A morte quase obscura de um líder exemplar no país do capitão cafajeste

Luiz Cláudio Cunha*                                                               

A notícia, incompleta, saiu quase escondida na edição impressa de quarta-feira, 13 de janeiro de 2021, do maior jornal brasileiro. “Morre Alencar Furtado, ex-deputado cassado pela ditadura”, informou secamente a Folha de S.Paulo, numa única coluna de 30 linhas e 144 palavras, espremidas no canto inferior da sétima página do primeiro caderno, distante da honra da primeira página do dia.

As duas manchetes principais da A7 foram dedicadas a um candidato azarão de nome irrelevante na disputa pela Câmara dos Deputados e a uma nova investida da Lava Jato sobre propinas ao filho de um ex-ministro.

A “nossa pátria mãe tão distraída”, como acusa o verso de Chico Buarque em Vai Passar, não se apercebeu que, na madrugada de segunda-feira, 11, morria simplesmente um dos gigantes da política brasileira e da luta contra a ditadura. Não era apenas um “ex-deputado cassado”, que morria de insuficiência renal aos 95 anos, em sua casa em Brasília, onde se recuperava de um AVC (acidente vascular cerebral) sofrido pouco depois do Natal.

Alencar era muito mais do que isso: na condição de líder do MDB na Câmara dos Deputados, foi o último dos 4.682 cassados pelo regime militar de 1964, o 173º parlamentar castigado pelo AI-5 no espaço de 13 anos. Foi a 36ª cassação do Governo Ernesto Geisel, o derradeiro ato punitivo do quarto general-presidente, em 30 de junho de 1977, antecipando-se à linha-dura militar irritada pela histórica aparição de Alencar três dias antes em rede nacional de TV, tocando num tema sensível para o aparato repressivo do regime: a tortura e o desaparecimento de presos políticos.

O fim irrisório de um gigante: Alencar morre, quase oculto, em 30 linhas de uma remota página interna

O MDB havia descoberto uma brecha na lei restritiva da ditadura que permitia um único programa de 40 minutos, gravado, em rede nacional obrigatória de TV para debate de assuntos partidários. Quando o regime percebeu a manobra, tentou sustar no TSE, mas a Justiça Eleitoral garantiu a sua realização. Para aproveitar bem aquela nesga de luz nas telas censuradas da TV dos brasileiros, o MDB escalou seus quatro principais comandantes. Na transmissão, o presidente, deputado Ulysses Guimarães, condenou o AI-5. O líder no Senado, Franco Montoro, centrou fogo no alto custo de vida. O presidente do Instituto Pedroso Horta, deputado Alceu Collares, criticou o arrocho salarial. O líder na Câmara, Alencar Furtado, por fim, avançou corajosamente na delicada questão dos direitos humanos, produzindo uma das peças mais contundentes, líricas, inesquecíveis da história política brasileira.

Na noite de segunda-feira, 27 de junho, com a voz eloquente de advogado curtido em mais de 400 juris populares e a expressão seca de um rosto marcado desde criança pelo sol inclemente do semiárido cearense, Alencar despontou no horário nobre da TV, antes do Jornal Nacional, dizendo o indizível, atacando o inatacável, eternizado nesse trecho:

Sempre defendemos os direitos humanos. Hoje, menos do que ontem, ainda se denunciam prisões arbitrárias, prisões injustas e desaparecimento de cidadãos. O programa do MDB defende a inviolabilidade dos direitos da pessoa humana, para que não haja lares em prantos, filhos órfãos de pais vivos — quem sabe? — mortos, talvez. Órfãos do talvez ou do quem sabe. Para que não haja esposas que enviúvem com maridos vivos, talvez, ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe e do talvez.

 

Uma rua, dois cassados

Os profissionais de sangue e tortura dos DOI-CODI, que em seus porões de trabalho produziam aqueles órfãos, quem sabe?, e aquelas viúvas, talvez, detestaram a imprevista tirada poética de Alencar. No dia seguinte, 28, perguntado sobre o programa, o chefe do SNI, general Joao Baptista Figueiredo, respondeu: “Vi. Não gostei e acho que ninguém gostou.” Mas, nem o SNI que o general comandava se incomodou muito. No texto da Apreciação Sumária Nº 25, que o Serviço Nacional de Informações distribuiu a Geisel e aos principais gabinetes do Planalto na manhã de quarta-feira, 29, dois dias após a transmissão da TV, o programa do MDB foi citado superficialmente e a lancinante intervenção de Alencar acabou resumida em treze palavras irrisórias.[1] Quem acreditasse no SNI poderia, talvez, imaginar até que Alencar poderia se safar, quem sabe.

Apesar do descuido do araponga, o destino do líder do MDB já não dependia de um talvez, mas de quem sabia. Na tarde daquela quarta-feira, o ministro da Justiça, Petrônio Portella, telefonou para o secretário-geral do MDB, deputado Thales Ramalho, para confirmar o que se previa: “Thales, vamos ter reação”. Pediu que contasse apenas a Ulysses, mas fora do prédio do Congresso, indício claro de que o lugar deveria estar grampeado pelo SNI. Mais tarde, no seu apartamento, Thales antecipou a informação ao presidente do MDB.  “Vamos ter a cassação do Alencar”. Ulysses devolveu com outra pergunta, que denunciava os temores que sobrevoavam Brasília nas últimas horas: “Só do Alencar?”.[2]

A boataria dizia que uma dezena de oposicionistas, incluindo todos os quatro participantes do programa, seriam punidos. O alvo central era o líder da Câmara, que além de invadir o terreno proibido dos órfãos e viúvas, tinha pronunciado em seu mandato cerca de 40 discursos da tribuna com denúncias de torturas e críticas à política econômica do governo. Várias vezes, Alencar cobrou em seus discursos o desaparecimento do deputado Rubens Paiva, preso em janeiro de 1971 pela Aeronáutica, no Rio de Janeiro, torturado e morto no DOI-CODI carioca e até hoje desaparecido.

O ministro do Exército, Sylvio Frota, como Figueiredo, também viu e não gostou do MDB na TV. Na manhã de quinta-feira, 30, Frota mandou o telegrama 665 aos quartéis dizendo ter informado a Geisel sobre a repercussão negativa do programa, que ele classificava como “uma ação comunista para atacar os brios das Forças Armadas”.[3] O Planalto previa que a cassação do líder mais aguerrido da oposição teria repercussão internacional, e seria um abalo ainda maior se fosse punido também o presidente nacional do MDB. No último momento, Geisel tirou Ulysses da mira e trocou sua iminente cassação por um processo na justiça eleitoral, como responsável pelo programa.

O procurador-geral da República, Henrique Fonseca de Araújo, requisitou as fitas gravadas pela TV e abriu o inquérito naquele mesmo dia. Tempos depois, Ulysses foi absolvido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O líder do MDB na Assembleia paulista, Alberto Goldman, explicou anos mais tarde ao jornal O Estado de S.Paulo a súbita contenção de Geisel: “Ulysses só não foi cassado por seu histórico, porque sua figura tinha mais respaldo. Ele vinha do PSD, presidia a legenda e tinha uma postura mais moderada. Alencar era mais duro, incisivo, acusador. Geisel usou a cassação porque precisava enfrentar os militares radicais e mostrar que não era mole”.

A violência do AI-5 excluiu da vida pública brasileira mais do que um parlamentar duro. José Alencar Furtado era um predestinado ao combate. “Nasci no Araripe, cidade pequenina lá do Ceará. Minha cidade só tem uma rua. Mas tinha dois cassados da época da ditadura, eu e o Miguel Arraes”, contou ele.[4]

Hoje com 20 mil habitantes, Araripe, no extremo sul cearense, quase fronteira com Pernambuco, era ainda menor em 1925, quando Alencar nasceu. O menino Arraes, seu conterrâneo, nove anos mais velho, saiu da cidade ainda adolescente para concluir o ginásio numa cidade próxima e maior, Crato. Os dois não se conheceram na terra natal, mas a História sangrou seus destinos pela mesma lâmina afiada da ditadura.

Miguel Arraes era o governador de Pernambuco em abril de 1964, quando foi derrubado e preso pelos militares. Na sexta-feira, 10 de abril, um dia antes da ‘eleição’ presidencial do chefe do golpe, general Castello Branco, o Comando Supremo da Revolução divulgou o primeiro listão de cassados pelo regime militar. Eram exatos 100 nomes, uma lista aberta pelo líder comunista Luís Carlos Prestes e pelo ex-presidente João Goulart, além de 40 deputados federais. O ex-governador Leonel Brizola ocupava o 10° posto no índex.

Assim, na linha caprichosa do tempo, os dois garotos de Araripe, curtidos pela vida do sertão, cinzelados pela disputa política e castigados pelo regime militar, acabariam abrindo e fechando o ciclo punitivo que define o arbítrio do golpe de 1964. Arraes era o 4º nome da primeira lista de 100 cassações. E Alencar acabou sendo, em 30 de junho de 1977, aos 51 anos, o último punido da longa relação de 4.682 cassados em 13 anos de ditadura.

Arraes e Alencar, os filhos de Araripe: o pioneiro da primeira lista e o último cassado pela ditadura

Quase um terço dos cassados, 1.261, eram das Forças Armadas. Já no sábado, 24 horas após o listão dos 100 primeiros, o tacape do golpe caiu sobre 122 militares legalistas que apoiavam Goulart: 77 do Exército, 31 da Aeronáutica, 14 da Marinha. No domingo, outros 62 decapitados, mais da metade deles militares.

O general cristão

A rajada de punições da ditadura era ampla, geral e irrestrita. Mais de 300 professores, quase 500 legisladores sagrados pelo voto popular – de deputados federais a estaduais, de senadores a vereadores, além de 50 chefes de Executivo, de governadores a prefeitos. Três ex-presidentes – Jango, Jânio e Juscelino – e três ministros do Supremo Tribunal Federal.

A guilhotina era democrática. Decepou diplomatas, agrônomos, procuradores, carteiros, desembargadores, motoristas, sindicalistas, escrivães, policiais, promotores públicos, juízes, taifeiros, engenheiros, telegrafistas, médicos, guardas-civis, estivadores, eletricistas, ferroviários, advogados, jornalistas, bancários, dentistas, músicos, guardas-florestais, fiscais do Imposto de Renda, serventes, auditores militares. Até garçons e porteiros! Na vesga ótica militar deviam ser grave ameaça à segurança nacional e, por isso, foram degolados na fúria revolucionária.

A lógica estúpida dos militares se sustentava na arrogância incontestável do arbítrio. Ela está expressa no primeiro ato institucional, editado pelo Comando da Revolução em 9 de abril de 1964, no alvorecer da ditadura. Nem número tinha, o que acabou depois sendo necessário pelos 17 atos e 104 atos complementares decretados em sequência até 1969, tentando dar uma fachada legal ao processo de violência institucional do golpe.

O AI-1, que 48 horas depois levou ao pioneiro listão da centena de cassados, estabelecia na sua introdução, para eliminar qualquer dúvida sobre a origem e os limites de seu inexcedível poder:

[…]A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. […]. Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.

 

No penúltimo de seus 11 autossuficientes artigos, o AI-1 firmado pelos chefes do Exército, Marinha e Aeronáutica determina, para tranquilidade geral da nação: “No interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, os Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão suspender os direitos políticos pelo prazo de dez (10) anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses atos. ”

Treze anos depois, em junho de 1977, Alencar Furtado seria o último cidadão do país punido sem qualquer apreciação da Justiça.

A nova ordem ‘revolucionária’ se bastava e não se submetia a ninguém. Tudo fazia e nunca se justificava. Em seu depoimento à Comissão da Verdade, em 2014, Alencar deu a dimensão desse estado de truculência ao lembrar a história do engenheiro Virgildásio de Senna, que tinha assumido a prefeitura de Salvador pelo PTB em abril de 1963. No abril seguinte, foi atropelado sem sutilezas pelo golpe de 1964.

No dia 5 de abril, um domingo, o prefeito da capital baiana foi almoçar com amigos. Ao voltar no início da noite para casa, no bairro do Campo Grande, encontrou a rua cercada por tropas do Exército, escoltadas por dois canhões de campanha e holofotes enormes. Ele perguntou a uma pessoa o que estava acontecendo: “Estão prendendo o prefeito”, disse o morador, sem reconhecer o prefeito ao seu lado.  Virgildásio evitou a casa sitiada e procurou logo a maior autoridade do Exército na Bahia, o general Mendes Pereira, comandante da IV Região Militar. Ali mesmo, no quartel da Mouraria, o general deu voz de prisão ao prefeito, com uma explicação surreal: “Você está preso porque somos cristãos! ”.

O general Mendes Pereira justifica a prisão do prefeito Virgildásio e dos ‘comunistas’: “Somos cristãos!”

 Alencar lembrou à Comisão Nacional da Verdade que Virgildásio foi preso, cassado pelo AI-1 e solto dias depois. Pouco antes de liberar o prefeito, um porta-voz do comando militar ocupou o microfone de uma rádio de Salvador para esclarecer os fatos, sem maiores explicações ou qualquer justificativa, com a crueza típica e arrogante daqueles novos tempos: “O prefeito Virgildásio de Senna foi preso porque tinha que ser preso. E agora vai ser solto porque tem que ser solto. Boa noite!”.

Ao longo da ditadura, as cassações se distribuíram de forma desigual.

