigo a uma situação ridícula, que ele não contribuiu para aquilo, para desmoralizá-lo e acabar com ele”. O ardil montado pelo CISA foi trivial. Agentes da Aeronáutica escolheram uma edição de abril de 1977 do jornal Voz Operária, órgão oficial do ilegal PCB, que era impresso na Europa e despachado por correio para o Brasil.

Aquela edição trazia um editorial do partido, que acusava o regime de usar o medo e o arbítrio como método de governo. O CISA manipulou o texto, suprimiu cinco dos seus 24 parágrafos, disfarçando a origem da manifestação, e mandou entregar o documento no gabinete do parlamentar no Congresso. O papel foi recebido por um assessor de Tito, que o repassou ao deputado. “Levamos como se fosse coisa de estudante inconformado, pedindo para ele ler no plenário da Câmara. Ele caiu e leu. Acabou levando uma ferroada, cassado e posto na rua”, contou o coronel do CISA.

Duas semanas após a cassação de Tito, quem levou a ferroada foi Alencar Furtado, em 30 de junho, cassado pela manifestação na TV sobre os órfãos e viúvas do talvez e do quem sabe. Até chegar ao seu último ato político como parlamentar, com a dolorosa honra de ser o último dos 4.682 cassados do país, o líder do MDB foi muito além de um histórico, lírico discurso de denúncia sobre torturas e assassinatos da ditadura em rede nacional de TV.

Alencar Furtado foi figura crucial para a definição do perfil mais oposicionista do MDB e sua orientação política mais aguda, na luta mais aberta contra a ditadura e seu partido, a ARENA. Na primeira eleição em 1966, cerceado pela legislação restritiva dos militares, o MDB elegeu apenas sete das 23 cadeiras de senador em disputa. Na Câmara, conseguiu conquistar só 132 cadeiras de deputado federal entre as 409 vagas em disputa.

Na eleição seguinte, em 1970, o partido da oposição encolheu. Além das cassações anteriores e do endurecimento gerado pelo AI-5, o MDB convivia com o ufanismo oficial insuflado pelo tricampeonato da seleção do Brasil no México e a euforia nascente do ‘milagre econômico’ cozinhado pelo ministro Delfim Netto. Dessa vez, elegeu apenas seis senadores e conquistou somente 87 vagas na Câmara dos Deputados. A perda avassaladora de quase 50 cadeiras do MDB no Congresso, além da repressão e das regras eleitorais viciadas, foi atribuída aos 30% de votos brancos e nulos, expressão clara do desencanto e do protesto de um eleitorado descrente.

Combativo na juventude, Alencar Furtado integrou a Esquerda Democrática, dissidência da UDN nascida logo após a queda do Estado Novo, em 1945, que deu origem ao PSB, Partido Socialista Brasileiro, fundado no Ceará com a ajuda de Alencar.

Na década de 1950, seguindo a saga dos sertanejos, Alencar migrou do Nordeste para o Sul, fincando raízes em Paranavaí, no fértil norte do Paraná.  Lá se elegeu deputado federal na primeira eleição do MDB, em 1966, sagrado com 40 mil votos. Na disputa seguinte, em 1970, reelegeu-se com o apoio consagrador de 86 mil eleitores.

O bloco do MDB na rua

Em Brasília, o pequeno gigante de Araripe, com pouco mais de 1m65 de altura, deu força e veemência ao então burocrático MDB, que seguia a férrea, mas moderada liderança de Ulysses Guimarães. Alencar assumiu o protagonismo, na bancada emedebista de 87 deputados, de um grupo mais agressivo de 23 parlamentares que ganharam o justo carimbo de ‘Autênticos’. Centravam fogo na convocação de uma Constituinte, no fim da tortura, na volta dos exilados e na anistia aos presos políticos.  Ao lado dele estavam os nomes mais intensos e críticos da esquerda do MDB, como Marcos Freire (PE), Chico Pinto (BA), Fernando Lyra (PE), Lysâneas Maciel (RJ), Freitas Nobre (SP), Alceu Collares (RS), Jaison Barreto (SC), Amaury Muller (RS), Marcondes Gadelha (PB), Nadyr Rossetti (RS), Paes de Andrade (CE), Santilli Sobrinho (SP) e Marcos Tito (MG).

Foi de Alencar e seu grupo a ideia mobilizadora de uma anticandidatura presidencial, desafiando a ‘eleição’ de cartas marcadas do general Ernesto Geisel no Colégio Eleitoral, em janeiro de 1974. A ideia era percorrer o país para denunciar o paradoxo de uma eleição sem povo e a farsa de uma disputa sem adversário. O MDB, tangido pelos Autênticos de Alencar, iria sair do conforto dos gabinetes para sentir o clima irrespirável das ruas.

Na convenção do MDB que lançou o anticandidato, em setembro de 1973, Ulysses advertiu ao país:

[…] Não é o candidato que vai percorrer o país. É o anticandidato, para denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição que homizia o AI-5, submete o Legislativo e o Judiciário ao Executivo, possibilita prisões desamparadas pelo habeas corpus e condenações sem defesa, profana a indevassabilidade dos lares e das empresas pela escuta clandestina, torna inaudíveis as vozes discordantes, porque ensurdece a Nação pela censura à Imprensa, ao Rádio, à Televisão, ao Teatro e ao Cinema. […]

 

A caravana do anticandidato percorreu então capitais e estados com sua bandeira de volta à democracia, eleições diretas, anistia e Constituinte. Os brasileiros form encorajados, daí, a ouvir a verdade sobre a ditadura.

Ulysses combinara com Alencar e os Autênticos que, momentos antes do início da sessão de eleição, ele renunciaria para dar mais força à denúncia da farsa. Mas, Ulysses não cumpriu o acordo e se manteve na falsa contenda até a proclamação do resultado na disputa no Colégio Eleitoral. Aí, como estava previsto, Geisel foi ‘eleito’ com 400 votos, contra 76 dados a Ulysses. Em protesto, Alencar e 20 deputados dos Autênticos presentes no Congresso se abstiveram, acusando no microfone o jogo da ditadura.

Ulysses encerrou seu perene discurso evocando os versos de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso/Viver não é preciso”. Ali, com as velas “paridas de sonho, aladas de esperança”, como disse o anticandidato, começou a longa navegação iniciada por Alencar e seus argonautas nas águas revoltas da ditadura.

O MDB perdeu na falsa eleição de janeiro, como se previa, mas dez meses depois ganhou de forma inesperada e estrondosa nas eleições reais e gerais de novembro de 1974. Elegeu 16 das 22 cadeiras do Senado em disputa, conquistou 165 das 364 vagas existentes na Câmara dos Deputados. Os 6 milhões de votos para senador em 1970 viraram mais de 14 milhões em 1974. Os votos para deputado no MDB subiram de 4,7 milhões em 70 para 11 milhões em 74, garantindo 44% das cadeiras da Câmara.

Quatro anos depois, na sucessão também indireta de Geisel em 1978, a força da ditadura ficou ainda menor. O candidato oficial, general João Figueiredo, derrotou o anticandidato do MDB, general Euler Bentes Monteiro, por apenas 89 votos. Foram 355 contra 266 para o anticandidato, que recebeu mais do que o triplo dos votos obtidos quatro anos antes por Ulysses. As velas dos Autênticos estavam aladas de esperança.

Baioneta não é voto!

Na campanha verdadeira das ruas, Ulysses assumiu a odisseia do confronto mais direto com a ditadura, como queriam os Autênticos de Alencar. Em seu momento mais homérico, na noite de 13 de maio de 1978, em campanha pelo candidato do MDB na Bahia, ele se deparou com os cães e soldados do governador arenista Roberto Santos. Uma tropa de 400 PMs cercava o local do comício, na praça Dois de Julho, em Salvador, bloqueando a passagem da comitiva do MDB, que incluía os senadores Tancredo Neves (MG) e Saturnino Braga (RJ).

O moderado Ulysses perdeu a paciência. De dedo em riste, rompeu o cordão militar, indiferente aos latidos e ameaças da repressão e, ali mesmo, resolveu fazer um discurso inesperado para a tropa que tentava contê-lo. Uma fala e um gesto do mais autêntico MDB que entraram para a história:

Soldados da minha pátria! Enquanto ouvíamos as vozes livres que aqui se pronunciaram, ouvíamos o ladrar dos cães lá fora! O ladrar, essa manifestação zoológica, é do arbítrio, do autoritarismo que haveremos de vencer. Meus amigos, foi uma violência estúpida, inútil e imbecil. Saibam que baioneta não é voto e cachorro não é urna!

A odisseia e a ira de Ulysses, na Bahia, com Tancredo e Saturnino: “Baioneta não é voto, cachorro não é urna! ”

Em 1982 aconteceu a primeira eleição direta para governador, desde 1960. A ousada navegação iniciada uma década antes pelos Autênticos de Alencar alcançou novos portos. Apesar do voto vinculado, truque da ditadura que obrigava o eleitor a votar em candidatos de um mesmo partido, a oposição conseguiu eleger dez governadores, nove pelo MDB e um pelo PDT nos 22 Estados em disputa. Assim, na primeira brecha que o eleitor teve para votar diretamente, os três maiores Estados do país sagraram nomes da oposição: São Paulo (Franco Montoro) e Minas Gerais (Tancredo Neves), ambos do MDB, e Rio de Janeiro (Leonel Brizola), do PDT.

Dois anos depois, a quimera dos Autênticos desaguou no maior oceano de povo da história política brasileira, a campanha das Diretas-Já, com milhões de pessoas nas avenidas e praças clamando pelo voto para presidente e pela Constituinte.  Em 1985, enfim, a ditadura acabou afogada nas águas rasas de seu porto seguro, o Colégio Eleitoral, onde emergiu o vitorioso da oposição, Tancredo Neves, o primeiro presidente que não era general desde 1964. Três anos mais tarde, para completar o sonho de Alencar e seus Autênticos, a Constituinte legou ao país a Constituição-Cidadã de 1988. O resto é história.

Ulysses: com Alencar (esq.), ondulando com o povo nas praças, navegando com milhões nas ruas das Diretas-Já

Alencar Furtado morreu em janeiro de 2021, quando se completava o segundo ano do mandato presidencial de Jair Bolsonaro. Por razões distintas, são as duas faces do que era o Brasil e do que o Brasil virou.

Um é admirável pelo exemplo, o outro é repulsivo pelo que faz e diz. Alencar dedicou a vida à luta pela democracia, à bandeira dos direitos humanos e pela defesa dos cidadãos. Bolsonaro empenha sua palavra na defesa da ditadura, no desrespeito a avanços civilizatórios e no ataque contumaz a princípios consagrados em sociedades democráticas. Alencar lembrava das viúvas, ‘quem sabe’, e dos órfãos, ‘talvez’, produzidos pela ditadura. Bolsonaro fala sempre em defesa dos agentes da repressão que torturaram, ‘certamente’, e que mataram, ‘com certeza’, maridos, mulheres e filhos, produzindo as viúvas e órfãos dos dissidentes caçados a ferro e fogo pelo aparato de guerra interna armado pelo regime militar.

Um especialista em matar

O apreço pela vida de Alencar e a atração pela morte de Bolsonaro é a primeira e mais forte distinção entre os dois. O capitão, com os seus polidos coturnos de psicopata, escancarou sua mente doentia em 2017 em Porto Alegre, quando já era candidato a presidente, confessando numa reunião com empresários: “Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar”.

Três anos antes da aparição do Covid-19, ele já fazia sua opção preferencial pelo vírus em detrimento da vacina: “Minha especialidade é matar, não curar ninguém. Aprendi a atirar com tudo que é tipo de armas, sou paraquedista, sou mergulhador profissional. Sei fazer sabotagem, sei mexer com explosivos. Vocês [brasileiros] nos treinam, nos pagam para isso”.                                                    

Jair Bolsonaro: um especialista em matar, não em curar, e seus três Zeros, devotados às armas como o pai

Em maio de 1999, no Governo FHC, quando nem ele sonhava em ser presidente, Bolsonaro deu uma entrevista ao ‘Câmera Aberta’, da TV Bandeirantes, e arreganhou sua face genocida: “Através do voto você não muda nada neste país, nada…Só vai mudar, infelizmente, no dia em que nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro… e fazendo o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil. Começando com o FHC…. Matando! ”.

Vinte e dois anos depois, já presidente, o capitão coveiro realizou o seu sonho, legando ao país um vasto necrotério de mais de 270 mil mortes — nove vezes mais do que o total que ele sonhava para a ditadura dos seus devaneios.

O necrófago Governo Bolsonaro conseguiu, com sua incompetência e negacionismo endêmicos, superar a marca fúnebre dos outros dois governantes que, no passado, registravam as duas maiores mortandades da história brasileira.

O imperador Dom Pedro II (1825-1891) amargou na Guerra do Paraguai (1864-1870), o maior conflito armado na história da América do Sul, um número de mortos que oscila em torno de 50 mil brasileiros.

Prudente de Morais (1841-1902), o terceiro presidente da República recém proclamada, mobilizou o Exército para enfrentar em 1896 a rebelião messiânica que o beato Antônio Conselheiro liderou por 11 meses no vilarejo de Canudos, no interior mais pobre da Bahia, que só acabou com o massacre de 25 mil pessoas – incluindo a degola de velhos, mulheres e crianças.

