Eu e Jean, Jean e eu, ou:

As trajetórias de vida e a (im)possibilidade de desenvolver uma cosmovisão crítico-reflexiva
MARÍLIA VERÍSSIMO VERONESE*
Eu perguntava a mim mesma… de onde vem essa identificação incrível que tenho com o [deputado federal] Jean Wyllys? Tudo foi diferente em nossas vidas, pelo menos até a fase adulta. Ele homem, eu mulher. Ele gay, eu hétero. Ele de Alagoinhas na Bahia, eu de Porto Alegre das plagas gaúchas, mais próxima culturalmente de Uruguai e Argentina do que do resto do país. Ele de origem pobre e periférica, eu de classe média, filha de médico e professora universitária. Ele passou fome, eu sempre desfrutei de uma boa alimentação, sendo costumeiramente a fome resolvida assim que surgia. Mas eu me sentia quase que irmanada a ele, sentia uma identificação enorme. Ele falava e parecia que eu mesma estava a emitir uma opinião, de tão parecido que pensávamos o mundo e a política! A idade é próxima, nasci no final dos anos sessenta e ele no início dos setenta. Mas eu não entendia muito bem aquela semelhança das visões de mundo, até que li seu livro TEMPO BOM TEMPO RUIM – Identidades, políticas e afetos (Cia. das Letras, 2013). Aí comecei a identificar as semelhanças ocultas a um olhar mais superficial. Tivemos em casa uma formação religiosa católica, o que nos aproximou da teologia da libertação; estudamos numa escola pública de qualidade, que nos deu uma formação laica, humanista e politizada, eu no Colégio de Aplicação da UFRGS, tendo feito um “vestibular” aos dez anos de idade para ingressar, ele com bolsa de estudos na Fundação José Carvalho, entidade filantrópica que oferecia um ensino técnico de excelência aos poucos escolhidos em uma rigorosa seleção de candidatos. Outra semelhança: bem antes da época, ambos enfrentamos um processo seletivo concorrido e difícil, tipo “vestibular”! Alguns anos após a data que ingressei, em 1978, o processo seletivo foi substituído por sorteio no Colégio de Aplicação, que apesar de público era de elite na época, justamente pela forma de ingresso. Ela reproduzia a mesma injustiça da universidade pública, sendo agora seu corpo discente bastante variado em termos de origem de classe. Quanto à escola de Jean, segundo informações do site da instituição, existe hoje o projeto Garipando Talentos, criado há três anos, que tem o objetivo de selecionar e preparar jovens de 8ª série das escolas públicas do município de Pojuca para o ingresso no Colégio Técnico da Fundação José Carvalho (FJC).
Percebi que o modo como construímos uma visão de mundo semelhante, eu e Jean, vinha do fato de ambos termos experimentado na educação familiar o melhor da tradição comunitária cristã – os valores da solidariedade, do poder do perdão como reconstrutor de humanidades e vínculos, da comunidade como melhor forma de vida – minha mãe costumava nos repreender com a frase “colabora com a comunidade!”, quando eu e meus irmãos agíamos de forma egoísta. Por outro lado, tivemos acesso a um ensino público laico e de excelente qualidade. No colégio de Aplicação, tudo era calcado na noção de “liberdade com responsabilidade”, estimulava-se sempre a leitura e discussão crítica dos conteúdos trabalhados em aula, fazendo-nos compreender em profundidade o que era a justiça, e a crer, sobretudo, na sua efetivação pelos humanos em vida, corroborando com a teologia da libertação e evitando possíveis armadilhas da ética humanista cristã. Esta tem lá seus muitos aspectos contraditórios, basta ver a “dificuldade” da Igreja com a homossexualidade, os direitos reprodutivos das mulheres etc. Com o papa Francisco, parecem piscar algumas luzes no fim do túnel, mas a igreja católica continua sendo majoritariamente conservadora.