O provisório Comando Supremo da Revolução, no exíguo espaço de 15 dias que separou o golpe da posse do primeiro general-presidente, cassou 280 pessoas, mais de 18 a cada 24 horas. Castello Branco, o primeiro general-presidente, fez a faxina mais ampla, cassando 2.927 pessoas. O segundo presidente, Costa e Silva, decepou 631 nomes da vida pública.

A Junta Militar de 1969 — formada pelos três ministros militares, que reinou sobre o país por apenas dois meses, em setembro e outubro, logo após a trombose cerebral que tirou Costa e Silva do poder — cassou nesse curto espaço de tempo 205 pessoas, uma média de 3,4 punições por dia. O terceiro presidente, Emílio Médici, o mais sanguinário do período militar, usou o AI-5 por 603 vezes. O quarto presidente, Ernesto Geisel, abrandado pela faxina punitiva mais extensa de seus antecessores, cassou 36 vezes, encerrando a série de violência revolucionária com Alencar Furtado.

A matemática do arbítrio

Essa inédita contabilidade sobre a violência ‘revolucionária’ começou a ser feita em São Paulo no início de 1977, por um trio emérito de intelectuais: os jornalistas Mylton Severiano da Silva (o Myltainho) e Hamilton Almeida Filho (o HAF) e o historiador Joel Rufino dos Santos, que resolveram contar, literalmente, a saga dos cassados no Brasil.  Com a ajuda da pesquisadora Beth Costa e uma equipe de quatro pessoas, foi folheada toda a coleção do Diário Oficial, página por página, desde março de 1964 até a cassação de Alencar. Foram quase três mil cópias xerox, coladas em 680 páginas, com a matemática da violência revolucionário sobre 4.682 pessoas.

De início, o levantamento se destinava a um livro, que teria o título de Os Cassados. Mas acabou formatado para uma revista de oposição em São Paulo, a Extra – Realidade Brasileira. Antes que fosse publicada, porém, a ditadura impôs censura prévia à publicação. Decididos a não aceitar a intervenção dos militares, os seus editores desistiram da reportagem sobre os cassados e preferiram fechar a revista. E o material coletado em São Paulo, para sobreviver, acabou tomando o rumo inesperado de Porto Alegre.

Alencar na manchete e na matéria principal do CooJORNAL: o último dos cassados em 13 anos de ditadura

A reportagem inédita de quatro páginas, com a foto de Alencar Furtado na capa, foi a manchete do mensário gaúcho CooJORNAL em julho de 1977, com grande repercussão nacional, pois o número de 4.862 cassados era muito superior ao que se sabia até então.

O jornal da imprensa alternativa era editado em Porto Alegre pela primeira cooperativa de jornalistas do país. Fundada em 1974, a CooJORNAL cresceu e, três anos depois, era integrada por mais de 300 jornalistas vivendo a utopia de uma imprensa sem patrão e sem hierarquia, respirando o ar limpo e democrático do cooperativismo na atmosfera rarefeita e sufocante da ditadura.

Aquela edição do CooJORNAL com Alencar Furtado na capa vendeu 34 mil exemplares, a maior vendagem de sua história. Sofreu então a primeira ação ostensiva da ditadura, incomodada com a crescente relevância do pequeno jornal de Porto Alegre, que ganhava destaque entre os títulos mais conhecidos da chamada ‘imprensa nanica’ – um influente nicho de jornais de esquerda, oposicionistas, insurretos, onde brilhavam publicações semanais ou mensais do centro do país como Movimento, Opinião, Versus, Em Tempo, Bondinho e o irreverente O Pasquim, um abusado semanário carioca que se multiplicou com até 200 mil exemplares nas bancas.

Inquieta com o atrevimento do CooJORNAL, a ditadura apelou para a violência camuflada, envergonhada, mas sempre letal: mandou os agentes da Polícia Federal cumprirem uma discreta agenda de visitas aos assustados anunciantes do jornal, pressionando as empresas a cancelar os poucos anúncios que sustentavam as edições sempre ousadas do CooJORNAL.

Os militares mostravam um azedume cada vez maior com a pauta criativa do jornal, que recontava episódios da história recente brasileira, dava voz aos dissidentes do regime, replicava textos de intelectuais de esquerda e ouvia personagens execrados pela ditadura, muitos deles membros ilustres da lista dos 4.862 cassados pelo arbítrio.

O mau humor dos generais pode ser resumido pelo trecho da Informação Confidencial Nº 031 da Agência Central do SNI, de 19 de agosto de 1980, três anos após a cassação de Alencar Furtado. O redator do SNI se lamuriava, no relatório, daquilo que era o exato motivo de orgulho para os associados da cooperativa:

O periódico CooJORNAL, editado pela Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, caracteriza-se por divulgar artigos hostis ao governo. Apesar de a referida publicação ter tiragem de, apenas, 35 mil exemplares, seus artigos são comumente comentados pelos demais órgãos de imprensa, e passa, deste modo, a ter repercussão nacional.

Isso é o Brasil, gente!

Os bastidores da bombástica reportagem do Coojornal mostravam o medo endêmico que permeava o país, em meados de 1977, penúltimo ano de Geisel no Planalto. Naqueles tempos sem internet, e-mail ou celular, a remessa de matérias ou filmes fotográficos de uma cidade para outra era feita de forma quase artesanal, um pouco amadora, sempre voluntária.

Um repórter procurava aleatoriamente um passageiro no aeroporto, com destino à sede do jornal ou revista, e pedia o favor de levar em mãos um envelope lacrado com o material, que seria entregue no aeroporto de destino para alguém destacado pela publicação. O passageiro dizia seu nome e fones de contato, para evitar desencontros, e o repórter no aeroporto de origem passava pelo telefone os dados do portador, dando seu nome e descrição física, como o traje que vestia, para que fosse melhor identificado na fila do desembarque, no saguão do aeroporto de destino.

Bones, o editor, Myltainho, Hamilton e Rufino, que revelaram os 4.682 cassados: esse era o Brasil da ditadura

Era um arranjo que funcionava, quase sempre, dando agilidade e segurança para o envio de material. O que podia atrapalhar era a sensação de perigo e o temor que, eventualmente, poderiam intimidar o portador, em matérias politicamente mais sensíveis. Foi o que aconteceu e quase impediu a manchete dos cassados no Coojornal, como relatou com precisão o seu editor, jornalista Elmar Bones, na carta aos leitores do número 18 do mensário, de julho de 1977:

Encomendamos a reportagem a três colegas de São Paulo que já tinham um levantamento amplo sobre o assunto. Um levantamento, pelo que sabemos, ainda não feito no país. Durante dois dias eles trabalharam sem parar. Na segunda-feira, 4, as seis horas da manhã o repórter Hamilton Almeida Filho saiu direto da máquina para o aeroporto de Congonhas. […] No voo das 8h30 da Cruzeiro, Hamilton localizou um cidadão de maneira afáveis, simpático. Era um funcionário do Ministério da Fazenda que, prontamente, aceitou trazer o envelope.

No aeroporto de Porto Alegre, era outro o homem. Nervoso, gaguejando, travou o seguinte diálogo com a pessoa que foi apanhar o envelope:

— Olha, me desculpe, eu derramei cafezinho no material, ficou inutilizado.

— Não, mas o senhor pode me dar assim mesmo. Deve dar para ler, a gente arruma…

—Mas ficou imprestável, joguei fora…

— Isso é um absurdo, como é que o senhor fez isso? O senhor sabia o que tinha no envelope? Era uma reportagem.

A esta altura o homem mudou o tom de voz e explicou:

— Aconteceu o seguinte: abri o envelope e li o que tinha dentro. Aquele assunto…. Eu sou um funcionário do governo, não podia desembarcar com aquilo. Tinha autoridades me esperando, não posso me comprometer…. Eu destruí o material. Você deve compreender a minha situação.

Tremia o homem e não havia como reclamar dele. A solução foi esperar uma cópia providencialmente guardada em São Paulo e, desta vez, remetida pelas vias normais. Ao saber do fato, inédito em sua carreira de 15 anos de jornalismo, Hamilton exclamava do outro lado da linha:

— Isso é o Brasil, minha gente!

Esse era o Brasil, gente, e tudo aquilo aconteceu antes que Alencar Furtado fosse o personagem central na primeira página do Coojornal.  O Brasil do medo era produto, também, das trapaças e embustes engendrados pelos agentes da repressão. Uma armadilha dessas levou à cassação do deputado federal Marcos Tito, do MDB mineiro, o penúltimo punido pelo AI-5, duas semanas antes de Alencar Furtado. Em 24 de maio de 1977, Tito subiu à tribuna da Câmara para fazer um duro discurso contra a ditadura. Dias depois, o deputado Sinval Boaventura, da ARENA mineira, arauto da linha-dura militar, denunciou que Tito havia, de fato, lido um manifesto do clandestino PCB (Partido Comunista Brasileiro). Em 14 de junho, três semanas após seu discurso, Tito foi cassado.

A armadilha da Aeronáutica

Ele não foi vítima de um dedo-duro, mas alvo deliberado de uma maligna farsa do serviço secreto da Aeronáutica, o CISA (Centro de Informações da Aeronáutica). A revelação foi feita 40 anos depois pelo repórter Marcelo Godoy, de O Estado de S.Paulo, que entrevistou durante cinco horas, no Clube da Aeronáutica, no Rio, um anônimo coronel, codinome ‘Paulo Mário’, que trabalhou 28 anos no Núcleo do Serviço de Informações de Segurança, a contrainteligência da Aeronáutica.[5]

O CISA foi criado e chefiado pelo brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, a face mais radical da Força. Como major-aviador, em 1959, chefiou com outros militares a fracassada Revolta de Aragarças, contra o presidente Juscelino Kubitschek, quando Burnier planejava até bombardear os palácios do Catete e das Laranjeiras, no Rio.

Em carta ao presidente Geisel, o lendário brigadeiro Eduardo Gomes definiu Burnier assim: “Um insano mental inspirado por instintos perversos sanguinários, sob o pretexto de proteger o Brasil do perigo comunista”.   

Ulysses e Tito: o penúltimo cassado pelo ardil do CISA de Burnier, o ‘insano mental’ da FAB

 Tito agora era o alvo do CISA criado pela mente perversa de Burnier. “O deputado estava assumindo uma posição que estava nos incomodando muito”, justificou o agente ‘Paulo   Mário’ ao Estadão. “Realizamos algumas operações fundamentalmente de contrainteligência muito produtivas. Nenhuma com violência, mas foram ações que você faz para expor o inimigo a uma situação ridícula, que ele não contribuiu para aquilo, para desmoralizá-lo e acabar com ele”. O ardil montado pelo CISA foi trivial. Agentes da Aeronáutica escolheram uma edição de abril de 1977 do jornal Voz Operária, órgão oficial do ilegal PCB, que era impresso na Europa e despachado por correio para o Brasil.

Aquela edição trazia um editorial do partido, que acusava o regime de usar o medo e o arbítrio como método de governo. O CISA manipulou o texto, suprimiu cinco dos seus 24 parágrafos, disfarçando a origem da manifestação, e mandou entregar o documento no gabinete do parlamentar no Congresso. O papel foi recebido por um assessor de Tito, que o repassou ao deputado. “Levamos como se fosse coisa de estudante inconformado, pedindo para ele ler no plenário da Câmara. Ele caiu e leu. Acabou levando uma ferroada, cassado e posto na rua”, contou o coronel do CISA.

Duas semanas após a cassação de Tito, quem levou a ferroada foi Alencar Furtado, em 30 de junho, cassado pela manifestação na TV sobre os órfãos e viúvas do talvez e do quem sabe. Até chegar ao seu último ato político como parlamentar, com a dolorosa honra de ser o último dos 4.682 cassados do país, o líder do MDB foi muito além de um histórico, lírico discurso de denúncia sobre torturas e assassinatos da ditadura em rede nacional de TV.

Alencar Furtado foi figura crucial para a definição do perfil mais oposicionista do MDB e sua orientação política mais aguda, na luta mais aberta contra a ditadura e seu partido, a ARENA. Na primeira eleição em 1966, cerceado pela legislação restritiva dos militares, o MDB elegeu apenas sete das 23 cadeiras de senador em disputa. Na Câmara, conseguiu conquistar só 132 cadeiras de deputado federal entre as 409 vagas em disputa.

Na eleição seguinte, em 1970, o partido da oposição encolheu. Além das cassações anteriores e do endurecimento gerado pelo AI-5, o MDB convivia com o ufanismo oficial insuflado pelo tricampeonato da seleção do Brasil no México e a euforia nascente do ‘milagre econômico’ cozinhado pelo ministro Delfim Netto. Dessa vez, elegeu apenas seis senadores e conquistou somente 87 vagas na Câmara dos Deputados. A perda avassaladora de quase 50 cadeiras do MDB no Congresso, além da repressão e das regras eleitorais viciadas, foi atribuída aos 30% de votos brancos e nulos, expressão clara do desencanto e do protesto de um eleitorado descrente.

Combativo na juventude, Alencar Furtado integrou a Esquerda Democrática, dissidência da UDN nascida logo após a queda do Estado Novo, em 1945, que deu origem ao PSB, Partido Socialista Brasileiro, fundado no Ceará com a ajuda de Alencar.

Na década de 1950, seguindo a saga dos sertanejos, Alencar migrou do Nordeste para o Sul, fincando raízes em Paranavaí, no fértil norte do Paraná.  Lá se elegeu deputado federal na primeira eleição do MDB, em 1966, sagrado com 40 mil votos. Na disputa seguinte, em 1970, reelegeu-se com o apoio consagrador de 86 mil eleitores.