Jair Bolsonaro, o 38º presidente da República — o pior presidente de nossa história, quem sabe, o mais estúpido governante do planeta, talvez —, não mexeu literalmente um único dedo enquanto o registro de vítimas chegava à marca de 270.917 mortes em 11 de março de 2021, exatamente um ano depois que a OMS classificou a Covid-19 como uma pandemia mundial. A primeira morte de Covid no Brasil aconteceu em 16 de março de 2020, em São Paulo. Apenas três meses depois, na última semana de junho, o país alcançou num único trimestre o mesmo número de baixas que teve em cinco anos e três meses do Século 19 na Guerra do Paraguai, a mais longa e sangrenta do continente: 50 mil mortos, uma letalidade só possível pela inação, teimosia e negacionismo do estúpido Bolsonaro.

Durante todo esse tempo, o que o capitão-presidente fez, de forma doentia e mórbida, foi debochar da doença, escarnecer dos doentes, desdenhar os mortos, desconhecer a ciência e desacreditar os médicos e profissionais da saúde.

Lágrimas na tela e um cafajeste

O país se habituou às emoções derramadas nas telas de TV por profissionais treinados, pelo ofício, no relato de tragédias e desastres do cotidiano. Mas, os dramas humanos e a angústia sufocante imposta pela rotina do Covid-19 romperam as comportas de emoção de rostos familiares aos brasileiros. Em momentos distintos, em programas variados, veteranos repórteres, apresentadores, âncoras e correspondentes se debulharam em lágrimas irreprimíveis, como nos casos de Natuza Nery (GloboNews), Guga Chacra (correspondente da Globo em Nova York), Fátima Bernardes (Rede Globo), Flávio Fachel (Globo/Rio) e Ilze Scamparini (correspondente da Globo em Roma). Solidários e fragilizados, todos eles choraram, com o recato possível, diante das câmeras de TV no Rio, em São Paulo, nos Estados Unidos, na Itália, vertendo as lágrimas que dão humanismo e sentimento ao jornalismo.

Antes que algum filho Zero de Bolsonaro faça alguma piadinha cretina sobre isso, insinuando que deve ser tudo chororô produzido pela Rede Globo, é conveniente lembrar que a dor é um sentimento que perpassa o ser humano, e não fica restrito aos estúdios de TV. Mais gente, mundo afora, para espanto do debochado clã Bolsonaro, também chora pelos mortos e louva a vida.

Assim, na TV, foi possível também testemunhar a emoção genuína e a dor comovente de gente chorando, sem controle, como o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio, a repórter Sara Sidner da CNN na Califórnia, o ator espanhol Miguel Herrán (que faz o personagem ‘Rio’ na série Casa de Papel ), o governador da Bahia Rui Costa e muitos, milhares, milhões de profissionais da saúde no mundo todo que combatem, ganham e perdem todos os dias a guerra exaustiva, infindável contra o Covid-19.

Enquanto isso, o divertido capitão Jair Bolsonaro ri, debocha, zomba e escancara sua alegria esquizofrênica diante de uma nação angustiada pela doença, esmagada pela dor, aflita pela cura, desorientada pela falta de empatia de um presidente desequilibrado

O capitão no seu hilário, cômico, irresistível, desopilante país de 275 mil mortos e 11 milhões de doentes

Por tudo o que faz e, principalmente pelo que não faz, Bolsonaro merece todos os adjetivos degradantes que definem sua personalidade necrófila, de desprezo pela vida, de raciocínio tosco, de comportamento abrutalhado, de pensamento demente.

Jair Bolsonaro é um viúvo de civilização, quem sabe?, e um órfão de humanidade, talvez. No momento mais macabro de sua história, o Brasil precisa enfrentar o desafio quase insuperável da pandemia convivendo com um governante patético no Palácio do Planalto.

Sua imagem de um esquizofrênico sorridente, em meio a tanta tristeza, é o retrato acabado de um cafajeste no poder.

O Brasil do admirável Alencar Furtado não merece a figura asquerosa de Jair Bolsonaro.

 

* Luiz Cláudio Cunha, jornalista, foi consultor da Comissão Nacional da Verdade e é autor de Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (L&PM, 2008). E-mail: cunha.luizclaudio@gmail.com 

 

 REFERÊNCIAS

[1] Apreciação Sumária nº 25, do SNI, de 29 de junho de 1977. In Elio Gaspari, A Ditadura Encurralada, 2004, p. 426.

[2] Depoimento de Thales Ramalho a Gaspari, op. cit., p. 427.

[3] Telegrama 665/Ministério do Exército, de 30 de junho de 1977. Arquivo Golbery do Couto e Silva. In Gaspari, op. cit., p. 428.

[4] Depoimento de 1h26 de Alencar Furtado à Comissão Nacional da Verdade, em Brasília, em 19/setembro/2014, na condição de vítima civil da ditadura.

[5] Marcelo Godoy. ‘O complô para cassar o deputado’. O Estado de S. Paulo, 8/dezembro/2018.

A imprensa e o “efeito contágio”

Por Tiago Lobo

O jornalismo brasileiro vem explorando exaustivamente casos de assassinatos em massa e, dependendo de como isso é feito, pode ser muito nocivo.  

Desde 1985 a American Psychological Association (APA) alerta para o fato de que crianças e adolescentes podem tornar-se menos sensíveis à dor alheia ou sentir-se amedrontados após a exposição a programas violentos na televisão. Em relatório a APA indicava que programas infantis freqüentemente apresentavam até vinte cenas contendo agressões, a cada hora.

Para Donna Killingbeck, pesquisadora da Universidade do Leste do Michigan, nos E.U.A., medidas de segurança como revistas em estudantes, policiamento dentro das escolas e contratação de empresas especializadas, como resposta adotadas após tiroteios e ameaças, geram mais problemas e provocam uma percepção distorcida por parte da população que compreende as tragédias através da mídia.

Isso pode levar a população a superestimar o risco de morte que as crianças e adolescentes correm nas escolas. A conclusão do estudo, publicado em 2001, “The role of television news in the construction of school violence as a “moral panic”” (“O papel do telejornalismo na construção da violência escolar como “pânico moral””) é que estas medidas não têm ajudado a evitar tragédias.

Um ano depois de Killingbeck levantar o debate sobre a mídia e as medidas de segurança adotadas que seriam prejudiciais, três pesquisadores de Harvard concluiram que tiroteios em massa são eventos raros e representam um percentual muito baixo no leque de causas de mortes de crianças e adolescentes em geral, e mesmo de crianças e adolescentes na escola.

David James Harding, Jal Mehta e Cybelle Fox em “Studying rare events through qualitative case studies: Lessons from a study of rampage school shootings” (“Estudando eventos raros através de estudos de caso qualitativos: Lições de um estudo de tiroteios na escola”) chamam atenção ainda para os perigos de percepções distorcidas que podem reforçar a justificativa de medidas extremas ineficientes.

A física Sherry Towers, da Universidade do Estado do Arizona (E.U.A) estudou o “efeito de contágio” de tiroteios em massa e concluiu que a cobertura da mídia nacional acaba aumentando a frequência dessas tragédias.

“Nossa pesquisa examinou se havia ou não evidências de que assassinatos em massa podem inspirar cópias. Encontramos evidências de que os assassinatos que recebem atenção da mídia nacional ou internacional realmente inspiram eventos similares em uma fração significativa do tempo”, disse em entrevista ao site da Universidade do Arizona, em 2015.

Ela compara crimes inspirados em tragédias anteriores a uma doença, onde você geralmente precisa de um contato próximo para espalhá-la e afirma que os meios de comunicação agem como um “vetor” que pode transmitir a infecção através de uma área muito grande. Mas ressalta que pessoas suscetíveis à ideação para cometer esses crimes são bastante raras na população. É por isso que ela conclui que é necessária muita cobertura midiática sobre uma ampla área geográfica para que esse tipo de “contágio” ocorra.
The Intercept Brasil propõe caminho
No dia 23 de março, o The Intercept BR enviou um editorial aos seus leitores via boletim semanal, por e-mail. Assinado pelos jornalistas Tatiana Dias e Alexandre de Santi, o texto “Como derrubamos duas páginas de ódio sem dar audiência para elas” compartilhou um autoexame pela equipe do veículo e, ao mesmo tempo, sugeriu caminhos efetivos para a imprensa lidar com conteúdos de ódio e criminosos que buscam notoriedade.

O Intercept decidiu abrir mão da “notícia” e, de certa forma, se transformou nela: pressionaram Google e Facebook para remover duas páginas que disseminavam conteúdo de ódio e conseguiram.
“disseminar um conteúdo de ódio – ainda que for como denúncia – não é mais importante do que agir para que ele seja removido o mais rápido possível, cobrando responsabilidade de quem deve ser cobrado. Se Google e Facebook não tivessem derrubado os vídeos, publicaríamos uma reportagem denunciando a omissão. Felizmente, não foi necessário. Esperamos que não seja necessária a pressão de um jornalista para que isso aconteça”.

A política editorial adotada pelo veículo pode ser ancorada em um sem número de estudos que concluem que atiradores em massa e propagadores de ódio buscam fama e que a ausência deste debate na cobertura da imprensa nacional é extremamente perigosa. Grandes grupos de comunicação com seus rádios, tvs e jornais repercutiram cada suposta novidade, ou meras especulações sobre Suzano sem observar critérios pré-estabelecidos no código de ética do jornalismo brasileiro e recomendações internacionais para lidar com este tipo de assunto. Ato falho, talvez, mas leviano.

O código de ética do jornalismo brasileiro, documento máximo do profissional da imprensa, deixa claro em seu artigo 2º, incisos I e II que  “a divulgação da informação precisa e correta é dever dos meios de comunicação (…) e que as informações divulgadas “devem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por finalidade o interesse público”.

Interesse público é, antes de mais nada, uma norma jurídica e um princípio do sistema constitucional brasileiro que significa que os direitos e garantias individuais de cada cidadão conhecido como “interesse particular”, se somam e formam o que se entende por interesse público.
Celso Antônio Bandeira de Mello, jurista e professor da PUCSP, o define como “a soma de interesses individuais, a ser representado por uma instituição jurídica comum: o Estado, o Poder Público”.

Estes interesses individuais referem-se ao campo dos direitos constitucionais e adquiridos, como mais segurança nas ruas, 13º salário e etc. Não englobam desejos e anseios abstratos. E aí é que mora a confusão onde se confunde “interesse público” com interesse “do” público. Este último não representa coletividade, mas audiência.

Portanto, outro trecho do texto do The Intercept merece destaque:
“o papel da mídia e dos intermediários que também funcionam como mídia, como Google e Facebook, precisa ser discutido. Se a sociedade valoriza a violência, nós vamos dar a ela o que ela quer ver, exacerbando o ódio? Ou assumir uma postura mais responsável?”, defende o The Intercept BR. 

O código de ética da profissão, novamente, indica em seu artigo 7º, inciso V, que o jornalista não pode “usar o jornalismo para incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime”.

O artigo 11º diz ainda que o jornalista não pode divulgar informações “de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes”.

Portanto, o efeito indireto da cobertura desregrada da imprensa é, de forma não intencional, uma afronta ao seu próprio documento deontológico.
Dont Name Them e No Notoriety
Você deve ter percebido que a série de reportagens “As redes do ódio” não cita o nome de nenhum dos atiradores e isso é proposital.
Decidimos aderir a algumas diretrizes de sites como Dont Name Them (“Não nomeie-os”), e No Notoriety (“Sem notoriedade”) para não darmos, justamente, o que eles queriam: fama, notoriedade, reconhecimento e validação.

Sob autorização do psicólogo Dr. Daniel Reidenberg, diretor-executivo do SAVE.ORG (Suicide Awereness Voices of Education), gerente do Conselho Nacional de Prevenção ao Suicídio dos E.U.A. e secretário geral da Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio (IASP), a ONG de Jornalismo e Direitos Humanos Pensamento.org, traduziu um documento, antes disponível apenas em inglês no site www.reportingonmassshootings.org, que oferece recomendações sobre como a mídia pode cobrir um incidente em que uma pessoa (ou um pequeno grupo) atira em vários outros em um ambiente público. Esse projeto foi liderado pelo SAVE e incluiu especialistas nacionais e internacionais do AFSP, do CDC, da Universidade de Columbia, da Força-Tarefa de Mídia do IASP, JED, NAMI-NH, SPRC e vários especialistas do setor de mídia.

Você pode realizar o download, gratuitamente, no link Portuguese (BR) translation.

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Acompanhe as reportagens da série:

Motivação divide especialistas

Por Tiago Lobo

A puberdade masculina dá os seus primeiros sinais entre os 9 e 14 anos: os testículos aumentam, pelos começam a surgir pelo corpo, a voz engrossa e a produção de testosterona (o hormônio masculino) faz com que o sistema reprodutivo, ossos e músculos amadureçam. E também pode mexer com o cérebro.

O consenso na comunidade científica internacional é que o hormônio possui um efeito facilitador sobre a agressão, mas não age sozinho. Presos violentos, por exemplo, possuem níveis mais altos de testosterona que seus pares mais dóceis.

“Pelo o que podemos dizer até agora, a testosterona é gerada para preparar o organismo para responder a competição e/ou desafios à situação de alguém”, explica Frank McAndrew, professor de psicologia no Knox College em Galesburg, Illinois, Estados Unidos, em entrevista a Scientific American Brasil.

“Qualquer estímulo ou evento que sinaliza uma dessas coisas pode desencadear uma elevação nos níveis do hormônio”, relata o professor.

Exposição a violência afeta habilidades sociais

Augusto Buchweitz, pesquisador do Instituto do Cérebro do RS (InsCer) da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS), analisou como a exposição à violência afeta o cérebro de adolescentes por meio de neuroimagens (imagens do cérebro). A pesquisa da sua equipe, publicada na revista científica internacional Developmental Science, aplicou um questionário para adolescentes de escolas de Porto Alegre, algumas situadas em bairros com os maiores índices de violência da capital.