Aprendemos o que significava a opressão ao longo do processo civilizatório e sobre as contradições e ambiguidades desse. No Aplicação tínhamos professores vindos das ditaduras vizinhas, acolhidos pela universidade federal para uma readaptação laboral no exílio. Acessando a memória afetiva, recordo aqui o querido professor Fructuoso Rivera, que chegou do Uruguai sem falar português e foi dar aula para 30 agitados pré-adolescentes (coitado!), a quem chamávamos de “Gardelón” devido a um personagem humorístico da época, interpretado por Jô Soares. Dele temos uma lembrança preciosa: no dia de seu aniversário ganhou de presente um pequeno bolo inglês do tipo que se vendia nos bares estudantis. Pegou um canivete e dividiu-o em 16 minúsculas fatias, para que todos ali presentes ganhassem um fragmento, ensinando que o certo é não ficar ninguém de fora, nunca.
Discutíamos e participávamos muito nas aulas de história, sempre em forma de debate crítico, enquanto meus amigos de escolas privadas de classe média decoravam datas e fatos da historiografia convencional – aquela dos “vencedores” que escreveram as narrativas, carregadas da colonialidade do poder/saber e suas muitas distorções. Tínhamos aula de teatro, música e artes plásticas, além de dois anos de francês ou alemão, à escolha. Nas aulas de biologia, também discutíamos sexualidade e livre expressão do desejo, acreditem? Coma professora Maria Lúcia, linda e queridíssima.
Numa educação de excelência, é mais importante levar o/a estudante a pensar com independência e criticidade do que fazê-lo/a ter condições de “competir” no mercado de trabalho e “subir na vida” para além de seus competidores, isto é, o resto do mundo. Percebe-se que cada vez mais uma educação formal voltada obcecadamente para o “mercado” – uma posição vantajosa neste seria o que realmente importa – impede-se o desenvolvimento, nos estudantes, de uma formação crítico-reflexiva, plural, questionadora e que produza sujeitos capazes de indignação perante injustiças e desigualdades inaceitáveis.
Mas isso tudo é para dizer que, para desenvolver uma cosmovisão crítica e reflexiva, precisamos ter experiências que alimentem/enriqueçam aspectos sociais, políticos, cognitivos, intelectuais, artísticos, emocionais e afetivos da nossa subjetividade. E que isso independe de classe social ou das trajetórias de vida distintas que eventualmente tivermos, embora possamos dizer que o menino Jean teve uma boa dose de sorte também, para além de seus muitos méritos. O sociólogo Jessé de Souza, baseando-se nas ideias de Pierre Bordieu, afirma que a reprodução das desigualdades e injustiças vem “de berço”, da obtenção ou não de capitais simbólicos importantes para a vida em sociedade: uma criança pobre que é desde muito cedo expulsa da escola para trabalhar precariamente não desenvolve as qualidades necessárias para ter sucesso na vida acadêmica e profissional, tais como disciplina, capacidade de concentração e simbolização, raciocínio abstrato etc. E não porque haja algo errado com ela, mas porque não tem em casa uma mãe que lê jornais e livros e fala francês, ou não vê o tio falando inglês, ou não tem um pai médico tratando de suas doenças infantis em casa mesmo, ajudando a preveni-las, ou um irmão que ajuda nos estudos; não viaja ao exterior, não vai ao cinema, teatros e museus, não tem muito tempo disponível para estudar, não tem livros à disposição. Não teve o “treino” de passar horas em sala de aula, concentrada e focada em atividades intelectuais. Depois de adulto/a, ou ainda muito jovem, passa a trabalhar em atividades precárias e mal pagas, como serviços domésticos ou gerais, proporcionando ainda mais tempo aos sujeitos da classe média para estudarem e se qualificarem, galgando melhores cargos e ganhando mais, enquanto eles permanecerão no mesmo emprego por falta de condições de aperfeiçoamento pessoal. Então as condições concretas de existência determinam muito mais os modos de vida de cada um/a de nós – apesar de não haver determinações absolutas – do que o simples esforço individual, ou méritos pessoais.