O bloco do MDB na rua

Em Brasília, o pequeno gigante de Araripe, com pouco mais de 1m65 de altura, deu força e veemência ao então burocrático MDB, que seguia a férrea, mas moderada liderança de Ulysses Guimarães. Alencar assumiu o protagonismo, na bancada emedebista de 87 deputados, de um grupo mais agressivo de 23 parlamentares que ganharam o justo carimbo de ‘Autênticos’. Centravam fogo na convocação de uma Constituinte, no fim da tortura, na volta dos exilados e na anistia aos presos políticos.  Ao lado dele estavam os nomes mais intensos e críticos da esquerda do MDB, como Marcos Freire (PE), Chico Pinto (BA), Fernando Lyra (PE), Lysâneas Maciel (RJ), Freitas Nobre (SP), Alceu Collares (RS), Jaison Barreto (SC), Amaury Muller (RS), Marcondes Gadelha (PB), Nadyr Rossetti (RS), Paes de Andrade (CE), Santilli Sobrinho (SP) e Marcos Tito (MG).

Foi de Alencar e seu grupo a ideia mobilizadora de uma anticandidatura presidencial, desafiando a ‘eleição’ de cartas marcadas do general Ernesto Geisel no Colégio Eleitoral, em janeiro de 1974. A ideia era percorrer o país para denunciar o paradoxo de uma eleição sem povo e a farsa de uma disputa sem adversário. O MDB, tangido pelos Autênticos de Alencar, iria sair do conforto dos gabinetes para sentir o clima irrespirável das ruas.

Na convenção do MDB que lançou o anticandidato, em setembro de 1973, Ulysses advertiu ao país:

[…] Não é o candidato que vai percorrer o país. É o anticandidato, para denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição que homizia o AI-5, submete o Legislativo e o Judiciário ao Executivo, possibilita prisões desamparadas pelo habeas corpus e condenações sem defesa, profana a indevassabilidade dos lares e das empresas pela escuta clandestina, torna inaudíveis as vozes discordantes, porque ensurdece a Nação pela censura à Imprensa, ao Rádio, à Televisão, ao Teatro e ao Cinema. […]

 

A caravana do anticandidato percorreu então capitais e estados com sua bandeira de volta à democracia, eleições diretas, anistia e Constituinte. Os brasileiros form encorajados, daí, a ouvir a verdade sobre a ditadura.

Ulysses combinara com Alencar e os Autênticos que, momentos antes do início da sessão de eleição, ele renunciaria para dar mais força à denúncia da farsa. Mas, Ulysses não cumpriu o acordo e se manteve na falsa contenda até a proclamação do resultado na disputa no Colégio Eleitoral. Aí, como estava previsto, Geisel foi ‘eleito’ com 400 votos, contra 76 dados a Ulysses. Em protesto, Alencar e 20 deputados dos Autênticos presentes no Congresso se abstiveram, acusando no microfone o jogo da ditadura.

Ulysses encerrou seu perene discurso evocando os versos de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso/Viver não é preciso”. Ali, com as velas “paridas de sonho, aladas de esperança”, como disse o anticandidato, começou a longa navegação iniciada por Alencar e seus argonautas nas águas revoltas da ditadura.

O MDB perdeu na falsa eleição de janeiro, como se previa, mas dez meses depois ganhou de forma inesperada e estrondosa nas eleições reais e gerais de novembro de 1974. Elegeu 16 das 22 cadeiras do Senado em disputa, conquistou 165 das 364 vagas existentes na Câmara dos Deputados. Os 6 milhões de votos para senador em 1970 viraram mais de 14 milhões em 1974. Os votos para deputado no MDB subiram de 4,7 milhões em 70 para 11 milhões em 74, garantindo 44% das cadeiras da Câmara.

Quatro anos depois, na sucessão também indireta de Geisel em 1978, a força da ditadura ficou ainda menor. O candidato oficial, general João Figueiredo, derrotou o anticandidato do MDB, general Euler Bentes Monteiro, por apenas 89 votos. Foram 355 contra 266 para o anticandidato, que recebeu mais do que o triplo dos votos obtidos quatro anos antes por Ulysses. As velas dos Autênticos estavam aladas de esperança.

Baioneta não é voto!

Na campanha verdadeira das ruas, Ulysses assumiu a odisseia do confronto mais direto com a ditadura, como queriam os Autênticos de Alencar. Em seu momento mais homérico, na noite de 13 de maio de 1978, em campanha pelo candidato do MDB na Bahia, ele se deparou com os cães e soldados do governador arenista Roberto Santos. Uma tropa de 400 PMs cercava o local do comício, na praça Dois de Julho, em Salvador, bloqueando a passagem da comitiva do MDB, que incluía os senadores Tancredo Neves (MG) e Saturnino Braga (RJ).

O moderado Ulysses perdeu a paciência. De dedo em riste, rompeu o cordão militar, indiferente aos latidos e ameaças da repressão e, ali mesmo, resolveu fazer um discurso inesperado para a tropa que tentava contê-lo. Uma fala e um gesto do mais autêntico MDB que entraram para a história:

Soldados da minha pátria! Enquanto ouvíamos as vozes livres que aqui se pronunciaram, ouvíamos o ladrar dos cães lá fora! O ladrar, essa manifestação zoológica, é do arbítrio, do autoritarismo que haveremos de vencer. Meus amigos, foi uma violência estúpida, inútil e imbecil. Saibam que baioneta não é voto e cachorro não é urna!

A odisseia e a ira de Ulysses, na Bahia, com Tancredo e Saturnino: “Baioneta não é voto, cachorro não é urna! ”

Em 1982 aconteceu a primeira eleição direta para governador, desde 1960. A ousada navegação iniciada uma década antes pelos Autênticos de Alencar alcançou novos portos. Apesar do voto vinculado, truque da ditadura que obrigava o eleitor a votar em candidatos de um mesmo partido, a oposição conseguiu eleger dez governadores, nove pelo MDB e um pelo PDT nos 22 Estados em disputa. Assim, na primeira brecha que o eleitor teve para votar diretamente, os três maiores Estados do país sagraram nomes da oposição: São Paulo (Franco Montoro) e Minas Gerais (Tancredo Neves), ambos do MDB, e Rio de Janeiro (Leonel Brizola), do PDT.

Dois anos depois, a quimera dos Autênticos desaguou no maior oceano de povo da história política brasileira, a campanha das Diretas-Já, com milhões de pessoas nas avenidas e praças clamando pelo voto para presidente e pela Constituinte.  Em 1985, enfim, a ditadura acabou afogada nas águas rasas de seu porto seguro, o Colégio Eleitoral, onde emergiu o vitorioso da oposição, Tancredo Neves, o primeiro presidente que não era general desde 1964. Três anos mais tarde, para completar o sonho de Alencar e seus Autênticos, a Constituinte legou ao país a Constituição-Cidadã de 1988. O resto é história.

Ulysses: com Alencar (esq.), ondulando com o povo nas praças, navegando com milhões nas ruas das Diretas-Já

Alencar Furtado morreu em janeiro de 2021, quando se completava o segundo ano do mandato presidencial de Jair Bolsonaro. Por razões distintas, são as duas faces do que era o Brasil e do que o Brasil virou.

Um é admirável pelo exemplo, o outro é repulsivo pelo que faz e diz. Alencar dedicou a vida à luta pela democracia, à bandeira dos direitos humanos e pela defesa dos cidadãos. Bolsonaro empenha sua palavra na defesa da ditadura, no desrespeito a avanços civilizatórios e no ataque contumaz a princípios consagrados em sociedades democráticas. Alencar lembrava das viúvas, ‘quem sabe’, e dos órfãos, ‘talvez’, produzidos pela ditadura. Bolsonaro fala sempre em defesa dos agentes da repressão que torturaram, ‘certamente’, e que mataram, ‘com certeza’, maridos, mulheres e filhos, produzindo as viúvas e órfãos dos dissidentes caçados a ferro e fogo pelo aparato de guerra interna armado pelo regime militar.

Um especialista em matar

O apreço pela vida de Alencar e a atração pela morte de Bolsonaro é a primeira e mais forte distinção entre os dois. O capitão, com os seus polidos coturnos de psicopata, escancarou sua mente doentia em 2017 em Porto Alegre, quando já era candidato a presidente, confessando numa reunião com empresários: “Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar”.

Três anos antes da aparição do Covid-19, ele já fazia sua opção preferencial pelo vírus em detrimento da vacina: “Minha especialidade é matar, não curar ninguém. Aprendi a atirar com tudo que é tipo de armas, sou paraquedista, sou mergulhador profissional. Sei fazer sabotagem, sei mexer com explosivos. Vocês [brasileiros] nos treinam, nos pagam para isso”.                                                    

Jair Bolsonaro: um especialista em matar, não em curar, e seus três Zeros, devotados às armas como o pai

Em maio de 1999, no Governo FHC, quando nem ele sonhava em ser presidente, Bolsonaro deu uma entrevista ao ‘Câmera Aberta’, da TV Bandeirantes, e arreganhou sua face genocida: “Através do voto você não muda nada neste país, nada…Só vai mudar, infelizmente, no dia em que nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro… e fazendo o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil. Começando com o FHC…. Matando! ”.

Vinte e dois anos depois, já presidente, o capitão coveiro realizou o seu sonho, legando ao país um vasto necrotério de mais de 270 mil mortes — nove vezes mais do que o total que ele sonhava para a ditadura dos seus devaneios.

O necrófago Governo Bolsonaro conseguiu, com sua incompetência e negacionismo endêmicos, superar a marca fúnebre dos outros dois governantes que, no passado, registravam as duas maiores mortandades da história brasileira.

O imperador Dom Pedro II (1825-1891) amargou na Guerra do Paraguai (1864-1870), o maior conflito armado na história da América do Sul, um número de mortos que oscila em torno de 50 mil brasileiros.

Prudente de Morais (1841-1902), o terceiro presidente da República recém proclamada, mobilizou o Exército para enfrentar em 1896 a rebelião messiânica que o beato Antônio Conselheiro liderou por 11 meses no vilarejo de Canudos, no interior mais pobre da Bahia, que só acabou com o massacre de 25 mil pessoas – incluindo a degola de velhos, mulheres e crianças.

Jair Bolsonaro, o 38º presidente da República — o pior presidente de nossa história, quem sabe, o mais estúpido governante do planeta, talvez —, não mexeu literalmente um único dedo enquanto o registro de vítimas chegava à marca de 270.917 mortes em 11 de março de 2021, exatamente um ano depois que a OMS classificou a Covid-19 como uma pandemia mundial. A primeira morte de Covid no Brasil aconteceu em 16 de março de 2020, em São Paulo. Apenas três meses depois, na última semana de junho, o país alcançou num único trimestre o mesmo número de baixas que teve em cinco anos e três meses do Século 19 na Guerra do Paraguai, a mais longa e sangrenta do continente: 50 mil mortos, uma letalidade só possível pela inação, teimosia e negacionismo do estúpido Bolsonaro.

Durante todo esse tempo, o que o capitão-presidente fez, de forma doentia e mórbida, foi debochar da doença, escarnecer dos doentes, desdenhar os mortos, desconhecer a ciência e desacreditar os médicos e profissionais da saúde.

Lágrimas na tela e um cafajeste

O país se habituou às emoções derramadas nas telas de TV por profissionais treinados, pelo ofício, no relato de tragédias e desastres do cotidiano. Mas, os dramas humanos e a angústia sufocante imposta pela rotina do Covid-19 romperam as comportas de emoção de rostos familiares aos brasileiros. Em momentos distintos, em programas variados, veteranos repórteres, apresentadores, âncoras e correspondentes se debulharam em lágrimas irreprimíveis, como nos casos de Natuza Nery (GloboNews), Guga Chacra (correspondente da Globo em Nova York), Fátima Bernardes (Rede Globo), Flávio Fachel (Globo/Rio) e Ilze Scamparini (correspondente da Globo em Roma). Solidários e fragilizados, todos eles choraram, com o recato possível, diante das câmeras de TV no Rio, em São Paulo, nos Estados Unidos, na Itália, vertendo as lágrimas que dão humanismo e sentimento ao jornalismo.

Antes que algum filho Zero de Bolsonaro faça alguma piadinha cretina sobre isso, insinuando que deve ser tudo chororô produzido pela Rede Globo, é conveniente lembrar que a dor é um sentimento que perpassa o ser humano, e não fica restrito aos estúdios de TV. Mais gente, mundo afora, para espanto do debochado clã Bolsonaro, também chora pelos mortos e louva a vida.

Assim, na TV, foi possível também testemunhar a emoção genuína e a dor comovente de gente chorando, sem controle, como o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio, a repórter Sara Sidner da CNN na Califórnia, o ator espanhol Miguel Herrán (que faz o personagem ‘Rio’ na série Casa de Papel ), o governador da Bahia Rui Costa e muitos, milhares, milhões de profissionais da saúde no mundo todo que combatem, ganham e perdem todos os dias a guerra exaustiva, infindável contra o Covid-19.

Enquanto isso, o divertido capitão Jair Bolsonaro ri, debocha, zomba e escancara sua alegria esquizofrênica diante de uma nação angustiada pela doença, esmagada pela dor, aflita pela cura, desorientada pela falta de empatia de um presidente desequilibrado

O capitão no seu hilário, cômico, irresistível, desopilante país de 275 mil mortos e 11 milhões de doentes

Por tudo o que faz e, principalmente pelo que não faz, Bolsonaro merece todos os adjetivos degradantes que definem sua personalidade necrófila, de desprezo pela vida, de raciocínio tosco, de comportamento abrutalhado, de pensamento demente.