Os jovens tinham o cérebro monitorado por imagem enquanto deviam decidir o estado mental de pessoas vistas em fotos onde apenas os olhos eram mostrados. As áreas que envolvem a percepção e a cognição social (a parte da sociabilidade) eram menos ativadas em jovens que tinham um histórico de maior exposição à violência. Nestes jovens, ao mesmo tempo, a conectividade da amígdala (conhecida como o “centro do medo” do cérebro) foi maior. Os níveis de cortisol, medidos por amostras de cabelo, também eram mais elevados nos jovens mais expostos à violência.  

O estudo sugere que a violência pode afetar várias sub-habilidades importantes para a convivência em sociedade, como a empatia.

“Não se pode dizer se isso vai ter efeitos futuros, mas estudos mostram que este tipo de funcionamento atípico pode aumentar o risco para transtornos de humor, por exemplo”, explica o pesquisador em entrevista ao site da PUCRS.

Agora imagine um espaço na internet criado exclusivamente para estimular jovens recém-saídos da puberdade a cometer atentados e propagar o ódio. E imagine se estes jovens forem virgens e vítimas de bullying. O efeito tem se mostrado desastroso.

Receita perigosa

Famílias disfuncionais, má influência, busca de fama e poder: essa é uma receita perigosa (mas não definitiva) segundo os estudos do psicólogo Peter Langman, pesquisador do Centro Nacional de Avaliação de Ameaças do Serviço Secreto dos Estados Unidos e autor do livro “Why Kids Kill: Inside the Minds of School Shooters” (“Por que jovens matam: por dentro das mentes de atiradores em escolas”), que vem dedicando boa parte da vida ao estudo do tema.

O psicólogo Peter Langman dedica boa parte da vida a estudar tiroteios em massa (Foto: arquivo pessoal)

Ele mantém o site School Shooters, que agrega uma base de dados com 150 casos reportados em 10 países desde 1913. São eles: Alemanha, Austrália, Brasil, Canadá, Escócia, E.U.A., Finlandia, França, Suécia e Ukrânia. O site também oferece recomendações para prevenir ataques.
No artigo Rampage school shooters: A typology (“Atiradores de escolas: uma tipologia”), de 2009, Langman analisou 10 casos e classificou estes jovens em três tipos: traumatizados, psicóticos e psicopatas.

Da amostragem analisada três eram traumatizados, cinco psicóticos e dois psicopatas.

Os três atiradores traumatizados vieram de lares desfeitos com abuso de substâncias e comportamento criminoso pelos pais. Todos foram fisicamente abusados ​​e dois foram abusados ​​sexualmente fora de casa.

Os cinco atiradores psicóticos tinham transtornos do espectro da esquizofrenia, incluindo esquizofrenia e transtorno de personalidade esquizotípica. Todos eles vieram de famílias intactas, sem histórico de abuso.

Os dois atiradores psicopatas não foram abusados ​​nem eram psicóticos. Eles demonstraram narcisismo, falta de empatia, falta de consciência e comportamento sádico.

Apesar de ajudar a compreender um pouco a mente dos atiradores, estes perfis estão muito longe de servirem como base para identificar possíveis novos autores, visto que  “a maioria das pessoas traumatizadas, psicóticas e psicopatas não cometem assassinato”, segundo Langman enfatiza.

Ele indica que 82% dos autores desses atentados cresceram em “famílias disfuncionais” e que um “desejo de fama” ou de “se sentir masculino e poderoso” costuma ser a motivação.

Para caracterizar uma “família disfuncional”, ele cita fatores como ausência dos pais, infidelidade, divórcio, dependência química, comportamento criminoso, violência doméstica e abuso infantil.

Langman explica o que ao se juntarem a fóruns online que debatem assassinatos em massa, jovens que se sentem deslocados conquistam um grupo e se unem a uma subcultura na qual podem se sentir especiais, diferentes e superiores à sociedade dominante.

“Quanto mais sentem que não são ninguém / nada, mais são levados a se sentirem poderosos por meio de ideologias de superioridade e ódio”, disse ao repórter.

Para Langman, existem alguns mitos a serem superados: a conexão entre atiradores como vítimas de bullying é imprecisa.

“Não que isso nunca seja verdade, mas seu significado foi muito exagerado”, declarou o pesquisador ao site Monitor on Psychology.

A ideia de que apenas adolescentes solitários cometem estes crimes também merece atenção: Langman encontrou atiradores entre 11 e 62 anos em suas pesquisas, sendo a maioria deles adultos. Muitos atiradores de escolas não estão isolados: diferente da maioria dos casos brasileiros.

Langman revela que meninas podem, sim, puxar o gatilho. Mesmo que isso seja menos comum: com base em uma análise dentro de um período de 50 anos de casos documentados, 95,3% dos atiradores eram homens e 4,7% eram mulheres.

A maioria dos atiradores não possui alvo específico. Dos 48 analisados no livro de Langman, “School Shootters” (“Atiradores de Escola”, ainda inédito no Brasil), apenas um visou um desafeto. Quando existe um alvo, na maioria das vezes, eles são funcionários da escola, professores e administradores. Os próximos alvos mais comuns são meninas.

As motivações para perpetrar um tiroteio em massa formam uma rede complexa e de mapeamento intrincado: “entre os adolescentes, pode ser que um garoto tenha terminado um namoro na mesma época em que é suspenso da escola, em que recebe uma multa de trânsito ou é preso por alguma coisa, mais ou menos na mesma época em que tem problemas em casa ou não”. Langman explica que uma sucessão de “fracassos”, falhas ou retrocessos acontecendo com alguém que é psicopata, psicótico ou traumatizado, gera uma combinação de dinâmicas psicológicas e eventos de vida que colocam as pessoas em um caminho de violência. Entre os adultos, casamentos fracassados, fracassos ocupacionais e, principalmente, dificuldades financeiras são elementos críticos.

Outro dado importante: atiradores com menos de 20 anos geralmente têm algum tipo de influência externa, seja alguém recrutando-os para participar de um ataque ou de um “modelo”.

“Eu encontrei pelo menos uma dúzia de atiradores que foram atraídos por Hitler e os nazistas. Também poderia ser um modelo fictício: o filme “Assassinos Naturais” foi citado por vários atiradores”. Trata-se de um filme policial satírico de 1994 dirigido por Oliver Stone, com roteiro de Quentin Tarantino. 

Um relatório publicado em 2004, pelo Serviço Secreto dos E.U.A. em parceria com o Departamento de Educação norte-americano, revisou 37 casos envolvendo 41 atiradores entre ataques e tentativas ocorridos em 26 estados de 1974 até 2000. O objetivo do documento “The Final Report and Findings of the Safe School Initiative” (Algo como “O relatório final e os resultados da Iniciativa Escola Segura”), que você pode acessar aqui (em inglês), era compreender o fenômeno e lançar propostas preventivas.

A conclusão do relatório vai de encontro com os resultados das pesquisas de Langman: não há um perfil psicológico ou demográfico característico dos atiradores em escolas. No entanto, o relatório sugere variáveis que podem ser identificadas na maioria dos casos.

As mais significativas são:

  • A dificuldade dos atiradores em lidar com perdas significativas e falhas pessoais
  • A manifestação de comportamentos anteriores que sinalizavam que eles precisavam de ajuda
  • O fato de terem sido ou serem vítimas de perseguições e humilhações de colegas.

Langman defende que idealmente as escolas e universidades deveriam contar com equipes de avaliação de ameaças, multidisciplinares, incluindo administração, corpo docente, forças policiais, saúde mental e, às vezes, representação legal. A principal tarefa dessas equipes seria investigar ameaças de violência e separar falsos alarmes de violência potencial ou iminente.

“Nada é simples aqui, mas os psicólogos estão na melhor posição para entrevistar e avaliar alguém, procurando por evidências de uma personalidade psicopata, questões psicóticas, histórico de trauma e para construir um relacionamento com essa pessoa para avaliá-los”, defende.

Influência do meio e família
A pesquisadora Eva Fjällström, da Luleå University of Technology, ao norte da Suécia, publicou um ensaio em 2007 onde defendeu que, em tiroteios em massa, as famílias não são “causas”, mas têm uma participação importante e determinada responsabilidade: “o que pode parecer ser um ato de loucura pode ser melhor entendido como resultante da ausência de orientação que leva a uma falta de estabilidade e segurança básicas. Amigos solidários e uma família solidária são essenciais para todos os indivíduos, especialmente adolescentes, e as conseqüências, se não houverem tais relações, podem, como vimos aqui, ser devastadoras”, conclui Fjällström .

A dupla Stephen Thompson e Ken Kyle, no artigo “Understanding mass school shootings: Links between personhood and power in the competitive school environment” (“Entendendo o tiroteio em massa nas escolas: ligações entre personalidade e poder no ambiente escolar competitivo”), publicado em 2005, acrescentaram um ponto de vista interessante a esta investigação. Segundo eles a preocupação não deve ser com o perfil psicológico dos atiradores, mas com os perfis dos meios onde os massacres ocorrem e como isso pode influenciar as respostas de estudantes despreparados para estes ambientes.

Outras pesquisas, como a de Gary e Alison Clabaugh, “Bad Apples or Sour Pickles? Fundamental Attribution Error and the Columbine Massacre” (“Maçãs podres ou picles azedo? Erro Fundamental de Atribuição e o Massacre de Columbine”), também de 2005, sugerem que quando psiquiatras e psicólogos a serviço Departamento Federal de Investigação dos E.U.A., o FBI, divulgam os supostos perfis psicológicos dos atiradores, acabam provocando ondas de discriminação e gerando mais tensão em escolas com alunos que passam a ser identificados como socialmente inaptos e assassinos em potencial.

Ódio às mulheres
No Brasil, a maioria dos atiradores odiavam mulheres.
De acordo com o estudo “Meta-Analyses of the Relationship Between Conformity to Masculine Norms and Mental Health-Related Outcomes” (“Meta-Análises da Relação entre a Conformidade com as Normas Masculinas e os Resultados Relacionados à Saúde Mental”, em tradução livre), da Universidade Estadual de Indiana, nos E.U.A, homens com comportamento playboy e que buscam poder sobre as mulheres são mais propensos a ter problemas psicológicos. A análise se ateve a 11 dimensões de masculinidade e reuniu dados de 78 estudos sobre saúde mental e percepções de masculinidade de 19.453 homens analisados.

“As normas masculinas de Playboy e “poder sobre as mulheres’ são as normas mais intimamente associadas a atitudes sexistas”, disse Joel Wong, líder da pesquisa.

“A associação robusta entre a conformidade com essas duas normas e resultados negativos relacionados à saúde mental ressalta a ideia de que o sexismo não é meramente uma injustiça social, mas também pode ter um efeito prejudicial na saúde mental daqueles que adotam tais atitudes.”

Ainda mais preocupante, disse Wong, era que os homens que se conformavam fortemente com as normas masculinas tinham mais probabilidade de ter problemas de saúde mental, mas também menores chances de procurar tratamento.

Simone de Beuvoir já dizia, em seu livro “O Segundo Sexo”, que “o masculino se impõe ao anular o outro (feminino)”. Ela segue atual.

Acompanhe as reportagens da série:

Bullying: um em cada dez estudantes é vítima

Por Tiago Lobo

O fenômeno sempre existiu mas não era estudado. Virou bode expiatório perfeito para achar motivos para “explicar” tiroteios em massa. Especialistas refutam a tese.

Um relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2004 concluiu que o Bullying é um problema universal que afeta cerca de um terço de crianças por mês, em todo o mundo. Para cerca de 11% de crianças, este tipo de abuso, praticado pelos seus companheiros, é severo (várias vezes por mês).

No Brasil, um em cada dez estudantes é vítima segundo dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) 2015. A Lei nº 13.185, em vigor desde 2016, classifica o bullying como intimidação sistemática, quando há violência física ou psicológica em atos de humilhação ou discriminação e existe até uma data instituída por meio da Lei nº 13.277 para o Dia Nacional de Combate ao Bullying e à Violência nas Escolas, 7 de abril.

O Diagnóstico Participativo das Violências nas Escolas, realizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) em 2015, com apoio do MEC, revelou que 69,7% dos estudantes declaram ter presenciado alguma situação de violência dentro da escola. Isso fez com que o bullying fosse incluído na Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar (PeNSE) de 2015: 7,4% dos estudantes informaram que já se sentiram ofendidos ou humilhados e 19,8% declararam que já praticaram alguma situação de intimidação, deboche ou ofensa contra algum de seus colegas.

A psicóloga e professora da Pós-Graduação em psicologia da PUCRS, Carolina Lisboa, pesquisa os processos de bullying, cyberbullying, desenvolvimento social e sócio-cognições em contextos virtuais. No estudo “O fenômeno bullying ou vitimização entre pares na atualidade: definições, formas de manifestação e possibilidades de intervenção”, publicado em parceria com os pesquisadores Luiza de Lima Braga e Guilherme Ebert, conclui-se que a participação contínua em episódios de bullying gera distorções nas concepções de emoções e desenvolvimento moral.

Lisboa define o fenômeno como um processo de vitimização entre pares: pelo qual uma criança ou adolescente é sistemática e repetidamente exposta a um conjunto de atos agressivos (diretos ou indiretos), que ocorrem sem motivação aparente, mas de forma intencional. Pode ser protagonizado por um ou mais agressores e é caracterizado pelo desequilíbrio de poder e ausência de reciprocidade. A vítima possui, geralmente, pouco ou quase nenhum recurso para se defender.

O estudo o avalia como um subtipo de comportamento agressivo que gera atos violentos e, na maioria das vezes, ocorre dentro das escolas. E emerge na interação social.