A falácia da meritocracia constrói, contudo, uma representação social bastante difundida da pobreza como demérito e da riqueza como mérito. Nada mais enganador e reprodutor de injustiças e desigualdades. Meritocracia é um conceito que serve bem, por exemplo, no momento da composição de uma equipe econômica, ou para a formação de um ministério de Estado… A escolha e a indicação, nesses casos, devem ser por mérito, pela excelência demonstrada pelo/a indicado/a para ocupar aquela posição (tudo, aliás, o que não estamos vendo agora, nesse governo interino que assumiu ilegitimamente, a meu ver).
Nas situações de ingresso e posição no mundo escolar e laboral, ou do julgamento de indivíduos comuns de diferentes origens, ele pouco ajuda e ainda atrapalha muito a visão clara sobre os modos de reprodução das desigualdades de classe, gênero, raça/etnia etc. A vergonha pelo fracasso dos desfavorecidos, inculcada neles desde cedo pela sociedade de entorno, também contribui para que persista o imoral abismo social, além de ser uma perversão/crueldade institucionalizada e amplamente aceite. O “esforço pessoal” e a “vocação” – tidos como causas do sucesso ou fracasso, – não são as únicas nem as principais causas de resultados obtidos na vida dos cidadãos/ãs, em situações de alta desigualdade. Há processos de estratificação social, complexos e multicausais, a serem considerados. Mas o senso comum não costuma querer saber disso, na sua tendência a enxergar os pobres como preguiçosos e não possuidores de qualidades morais positivas.
A desigualdade socioeconômica não é merecida, não é causada por fatores individuais e sim de reprodução social, através de decisões políticas e econômicas, tomadas por grandes agentes com poder institucional, que afetam milhões de pessoas. Assim como as violências de que a mulher é vítima – estamos todos impactados pelo estupro coletivo havido na semana passada – não são culpa de seu comportamento, mas sim de séculos de patriarcado operando e formando uma densa camada subjetiva de machismo em boa parte dos homens (e também em boa parte das mulheres). Não falta quem ache, em ambos os sexos e em todos os gêneros, que a culpa pela pobreza e vulnerabilidade é do pobre e a culpa do estupro é da mulher, que de algum modo “provocou” ou “permitiu”.
Assim que voltamos à educação e seu potencial de formar reflexão crítica. Mais do que nunca precisamos de debates em sala de aula, sobre relações de gênero, sobre pobreza e desigualdades, sobre estratificação social, porque tudo é política, inclusive a ciência. O modo como queremos viver nossas vidas, o que consideramos uma boa sociedade, faz parte de um projeto político, de um projeto de vida, que envolve instâncias coletivas, institucionais, grupais, culturais e individuais. Refere-se, amplo modo, ao que queremos para o mundo em que vivemos e o que queremos para nós e os que nos rodeiam. Ao reduzirmos a noção de política à sua dimensão partidária ou mesmo institucional, ela se esvazia de sentido e ainda ganha, no senso comum, uma conotação negativa ligada à corrupção. Esta geralmente tem agentes do mercado envolvidos, o que costuma ser cuidadosamente ocultado; portanto, é preciso politizar a educação, no melhor sentido que concebo o termo: torná-la veículo de problematização e troca de ideias em todas as dimensões da existência humana e planetária. Projetos como o tal “Escola sem partido” – que parte da mais torpe e equivocada concepção da política -, se aprovados, irão decretar o descalabro do sistema educativo no Brasil, já tão debilitado. E impedirão que Jeans e Marílias, independente da origem de classe, de sexo e de identidade de gênero, possam eventualmente vir a experimentar formas de empatia que sirvam para construir pontes, identificações e diálogos mundo afora, ampliando e pluralizando formas de subjetividade social (e consequentemente de vida) crítico-reflexivas.
 

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  1. Leitura feita na pausa de domingo. Na minha mão uma cuia, da janela ao meu lado, a visão de uma escola. Que cenário para ler essas reflexões! Parabéns Marília!

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