Jair Bolsonaro é um viúvo de civilização, quem sabe?, e um órfão de humanidade, talvez. No momento mais macabro de sua história, o Brasil precisa enfrentar o desafio quase insuperável da pandemia convivendo com um governante patético no Palácio do Planalto.

Sua imagem de um esquizofrênico sorridente, em meio a tanta tristeza, é o retrato acabado de um cafajeste no poder.

O Brasil do admirável Alencar Furtado não merece a figura asquerosa de Jair Bolsonaro.

 

* Luiz Cláudio Cunha, jornalista, foi consultor da Comissão Nacional da Verdade e é autor de Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (L&PM, 2008). E-mail: cunha.luizclaudio@gmail.com 

 

 REFERÊNCIAS

[1] Apreciação Sumária nº 25, do SNI, de 29 de junho de 1977. In Elio Gaspari, A Ditadura Encurralada, 2004, p. 426.

[2] Depoimento de Thales Ramalho a Gaspari, op. cit., p. 427.

[3] Telegrama 665/Ministério do Exército, de 30 de junho de 1977. Arquivo Golbery do Couto e Silva. In Gaspari, op. cit., p. 428.

[4] Depoimento de 1h26 de Alencar Furtado à Comissão Nacional da Verdade, em Brasília, em 19/setembro/2014, na condição de vítima civil da ditadura.

[5] Marcelo Godoy. ‘O complô para cassar o deputado’. O Estado de S. Paulo, 8/dezembro/2018.

Naqueles tempos em que mataram Vlado

Luiz Cláudio Cunha*

O telefone tocou na sucursal da revista Veja em Porto Alegre e ecoou a voz firme, mas sempre cordial:

– Bom dia, companheiro Luiz Cláudio. Aqui é o Audálio Dantas!

Nem precisava se identificar. A voz inconfundível do jornalista de 46 anos ainda preservava um doce e sedutor sotaque alagoano, que não esqueceu suas origens nem quando o menino de Tanque D’Arca, no árido agreste de Alagoas, trocou aos 12 anos sua terra natal de apenas 5 mil habitantes pela mais populosa cidade do continente, São Paulo.

Era um telefonema improvável naquela manhã, na segunda quinzena de dezembro de 1975. Improvável porque, naqueles dias tormentosos, o presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo tinha, com certeza, coisas mais importantes a fazer do que telefonar para o sul do país. Naquele momento Audálio liderava, com firmeza, serenidade e coragem, o sentimento de indignação e revolta que envolvia a morte, sob torturas, do jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, nos porões do DOI-CODI do II Exército.

Outubro de 1975: Audálio Dantas, desolado diante do caixão do amigo Vlado, assassinado no DOI-CODI

O fim inesperado do diretor de jornalismo da TV Cultura, horas após se apresentar espontaneamente para um depoimento no centro da repressão paulista, em 25 de outubro de 1975, marcava o auge da investida da facção mais radical da direita militar, em aberta hostilidade ao quarto presidente da ditadura, general Ernesto Geisel.

Herzog era o 22º jornalista morto ou até hoje desaparecido pela repressão do regime. Só nos dois anos iniciais do Governo Geisel, a ditadura tinha registrado cerca de 60 desaparecidos políticos. Na escalada de violência de outubro de 1975, Herzog era o 12º jornalista preso no espaço de uma semana só na cidade de São Paulo, varrida por uma onda de detenções que atingiu mais de 200 pessoas – incluindo líderes sindicais, médicos, estudantes, professores universitários, advogados e membros da oposição legal, reunidos no MDB.[1]

Vítima de um falso ‘suicídio’, segundo a fantasiosa nota oficial do II Exército, Herzog, judeu nascido na Iugoslávia em 1937, foi sepultado dois dias depois, na segunda-feira, 27, na área do Cemitério Israelita do Butantã reservada aos mortos comuns, os honrados, não no espaço distante onde a fé judaica garantia espaço aos suicidas, execrados pelo judaísmo. A congregação do Chevrah Kadisha, que administra o cemitério, não encontrou nenhum indício de suicídio no corpo de Herzog, descartando assim o enterro segregado.

As vozes da solidariedade, como lembrou Audálio Dantas, começaram a ecoar a partir de segunda-feira, dia do enterro. A Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ) e a Organização Internacional dos Jornalistas (OIJ), que na época representavam mais de 230 mil profissionais de imprensa de todo mundo, protestaram. Mas, o medo ainda calava a maioria no Brasil. Dos 25 sindicatos de jornalista do país, apenas 11 se manifestaram contra o assassinato de Vlado – entre eles, o de Porto Alegre.

Audálio se mostrou surpreso e desalentado com a falta de apoio dos sindicatos operários, incluindo os do vibrante ABC paulista. Até o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, onde despontava um líder barbudo em ascensão chamado Luiz Inácio Lula da Silva, calado estava, calado ficou. O estrondoso e constrangedor silêncio do ABC sindical brotou na morte de Vlado, em outubro de 1975 e perdurou, de forma ainda mais embaraçosa, três meses depois, em janeiro de 1976, quando Manoel Fiel Filho, operário como eles, apareceu também ‘suicidado’ no mesmo DOI-CODI que matou Herzog.[2]

O ‘probleminha’ da tortura

A crise no coração da repressão do regime forçou a ida de Geisel a São Paulo na quinta-feira, 30, véspera do tenso culto ecumênico na catedral da Praça da Sé, centro maior da Igreja Católica na capital. O aparelho repressivo não queria nem mesmo investigar a morte do jornalista. Confrontado pelos generais Ednardo d’Avila Mello, comandante do II Exército, e pelo general Sylvio Frota, ministro do Exército, Geisel bateu pé pela investigação de um inquérito policial-militar, o IPM. “Não pode haver crime, ou morte, dentro de uma organização militar sem ser apurado”, trovejou o presidente, segundo Elio Gaspari, em A ditadura encurralada.

Rendido, naquele mesmo dia Ednardo informou, em nota, a instauração de um IPM para “apurar as circunstâncias em que ocorreu o suicídio do jornalista Vladimir Herzog”. O detalhe bizarro é que antes de mesmo de começar, o IPM já apontava sua teimosa conclusão dos fatos ainda não apurados: ‘suicídio’.

General Ernesto Geisel e o seu ‘probleminha’: Herzog e a simulação de suicídio no DOI-CODI

A suspeita precipitação não incomodou Geisel, que parecia no início interessado na correta apuração do crime. Duas décadas depois, em 1997, Geisel definiu tudo aquilo como um ‘probleminha’:

Não sei se o inquérito estava certo ou não, mas o fato é que apurou que o Herzog tinha se enforcado. A partir daí o problema do Herzog, para mim, acabou. (…). É possível que aquilo tenha sido feito para encobrir a verdade. Mas o inquérito tem seus trâmites normais, suas normas de ação, eu não iria interferir no resultado. (…). É preciso ver o seguinte: o presidente da República não pode passar dias, ou semanas, com um probleminha desses. É um probleminha em relação ao conjunto de problemas que ele tem.[3]

A farsa do IPM durou 47 dias, carimbando como ‘suicídio’ a morte de um jornalista moído sob torturas num enredo fantasioso que desperdiçou 299 folhas de papel imprestável. O IPM foi concluído em 12 de dezembro, uma sexta-feira, mas os seus pífios resultados só foram divulgados uma semana depois, dia 19, a sexta-feira seguinte.

Nasceu daí a ideia de contestar o falso IPM. Todos sabiam que um confronto direto com os militares poderia dar a eles o pretexto de uma intervenção no sindicato, sujeito à dura legislação que submetia o sindicalismo aos humores do Ministério do Trabalho. A solução seria transformar o sindicato em mero intermediário de uma contestação ao IPM organizada e assinada pelos jornalistas, uma ação coletiva que protegeria a entidade presidida por Audálio Dantas de qualquer ameaça de intervenção. O manifesto, ‘Em Nome da Verdade’, começou então a sua épica jornada de coleta de assinaturas, com ênfase central em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Porto Alegre, que concentravam a maioria dos jornalistas do país.

Era essa a explicação para o inesperado telefonema que atendi na sucursal gaúcha de Veja.

Audálio, diante da urgência do caso, me deu o prazo de uma semana para colher as assinaturas dos jornalistas de Porto Alegre. O ato de assinar um documento de aberta contestação à mentirosa versão do falso suicídio de Herzog era um gesto de coragem e dignidade dos jornalistas, a primeira contenda pública com o regime militar desde o advento do AI-5, em dezembro de 1968, exatos sete anos antes. O risco de represálias era elevado. Como havia dúvidas se os jornais publicariam o manifesto, os signatários de São Paulo e Rio, além da coragem, contribuíam com uma caixinha para custear a sua eventual publicação como matéria paga, um texto ‘a pedido’.

Os grandes jornais, ao contrário dos jornalistas, ainda mantinham uma postura de apoio, velada simpatia, disfarçada indiferença ou calculado silêncio diante da força e da censura do regime que eles sustentaram, antes e depois do golpe militar de 1ºde abril de 1964, uma data coerente com o ‘suicídio’ de Herzog.

União na conspiração

No Rio de Janeiro, antes mesmo do golpe, a conspiração conseguira unir os três grandes concorrentes da imprensa carioca: O Globo, o Jornal do Brasil e os Diários Associados.[4]  Roberto Marinho, Nascimento Brito e Assis Chateaubriand fundaram, em 26 de outubro de 1963, a cinco meses da derrubada de João Goulart, a ‘Rede da Democracia’, que ecoava em transmissão conjunta das rádios Jornal do Brasil, Globo e Tupi uma catilinária em cadeia nacional contra a ‘ameaça vermelha’ e a iminente tomada do poder pelos comunistas ligadas ao presidente Jango.[5]

Marinho, Brito e Chateaubriand: O Globo, JB e Associados, adversários, mas unidos em rede pelo golpe

No dia seguinte ao golpe vitorioso, 2 de abril de 1964, o Globo de Roberto Marinho festejava em editorial a intervenção militar: “Ressurge a Democracia!”. Em um trecho, tentava dar o amparo do Art. 176 da Constituição para o uso do arbítrio, definindo dessa forma as Forças Armadas: “São instituições permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade do presidente da República E DENTRO DOS LIMITES DA LEI”. Assim mesmo, em maiúsculas de tom quase verde-oliva, para camuflar a violência e vender a ideia de que o fora-da-lei era o presidente Goulart.

O Jornal do Brasil conseguiu ser mais rápido que O Globo no gatilho da adulação. Na véspera, 1º de abril, o jornal de Nascimento Brito saudou a vitória da democracia “contra a ameaça de uma república sindicalista” ou “a implantação de um regime comunista”, o que dava no mesmo. O JB já dava o movimento militar como vitorioso, enquanto os tanques dos generais Olympio Mourão Filho e Carlos Luís Guedes ainda rodavam de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro. No dia seguinte, 2 de abril, os dois jornais trombaram no seu entusiasmo. “Fugiu Goulart e a democracia está sendo restabelecida”, mentiu O Globo, desmentido na manchete daquele dia do Jornal do Brasil: “Goulart resiste no sul e o Congresso empossa Mazzilli”.[6]

O apoio ao golpe no JB não era restrito aos donos da empresa, condessa Pereira Carneiro e seu genro, Nascimento Brito. A cúpula do jornal – Alberto Dines (editor-chefe de 1962 a 1973), Carlos Lemos (chefe de redação), Wilson Figueiredo (editorialista) e Luiz Orlando Carneiro (chefe de reportagem) –, responsável pelo que era publicado, também festejou a derrubada de Jango, em franca oposição à redação do JB, na maioria integrada ou por simpatizantes do governo ou militantes da esquerda.[7] Daqueles quatro, doze anos depois, só aparece o nome de Alberto Dines no manifesto dos 1004 jornalistas contestando o ‘suicídio’ de Herzog.

Alberto Dines, Carlos Lemos, Wilson Figueiredo e Luiz Orlando, a cúpula do JB em 1964: apoio ao golpe

Uma década após o golpe, Alberto Dines era um bravo defensor de Vladimir Herzog contra as perfídias cometidas por jornalistas a serviço dos órgãos de repressão, numa campanha sórdida de delação contra a direção de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, que Vlado assumira em setembro de 1975, quase dois meses antes de morrer sob torturas no II Exército.

Um colunista do jornal Shopping News, Cláudio Marques, que ecoava notas e rumores oriundos dos porões militares, costumava fazer piadas sobre os hóspedes forçados do ‘Tutoia Hilton’, referência maliciosa ao endereço do DOI-CODI da rua Tutoia. Outro desafeto ostensivo de Vlado e da TV Cultura era Lenildo Tabosa Pessoa, militante extremista da direita católica e colunista do Jornal da Tarde.  Os torpedos canalhas dos dois jornalistas eram regularmente replicados, de forma combinada, por dois deputados da Arena, o partido da ditadura, na Assembleia paulista: Wady Helou e José Maria Marin. Na sua coluna semanal do ‘Jornal dos Jornais’, na Folha de S.Paulo, Dines era uma trincheira permanente de defesa de Vlado contra os libelos maldosos da dupla Marques-Pessoa e seus aliados.

Um outro grande jornal carioca da época, o Correio da Manhã, conhecido pela histórica tradição como liberal e independente, surpreendeu por sua meteórica adesão na hora crucial do golpe. Três anos antes, o Correio apoiara a posse de Jango, contestada pelos ministros militares diante da renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961. O jornal sustentou a posse de Juscelino Kubitschek em 1955, desafiada por focos militares de amotinados, e criticou a construção de Brasília, maior bandeira de JK.