“Como está associado a um processo normativo de formação de identidade e exclusão dos diferentes (na individuação eu vou definindo quem sou a partir de quem não sou), sempre acontece bullying”, afirma Lisboa, ressaltando que não significa dizer que a prática é justificável. Para a pesquisadora o Bullying se mantém por conta do preconceito e juízo de valor agregado a um processo natural de formação de identidade pessoal, passando pelo grupo de iguais.

Os efeitos do bullying variam de acordo com cada vítima: “Uma pessoa pode sofrer bullying e não representar um trauma e pode sofrer um assalto e significar como trauma. Bullying e cyberbullying são violências gravíssimas com impactos negativos”, aponta Lisboa.

Ela explica que as implicações possíveis na saúde mental de crianças e adolescentes passam por baixa autoestima, baixa autoconfiança e autoeficácia, dificuldades de controle de emoções (especialmente de raiva), dificuldades acadêmicas, profissionais, insegurança, agressividade, isolamento, fobia social, uso de substâncias, depressão e ansiedade.

Quando pergunto se o bullying pode levar uma pessoa a cometer um tiroteio em massa Carolina Lisboa é categórica:
“Não vou chancelar essa ideia. Gostaria de deixar claro que não acredito nesta linha de raciocínio. Muitas variáveis influenciam nestas tragédias inclusive histórico de saúde mental pregresso, cultura entre outros. Uma coisa é o bullying e outra é a psicopatologia”.

Apesar de o ambiente escolar ser o palco de maior prevalência de bullying, o fenômeno ocorre em outros contextos, não se restringe a um determinado nível socioeconômico, tampouco a uma faixa etária específica ou gênero

A pesquisadora revela que o que mais aprendeu nos seus estudos é que agressores também sofrem e permanecem na violência com medo de que sejam vítimas no futuro. Eles ficam reféns em um ciclo, e podem não ter intenção de machucar e nem entender que estão machucando, visto que as pessoas têm diferentes níveis de empatia e alguns não são empáticos.

Para lidar com vítimas e agressores, a comunicação familiar é fundamental. Pais devem ir até a escola, estabelecer limites claros e criar oportunidades para favorecer diferentes habilidades que nutram a autoestima dos filhos, favorecendo relações do jovem fora da escola.

Agressividade sempre gera agressividade e somos influenciados por modelos, portanto, Lisboa sugere que “Ao invés de eleger culpados deveríamos pensar em uma cultura não agressiva e violenta em todas as escolas e na sociedade. Sem punições inadequadas e com valorização do amor, da alegria, da solidariedade”.
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RS ocupa o 4º lugar no “ranking do ódio”

Por Tiago Lobo

Durante três meses – de abril a junho de 2016 – o Comunica Que Muda (CQM), uma iniciativa da agência de publicidade nova/sb, monitorou dez tipos de intolerância nas redes sociais e lançou um dossiê. Foram analisadas 542.781 menções. Nos dez temas pesquisados, o percentual de abordagens negativas estava acima de 84%. A negatividade nos temas que tratam de racismo e política era de 97,6% e 97,4%, respectivamente.

A intolerância de maior audiência na época era a política (quase 274 mil menções), mais de três vezes superior à misoginia, que aparece em segundo lugar, com quase 80 mil menções. Vale lembrar que o país recém passara pelo processo de Impeachment da ex-presidente Dilma Roussef.

A quantidade em números absolutos colocava o Rio Grande do Sul em 4º lugar com 14.479 menções. Analisando a proporcionalidade em relação à sua população, que era de 11.247.972 segundo dados do IBGE de 2015, o estado gaúcho desce 2 posições, ficando em 6º mais intolerante na internet.

Imagine que o Facebook recebe, por dia, cerca de 1 milhão de denúncias de postagens de ódio ou conteúdo ilegal. Devido ao aumento dos casos, em fevereiro de 2016 ele inaugurou no Brasil a Central de Prevenção ao Bullying, que já existia em outros 50 países. Em maio do mesmo ano as gigantes Microsoft, Google, Twitter e Facebook assinaram um documento elaborado pela União Europeia para que o discurso de ódio fosse controlado com mais eficiência.

Desde 2006  A ONG SaferNet Brasil*, mantém um canal para receber denúncias relacionadas a crimes de ódio online. Já foram mais de 2 milhões de casos reportados. 28% são sobre racismo e 69% das vítimas que procuram ajuda são mulheres. E estes dados são apenas de uma iniciativa que monitora a surface web, a camada que todos nós navegamos.

De acordo com dados da ONG, entre 2010 e 2013 houve um aumento de mais de 200% no número de denúncias contra páginas que divulgaram conteúdos racistas, misóginos, homofóbicos, xenofóbicos, neonazistas, de intolerância religiosa, entre outras formas de discriminação contra minorias em geral.

“De maneira geral, o discurso de ódio costuma ser definido como manifestações que atacam e incitam ódio contra determinados grupos sociais baseadas em raça, etnia, gênero, orientação sexual, religiosa ou origem nacional”, diz o site da SaferNet Brasil.

Protegidas, pelo suposto anonimato, pessoas se sentem seguras para ofender, atacar, criar boatos e propagar preconceitos contra minorias. Isso é cyberbullying. Um crime. Mas como diria o escritor italiano Umberto Eco ao receber um título de doutor honoris causa em comunicação e cultura na Universidade de Turim, em junho de 2015, “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”. Em alguma medida ele pode ter razão.

*Caso encontre imagens, vídeos, textos, músicas ou qualquer tipo de material que seja atentatório aos Direitos Humanos, faça a sua denúncia aqui.

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Há 20 anos ameaças fermentam na internet

Por Tiago Lobo
No fórum Dogolachan, localizado na primeira camada da Deep Web, uma parte da internet invisível aos motores de busca como o Google, adolescentes intitulados Incels (celibatários involuntários na sua linguagem), trocam informações e pedem dicas de forma anônima. Os assuntos variam desde a compra facilitada de armas, esquemas de bombas caseiras, tipos de ácidos para agredir pessoas, até troca de conteúdo pedófilo e dicas para planejar e cometer atentados terroristas.

Há um espaço, inclusive, que funciona como um confessionário. Um “padre” responde às confissões dos usuários. Um deles pede, por exemplo, ajuda após 9 dias de celibato para se livrar do vício pela masturbação que teria o tornado “impuro”…

O fórum é terreno fértil onde apologia ao crime é rotina. De lá que partiram incentivos para tragédias que mobilizam o país desde o final dos anos 90.

Até novembro de 1999, “tiroteios em massa” não eram uma realidade no Brasil. Isso era tido como um problema da terra do Tio Sam, nada Tupiniquim.

A partir de 20 de abril daquele ano o chamado “Massacre de Columbine” inundou a pauta na imprensa internacional: dois adolescentes mataram 12 alunos  e um professor, feriram outras 21 pessoas para depois se suicidarem em uma escola do Colorado, Estados Unidos. Desde 1996 os adolescentes alimentavam um site onde compartilhavam mapas e estratégias sobre o jogo de tiro “Doom”. No final de 97 já havia conteúdo sobre como construir bombas caseiras e postagens que descreviam o ódio que a dupla sentia da sociedade.

Na noite de 3 de novembro, pouco mais de 6 meses depois de Columbine, cerca de 30 pessoas assistiam ao filme O Clube da Luta na sala 5 do cinema do Shopping Morumbi, em São Paulo. Um estudante de medicina de 24 anos começou a atirar até esvaziar o pente de uma submetralhadora, matando três pessoas e ferindo outras quatro. Ele foi imobilizado quando ficou sem munição e logo em seguida foi detido pela polícia.

Advogados de defesa, na época, tentaram alegar insanidade, o que o tornaria ininputável: alguém que não tem discernimento sobre certo e errado, e possibilitaria o cumprimento da pena em um hospital psiquiátrico. Alegaram também que ele havia sofrido influência de um jogo de tiro, o clássico Duke Nukem: não colou e ele foi condenado a 120 anos e seis meses de prisão.

Um psiquiatra contratado pela família afirmou que o jovem sofria de Transtorno de Personalidade Esquizoide (TPE), caracterizado pelo distanciamento e desinteresse no convívio social e uma gama limitada de emoções em seus relacionamentos interpessoais.

Membro de família da classe média alta de Salvador, o “atirador do shopping” começou a apresentar indícios de depressão e ideação suicida aos 13 anos: queixava-se à mãe que não tinha amigos. Aos 15, durante um intercâmbio nos E.U.A, foi mandado de volta pela família que o acolheu no exterior por conta da sua agressividade e, ao retornar, passou a agredir fisicamente os próprios pais chegando a fraturar a costela de um deles.

Por recomendação médica, foi morar sozinho em São Paulo, para ter “uma vida social independente”. Na faculdade de medicina (seguindo os caminhos do pai), ingressou como aluno brilhante e foi decaindo. Introspectivo e com reações desproporcionais às brincadeiras dos colegas foi ficando sozinho. Um professor o definiria como uma pessoa “apática, diferente”. Nas primeiras férias da faculdade tentou suicídio, depois teve que sair da pensão onde morava por agredir um colega, na sequência ameaçou o porteiro de um apartamento que os pais lhe alugavam e passou a ter alucinações.

Cinco dias antes do crime, resolveu largar a medicação psiquiátrica por conta própria e fazia uso frequente de cocaína. A polícia encontraria 37 papelotes da droga no apartamento do estudante, que não pagava o condomínio havia dois meses.

Três anos depois do julgamento, a pena foi reduzida a 48 anos e nove meses de prisão por uma tecnicalidade da legislação. Hoje ele segue preso, institucionalizado no Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador, destinado a doentes mentais.

Logo após ser detido, policiais do 96º DP perguntaram se havia alguma namorada ou amigos para avisá-los da situação do atirador. “Eu não gosto de ninguém”, ele respondeu. A primeira escola

A cidade de Taiúva, a 363 km de São Paulo foi o palco para o primeiro tiroteio em massa dentro de uma escola que o Brasil registra. Às 14h40min do dia 27/01/2003, um jovem de 18 anos armado com um revólver calibre 38 e 105 projéteis invadiu o pátio da sua ex-escola e disparou quinze vezes contra alunos, professores e funcionários. Após ferir cinco estudantes, zelador e vice-diretora, se matou com um tiro na cabeça. Uma das vítimas ficou tetraplégica.

O colégio estadual Coronel Benedito Ortiz, cena do crime, foi frequentado pelo atirador durante toda sua vida escolar. À época a diretora da escola, Maria Luiza Gonçalves Oliveira disse para a imprensa que eram muito amigos e que “ele nunca deu problemas, era educado, sempre andou bem vestido”.

A polícia concluiu que o atirador teria cometido o crime motivado por revolta, devido ao bullying que sofria por ter “problemas com peso”. Em 1999, segundo a diretora Oliveira, o jovem conseguiu emagrecer quase 30 quilos.

Filho único de família simples, o pai trabalhava no campo e a mãe dona-de-casa, o atirador de Taiúva era tido como bom aluno, sem problemas com disciplina e sem inimigos. Saía pouco e não tinha namorada.Luto nacional

O caso que teve maior repercussão na imprensa e comoção pública, levando a então presidente Dilma Roussef a decretar luto nacional, teve início na manhã de 7 de abril de 2011.

Um rapaz com 23 anos, ex-aluno da Escola Municipal Tasso da Silveira, no bairro de Realengo, na zona oeste do Rio de Janeiro, invadiu a instituição armado com dois revólveres calibres .32 e .38 e abriu fogo contra alunos deixando 12 crianças mortas (10 meninas e 2 meninos) e 17 feridas. Uma sobrevivente que foi entrevistada pela TV Record logo após o crime revelou que o assassino atirava nas meninas para matar e nos meninos para ferir.

Após ser baleado na perna por um policial, o atirador se matou.

Os investigadores apuraram que a motivação seria vingança por conta do bullying que sofria. O jovem já havia chamado de “irmão”  o atirador que matou 32 pessoas na Universidade Virginia Tech, nos E.U.A., em 2007. Este último venerava os autores de Columbine. O autor do massacre em Realengo também se identificava com o atirador de Taiúva.

Ele chegou a deixar um vídeo onde dizia ter sido vítima de “bullying”. “Muitas vezes, aconteceu comigo de ser agredido por um grupo e todos os que estavam por perto debochavam, se divertiam com as humilhações que eu sofria sem se importar com meus sentimentos”, declarou em a nota suicida. Nela também havia instruções de como deveriam ser feitas a retirada de seu corpo e o sepultamento. Nenhuma pessoa “impura” poderia tocar no cadáver. Análises do computador do jovem mostraram que ele constantemente fazia pesquisas sobre terrorismo e se identificava com Osama Bin Laden.

15 dias após o massacre nenhum familiar compareceu ao Instituto Médico Legal para liberar o corpo do atirador: ele foi enterrado como indigente.

Padrões se repetem

Mesmo com um intervalo de tempo, parece que o efeito de um atentado em massa se desdobra em cascata.

Em setembro de 2011, 5 meses após Realengo, uma criança de 10 anos atirou contra sua professora e, em seguida, cometeu suicídio na escola Professora Alcina Dantas Feijão, no município de São Caetano do Sul, do ABC paulista.  O crime ocorreu às 15h50min, após uma discussão em sala de aula. A arma foi um revólver calibre .38 que pertencia ao pai da criança, um guarda civil. Ambos foram socorridos com vida, mas após duas paradas cardíacas o menino foi declarado morto às 16h50. A professora sobreviveu. Os investigadores chegaram a afirmar que o menino era “manco”, que sofria gozações dos colegas e esta seria a motivação do crime, mas abandonaram a tese.