Mas, nas 48 horas decisivas para a derrubada de Jango, o jornal produziu dois sucessivos editorais de impacto no vórtice da crise. O primeiro, “Basta! ”, saiu no 31 de março. O segundo, “Fora! ”, no dia seguinte, 1° de abril, quando Jango ainda permanecia presidente no Palácio Laranjeiras, no Rio. Dali, só por volta das 13h, Jango tomou o rumo da Base Aérea do Galeão e, de lá, voou para Brasília.

Já no final da manhã de 1° de abril, o Forte de Copacabana mudou de lado e, legalista, virou golpista, como relata o repórter Mário Magalhães. O quartel ao lado, o QG da Artilharia de Costa, foi tomado às 11h30, pouco antes da decolagem do avião presidencial para Brasília. Nos seus últimos momentos no Palácio do Planalto, Jango percebeu que a situação militar se deteriorava e, na noite daquela quarta-feira, 1º de abril, o Dia da Mentira, embarcou para Porto Alegre, onde aterrissou já na madrugada de quinta-feira, dia 2.

A tensa reunião da madrugada na residência do comandante do III Exército, general Ladário Telles, mostrava ao insone presidente que a tropa decisiva do Sul estava dividida. Jango só desistiu de fazer uma reunião com os generais no próprio QG do Exército ao ser informado que, se fosse lá, seria preso. Decidido a não resistir, Jango perambulou nas horas seguintes por algumas de suas fazendas na região de São Borja, na fronteira com a Argentina, até voar definitivamente em 4 de abril para o Uruguai. Só voltaria ao Brasil doze anos depois, morto, num caixão oriundo do exílio argentino.

O “Fora!”, editorial de 40 linhas e 475 palavras da quarta-feira, 1º de abril, do Correio da Manhã  foi publicado, portanto, quando Jango ainda permanecia no Palácio Laranjeiras. Nas primeiras cinco linhas, as 57 palavras iniciais resumiam o resto: “Fora! A Nação não mais suporta a permanência do Sr. João Goulart à frente do governo. Chegou ao limite final a capacidade de tolerá-lo por mais tempo. Não resta outra saída ao Sr. João Goulart que não a de entregar o governo ao seu legítimo sucessor. Só há uma coisa a dizer ao Sr. João Goulart: Saia!”.

O presidente, desalentado e surpreso, leu o editorial e comentou com um amigo: “Olha o que o Correio da Manhã está dizendo aqui…”

Ainda hoje não se sabe, com certeza, quem escreveu os dois editoriais que transformaram o Jango protegido de 1961 no Jango execrado de 1964, na soleira do abandono político. Quase 15 anos após o golpe de 1964, o redator-chefe, Edmundo Moniz, negou à Folha de S. Paulo ter sido o autor dos textos que dramatizaram o divórcio entre o presidente acuado e a mídia engajada no golpe: “Eu só sou autor daquilo que eu assino… O artigo foi feito pela redação, não posso dizer o autor dos artigos, eles são de responsabilidade do jornal. Os dois editoriais talvez fossem escritos por muita gente. Toda a redação mexeu. Não escrevi o artigo, mas o alterei”.

Edmundo Moniz, o editorial sem autor, e Cony: um corte aqui, uma alteração ali, uma pequena frase

A redação toda, na verdade, não mexeu, mas o time de editorialistas, sim. A equipe liderada pelo trotskista Moniz era integrada por intelectuais do nível de Otto Maria Carpeaux, Osvaldo Peralva, Carlos Heitor Cony e Newton Rodrigues. O próprio Cony esclareceu, na sua coluna na Folha, em novembro de 2002: “Minha participação limitou-se a cortar um parágrafo e acrescentar uma pequena frase. Hora e meia mais tarde, Moniz telefonou-me outra vez, lendo o texto final que absorvia a colaboração dos editorialistas, e, embora o conteúdo fosse o piloto elaborado por Carpeaux, a linguagem traía o estilo espartano do próprio Muniz”. [8]

Nos meses seguintes, apesar dos seus candentes “Basta!” e “Fora!”, o Correio da Manhã insistia teimosamente em algemar a palavra ‘Revolução’ de 1964 entre aspas, quase subversivas. Criticava os duros atos institucionais do regime e chegou a denunciar casos de tortura. A dona do jornal, Niomar Moniz Sodré Bittencourt, foi presa por dois meses pela ditadura, em janeiro de 1969. Nove dias depois, os militares deram um ‘basta’ na proprietária do Correio e lhe deram um ‘fora’ de dez anos da política, cassando seus direitos pelo AI-5. Descarnado e sem alma, o jornal foi arrendado meses depois a um grupo de empreiteiros, sem jamais recuperar seu prestígio. Morreu sem choro nem vela em 1974.

Em São Paulo, o envolvimento dos grandes jornais antecedia o golpe, começando na conspiração para derrubar Jango. No início de 1962 oficiais das Forças Armadas, falando em nome de um trio histórico de conspiradores – o marechal Odylo Denys, o almirante Sílvio Heck e o brigadeiro Gabriel Grun Moss –, foram a São Paulo para um encontro com Júlio Mesquita Filho, dono de O Estado de Paulo, a quem entregaram um documento sobre as normas que iriam orientar o governo militar após a queda de Jango.

O grupo, integrado pelos generais Cordeiro de Farias e Orlando Geisel, foi mais explícito com o dono do Estadão: o regime discricionário teria de ficar no poder por pelo menos cinco anos. Animado com a conversa, Mesquita chegou ao ponto de sugerir oito nomes para o futuro ministério revolucionário, incluindo entre eles Mem de Sá, Roberto Campos, Dario de Almeida Magalhães e Milton Campos. Todos os quatro chegaram lá.

Com o jurista Vicente Rao, advogado da mineradora americana Hanna, Mesquita chegou a fazer o rascunho de um Ato Institucional para fechar o Senado, a Câmara e todas as Assembleias estaduais e cassar mandatos – o mesmo instrumento de força que a ditadura anos depois faria seu jornal engolir com o Ato Institucional nº5, na forma de versos de Camões e receitas de bolo.[9]

“Até ali [o AI-5], nós vínhamos divergindo em caso e número, mas não em gênero, porque sabíamos que o processo tinha que ser aquele, achávamos que devia ser aquele”, reconheceria anos depois Ruy Mesquita, irmão de Júlio e também diretor de O Estado de S. Paulo.[10]

Em entrevista a Audálio Dantas, em 2005, Mesquita foi além: “Não só apoiamos, como conspiramos”.[11] Ao contrário do pai, o jornalista Ruy Mesquita Filho, o Ruyzito, um dos herdeiros do Grupo Estado, é um dos 1004 signatários do manifesto contra o ‘suicídio’.

Ruy Mesquita e Ruyzito: o pai, ao contrário do filho, não assinou o manifesto contra a farsa do Exército

O outro grande jornal paulista, a Folha de S.Paulo, tinha um envolvimento até logístico, além de ideológico, com o golpe militar. As peruas Chevrolet C-14, da frota que transportava jornais para as bancas, muitas vezes foram usadas para levar ou trazer gente torturada na Oban, a Operação Bandeirantes, núcleo integrado da repressão.

Carlos Eugênio Paz, o chefe do Grupo Tático de Ação (GTA) da organização guerrilheira Aliança Libertadora Nacional, reforça: “A ALN queimou vários carros da Folha como represália à participação do Grupo Folha no financiamento da repressão e ao uso de seus carros na repressão direta. Ao fazer isso, atuando na guerra, o Grupo Folha era passível de sofrer as sanções e as represálias da guerra. O Grupo Folha apoiou o golpe de estado, financiou, participou diretamente da repressão e jamais fez autocrítica disso”.[12]                                                                                         

Octávio Frias: a perua da Folha, queimada pela guerrilha, e o vespertino que virou porta-voz da repressão

A redação de policiais

O vespertino do grupo, a Folha da Tarde, era a ponta avançada do extremismo radical da empresa, o porta-voz oficioso da repressão política. Até 1968 era um jornal de esquerda, mais inquieto, que concorria diretamente com o irmão mais novo do Estadão, o Jornal da Tarde. No comando da redação estava um jornalista egresso da Última Hora janguista, Jorge Miranda Jordão, que tinha sob seu comando alguns jornalistas ligados à ALN, grupo da luta armada liderada por Carlos Marighella. O advento do AI-5 virou o fio do jornal. Houve uma limpeza na redação e, a partir de julho de 1969, a Folha da Tarde converteu-se num diário que o jornalista Cláudio Abramo resumiu numa palavra: “Sórdido”.

O dono do Grupo Folha, Octávio Frias de Oliveira, trocou o esquerdista Jordão por Antônio Aggio Jr., um jornalista especializado em cobertura policial. Um redator da editoria de ‘Mundo’ cumpria dupla jornada: trabalhava à tarde no jornal e, de manhã, no DOPS comandado pelo delegado Sérgio Fleury, o mais ilustre nome da máquina de tortura brasileira. “Muitos jornalistas andavam armados na redação. O Aggio mesmo circulava com uma maleta em forma de violino. Era uma carabina turca”, revelou a jornalista Beatriz Kushnir, autora de um livro cortante sobre o colaboracionismo da grande imprensa com a ditadura e a censura.[13]

Os antigos militantes de esquerda foram substituídos por policiais que escreviam, mantendo até o duplo emprego entre redação e o aparato repressivo. A FT, inexpressiva nas bancas, passou a ser conhecida como “o jornal de maior tiragem” – uma piada lúgubre sobre a taxa de ‘tiras’ (policiais) que infestavam sua redação, também conhecida como ‘delegacia’.

Assim como Chateaubriand e Marinho no Rio, as famílias Mesquita e Frias em São Paulo integravam o centro ideológico da mídia no golpe, concentrado no IPES. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, fundado no Rio em novembro de 1961, três meses após a renúncia de Jânio Quadros, reunia a nata do empresariado, nacional e multinacional, com todos os nomes, sobrenomes e siglas que ainda hoje enfeitam as listas das maiores empresas do país. Um empresário de origem americana no Rio, Gilbert Huber Jr., dono da então poderosa Listas Telefônicas, articulou-se com um empresário de uma multinacional em São Paulo, João Batista Leopoldo Figueiredo, ex-presidente do Banco do Brasil no Governo Jânio e tio do futuro presidente Figueiredo.

Acabaram recrutando militares da reserva – um deles, o general Golbery do Couto e Silva.

Parecia um inocente clube de homens de negócios. Mas, na sua face oculta, sob siglas e codinomes, o IPES concentrava a execução metódica de um pensado plano da burguesia nacional para combater, de forma clandestina, os seus três principais inimigos: o Governo Jango, a aliança nacionalista do PTB e o comunismo, que aparentemente resumia tudo aquilo. O braço político ostensivo do IPES era o IBAD, Instituto Brasileiro de Ação Democrática, que apesar do nome tinha ligações com o MAC, Movimento Anticomunista, e com a organização da direita católica Opus Dei.

O fundador do IBAD em 1959 foi o integralista Ivan Hasslocher, dono da Promotion, uma agência de publicidade que promovia o lobby do IBAD e seu braço parlamentar, a ADP – Ação Democrática Popular, um núcleo conservador de 160 parlamentares da centro-direita no Congresso reunido em torno da UDN, PSD e PSP. A ADP fazia contraponto à Frente Parlamentar Nacionalista, que orbitava no universo do PTB e dos aliados da esquerda. Segundo o historiador uruguaio de nascimento René Dreifuss, a ADP tinha sua ação política patrocinada pela estação no Rio de Janeiro da CIA, a agência de inteligência americana focada em campanhas políticas e grupos de pressão.[14]

Homens da mesma linha de pensamento e com igual propósito juntaram, a partir de 1962, as duas entidades: nascia o complexo IPES/IBAD, matriz ideológica e operacional da conspiração que daria o golpe e, depois, forneceria os quadros e dirigentes do aparato estatal que sustentou o regime militar. O IPES operava como centro estratégico, e o IBAD, como unidade tática. O monstro crescia junto com a conspiração. Em 1963, os 80 membros originais do IPES pularam para 500. Eram sócios 26 dos 36 líderes da FIESP, a maior federação industrial do país. A entidade se espalhava pelas capitais do país.

Intelectuais a soldo

 A articulação dos empresários com os militares era feita pelo Grupo de Levantamento da Conjuntura (GLC) do IPES, comandado pelo general Golbery, que atuava sobre o I (Rio) e III (Porto Alegre) Exércitos. A ‘ordem de serviço com calendário’ do GLC, que definia a estratégia de ação, tinha uma edição limitada de 12 exemplares, que não eram registrados nas atas do IPES. A equipe de Golbery distribuía nos quartéis uma circular bimestral mimeografada, sem citação da fonte, avaliando a atividade ‘comunista’ no país, apontando o dedo para subversivos infiltrados no governo e mapeando suas ações.

Golbery e o QG do golpe, no 27º andar do Avenida Central: 3 mil grampos de telefone só no Rio

Só no Rio de Janeiro o GLC de Golbery tinha três mil telefones grampeados[15]. O grupo do general ocupava quatro das 13 salas que o IPES havia alugado no 27° andar do Ed. Avenida Central, na av. Rio Branco, no centro da cidade. A conta do telefone era faturada em nome do general da reserva Henrique Geisel, irmão de Ernesto.O GLC escrutinava a produção diária da imprensa do país, um total de 14 mil edições no ano, e produzia mensalmente cerca de 500 artigos, disseminados pelos jornais ou divulgados em forma de palestras.