Em outubro de 2017 um adolescente de 14 anos matou dois colegas e feriu outros quatro ao disparar uma pistola .40 da mãe, que assim como o pai, era policial militar. O crime ocorreu no Colégio Goyases, em Goiânia (GO). Segundo os colegas, o jovem era constantemente chamado de “fedorento”.

Este ano, o ataque ocorrido na escola paulista Raul Brasil, em Suzano, no dia 13 de março, deixou 10 mortos e 11 feridos, por dois jovens encapuzados que abriram fogo nas dependências da instituição. Suspeita-se que os atiradores tenham sido frequentadores do Dogolachan, onde são celebrados como heróis.

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Repressão aos crimes virtuais desafia polícia gaúcha

Por Tiago Lobo

Ameaças inspiradas no atentado de Suzano pegaram as forças policiais do RS de surpresa. Desde junho de 2010, com a criação da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI), foi a primeira vez que a Polícia Civil Gaúcha teve que investigar possíveis tiroteios em massa no Estado. Com falta de efetivo e investimento em tecnologia, a Civil conseguiu reagir antes que o pior acontecesse.

Com aproximadamente 500 procedimentos abertos, entre inquéritos e termos circunstanciados, a pasta comandada a pouco mais de um mês pelo Delegado André Anicet, conta apenas com quatro policiais entre inspetores e escrivães. Apenas um deles possui formação em área relacionada: sistemas de informação.

A DRCI atua a partir de denúncias. Entre os principais casos estão golpes na internet (estelionato) e extorsão sexual – quando uma pessoa é chantageada por alguém de posse de fotos nuas, por exemplo.

As ameaças pelo estado vieram à tona a partir da repercussão de Suzano. Até então, segundo o delegado e o inspetor Amaral, que está há 3 anos na delegacia, ameaças de tiroteios em escolas não eram uma realidade no RS.

A escalada começou a partir do alerta à Rede Marista. A maioria das ameaças partiram de adolescentes passando trotes. A polícia segue recebendo e apurando denúncias, mas o volume vem caindo.

Os autores podem responder por apologia ao crime, ameaça, associação criminosa e até responder por ato terrorista. Mobilizar forças de segurança a partir de um mero trote e provocar alarde e pânico na sociedade também é crime.

O delegado revela, com certa cautela, que de todas as denúncias recebidas até agora, duas eram potencialmente mais preocupantes. Anicet ressalta que mensurar potencial é difícil, mas nestes dois casos os autores teriam meios para perpetrar um ataque – ambos já foram identificados e detidos.

“O caso do colégio Marista foi uma mera ameça, uma Fake News”, revela o delegado.

A apuração de crimes praticados na internet começa com algumas técnicas específicas de coleta de dados e informações. Em dado momento do inquérito ela se torna um trabalho de investigação tradicional.

Atualmente o próprio delegado pode solicitar à plataformas como Facebook, Twitter e outras redes sociais, assim como empresas de telefonia, dados cadastrais de um suspeito. Informações mais detalhadas que permitam o rastreio do endereço de IP de um computador, por exemplo, ainda requerem ordem judicial. O que é visto como um entrave em casos urgentes.

Apesar do efetivo reduzido, a DRCI não age sozinha. Além das delegacias locais da Polícia Civil que atuam nas investigações, ela conta com relatórios do Gabinete de Inteligência Estratégica e da Secretaria de Segurança Pública para fazer cruzamentos de dados e estabelecer, por exemplo, se as ameaças às escolas do estado possuem alguma conexão entre si.

Investigações em andamento, mas pelo tom do delegado não parece ser o caso.

A Polícia Civil do RS ainda não possui tecnologia para rastrear usuários na Deep Web, como no fórum Dogolachan, de onde já partiram algumas ameaças, por isso as investigações contam com a ajuda da população. Denúncias levam aos autores.

Apesar disso o Delegado ressalta que, ao contrário da crença popular, “não é verdade que a Deep Web é irrastreável. Não temos estrutura pra isso no momento, mas é possível”.

O WhatsApp, por exemplo, também não é invisível ao monitoramento da polícia. Ela não pode acessar o conteúdo de trocas de mensagens por conta da criptografia da ferramenta, mas consegue saber quem e quando um suspeito se comunicou com outro pelo aplicativo.

“Acredito que o futuro da criminalidade é digital”, afirma o delegado. Pelo visto o da investigação também: o inspetor Amaral, por exemplo, conta que pediu para integrar a DRCI após alguns anos na Homicídios. Ele realizou uma capacitação via Ministério da Justiça para operação de um software desenvolvido pela polícia Canadense para rastrear conteúdo pedófilo na surface (a internet que todos nós navegamos) e Deep Web.

O caso de maior repercussão nos últimos três anos da pasta foi gerado por desinformação:  “A Baleia azul se tornou potencialmente ofensiva por causa da mídia”, opina o Inspetor.

A exposição da imprensa levou o DRCI a instaurar um inquérito para investigar se havia organização criminosa nesse caso. Suspeitos foram monitorados, identificados e apurou-se que não havia crime.

O “jogo da Baleia Azul” foi um boato que chegou ao Brasil em 2017, com a ideia de que levaria crianças a cometerem suicídio, o que supostamente já havia acontecido na Rússia.

Mas fique tranquilo: tudo não passou de um boato que a imprensa repercutiu sem apurar devidamente. Em audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília, o presidente da ONG Safernet, Thiago Tavarez, esclareceu que “essa notícia falsa que nasceu na Rússia e chegou ao Brasil de forma sensacionalista e alarmista acabou servindo de gatilho para um efeito de imitação”. Com a “Boneca Momo” (google it) não foi diferente.

Se apenas cinco servidores compõem uma das delegacias mais importantes em um momento de repercussão de tiroteios em massa planejados e incentivados pela Deep Web, o inspetor Amaral relata a sua surpresa ao se deparar com a estrutura da delegacia da mesma pasta no Rio de Janeiro, capital. 30 policiais, plantão 24h, atendimento especializado e estrutura qualificada.

“Eles estão anos-luz na nossa frente”, afirma Amaral.

Além de conduzir investigações, a delegacia ainda presta atendimento ao público: mas nem todas as pessoas que visitam a delegacia são vítimas ou deveriam estar lá… Muitas vezes não há crime: “Qual a legislação aplicável para lançar um site?”, “como deixar meu site seguro?”, “celulares que falam sozinhos” e etc despendem um tempo dos policiais para assuntos que não são trabalho de polícia.

Pergunto aos dois: com o atual efetivo da delegacia de repressão a crimes informáticos é possível dar conta? Eles não hesitam e despejam um “não” com certa frustração.

“Acho que o maior investimento em termos de Polícia e repressão deveria ser em tecnologia e pessoal. O caso Marielle, por exemplo, foi praticamente uma investigação cibernética”, defende o delegado. “Esperamos ter mais gente agora com um novo concurso. A equipe é pequena”.

“Há motivo para pânico?”, pergunto: “as pessoas tem que ter o cuidado de sempre e se suspeitarem de alguma coisa denunciarem”, é a recomendação do delegado Anicet.
Denuncia de ameaças de tiroteios em massa podem ser feitas pelo telefone 08005102828

Coleções da Zoobotânica somam mais de 600 mil exemplares da fauna e flora nativas

Cleber Dioni Tentardini
Mesmo diante das ameaças e boicotes que vem sofrendo do governo do Estado, desde 2015, a Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul (FZB/RS) completa 45 anos no dia 20 de dezembro em pleno funcionamento, com diversas pesquisas em andamento, inclusive para o Executivo estadual, e com um bom motivo para comemorar: suas coleções alcançaram a marca dos 609.445 exemplares, grande parte representativa da fauna e flora riograndenses. Esse número foi computado no início de dezembro.
O Museu de Ciências Naturais e o Jardim Botânico possuem o maior acervo de material-testemunho da biodiversidade dos ecossistemas terrestres e aquáticos do Estado. Há exemplares também de outros estados e países, a maioria doada.
O Parque Zoológico, outra instituição vinculada à FZB, possui mais de mil animais nativos e exóticos, de mais de cem espécies, mas não são considerados como coleções científicas.
Pesquisadores e estudantes de graduação e pós, de instituições do Brasil e do exterior, visitam constantemente a instituição para examinar os acervos. Por vezes, as visitas de especialistas revertem na revisão das informações, imprimindo atualidade às coleções, com os novos estudos publicados.
Além da quantidade, a qualidade das coleções é outro fator que chama a atenção dos pesquisadores. Acervos conservados, atualizados e devidamente identificados frequentemente rendem elogios aos especialistas e técnicos, ambos indissociáveis das coleções.

Coleções identificadas e conservadas, facilitando o acesso dos pesquisadores de todo o país e do exterior

Afora as coleções históricas, todas as demais são vivas, ou seja, perdem e também recebem materiais novos para estudos e catalogação, necessitando de curadoria permanente. Os acervos não são estáticos, ao contrário, estão em movimento, portanto, necessitam da supervisão dos especialistas.
Só que nos últimos dois anos todo esse patrimônio vem sendo ameaçado, com o fantasma da extinção e a demissão dos pesquisadores, técnicos e demais servidores, o chamado patrimônio imaterial.
O governo do Estado alega que as coleções serão repassadas para a responsabilidade da Secretaria de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, a SEMA, que administrará uma página na Internet com todo o banco de dados da FZB. No entanto, os próprios funcionários da SEMA já admitiram inúmeras vezes que não têm capacidade de absorver esse trabalho nem a qualificação necessária para manusear as coleções. A Fepam também já emitiu nota no mesmo sentido.
“O fato é que o patrimônio material da Zoobotânica não sobrevive sem a gestão dos especialistas, mestres e doutores em diversas áreas, com conhecimento científico acumulado (…) Esse corpo técnico extremamente qualificado mantém a instituição viva e capaz de nutrir o Rio Grande do Sul com informações sobre a biodiversidade, patrimônio paleontológico, patrimônio genético, dentre outros bens culturais e ambientais de suma relevância para a preservação da vida humana, animal e vegetal”, apontaram na ação civil pública as promotoras de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre, do Ministério Público Estadual. “E sentenciaram: “a descontinuidade dessas atividades acarretará terríveis consequências do ponto de vista científico para o Rio Grande do Sul”.
O biólogo Ricardo Ott é o curador das coleções de aranhas, escorpiões, minhocas e similares, estrelas do mar e ouriços (equinodermos), lacraias, piolhos de cobra etc (miriápodos). Trabalha há 15 anos no Museu de Ciências Naturais e afirma sem titubear: “Deixar uma coleção sem curadoria e disponível somente pela internet é condená-la à inutilidade.”
Ott exemplifica que a cada ano são publicados mais de dois mil trabalhos só em taxonomia de aranhas. Esse material precisa não só de manutenção física, mas também da manutenção científica, que só um especialista, no caso o curador, tem capacidade de atualizar.
Biólogo é curador das coleções de aranhas, escorpiões, ácaros, minhocas, estrelas do mar e ouriços, lacraias, piolhos de cobra, dentre outros

“Nós temos 60 mil lotes com exemplares de aranhas que chegam em torno de 200 mil e cerca de 1.100 exemplares-tipo, que servem de referência para identificação de espécimes. A toda hora são feitas descrições, revisões e outras pesquisas que têm de ser estudadas pelos especialistas”, observa.
A maioria dos exemplares destas coleções foi coletada na década de 1960, mas existem alguns bem mais antigos, como uma aranha recolhida na Itália em 1906 e doada à FZB pelo Museu de Viena.
E seu trabalho não resume por aí. Ricardo tem pós-doutorado na Austrália e é uma das referências para consultas do CIT – Centro de Informação Toxicológica do Rio Grande do Sul – órgão do governo do Estado. E, por vezes, é co-orientador de alunos de iniciação científica e de cursos de mestrado e doutorado.
O setor recebe entre 150 e 200 consultas por ano do CIT, para identificar espécies principalmente de aranhas e escorpiões, a fim de que os profissionais possam passar as orientações adequadas à população sobre prevenção e tratamento contra picada de animais peçonhentos.
Biólogos Ingrid Heydrich e Ricardo Ott fazendo triagem de serrapilheira, em busca de moluscos, aranhas e insetos, na sede da Fepagro em Livramento /Mariano Pairet/Divulgação

“Nossas coleções têm de estar muito bem atualizadas. Agora mesmo estamos estudando um ácaro. No controle de pragas, por exemplo, alguns gêneros de ácaros foram revistos pelos taxonomistas e hoje se sabe que o mesmo bicho de pessegueiro não é o de macieira. Então, o técnico é instruído para que não coloque veneno na macieira nessa época do ano porque tal espécie de ácaro só se reproduz em outra estação”, completa Ott.
Coleção de mamíferos, uma das principais do país
As biólogas Márcia Jardim e Tatiane Trigo são as curadoras da coleção de mamíferos do Museu de Ciências Naturais. É o Setor de Mastozoologia, que possui uma das principais coleções do Brasil e tem um acervo bastante representativo da fauna gaúcha, além de ter exemplares de outros estados e de países vizinhos como Uruguai e Argentina.
A coleção tem cerca de quatro mil exemplares e é formada, em grande parte, por morcegos, roedores e carnívoros. Mas há, por exemplo, esqueletos de baleia, rinoceronte, hipopótamo e até de leão e tigre.
Pesquisadoras e estagiários no Setor de Mastozoologia do MCN / Divulgação