Neste trabalho era fundamental manipular a expressão da sociedade. O objetivo central do Grupo de Opinião Pública (GOP) do IPES era disseminar seus objetivos na imprensa falada e escrita. Dissimulado, o grupo evitava o nome “opinião pública”, preferindo as expressões “divulgação” e “promoção”. O GOP era “a base de toda a engrenagem”, definia o general Heitor Herrera, um dos líderes do IPES. José Luís Moreira de Souza, dono da Denison Propaganda, dizia que “conquistar a opinião pública” era a essência da ação política do grupo. O principal articulador do GOP era um ex-comissário de polícia, José Rubem Fonseca, que nas décadas seguintes se consagraria como o maior contista vivo do país, ganhador em 2003 do Prêmio Camões, o Nobel dos escritores de língua portuguesa.

Rubem Fonseca coordenava, entre outros, jornalistas no Rio, como Glauco Carneiro e Wilson Figueiredo (o editorialista golpista do JB ), e em São Paulo, como Ennio Pesce[16] e Flávio Galvão, estrelas do Estadão. Intelectuais de respeito estavam no balaio de Fonseca e do IPES: a escritora Nélida Piñon (secretária da entidade no Rio), o cronista Odylo Costa, filho, o poeta Augusto Frederico Schmidt e a romancista Rachel de Queiroz – todos irmanados na agitação golpista em favor do general Castello Branco, primo de Rachel.[17]

Rubem Fonseca, Nélida Piñon e Rachel de Queiroz: escritores assalariados pelo golpe

O que acontecia na grande imprensa do Rio e São Paulo se repetia na grande imprensa gaúcha, que teve conivência e complacência com o golpe, antes e depois de 1964.

O Diário de Notícias, o principal órgão Associado no sul, foi depredado e incendiado pela população de Porto Alegre, em agosto de 1954, ao ecoar o tiro do suicídio de Getúlio Vargas, atribuído à forte oposição da imprensa, onde se destacava o grupo de Chateaubriand. Sua adesão ao golpe, em 1964, não impediu sua decadência, até fechar em 1979.

A Zero Hora  já nasceu depurada e lavada ideologicamente em 4 de maio de 1964, um mês e quatro dias depois que o general Olympio Mourão Filho desencadeou o golpe, mobilizando as tropas da 4ª Divisão de Infantaria que ele comandava em Juiz de Fora, em Minas Gerais. Herdou do jornal Última Hora as máquinas e a antiga sede na rua Sete de Setembro, no centro de Porto Alegre, mas livrou-se rapidamente do logotipo, da cara e da comprometedora intimidade ideológica de seu antecessor nas bancas e de seu dono no expediente, Samuel Wainer, identificado com o getulismo, a esquerda e o Governo Jango.

A Última Hora gaúcha era a edição mais jacobina da ágil rede de jornais de Wainer, que além do Rio e São Paulo publicava edições simultâneas e vibrantes em outros nove centros do país – capitais como Belo Horizonte, Recife, Niterói, Curitiba, Porto Alegre e outras quatro cidades do interior paulista, inclusive a emergente região sindical do ABC.[18]

Era natural, portanto, que herdasse também todos os inimigos e a santa ira da nova ordem militar. A UH de Porto Alegre sentiu o golpe, literalmente. Tentou manter a linha editorial e o sonho de uma resistência de Jango ao levante militar até o dia 5 de abril. Resfolegou na impossível neutralidade por mais três semanas e, afinal, sucumbiu em 25 de abril do ano da graça de 1964. O diretor da edição gaúcha, Ary de Carvalho, ainda procurou manter a equipe, a marca e a estrutura do velho jornal. Viajou ao Rio, para uma conversa de negócios com Wainer, então exilado na Embaixada do México. Carvalho fez a proposta, e Wainer topou vender as máquinas de escrever, as oito máquinas fotográficas, as quatro lambretas, os dois carros e o arquivo de fotos – mas não aceitou vender o título do jornal.

Da Ultima Hora de Samuel Wainer para a Zero Hora de Ary de Carvalho: a mudança foi além do logotipo

Wainer mandou fechar a UH. Com outros três empresários, Carvalho comprou máquinas e equipamentos da redação, segurou alguns membros da equipe e tratou de fundar um novo diário em maio de 1964. Pediu ao chefe da diagramação, o argentino de nascimento Aníbal Bendatti, uma logomarca para o novo jornal – “parecida, mas diferente da Última Hora[19]. Bendatti datilografou as palavras Zero Hora, ampliou os tipos da máquina de escrever, livrou o título antigo do retângulo e cravou a nova marca num quadrado comportado. Preservou apenas o azul dos velhos tempos na cara do diário que já nascia simpático ao regime de 1964. A simpatia dos conspiradores foi ainda maior.

Ary de Carvalho trazia ligações de família decisivas desde Birigui, cidade do interior paulista onde se iniciou em 1926 a carreira de sucesso de um antigo office-boy de uma agência local do Banco Noroeste chamado Amador Aguiar. Décadas depois, Aguiar tinha um emprego novo e o seu próprio banco, o Bradesco, ambos engajados de corpo e alma no projeto golpista do IPES. Nada mais natural, assim, do que ajudar o velho amigo de um jornal que já nascia amigo dos vitoriosos de abril de 64.

Com o dinheiro do Bradesco, Carvalho livrou-se dos antigos sócios e cresceu. Ganhou anos depois um novo parceiro, o radialista Maurício Sirotsky, que em 1962 criara a TV Gaúcha, então filiada à Rede Excelsior. Juntos compraram em Chicago, EUA, a moderna máquina de impressão em off set que tornou a Zero Hora o segundo jornal do país a adotar a novidade (o primeiro tinha sido a Folha de S.Paulo de Frias).

O esforço fez o jornal cambalear financeiramente, e, em abril de 1970, seis anos após o golpe, Carvalho vendeu as ações que tinha ao sócio e retirou-se para o Rio de Janeiro. Sirotsky, agora o único dono de Zero Hora, fizera em 1965 um movimento tático decisivo: trocou a Excelsior pela nascente Rede Globo de Roberto Marinho, a organização jornalística que mais cresceria sob a ditadura. No vácuo desse sucesso nasceu, cresceu e apareceu a RBS, a Rede Brasil-Sul de Sirotsky, hoje o grupo de mídia mais poderoso do sul do país, nascido dos escombros da Última Hora esmagada pelos tanques de 64.

O fazendeiro ancora no golpe

Até aparecer a RBS, a empresa jornalística mais influente e rica do Rio Grande do Sul era a Caldas Júnior, que editava o jornal mais importante do Estado, o Correio do Povo, operava a rádio mais ouvida, a Guaíba, e mantinha um vespertino de larga penetração, a Folha da Tarde. Atravessou sem sobressaltos a turbulência de 1964 porque era uma empresa conservadora, mantida sob o rígido controle de seu dono, Breno Caldas. Tinha apenas 25 anos quando assumiu o jornal, em 1935. O pai, fundador do Correio do Povo meio século antes, morrera prematuramente aos 45 anos, em 1913, mergulhando a empresa numa crise financeira que durou até a chegada de Breno Caldas.

Dono de jornal e fazendeiro, Breno Caldas cultivava uma previsível hostilidade contra as reformas de base de João Goulart e antipatia ainda maior contra o cunhado do presidente, Leonel Brizola – que na crise da renúncia de Jânio em 1961 requisitou a sua rádio Guaíba para montar em torno dela a “Rede da Legalidade”, que no gogó brecou o golpe militar e, com a adesão inesperada do III Exército, garantiu a posse de Jango.

Nos idos de 1962, o líder do IPES carioca, José Luiz Moreira de Souza, dono da Denison Propaganda, viajou a Porto Alegre para botar a Caldas Júnior no balaio da conspiração. Ganhou as graças de Arlindo Pasqualini, irmão de Alberto, ideólogo do trabalhismo que o IPES combatia. Arlindo, diretor da Folha da Tarde e o sucessor natural do dono da empresa, Breno Caldas, recebeu a missão de produzir uma série de artigos contra Leonel Brizola, que já não tinha a simpatia da casa desde a Campanha da Legalidade do ano anterior.[20]

A animosidade cresceu no governo Jango. Brizola pegou gosto pelo microfone e batia regularmente em Breno Caldas às sextas-feiras, no seu programa noturno na rádio Farroupilha, que curiosamente fazia parte da rede dos Diários Associados do golpista Chateaubriand. O ex-governador adotava um tom coloquial e direto ao falar na rádio: “Dr. Breno, eu sei que o senhor está me ouvindo aí no seu iate ancorado no Guaíba…”. A chicotada vinha em seguida: “O Correio do Povo, que já foi jornal do povo, hoje não é. Agora é um órgão da oligarquia, dos monopólios, dos trustes internacionais…”, batia Brizola.[21].

Breno Caldas, ancorado no iate Aventura, levando torpedos pelo programa de rádio de Leonel Brizola

A resposta vinha na primeira página da Folha da Tarde, nos artigos assinados por seu diretor, Arlindo Pasqualini, o homem do IPES dentro da Caldas Júnior. Como bom fazendeiro e criador de cavalos, Breno tinha afinidades campeiras com Jango, a quem chamava por “tu”, expressão de intimidade entre gaúchos. (Para manter a distância, Breno sempre tratava Brizola pelo cerimonioso “doutor”). Quando o golpe aconteceu, acabaram as cerimônias.

Nos primeiros editoriais após o golpe de 1964, o jornal abandonou sua histórica divisa da primeira edição de 1895 – “independente, nobre e forte” – e aderiu à facção vitoriosa, assumindo uma postura subalterna à nova ordem militar. E escancarou seu apoio em editoriais didáticos para explicar por que os revolucionários do golpe de 1º de abril estavam certos: “Aquele era o único caminho para salvar o Brasil”, dizia o jornal que se pretendia independente, nobre e forte, fazendo o coro de submissão com a grande imprensa golpista do centro do país.[22]

Falando, Breno Caldas tentava matizar o que era mais explícito nos editoriais. Em 1987, dois anos antes de morrer, em entrevista ao jornalista José Antônio Pinheiro Machado, ele reconhecia: “A Revolução de 1964, de certo modo, contou com a nossa participação, ou pelo menos com a nossa simpatia. O pessoal que foi ao poder em 1964… não é que fosse ligado a nós, não tínhamos ligações políticas com ninguém…, mas eram pessoas afinadas conosco, estávamos no mesmo caminho. Quando houve a tal conspiração do Castello Branco, eu não sabia de nada oficialmente. Até que o general Adalberto Pereira dos Santos, que comandou o movimento por aqui, fez um contato comigo, me disse que a situação era crítica, que iria acontecer alguma coisa. ‘Fique atento a uma manifestação do general Castello Branco’, me disse ele”.[23]

O retrato da mídia pelo SNI

Esse era o terreno, agreste como o sertão alagoano, que Audálio Dantas me propunha percorrer, em dezembro de 1975, para recolher assinaturas para o manifesto que contestava o IPM do ‘suicídio’ de Vlado. O pedido poderia ter sido feito ao bravo presidente do Sindicato dos Jornalistas de Porto Alegre, João Borges de Souza, mas a precaução era a mesma exigida em São Paulo: era preciso cautela, para não expor o sindicato numa atividade politicamente provocante e dar aos militares o pretexto fácil da intervenção. Isso explica por que Audálio telefonou para mim, e não para o João Borges, um dos 1004 ilustres signatário do manifesto ‘Em Nome da Verdade’.

Três anos depois do assassinato de Vlado no DOI-CODI, a agência do SNI em Porto Alegre fez uma avaliação secreta sobre a imprensa gaúcha. Com todos os preconceitos e vícios típicos da ditadura, o relatório enviado à Agência Central em Brasília, em 20 de novembro de 1978, reflete a visão que o aparato repressivo do regime tinha da mídia de Porto Alegre, que certamente era muito parecida com a que visitamos nos idos turbulentos de dezembro de 1975.[24] Esse era o perfil que o SNI fazia dos principais jornais gaúchos, pouco depois da morte de  Vladimir Herzog:

  1. Correio do Povo: é o jornal mais tradicional do RS, que se mantém dentro de uma linha de jornalismo conservadora, apresentando as notícias de forma realista, séria e sem deturpações. Geralmente assume posicionamento concordante com o Governo Federal. Possui muito boa credibilidade junto à opinião pública;
  2. Folha da Tarde: vespertino de linha apolítica. Usa de linguagem moderada e imparcial nos seus artigos. Não faz oposição ao governo;
  3. Jornal do Comércio: jornal inteiramente dedicado a assuntos da área econômica. É bastante favorável ao Governo Federal.
  4. Folha da Manhã: matutino que frequentemente apresenta notícias e reportagens de conteúdo crítico contrário ao governo. Através de artigos, manchetes sensacionalistas e charges, distorce os fatos, apresentando-os com inverdades ou meias verdades;
  5. Zero Hora: jornal de grande circulação no Estado. Em seu editorial posiciona-se, geralmente, favorável ao Governo Federal. Porém, no seu todo o jornal dá maior destaque para a oposição e para qualquer assunto ou movimento contrário ao governo e ao Regime Político atual. Salienta-se, também, que ZH é o único jornal do Estado que divulga notícias da Agência NOVOSTI (APN) da UNIÃO SOVIÉTICA que, muitas vezes, são incluídas no noticiário de outras agências internacionais, intercalando-se o texto das mesmas, fato ocorrido particularmente nos recentes incidentes do AFEGANISTÃO.
  6. CooJORNAL: encontra-se dentro da mesma linha de orientação dos demais jornais da imprensa “ALTERNATIVA”, que atuam no País, apresentando conteúdo frontalmente contrário ao governo, às suas instituições e ao Regime Político implantado em 31 MAR 1964.[25]

Logo depois do inesperado telefonema de Audálio, peguei o texto enviado por telex pelo Sindicato de São Paulo, intitulado ‘Em Nome da Verdade’, de autoria de Fernando Pacheco Jordão, um dos integrantes da diretoria liderada por Audálio e autor, quatro anos depois, do livro Dossiê Herzog: prisão, tortura e morte no Brasil. O teor do manifesto tinha uma breve introdução e oito perguntas básicas, quase óbvias, para desmontar a farsa do IPM. Fiz três cópias e repassei duas aos meus dois repórteres na sucursal de Veja – Pedro Maciel e Adélia [Dedé] Porto da Silva.