Concomitante ao trabalho de curadoria e de supervisão dos estudantes e pesquisadores, as biólogas frequentemente saem a campo para subsidiar planos de manejo de áreas protegidas e programas de conservação de espécies ameaçadas. Na semana passada, estavam realizando pesquisas na Área de Proteção Ambiental (APA) do Banhado Grande, que abrange parte dos Biomas Pampa e Mata Atlântica e ocupa 2/3 da bacia hidrográfica do rio Gravataí. Localiza-se entre os municípios de Glorinha, Gravataí, Santo Antônio da Patrulha e Viamão.
A APA foi criada em 1998 para proteger os banhados que formam o rio Gravataí: Chico Lomã, Grande e dos Pachecos. E ainda o Refúgio da Vida Silvestre Banhado dos Pachecos, unidade de conservação de proteção integral.
Tatiane (à frente) e Márcia examinando graxaim do mato, no Refúgio Banhado dos Pachecos, da APA do Banhado Grande/Mariano Pairet/Divulgação

Técnico agrícola da FZB, Mariano Pairet, com veado machucado, na região dos Cerros Verdes, em Santana do Livramento /Divulgação

Esse trabalho teve origem num convênio com o governo do Estado e envolve pesquisadoras da SEMA e diversos setores de pesquisa da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul.
Márcia é doutora em Ecologia, com ênfase em primatologia. Ingressou na FZB em 2001 e faz a curadoria da coleção desde 2003. “A identificação e manutenção requer conhecimento e muitos cuidados, como controle de temperatura, umidade, a preparação correta da pele e do esqueleto, desde a sua entrada, para que fique à disposição dos pesquisadores”, afirma.
Márcia mostra exemplares da coleção de morcegos/Cleber Dioni

A bióloga chama a atenção ainda para os cuidados com o material genético, os tecidos, que ficam acessíveis para pesquisas em biologia molecular. “Aqui, também é fundamental a presença do curador a fim de acompanhar e orientar os pesquisadores”, reforça.
Tatiane, bióloga da FZB desde 2014, doutora em Ecologia pela Universidade Federal, é especialista em genética de conservação e ecologia de felinos silvestres. Ela destaca a capacitação dos servidores e o caráter público das coleções do Museu de Ciências Naturais, garantindo acesso fácil dos pesquisadores.
Tatiane com peles de exemplares de felinos silvestres, caprichosamente conservadas/Cleber Dioni

“Desde que o animal entra aqui, é feita a identificação, depois a preparação, que é lenta, porque tem que saber lidar com a pele, o esqueleto, a fim de que ele fique nas condições ideais pra que possa ser estudado. A gente procura ter a maior quantidade de informações sobre o animal, que se torna parte do material testemunho da fauna de mamíferos do RS. Há exemplares, por exemplo, de onça pintada com ocorrências em outras regiões do Estado, ao contrário do que se verifica hoje, cuja espécie está delimitada ao Parque Estadual do Turvo, portanto um animal extremamente ameaçado”, adverte Tatiane.
Coleção científica fornece diversas informações
A Fundação Zoobotânica guarda também toda a diversidade de anfíbios do Estado. O curador da coleção, que possui 14 mil exemplares, é o biólogo Patrick Colombo, na instituição desde 2014.
“Eu costumo dizer que uma coleção científica é como uma biblioteca porque cada exemplar, cada indivíduo tombado equivale à informação que tem num livro. Esses indivíduos guardam informações passadas e presentes. A gente consegue saber através de dados de uma coleção se uma área já foi degradada, que espécies ocorreram nessa área, e, através dessas informações, se consegue traçar mapas de distribuição de espécies e planos de conservação, assim como de educação ambiental”, descreve o biólogo.
Colombo, que é mestre em Ecologia e doutor em Zoologia, alerta que é um equívoco achar que uma coleção guardada não precisa do especialista. “Dependendo da coleção, precisa de cuidados diários porque são materiais supersensíveis, especialmente os anfíbios que têm a pele sensível e tem toda uma peculiaridade fisiológica. Então, tem que manter a coleção em perfeito estado de conservação e bem identificada”, diz.
Em eventos de educação ambiental, os “anfíbios do Patrick” são uma das principais atrações/Divulgação

Colombo caracteriza uma coleção sem curador como abandono. “Não tenho a menor dúvida de que se isso acontecer na fundação, as coleções vão estragar em pouco tempo e vai se perder tudo”, critica o biólogo.
Sua colega, Rosana Senna, diz que as coleções são indissociáveis dos especialistas. “Infelizmente, as pessoas que tomam decisões não imaginam o valor inestimável dessas coleções, desconhecem que não existe a menor  possibilidade de deixar alguém cuidando de uma coleção, sem conhecimento taxonômico para fazer o manejo e a atualização”, alerta.
Botânica Rosana Senna no Herbário HAS, do MCN/FZB/Divulgação

A bióloga, que é uma das curadoras da coleção de plantas vasculares no Herbário Prof. Dr. Alarich R. H. Schultz (HAS), do MCN, adverte que manter um fichário na internet ajuda bastante para fazer uma triagem, mas os pesquisadores que vêm de fora têm que ter acesso à coleção bem conservada e apta para o manuseio e, para isso, o curador tem que mantê-la atualizada.
Os herbários são coleções científicas de plantas, essenciais para diversas áreas de estudo como taxonomia, sistemática, biogeografia, ecologia, biologia da conservação, genética, evolução, farmácia e medicina, entre outras.
Outro curador das coleções do HAS é o biólogo Martin Molz. Especialista na flora arbórea e ecologia de florestas, Molz tem pós-doutorado no Centro de Ecologia da UFRGS, é taxonomista e tem interesse especial na conservação de plantas lenhosas, com destaque para a família das plantas com flor (Myrtaceae). Tem experiência em ecologia de comunidades, invasões biológicas, biodiversidade, biogeografia e conservação, em diferentes biomas e formações vegetais no RS e no Brasil.
Molz (à frente) em São Francisco de Paula/Divulgação

Pesquisador do Museu de Ciências Naturais desde 2014, Molz observa que um herbário documenta historicamente os conceitos de especialistas que estudaram os espécimes no passado, permitindo planejar onde devem ser feitos novos esforços de pesquisa em regiões pouco investigadas.
“A partir dos registros existentes é possível estudar as épocas de floração e frutificação de espécies. Os herbários documentam onde as plantas cresciam ao longo do tempo, permitindo identificar espécies invasoras, mudanças climáticas, destruição de hábitats; saber quais plantas crescem com outras espécies de plantas; além de fornecerem material para observações microscópicas, análises de DNA, análises químicas (poluição etc), ensino de botânica e ecologia, estudos de expedições (história da ciência)”, enumera o biólogo.
Segundo Molz, só em 2017, o HAS teve mais de 3,5 milhões de acessos aos dados já disponibilizados online. O herbário abriga mais de 200 espécimes-tipo e importantes coleções de plantas.
Identificando exemplares da coleção do herbário/Divulgação

Uma das coleções mais representativas no HAS é a de Myrtaceae, família da jabuticabeira, da pitangueira, do araçá e da goiaba-serrana. É a maior coleção do Rio Grande do Sul e mesmo com a intensificação do trabalho de curadoria e de pesquisa seu potencial ainda não é totalmente conhecido.
Molz realizando coleta em Caraá/Divulgação

“Aí entra a importância da atividade de curadoria, que é altamente especializada, pois requer conhecimento geral de muitas áreas da biologia e de diferentes grupos de plantas, as quais possuem muitas formas de vida e desenvolvem-se nos mais distintos hábitats, como florestas, campos, afloramentos rochosos etc. Um curador precisa entender de sistemas de classificação de plantas, atrair especialistas para revisar e qualificar os materiais do herbário, fazer permutas com outras coleções, captar recursos, além de organizar e realizar expedições científicas para coletar novos registros, incluindo espécies raras, endêmicas e ameaçadas de extinção e algumas vezes espécies desconhecidas para a ciência. Coleções podem guardar raridades e/ou espécies desconhecidas e é o “olho” do curador ou dos especialistas que visitam a coleção que consegue encontrar tais espécimes”, ensina Molz.
Modelo no país, Jardim Botânico mantém banco de sementes de espécies ameaçadas
As 27 coleções do Jardim Botânico de Porto Alegre somam 4.344 exemplares, incluindo espécies ameaçadas, raras e endêmicas (que só se encontram no Estado); e coleções especiais, representativas da flora nativa. Há 2.250 espécimes arbóreas, mais de 750 espécimes de orquídeas e mais de 620, de bromélias.
Catálogo do banco sementes

Dentre essas variedades, estão preservadas ali 97 espécies ameaçadas de extinção entre bromélias, cactos, orquídeas, espinilhos, araucárias e outras. Constam nas coleções do JB, por exemplo, a espécie de orquídea Cattleya intermedia, o cacto Parodia neohorstii, espécie endêmica da Serra do Sudeste, no Estado, a Callisthene inundata, árvore endêmica da Serra, e a Dyckia marítima, espécie de bromélia que ocorre no Litoral Norte do RS.
Entre as espécies raras, estão protegidas árvores como o Butiá yatay e o Podocarpus sellowii.
O Jardim Botânico está registrado na Agenda Internacional de Jardins Botânicos do Botanic Gardens Conservation International (BGCI), o que facilita a captação de recursos para pesquisa. Se não for preservado nas suas atuais condições, segundo a bióloga Andréia Carneiro, curadora das coleções do JB, provavelmente vai perder o registro, com prejuízos irreparáveis para conservação da biodiversidade no Estado.
Pesquisadoras Rosana Singer e Josy Zarur no Refúgio Banhado dos Pachecos, este ano/Mariano Pairet/Divulgação

A sua colega, a bióloga Rosana Farias Singer, doutora em Biologia Vegetal, trabalha há cinco anos no Jardim Botânico. Ela lembra que, além das coleções arbóreas e envasadas, há também o Banco de Sementes do JB, ameaçado de ficar sem pesquisadores e na iminência de encerrar as atividades de análise fisiológica e morfológica de sementes de espécies arbóreas e arbustivas nativas do Rio Grande do Sul.
Espécie de cacto (Parodia neohorstii) que só encontrada na Serra do Sudeste do Estado/Rosana Singer/Divulgação

O Laboratório de Análise de Sementes, do Banco de Sementes do JB, é o único no Estado que realiza essas funções, inclusive com as espécies ameaçadas.
Rosana Singer na coleção do Jardim Botânico/Cleber Dioni

“Sem especialistas, técnicos e jardineiros, não consigo vislumbrar a manutenção do Jardim Botânico. Não há a mínima condição de um único profissional ficar responsável pelas coleções, ou um pesquisador e um jardineiro, por exemplo. Porque o trabalho não é só dar água às plantas, elas precisam dos nutrientes, cuidados contra as pragas, o manejo correto, feito por pessoas qualificadas, sem isso é muito difícil das espécies sobreviverem”, completa Rosana.

Jardim Botânico de Porto Alegre abriga 97 espécies ameaçadas

Cleber Dioni Tentardini
Há 97 espécies ameaçadas de extinção nas coleções de plantas reunidas no Jardim Botânico de Porto Alegre.
São bromélias, cactos, orquídeas, espinilhos, araucárias e outras, que não possuem nome popular como Amaryllidaceae (da família do amarílis), Iridaceae (família da bibi), Myrtaceae ( família da goiabeira, araçá e pitanga), Fabaceae (família do pau-brasil, feijão e erytrina-do-banhado) e Pteridófitas (várias famílias de diversos tipos de samambaias).
Dentre as espécies raras, estão preservadas lá o butiá da serra e o pinheiro bravo. Entre as herbáceas há o raríssimo bolão-de-ouro, encontrado somente entre os municípios de Porto Alegre e Pelotas, e a efedra, endêmica no Estado do Rio Grande do Sul, da região da Lagoa dos Patos.
Segundo a bióloga Andréia Carneiro, curadora das coleções do Jardim Botânico de Porto Alegre, a preocupação maior é com a conservação da biodiversidade do Rio Grande do Sul, especialmente espécies endêmicas (que só se encontram no Estado).
“Nós temos essa responsabilidade, de cuidar, pesquisar e disponibilizar para que outros possam estudar. Há um aluno de doutorado da Faculdade de Farmácia da UFRGS, por exemplo, que vem aqui estudar uma espécie rara de cocão, endêmica do RS, do mesmo gênero da planta de onde se extrai a coca. Assim como ele, recebemos vários pesquisadores e estudantes que não precisam procurar as espécies a campo, estão aqui, todas identificadas”, explica Andréia.

Cocão, espécie criticamente ameaçada
Espécie rara de cocão, endêmica do RS/Cleber Dioni
Ripsalis paradoxa, criticamente ameaçada/Cleber Dioni
Ripsalis paradoxa, espécie de cacto, criticamente ameaçada/Cleber Dioni

A bióloga ressalta que o Brasil tem metas a cumprir, por ser signatário de acordos internacionais, especialmente através da Convenção da Diversidade Biológica (CDB)*, assinada durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em 1992, a ECO 92.
Em 2002 houve a adoção da Estratégia Global para a Conservação de Plantas GSPC – Global Strategy for PlantConservation) na 6ª. reunião da conferência das partes da convenção sobre diversidade biológica em Haia. Foram estabelecidas 16 metas.

Andréia está preocupada com o futuro das coleções/Fernando Vargas
Andréia está preocupada com o futuro das coleções/Fernando Vargas

Uma das metas é que os países disponibilizem 60% das espécies ameaçadas de plantas em coleções ex-situ (fora do seu habitat natural), de preferência no país de origem, e inclusão de 10% delas em programas de recuperação e reintrodução. “E quem faz conservação ex-situ é jardim botânico”, diz a curadora.