Fomos os primeiros a assinar, junto com os outros integrantes de revistas da Editora Abril, cuja sucursal eu chefiava, incluindo jornalistas efetivos, colaboradores free-lancers e antigos integrantes da equipe que sempre circulavam por lá. Abriam a fila os fotógrafos Ricardo [Kadão] Chaves, Olívio Lamas e Assis Hoffmann, os repórteres da revista Placar Divino Fonseca e Mário Marcos de Souza, os colaboradores da Exame Maria Iara Rech e Affonso Ritter e minha secretária, Rejane Baeta.

Coletar assinaturas para um documento que confrontava diretamente uma investigação viciada do Exército sobre a morte de Herzog só podia ser uma responsabilidade coletiva, nunca individual. Um exemplo é que em dezembro, quando o manifesto começou a correr as redações de São Paulo, o meu repórter Pedro Maciel casualmente estava lá, fechando uma matéria. Na sede paulistana da Veja, no prédio da Abril na Marginal do Tietê, o secretário de redação, o gaúcho Paulo Totti, era o encarregado de colher as assinaturas. Quando Maciel se dispôs a assinar, ali mesmo, o experiente Totti observou: “Pedro, se assinares aqui, tu serás o único gaúcho em uma lista de jornalistas paulistas. E isso vai te expor muito. É melhor esperar que o manifesto chegue a Porto Alegre, para assinar lá”.

Audálio nos deu uma semana de prazo, mas achei que a tarefa deveria ser cumprida em um ou dois dias, no máximo, para atrair menos atenção, devido à delicadeza do momento, reduzindo assim nossa presença nas redações.

Decidi concentrar nosso esforço – eu, Pedro e Dedé –  em cinco desses jornais, que reuniam o maior contingente de jornalistas: os três da Caldas Júnior (Correio do Povo, Folha da Tarde e Folha da Manhã), a Zero Hora e o CooJORNAL.

Dedé, a mais simpática do trio, ficou encarregada de visitar a CooJORNAL, a primeira cooperativa de jornalistas do país, fundada em agosto de 1974 na esteira de uma crise na Folha da Manhã, quando 21 jornalistas (1/3 da redação) se demitiram em protesto contra a demissão do repórter Caco Barcellos, autor de uma vigorosa matéria contra a violência policial. Os 66 jornalistas que fundaram a cooperativa se multiplicaram até chegar a 314 associados, editando 33 jornais e boletins para sindicatos, empresas privadas e outras cooperativas, garantindo o sustento de quase 100 jornalistas que realizavam a utopia de uma empresa sem patrões, fazendo um jornal de jornalistas.

O CooJORNAL se orgulhava de ter ‘o maior expediente do mundo’, com mais de 300 jornalistas sem patrão e sem hierarquia, todos nivelados pelo cooperativismo. O jornal, assim, era um bravo integrante da chamada ‘imprensa nanica’, ao lado de publicações do centro do país como Movimento, Opinião, Versus, Em Tempo, Bondinho, Ex e o venerando O Pasquim, o irreverente semanário carioca que chegou a vender 200 mil exemplares, um sucesso de banca que afrontava a condição de ‘nanico’.

O mensário cooJORNAL se caracterizava por uma pauta criativa, centrada em fatos históricos, remontando episódios e citando personagens da oposição, dissidentes e pensadores de esquerda, que irritavam os militares. Um bom retrato do jornal foi desenhado pela própria Agência Central do SNI, na ‘Informação Confidencial nº 031, de 19 de agosto de 1980, que registrou com inusual precisão:

O periódico CooJORNAL, editado pela Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, caracteriza-se por divulgar artigos hostis ao governo. Apesar de a referida publicação ter tiragem de, apenas, 35 mil exemplares, seus artigos são comumente comentados pelos demais órgãos de imprensa, e passa, deste modo, a ter repercussão nacional. [26]                                                         

A cooperativa e seu pequeno jornal: ‘artigos hostis’ e ‘repercussão nacional’, segundo o elogio do SNI

No perfil da imprensa desenhado pela agência gaúcha do SNI, de novembro de 1978, o órgão de informações citava Elmar Bones da Costa (editor-responsável), Carlos Rafael Guimarães (redator), Osmar Trindade (secretário da cooperativa), José Antônio Vieira da Cunha (presidente da CooJORNAL), Renan Antunes de Oliveira (repórter), o chargista Edgar Vasques e Luiz Carlos Merten (redator). Bones, Vasques e Merten integram a lista final dos 1004 signatários do manifesto de 1976 dos jornalistas.

O SNI acusava:

Relacionamos os principais dirigentes e redatores do COOJORNAL, todos de tendências ideológicas ‘esquerdistas’, que em seus artigos fazem forte oposição ao governo e ao regime implantado em MAR de 1964.[27]

Bones, Rafael, Trindade, Vieira, Renan e Vasques: os ‘esquerdistas’ do Coojornal, conforme o relatório do SNI

Na redação do cooJORNAL, portanto, Dedé pisava em solo favorável a quem discordava do falso IPM sobre a morte de Vlado. Na redação bem mais ampla da Zero Hora, Pedro Maciel transitou por terreno mais delicado. A direção do jornal estava, desde 1970, sob o comando de Lauro Schirmer, um moderado e bem-humorado profissional que, na década de 1950, flertou com a política como candidato frustrado a deputado pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB).

No perfil da imprensa que o SNI desenhou em 1978, ele ganhou uma descrição crítica, mas o araponga do serviço de espionagem confundiu o PSB com o velho PCB:

Lauro Schirmer, diretor de redação: (…) antecedentes desabonadores por sua militância no PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO (PCB) e ligações com comunistas. Na direção da gráfica (…) que imprime o jornal ZH, permite a impressão de diversas publicações, entre as quais o COOJORNAL, que se caracterizam pela forte oposição ao governo e ao regime.[28]

Apesar daquele arreganho com o PSB na juventude, Schirmer comandou a ZH por 20 anos, atravessando incólume e bem-comportado os rigores da ditadura. Em 1976, ele achou prudente não assinar o manifesto dos 1004, mas seu filho, o fotógrafo Gerson Schirmer, é um dos signatários.

O secretário de Médici, o ‘comunista’ de Breno

A assinatura mais surpreendente coletada na Zero Hora por Pedro Maciel foi a do editor-chefe Carlos Fehlberg, que ocupou o posto na redação por 17 anos. Antes de chegar lá, em 1974, foi durante quatro anos o secretário de imprensa no Palácio do Planalto do general Garrastazú Médici, o presidente mais sanguinário do ciclo militar, mentor do DOI-CODI onde acabaria morrendo Vlado, sob tortura, já no governo de seu sucessor, Ernesto Geisel. Cordato e submisso, nunca se soube – nem durante, nem depois da ditadura – de qualquer contrariedade ou manifestação pública de Fehlberg contra a violência da repressão e a prática contumaz da censura à imprensa.

O primeiro e talvez único gesto de calculada dissidência, com certeza, foi o manifesto que Pedro Maciel lhe apresentou. Apesar de seu passado submisso e silente diante da ditadura, louve-se, ele ousou firmar em 1976 o abaixo-assinado que reafirmava a tortura e a violência que levou à morte de Vlado no DOI-CODI paulista. Fehlberg garantiu, assim, seu surpreendente e digno lugar entre os 1004 jornalistas inconformados com a farsa do IPM.                                                                                                        

Surpresa na ZH: Schirmer, ex-socialista, não assinou, e Fehlberg, ex-porta-voz de Médici, assinou

Coube a mim percorrer o território mais povoado e hostil da Caldas Júnior e seus três jornais. Escolhi o meio da tarde do início da semana, segunda ou terça, quando a redação está com as editorias a pleno vapor e os repórteres já retornaram da rua. Apesar do expurgo sofrido em 1974, a Folha da Manhã  de 1976 continuava sendo, para o SNI, “um matutino de notícias e reportagens de conteúdo crítico contrário ao governo”, que por meio de “artigos, manchetes sensacionalistas e charges, distorce os fatos e apresentando-os com inverdades ou meia verdades”.[29] Minha passagem por lá foi rápida e produtiva.

Na redação ao lado, da Folha da Tarde, a colheita foi mais árdua. Para o SNI, era um “vespertino de linha apolítica”, que “usa de linguagem moderada e imparcial nos seus artigos” e “não faz oposição ao governo”. O diretor de redação, Edmundo Soares, era definido pelo SNI como “sem antecedentes”, o que devia ser elogioso e confortável para a ditadura. O número 2 do jornal, o secretário de redação da FT, Adil Borges Fortes da Silva, mereceu esse perfil do SNI:

Elemento integrado ao Regime Revolucionário de 31 MAR 1964; anticomunista; (…) combate as organizações ‘esquerdistas’ e/ou oposição ao Regime. Ao mesmo tempo, faz propaganda do governo e de suas obras.[30]

Adil, na verdade, encarnava o jornalista-símbolo que a ditadura idealizava: integrado ao regime, anticomunista, antibrizolista, inimigo das oposições e ainda propagandista do governo dos generais. Além da mão-de-ferro sobre a redação, a partir de 1962 Adil passou a assinar uma coluna sob o pseudônimo de ‘Hilário Honório’, personagem oculta por onde o colunista regurgitava todo o seu antibrizolismo e deixava escorrer toda a sua aversão ao comunismo.

Enfurecido, o então governador Leonel Brizola dizia que tinha ‘perdigueiros’ no jornal que lhe revelaram a verdadeira identidade de HH. Dias depois, o desmascarado Adil colocou a imagem de um cão no cabeçalho da coluna e deu a ela o título de ‘Perdigueiro, por HH’. A coluna sobreviveu 22 anos, até 1984, véspera da queda da ditadura, o osso autoritário a que Adil Borges Fortes se atracou com a fúria de um cão esfomeado.                                                                                                                   

Adil, o colunista da Folha da Tarde: o ‘Hilário Honório’ que deixava Brizola furioso

Como manda o protocolo, procurei o diretor e o secretário de redação da FT, em primeiro lugar, para colher suas assinaturas. Como previa, nem Edmundo Soares, nem Adil Borges Fortes concordaram com o abaixo-assinado, e recusaram educadamente meu convite. Mas a base da redação, na sua maioria, apoiou o manifesto.

Chegou então a vez do carro-chefe da Caldas Jr., o Correio do Povo, o centenário e conservador jornal gaúcho, uma versão sulista do Estadão. A redação, com móveis pesados de madeira escura, combinava com a maioria dos jornalistas, já veteranos, muitos com suas cabeleiras amadurecendo do grisalho para o branco. Não procurei inicialmente nenhum deles.

Fui direto a uma figura destoante da redação, que ocupava uma mesa à esquerda da porta de entrada, fincada em um estrado de madeira de uns 10 cm que a colocava num patamar superior em relação ao vetusto cenário de editores e redatores. Era ocupado por um jovem que tinha a minha idade e a mesma aparência: 24 anos, cabeludo e barbudo. Nessa condição, era identificado aos sussurros pela provecta redação do Correio do Povo como ‘comunista’.

O improvável Edgar Lisboa era muito mais do que sugeria sua imagem iconoclasta. Era o homem, ou jovem, de confiança extrema do dono da Caldas Júnior, o ‘doutor’ Breno Caldas – o mesmo tratamento reverencial dedicado ao ‘doutor’ Roberto Marinho por seus companheiros de O Globo. No papel, Lisboa tinha o mero título de Editor de Coluna, mas na prática era uma espécie de Diretor-Assistente do dr. Breno, que tinha um gabinete fechado, com porta de vidro, logo atrás da mesa dominante de Lisboa. Ninguém alcançava a sala de Breno Caldas sem passar por ele, ou por sua aprovação.

Lisboa, o ‘comunista’ do Correio do Povo, e o poeta Quintana, com o cigarro e o sorriso

Com a bênção de Lisboa, comecei a percorrer a redação. Pela hierarquia, fui direto à mesa do chefe de redação. Então com 62 anos, Adail Borges Fortes da Silva ocupou aquela cadeira por espantosos 39 anos. No perfil traçado pelo SNI, Adail era apresentado como “integrante do Diretório Nacional da Liga de Defesa Nacional/RS (…) comprometido com os ideais da revolução de MAR 1964”.[31] E era o irmão mais velho de Adil Borges Fortes da Silva, o ranzinza ‘Hilário Honório’ da Folha da Tarde, a cara mais reacionária e radical da família.

Apesar do parentesco e da ficha, Adail foi extremamente simpático e assinou, sem qualquer contestação, o manifesto contra o IPM de Vlado. O seu gesto de assentimento abriu uma clareira de aceitação no Correio, onde minha tarefa se mostrou muito mais fácil do que parecia – após as assinaturas pioneiras de Lisboa e de Adail.