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Coleção de bromélias do sul do Brasil/Cleber Dioni

O Brasil possui 31 jardins botânicos: um distrital, dois privados, seis estaduais, oito federais e 13 municipais. Estão nos estados do Rio Grande do Sul (5), Paraná (1), São Paulo (7), Rio de Janeiro (4), Espírito Santo (1), Minas Gerais (3), Goiás (1), Brasília (1), Bahia (1), Pernambuco (1), Paraíba (1), Rio Grande do Norte (1), Ceará (1), Pará (2) e Amazonas (1).
No RS, existem dois JBs municipais, de Caxias do Sul e Lajeado, um privado, da Unisinos, um ligado à Universidade Federal de Santa Maria, e o da FZB, o maior, classificado na categoria A porque atende a todos os critérios do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
A ironia é que é que poucos dias depois de o Jardim Botânico ser elevado à categoria A, em 2015, o governo de José Ivo Sartori apresentou à Assembleia Legislativa o primeiro projeto de Lei (300) que autorizava sua extinção no modelo que é hoje, junto com o Museu de Ciências Naturais e o Zoológico, as três instituições da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul.
Esse projeto não vingou, mas um ano depois, outro projeto com mesmo objetivo foi apresentado e aprovado pelos deputados gaúchos, no final do ano, em meio a um clima de guerra nos arredores de um Parlamento sitiado. Entrou num pacote junto com outras fundações e instituições.
Com a demissão dos servidores, o Jardim Botânico de Porto Alegre pode se tornar um mero parque, perdendo completamente sua função original, e contrariando o que diz o artigo 255 da Constituição Federal de 1988, que estabelece o direito coletivo ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. O inciso II afirma que o poder público deve preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético.

Pesquisadores de plantas medicinais no Horto do Jardim Botânico / Foto Divulgação FZB
Pesquisadores de plantas medicinais no Horto do Jardim Botânico / Foto Divulgação FZB

*Artigos da Convenção sobre Diversidade Biológica relevantes para os jardins botânicos – Contribuições destas instituições para a sua implementação
Artigo 6: Medidas Gerais para Conservação e Uso Sustentável
Participação na elaboração de estratégias nacionais de biodiversidade e desenvolvimento sustentável.
Artigo 7: Identificação e Monitoramento
Ampla produção científica no campo da sistemática vegetal, inventários florísticos e fitossociológicos, levantamento de populações para estudos genéticos e de ecologia, etc.
Artigo 8: Conservação In situ
Contribuições ao desenvolvimento e manejo e gestão de áreas protegidas, restauração ou recuperação de habitats e desenvolvimentos de pesquisas para recuperação e ou manejo de populações de espécies nativas.

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Coleta de novas espécies a serem adicionadas às coleções/Cleber Dioni

Artigo 9: Conservação Ex situ
Desenvolvimento e manutenção de coleções de germoplasma, incluindo banco de DNA ou sementes, banco de genes em cultivos a campo, coleções de tecidos sob cultura in vitro, programas de recuperação de espécies ao seu habitat natural, desenvolvimento e banco de dados.
Artigo 10: Uso Sustentável dos Componentes da Diversidade Biológica
Identificação e desenvolvimento de espécies de valor econômico e bioprospecção de parentes silvestres de plantas cultivadas na horticultura comercial, nos setores florestal e agrícola.

Espécies de cactos preservadas/Cleber Dioni
Coleção de cactos do Rio Grande do Sul /Cleber Dioni

Artigo 12: Pesquisa e treinamento
Pesquisas em muitas áreas relevantes, tais como taxonomia, ecologia, bioquímica, etnobotânica, educação, horticultura, anatomia vegetal e biogeografia. Muitos jardins botânicos oferecem oportunidades de treinamento e cursos em conservação e disciplinas afins, disponibilizados para estagiários no Brasil e no exterior.
Artigo 13: Educação Pública e Conscientização
A educação do público e o desenvolvimento de uma consciência ambiental incluindo programas para promover o entendimento acerca da biodiversidade, sua importância, e consequências de sua perda, são tarefas prioritárias de diversos jardins botânicos. Muitas dessas instituições desempenham papéis importantes no ensino escolar e universitário.
Artigo 15: Acesso aos Recursos Genéticos e repartição de Benefícios
Os mais de quatro milhões de acessos mantidos nos jardins botânicos, em nível global, representam um vasto recurso para a conservação da biodiversidade armazenada, a ser potencialmente manejada no futuro. Muitos já usufruem de benefícios, com a cobrança de ingresso, apoio à pesquisa e compartilhamento de equipamentos, informações, treinamento e espécimes. Desta, e de muitas outras formas, ajudam a fortalecer as instituições parceiras na conservação da biodiversidade.
Artigo 17: Intercâmbio de Informações
Disseminação de informações acerca das coleções e dos resultados de pesquisas, através de literatura publicada e não-publicada e de bases de dados acessíveis. Muitas instituições podem compartilhar dados sobre coleções através do Formato Internacional de Transferência para Registros de Plantas dos Jardins Botânicos (ITF).
Artigo 18: Cooperação Técnica e Científica
Cooperação técnica e científica, eu frequentemente envolve pesquisas em parceria e intercâmbio de pesquisadores e técnicos.

Todas as espécies estão identificadas no JB de Porto Alegre/Cleber Dioni
Todas as espécies estão identificadas no JB de Porto Alegre/Cleber Dioni

Plano de ação para os jardins botânicos brasileiros
Lançado em 2004, o Plano é um documento desenvolvido pelo Projeto Internacional Investindo na Natureza, financiado pelo banco HSBC com o Botanic Gardens Conservation International – BGCI, Earthwatch e a WWF.
Metas do Plano de ação
– Documentar a coleção nacional de plantas vivas e preservadas dos jardins botânicos;
– Manter coleções de referência taxonômicas e coleções-testemunhos de acessos e táxons provenientes de programas de conservação;
-Listar espécies e populações prioritárias pra programas de conservação;
-Contribuir para o conhecimento do estado de conservação dos ecossistemas brasileiros;
-Compartilhar informações sobre a flora e sua conservação;
-Garantir a proteção das espécies nativas e seus habitats originais;
-Garantir a inclusão de, no mínimo, 50% das plantas nativas criticamente ameaçadas em suas coleções vivas;
-Estabelecer programas integrados por bioma para resgate, manutenção e produção de uso atual e potencial;
-Apoiar a produção sustentável de produtos provenientes de plantas de origem nativa e sua conseqüente inserção no mercado, particularmente com o objetivo de reduzir a fome e pobreza;
-Estabelecer metodologias alternativas para minimizar a pressão danosa sobe o meio ambiente;
-Elaborar e compartilhar base de dados com cadastro de plantas matrizes de espécies de uso atual ou potencial da coleção viva;
-Implementar ações para controlar a introdução de plantas invasoras, pragas e doenças;
-Estruturar e institucionalizar equipes de educação ambiental;
-Educar o público em geral e os profissionais do setor para a conservação da biodiversidade; utilizar técnicas e práticas desenvolvidas no local, resguardando a cultura regional;

Além da pesquisa e conservação, JBs são espaços de conscientização ambiental e lazer/Cleber Dioni
Além da pesquisa e conservação, JBs são espaços de conscientização e lazer/Cleber Dioni

-Garantir que a importância vital dos jardins botânicos para a conservação seja reconhecida pelo público em geral, inclusive o governo, empresas e instituições privadas e comunidades locais;
-Buscar autonomia administrativa e financeira, necessária ao cumprimento de sua missão institucional, em consonância com as normas internacionais;
-Formar equipes de trabalho treinadas e capacitadas
-Subsidiar a elaboração de políticas públicas;
-Estabelecer normas e políticas institucionais;
-Compartilhar o trabalho em rede visando o fortalecimento individual e coletivo dos jardins botânicos brasileiros.
Resta a metade da área original
O Jardim Botânico de Porto Alegre já perdeu mais da metade da sua área original. Eram 81,5 hectares em 1958, quando o JB foi aberto, hoje não passam de 36 hectares. E, com a extinção da Fundação Zoobotânica decidida pelo governo do Estado, o futuro da área é incerto.
A área original incluía uma colônia agrícola e a antiga chácara do Visconde de Pelotas, “compreendendo a elevação de um morrinho granítico a 50 metros sobre o nível do mar, vales de alguns arroios à sua periferia, marginados por várzeas de regular extensão”, na descrição do jesuíta Teodoro Luís, conservacionista espanhol que coordenou a implantação do Jardim Botânico.

Ir. Teodoro no Horto de Pelotas/Divulgação

“O terreno sobre o qual se assenta, diz Teodoro, é parte do complexo cristalino do Escudo Rio-grandense, uma das mais antigas formações da terra, revestida por um manto vegetativo sui-generis, que contém algumas espécies encontradas unicamente aqui.”

Irmão Teodoro Luis , batizado Ramon de PEÑAFORT MALAGARRIGA y HERAS

A implantação de um Jardim Botânico na capital gaúcha foi decidida pelo governador Ildo Meneghetti  e efetivada pelo secretário de Obras, Euclides Triches, que depois foi governador do Estado.
Na comissão figuravam cientistas, médicos, engenheiros, arquitetos e urbanistas, como Edvaldo Pereira Paiva, Alarich Schultz, padre Balduino Rambo, Curt Mentz, F. C. Goelzer, Ruy B. Krug, Guido F. Correa, Nelly Peixoto Martins, Paulo Annes Gonçalves, Deoclécio Bastos, além do senador Mem de Sá e do jornalista Say Marques, um dos idealizadores da Feira do Livro de Porto Alegre.

Foi no período do governo militar que o Jardim Botânico teve suas maiores perdas. Os governadores nomeados doaram partes do terreno do JB a várias instituições: o Clube Farrapos, da Brigada Militar ; o Hospital São Lucas, da PUC; o Círculo Militar, do Exército; a vila Juliano Moreira, a Escola de Educação Física da Ufrgs; e os laboratórios da Fepam, hoje abandonados.

Do alto do Botânico, era possível ver o hospital da PUC

 

Na imagem de satélite, a área original do JB

A ideia de organizar um Jardim Botânico em Porto Alegre era muito antiga.
A primeira iniciativa foi de Dom João VI, o rei português que veio para o Brasil em 1808. Uma de suas primeiras iniciativas foi criar o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, um dos mais antigos do País.
D.João doou mudas de eucalipto para um futuro JB de Porto Alegre, mas nunca chegaram na capital

D.João doou mudas de eucalipto para um futuro JB de Porto Alegre, mas nunca chegaram na capital

D. João chegou a mandar as primeiras mudas para Porto Alegre. Mas as mudas ficaram retidas em Rio Grande, onde algumas foram plantadas das quais existe um único remanescente, que é o eucalipto histórico da cidade.
Outras tentativas foram feitas, sem sucesso. O agrônomo Paulo Schoenwald chegou a doar terras ao Estado para a criação de um Jardim Botânico.
Na década de 30, o professor e agrônomo Gastão de Almeida Santos chegou a iniciar um Jardim Botânico no bairro da Azenha, mas se tornou inviável devido à pressão da expansão imobiliária.
Só em 1953 ( Lei Nº 2.136), uma área de 81,5 hectares, originalmente ocupada pela Colônia Agrícola Juliano Moreira do Hospital Psiquiátrico São Pedro, foi destinada para a criação do Jardim Botânico de Porto Alegre.

Entrada do JB e, ao fundo, sede da Colônia Agrícola

A comissão apresentou o anteprojeto inicial do Jardim Botânico em 26 de outubro de 1956. Seis meses depois a área foi liberada e, em 10 de setembro de 1958, aberta ao público. Em 1959, a Lei n° 2.022 formalizou a denominação de Jardim Botânico.

Em 1960, foi iniciada a construção da Casa das Suculentas, também conhecida como Cactário, tendo sido inaugurado em 1° de maio de 1962, pelo governador Leonel Brizola.

Cactário/Arquivo JB/FZB

Há uma outra placa que ficou escondida por 40 anos e marca um plantio de mudas no JB, no Dia da Árvore, em 1959, pelo governador Leonel Brizola, acompanhado de seus secretários, Alberto Hoffmann, da Agricultura, e Mário Maestri, de Obras Públicas. E só foi redescoberta porque o funcionário autor da proeza, seu Julião Prado, hoje aposentado, esteve em 2016 no Jardim Botânico e contou que alguns militares haviam ordenado que a placa fosse retirada e quebrada por constar o nome do líder trabalhista. Seu Julião optou por preservar a história e apenas virou a pedra com a inscrição voltada para o chão.

Antigo viveiro/Arquivo JB/FZB
Produção de mudas

A partir da década de 1970, diante de crescentes evidências de ameaças à flora regional, o foco do trabalho do Jardim Botânico passou a ser a conservação das plantas nativas do Estado, enfatizando a manutenção de coleções “ex situ” (fora do ambiente de origem) e incrementando as incursões botânicas.
Nessa época, foi construído um prédio para a TV Educativa do Estado, que não vingou. Em 1972, o imóvel passou a abrigar a Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, criada nesse ano através da Lei nº 6.497.
Em 1974, a área do JB estava reduzida a 43 hectares. No ano seguinte, passou a contar com um viveiro de produção de mudas e, em 1983, a ter uma sede administrativa e setor de serviços, abrigados no subsolo da FZB, onde permaneceu até o ano de 1997, quando foi construída a sede própria. Com a criação, em 1986, do Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), o Jardim Botânico foi registrado como órgão voltado para o fomento à cultura.

Placa marca início da FZB no governo do coronel Triches

Em 1988, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do RS (Fapergs), foi inaugurado o Núcleo de Educação Irmão Teodoro Luis. A partir de 1997, o Jardim Botânico teve outro salto de crescimento através do projeto Pró-Guaíba. Foram construídas instalações para o Banco de Sementes e casas de vegetação para abrigar coleções de cactáceas, bromeliáceas e orquidáceas.
Em 2003, o JB foi declarado Patrimônio Cultural do Estado do Rio Grande do Sul, pela Lei nº 11.917. Em 2004, foi publicado o Plano Diretor do Jardim Botânico de Porto Alegre.
Atualmente, é considerado como um dos cinco maiores jardins botânicos brasileiros, com um acervo significativo da flora regional. O local abriga mamíferos, répteis, anfíbios e peixes, mais de 100 espécies de aves, além das cerca de 3 mil espécies de plantas.

Além das pesquisas, o JB é referência em conservação e espaço de lazer dos gaúchos/Cleber Dioni

Placa com nome de Brizola ficou 40 anos enterrada
Uma placa alusiva a um plantio de mudas no Jardim Botânico de Porto Alegre ficou 40 enterrada por razões políticas.
A pedra com a placa marcam o Dia da Árvore, em 1959, quando o então governador Leonel Brizola, acompanhado de seus secretários, Alberto Hoffmann, da Agricultura, e Mário Maestri, de Obras Públicas participaram do plantio simbólico de mudas no Jardim Botânico de Porto Alegre.

Militares mandaram destruir placa porque tinha nome do ex-governador/ Cleber Dioni Tentardini

Anos depois, com o golpe militar e Brizola no exílio, os militares que tomaram o poder ordenaram que fosse retirada e quebrada a placa onde estava gravado o nome do líder trabalhista.
Quem salvou a peça foi um funcionário, Julião Mello do Prado, que em vez de arrancar a placa, apenas virou a pedra, deixando a inscrição voltada para chão.
Depois, quando veio a redemocratização, ele mesmo recuperou a placa, mas só contou a história no ano passado, quando já aposentado, visitou o antigo local de trabalho.
“Governadores plantavam mudas aqui”, diz primeiro jardineiro do Botânico

Seu Julião e a placa do Brizola que ele preservou/Cleber Dioni Tentardini

De Ildo Meneghetti a Simon, todos os governadores gaúchos que Julião de Mello Prado conheceu pessoalmente estiveram no Jardim Botânico de Porto Alegre para plantar mudas de árvores nativas. “Eles faziam questão de vir aqui, uns mais que os outros como o Brizola, o Triches, lembro também do Guazelli, do Jair Soares, o Collares”, eu me dava muito bem com eles porque comecei os jardins aqui e no Palácio Piratini”, diz.
Seu Julião é um dos primeiros funcionários do Jardim Botânico. Começou em 1957, há 60 anos, portanto, ao lado do padre Teodoro Luiz, o fundador, quem o convidou para trabalhar como jardineiro. O local ainda não havia sido aberto ao público.

Seu Julião, primeiro agachado (da esq p dir) e colegas (em pé) Anarolino, João, Antônio, Euclides e Mário, Elói e Dário

Acompanhou a criação da Fundação Zoobotânica, e quando achou que seria devolvido à Secretaria de Obras Públicas, onde estava registrado, o primeiro diretor da FZB, o professor gaúcho Albano Backes, o convidou para continuar no JB e com um salário maior.
Neste domingo, 19 de março, foi um dia especial para esse jovem alegretense de 93 anos e memória irretocável. Foi dia de visitar seu antigo local de trabalho e moradia, contar causos, rir, se emocionar, rever árvores que ele plantou há pelo menos 50 anos e visitar a famosa placa que registrou o plantio de mudas 1959 pelo governador Brizola, e que ele não deixou ser quebrada pelos desafetos do líder trabalhista.
A cada dez passos, parava e indagava ao filho Julio: “Essa aqui é aquela figueira que eu plantei?” Sim, pai, há 50 anos. E o angico? E aquelas com frutas? Algumas caíram com o temporal no verão passado. O filho Julio conhece cada palmo do local. Foi morar com o pai lá quando tinha um ano, e trabalha há 40 no JB. É um dos três funcionários mais antigos em atividade por lá.

Orgulhoso defronte à figueira que plantou há 50 anos/Cleber Dioni Tentardini

Um ou dois anos depois da abertura do JB, foram construídas seis casas para servir de moradia aos funcionários. Irmão Teodoro entendeu que assim a área ficaria mais segura, porque era quase tudo campo aberto, sem cercas, e transitavam livremente por lá criadores de animais e os pacientes da colônia agrícola do São Pedro.

Preparação para o plantio /Arquivo JB/FZB

“Eu e mais outros dois que plantamos todas essas árvores mais antigas aqui. O Irmão Teodoro era muito rigoroso com tudo, nada passava sem ele perceber, nem os milhos que eu plantei na frente da minha casa, escondido dele, quer dizer, achava que ele não sabia, mas eu estava enganado”, diz.

Construção do orquidário /Arquivo JB/FZB

JB pode integrar Patrimônio Cultural e Histórico do município
O vereador Marcelo Sgarbossa (PT) apresentou projeto que propõe o tombamento do imóvel onde está a sede do Jardim Botânico de Porto Alegre. Se aprovado o projeto, o imóvel passará a integrar o Patrimônio Cultural e Histórico do Município de Porto Alegre, ficando vedadas alterações que o modifiquem ou descaracterizem.
O Jardim Botânico é considerado um dos cinco maiores do Brasil, possuindo um acervo significativo da flora regional. Em 2003, tornou-se também patrimônio cultural do Estado do Rio Grande do Sul. “Com a missão de realizar a conservação integrada da flora nativa e dos ecossistemas regionais, tornando-se um centro de referência para a pesquisa, a educação, a cultura e o lazer, contribuindo para a qualidade de vida, o Jardim Botânico possui 8 mil exemplares de 650 espécies da flora nativa do Estado”, afirma o vereador.

Se tombado, JB nao podera ser modificado_foto FZB

Além do manejo, da manutenção e da ampliação das coleções vivas de plantas, o Jardim Botânico realiza pesquisas com plantas ameaçadas de extinção e diversas atividades educativas e culturais. “E um pulmão verde da Capital, um dos locais mais aprazíveis da cidade, notabilizando-se pela guarda de significativas coleções científicas”, completa Sgarbossa.

Jardim Botânico perdeu metade da área original

Cleber Dioni Tentardini
O Jardim Botânico de Porto Alegre já perdeu mais da metade da sua área original. Eram 81,5 hectares em 1958, quando o JB foi aberto, hoje não passam de 36 hectares. E, com a extinção da Fundação Zoobotânica decidida pelo governo do Estado, o futuro da área é incerto.

O terreno original incluía uma colônia agrícola e a antiga chácara do Visconde de Pelotas, “compreendendo a elevação de um morrinho granítico a 50 metros sobre o nível do mar, vales de alguns arroios à sua periferia, marginados por várzeas de regular extensão”, na descrição do jesuíta Teodoro Luís, conservacionista espanhol que coordenou a implantação do Jardim Botânico.

Ir. Teodoro no Horto de Pelotas/Divulgação
Ir. Teodoro no Horto de Pelotas/Divulgação

“O terreno sobre o qual se assenta, diz Teodoro, é parte do complexo cristalino do Escudo Rio-grandense, uma das mais antigas formações da terra, revestida por um manto vegetativo sui-generis, que contém algumas espécies encontradas unicamente aqui.”

Irmão Teodoro Luis , batizado Ramon de PEÑAFORT MALAGARRIGA y HERAS
Ir Teodoro Luis , batizado Ramon de PEÑAFORT MALAGARRIGA y HERAS

A implantação de um Jardim Botânico na capital gaúcha foi decidida pelo governador Ildo Meneghetti  e efetivada pelo secretário de Obras, Euclides Triches, que depois foi governador do Estado.

Na comissão figuravam cientistas, médicos, engenheiros, arquitetos e urbanistas, como Edvaldo Pereira Paiva, Alarich Schultz, padre Balduino Rambo, Curt Mentz, F. C. Goelzer, Ruy B. Krug, Guido F. Correa, Nelly Peixoto Martins, Paulo Annes Gonçalves, Deoclécio de Andrade Bastos, além do senador Mem de Sá e do jornalista Say Marques, um dos idealizadores da Feira do Livro de Porto Alegre.

Foi no período do governo militar que o Jardim Botânico teve suas maiores perdas. Os governadores nomeados doaram partes do terreno do JB a várias instituições: o Clube Farrapos, da Brigada Militar ; o Hospital São Lucas, da PUC; o Círculo Militar, do Exército; a vila Juliano Moreira, a Escola de Educação Física da UFRGS; e aos laboratórios da Fepam, hoje desocupados.

Do alto do Botânico, era possivel ver o hospital da PUC
Do alto do Botânico, era possível ver o hospital da PUC
Na imagem de satélite, a área original do JB
Na imagem de satélite, a área original do JB

A ideia de organizar um Jardim Botânico em Porto Alegre era muito antiga. A primeira iniciativa foi de Dom João VI, o rei português que veio para o Brasil em 1808. Uma de suas primeiras iniciativas foi criar o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, um dos mais antigos do País.

D. João chegou a mandar as primeiras mudas para Porto Alegre. Mas as mudas ficaram retidas em Rio Grande, onde algumas foram plantadas das quais existe um único remanescente, que é o eucalipto histórico da cidade.
Outras tentativas foram feitas, sem sucesso. O agrônomo Paulo Schoenwald chegou a doar terras ao Estado para a criação de um Jardim Botânico.

Na década de 30, o professor e agrônomo Gastão de Almeida Santos chegou a iniciar um Jardim Botânico no bairro da Azenha, mas se tornou inviável devido à pressão da expansão imobiliária.

Só em 1953 ( Lei Nº 2.136), uma área de 81,5 hectares, originalmente ocupada pela Colônia Agrícola Juliano Moreira do Hospital Psiquiátrico São Pedro, foi destinada para a criação do Jardim Botânico de Porto Alegre.

Entrada do JB e, ao fundo, sede da Colônia Agrícola
Entrada do JB e, ao fundo, sede da Colônia Agrícola

A comissão apresentou o anteprojeto inicial do Jardim Botânico em 26 de outubro de 1956. Seis meses depois a área foi liberada e, em 10 de setembro de 1958, aberta ao público. Em 1959, a Lei n° 2.022 formalizou a denominação de Jardim Botânico.

Em 1960, foi iniciada a construção da Casa das Suculentas, também conhecida como Cactário, tendo sido inaugurado em 1° de maio de 1962, pelo governador Leonel Brizola.

Placa marca inauguração do cactário no governo Brizola/Cleber Dioni
Placa marca inauguração do cactário no governo Brizola/Cleber Dioni
Cactário/Arquivo JB/FZB
Cactário/Arquivo JB/FZB

Há uma outra placa que ficou escondida por 40 anos e marca um plantio de mudas no JB, no Dia da Árvore, em 1959, pelo governador Leonel Brizola, acompanhado de seus secretários, Alberto Hoffmann, da Agricultura, e Mário Maestri, de Obras Públicas. E só foi redescoberta porque o funcionário autor da proeza, seu Julião Prado, hoje aposentado, esteve em 2016 no Jardim Botânico e contou que alguns militares haviam ordenado que a placa fosse retirada e quebrada por constar o nome do líder trabalhista. Seu Julião optou por preservar a história e apenas virou a pedra com a inscrição voltada para o chão.

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Placa escondida por 40 anos registra plantio de mudas no governo Brizola/Cleber Dioni
Seu Julião virou a pedra para que não quebrassem a placa/Cleber Dioni
Seu Julião virou a pedra para que não quebrassem a placa/Cleber Dioni

A partir da década de 1970, diante de crescentes evidências de ameaças à flora regional, o foco do trabalho do Jardim Botânico passou a ser a conservação das plantas nativas do Estado, enfatizando a manutenção de coleções “ex situ” (fora do ambiente de origem) e incrementando as incursões botânicas.

Nessa época, foi construído um prédio para a TV Educativa do Estado, que não vingou. Em 1972, o imóvel passou a abrigar a Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, criada nesse ano através da Lei nº 6.497.

Produção de mudas
Produção de mudas/Arquivo JB/FZB
Antigo viveiro/Arquivo JB/FZB
Antigo viveiro/Arquivo JB/FZB
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Plantio / Arquivo JB/FZB

Em 1974, a área do JB estava reduzida a 43 hectares. No ano seguinte, passou a contar com um viveiro de produção de mudas e, em 1983, a ter uma sede administrativa e setor de serviços, abrigados no subsolo da FZB, onde permaneceu até o ano de 1997, quando foi construída a sede própria.

Com a criação, em 1986, do Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), o Jardim Botânico foi registrado como órgão voltado para o fomento à cultura.

Placa marca início da FZB no governo do coronel Triches
Placa marca início da FZB no governo do coronel Triches

Em 1988, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do RS (Fapergs), foi inaugurado o Núcleo de Educação Irmão Teodoro Luis. A partir de 1997, o Jardim Botânico teve outro salto de crescimento através do projeto Pró-Guaíba. Foram construídas instalações para o Banco de Sementes e casas de vegetação para abrigar coleções de cactáceas, bromeliáceas e orquidáceas.

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Em 2003, o JB foi declarado Patrimônio Cultural do Estado do Rio Grande do Sul, pela Lei nº 11.917. Em 2004, foi publicado o Plano Diretor do Jardim Botânico de Porto Alegre.

Atualmente, é considerado como um dos cinco maiores jardins botânicos brasileiros, com um acervo significativo da flora regional. O local abriga mamíferos, répteis, anfíbios e peixes, mais de 100 espécies de aves, além das cerca de 3 mil espécies de plantas.

Além das pesquisas, o JB é referência em conservação e espaço de lazer dos gaúchos/Cleber Dioni
Além das pesquisas, o JB é referência em conservação e espaço de lazer dos gaúchos/Cleber Dioni