A causa e o sorriso do poeta

Acerquei-me então de uma mesa sem máquina de escrever, ocupada por um redator de 69 anos, trajando um burocrático terno e gravata de tons escuros. Pernas cruzadas, tinha o olhar perdido nos círculos de fumaça que ele desenhava com o cigarro e que se dissolvam lentamente no ar. Minha chegada o tirou de suas divagações e, sem descruzar as pernas, abriu um sorriso doce, acolhedor, que dissolveu meus receios. Eu estava diante do maior poeta do país, Mário Quintana, o único sobrevivente de uma nobre linhagem que incluía Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes.

Desde 1953, aos 47 anos, Quintana editava a página literária de todo sábado no Correio do Povo, onde brilhava o seu lendário ‘Caderno H’, uma sucessão de epigramas construídos com sutileza, ironia e graça. Além de sua página semanal, ele copidescava o texto dos repórteres, fazia títulos e traduzia telegramas das agências de notícias. Tradução era sua praia: fluente em francês e inglês, verteu mais de 130 obras da literatura universal, incluindo Proust, Balzac, Voltaire, Virginia Woolf e Saint-Exupéry.

Quem imagina que ser poeta é uma condição inescapável de nefelibata, não deve estar pensando em Mário Quintana, que nem gostava de ser chamado assim: “Poeta não é profissão. É um estado de espírito, ou coma. Minha profissão é jornalista. Assim está escrito na minha carteira profissional”, escreveu ele. E para quem acha que poesia é a fronteira da abstração, Quintana completou: “Eu não entendo nada da questão social/ Eu faço parte dela, simplesmente…” Na ditadura do AI-5, o poeta se deparou com a censura, quando viu sua editora desistir de publicar o primeiro livro infantil – Pé de Pilão – ao tremer diante dessa frase ameaçadora: “O soldado é um cavalo montado noutro cavalo”. Ao votar na eleição de 1989, a primeira para presidente em três décadas, Quintana quebrou a discrição e, veemente aos 83 anos, abriu seu voto com um verso profético: “Esse Collor tem olho de louco. Vai acabar com todos os marajás e só vai sobrar ele”. [32]

O doce Quintana pegou o abaixo-assinado do IPM, leu rapidamente a introdução do texto que contestava o Exército, alargou ainda mais o seu sorriso, em mudo mas eloquente atestado de concordância, assinou e me devolveu. Sempre sorrindo, sem dizer nada. Nem precisava.

Nessa jornada de apenas dois dias pelas maiores redações de Porto Alegre, cumprindo a honrosa pauta de Audálio Dantas, nós conseguimos 139 assinaturas – quase 30% das 467 publicadas originalmente na edição do Unidade, o jornal do Sindicato de São Paulo. Um número espantoso que nos encheu de orgulho.

Mas, a assinatura que mais me emocionou foi a do poeta sempre jovem e quase septuagenário.

Quintana disse uma vez: “Uma boa causa não salva um mau poeta”.

A boa causa pela verdade sobre a morte de Vladimir Herzog ganhou, com Mário Quintana, a força e a perenidade do poeta imortal.

 

* Luiz Cláudio Cunha, chefe da sucursal de Veja em Porto Alegre, tinha 24 anos em dezembro de 1975, quando recebeu de Audálio Dantas a tarefa de coordenar a coleta de assinaturas no Sul para o manifesto contra o IPM do ‘suicídio’ de Herzog.

 

REFERÊNCIAS

[1]DANTAS, Audálio. As duas guerras de Vlado Herzog. Rio de Janeiro, ed Civilização Brasileira, 2012, p. 268.

[2]DANTAS, op. cit., p. 261-262.

[3] D’ARAUJO, Maria Celina. CASTRO, Celso (orgs). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 371. O que para o general Geisel era um probleminha, para o capitão Jair Bolsonaro não passava de uma fatalidade. Entrevistado na RedeTV na campanha de 2018, ele afirmou sobre a morte de Vlado: “Suicídio acontece. O pessoal pratica suicídio”. Nem mesmo o jornalista e astrólogo Olavo de Carvalho, guru de Bolsonaro, teve essa indulgência. Surpreendentemente, ele é um dos 1004 signatários do manifesto de 1976 que duvida do ‘suicídio’ de Herzog.

[4] Assis Chateaubriand, o dono dos Diários Associados, então a maior cadeia de imprensa do país, era mais poderoso que Roberto Marinho do Sistema Globo, florescido depois do golpe. No início da década de 1950, Chateaubriand foi citado pelo The New York Times como o ‘Cidadão Kane brasileiro’, versão tupiniquim do magnata americano William Randolph Hearst, que inspirou o filme clássico de Orson Welles. O americano não era páreo para o brasileiro. Diante dos 28 jornais e 18 revistas de Hearst, Chateaubriand ostentava um rosário midiático de 34 jornais, 36 emissoras de rádio e 18 de TV integrantes da rede Tupi, além da revista O Cruzeiro (a maior tiragem do país, 700 mil exemplares no auge dos anos 50).

[5] MOTTA, Cézar. Até a última página. Uma história do Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, ed. Objetiva, 2018, p.133-134.

[6] Na madrugada de 2 de abril, Jango ainda estava em Porto Alegre, discutindo a reação ao golpe, que não aconteceu. A falcatrua histórica só foi corrigida pelo Congresso 50 anos depois, em novembro de 2013, quando aprovou resolução dos senadores Pedro Simon (PMDB) e Randolfe Rodrigues (PSOL) revogando o conluio de militares e parlamentares que votaram apressadamente a vacância da presidência quando Jango ainda se encontrava em solo brasileiro. Assim, foi devolvido simbolicamente o mandato usurpado a Jango, rebaixando o general Castelo Branco à condição rasa de comandante golpista.

[7] MOTTA, op. cit., p. 136.

[8] CONY, Carlos Heitor. “Um basta no ‘basta’”, Opinião, Folha de S.Paulo, 30 de novembro e 2002.

[9] CUNHA, Luiz Cláudio. Máximas e mínimas: os ventos errantes da mídia na tormenta de 1964. Capítulo de ‘Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e memória’. Org.: Enrique Serra Padrós, Vânia M.Barbosa, Vanessa Albertinence Lopez e Ananda Simões Fernandes. Porto Alegre: ed. Corag, 2009, v. 1, p.179-222.

[10] VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

[11] Audálio Dantas. 50 anos do golpe de 1964.  Estudos Avançados, USP, SP, vol. 28, nº 80, jan/abril 2014. Disponível em  https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142014000100007. Acesso em 24nov2020.

[12] Carlos Eugênio Paz. Entrevista a Rodrigo Vianna. Blog O Escrevinhador, 17 abr. 2009. Acesso em: 19set.2009.

[13] KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. Ed. Boitempo, 2004. Aggio, que nega a acusação, contestou sem sucesso a autora na justiça.

[14] DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis, RJ: ed. Vozes, 1981, p. 103.

[15] DREIFUSS, op. cit., p. 188.

15 Ennio Pesce é um dos 1004 signatários do manifesto de 1976 contra o IPM de Herzog.

[17] DREIFUSS, op. cit., p. 188.

[18] BARROS, Jefferson. Golpe mata jornal. Desafios de um tabloide popular numa sociedade conservadora. Porto Alegre: ed. JÁ, 1999, p. 156.

[19] BARROS, op. cit., p. 158.

[20] DREIFUSS, op.cit., p. 233.

[21] PINHEIRO MACHADO, José Antônio. Breno Caldas. Meio século de Correio do Povo. Glória e agonia de um grande jornal. Porto Alegre: ed. L&PM, 1987, p. 72

[22] GALVANI, Walter. Um século de poder: os bastidores da Caldas Júnior. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995, p. 411.

[23] PINHEIRO MACHADO, op.cit., p.78.

[24] Os detalhes do relatório de cinco páginas da Informação nº 26, enviado à Agência Central do SNI em Brasília em 20/nov/1978, sob o título ‘Acompanhamento da Atuação da Imprensa no RS – 4.3.5”, produzido pelo 119 APA (Agência Porto Alegre do SNI), o setor do campo interno encarregado da subversão, estão publicados no meu livro Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios, (ed. L&PM, 2008), nas páginas 288-293.

[25] CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios. Porto Alegre: ed. L&PM, 2008, p. 290.

[26] GUIMARÃES, Rafael; CENTENO, Ayrton; BONES, Elmar. CooJORNAL: um jornal de jornalistas sob o regime militar. Porto Alegre: ed. Libretos, 2011, p. 17.

[27] CUNHA, op.cit., p. 293.

[28] CUNHA, op.cit., p. 292.

[29] CUNHA, op.cit., p. 289.

[30] CUNHA, op. Cit., p. 291.

[31] Informação nº 26, Agência Porto Alegre/SNI, de 20/nov/1978, apud CUNHA, op. cit., p. 291.

[32] CUNHA, Luiz Cláudio. A glória do texto: Mário Quintana. In Vintenário: duas décadas da IMPRENSA em revista. São Paulo: Imprensa Editorial, 2007. Revista IMPRENSA, dezembro de 1990, ano IV, nº 40, p. 334-337.

A sessão final do golpe com nome de impeachment no Senado – epílogo da Operação Café Filho

Bruno Lima Rocha
No final da manhã e início da tarde de quarta feira, 31 de agosto de 2016, o Brasil assistiu pela televisão aberta e por assinatura, a destituição da presidente Dilma Rousseff, com pouco mais de um ano e meio decorridos de seu segundo mandato. A traição teve como um dos pivôs o próprio vice, Michel Temer, eleito e reeleito junto à Dilma, com a bênção de Lula e da direção nacional do PT. Neste breve texto, trago algumas evidências, categorias e debates os quais entendo como urgentemente necessários.
Impeachment Consumado
Por 61 votos a favor e 20 contrários no Senado, o governo de Dilma Rousseff em seu segundo mandato foi encerrado. Assim, está consumada a dupla traição. A primeira derruba um governo eleito; a segunda traição é o preço que a ex-esquerda paga por confiar em oligarcas. Os entreguistas viralatas comemoram.
No momento da defesa da preservação dos direitos políticos de Dilma Rousseff, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) esteve milagrosamente certo na analogia. Os golpistas parlamentares de 1964 comemoram. Auro de Moura Andrade sorri no inferno. Ranieri Mazzilli o cumprimenta ao lado de Lincoln Gordon (embaixador dos EUA no Brasil) e Castello Branco (marechal escolhido por Washington para assumir o cargo de presidente no Brasil). E, como em 1964, o povo não foi convocado a resistir. Em 1964, porque o populismo sempre rói a corda. Em 2016, porque o lulismo sequer consegue ou quer ser populista.
Discursando a favor da cassação dos direitos políticos de Dilma, a senadora Ana Amélia (PP-RS) deu o tom da distopia liberal conservadora: legalidade institucional para sangrar os direitos coletivos; esvaziar o exercício do Poder Executivo para que a maioria, apelando sempre para os intermediários profissionais. No “salve-se quem puder”, os grupos de interesses “prudentemente” devem ir tentando alguma vantagem mínima através dos arranjos institucionais dos Estados pós-coloniais.
No último ato, em uma manobra com o aval de Renan Calheiros, Dilma fica habilitada e preserva seus direitos políticos
Estamos diante de uma novidade. A cassação de direitos não obteve maioria absoluta, tendo 42 votos favoráveis, 36 contrários e três abstenções. Logo, não obteve a maioria absoluta de dois terços no Senado, sendo preservadas as possibilidades de exercício de funções públicas para a presidente deposta, mas não cassada. Logo, está instaurado um período de absoluta instabilidade política no jogo eleitoral-burguês brasileiro. Dilma Rousseff pode ser eleita para cargos públicos – há questão de compreensão e interpretação jurídica – e pode estar no páreo das disputas eleitorais abertas, além de poder operar como puxadora de votos em 2018. O lulismo perde, mas não perde tudo.
Com esta manobra, Michel Temer acaba de perder o governo de fato, ao menos em sua totalidade. Renan Calheiros tira do interino golpista a condição de governar, deixando o vice-presidente usurpador entregue ao PSDB. Esta condição de “governabilidade” dura até o ponto em que os tucanos devorarem suas plumas visando à eleição de 2018.
Não foi por falta de aviso: o epílogo da Operação Café Filho e a melancolia de centro-esquerda
A presidente deposta Dilma Rousseff foi “traída” por um oligarca, Michel Temer com origens no grupo político de Adhemar de Barros, ex-governador de São Paulo e golpista em 1964. Considerando sua trajetória no nacionalismo varguista, Dilma deveria saber onde estava se metendo. Consumada a farsa da farsa, a vitória da Operação Café Filho.
Dilma Rousseff se despede de vermelho; momento melancólico onde a ex-esquerda é destituída do Poder Executivo sem sequer arriscar uma plataforma de governo com o povo no protagonismo.
A aliança de golpistas pela via parlamentar com suspeitos da Operação Lava Jato veio através do rito e manto da “legalidade”, pela farsa jurídica e impeachment sem mérito. O pior da tradição do país dos bacharéis termina com as ilusões “legalistas” da centro-esquerda, ou da ex-esquerda.
Uma parte da análise da presidente destituída está correta: existe uma dimensão substantiva do Golpe, na agenda regressiva de direitos e um avanço repressivo sob um véu de “legalidade”.
Nada veio por acaso, incluindo a baixa capacidade de resposta. Os lulistas e afins rasgaram o manual da política e pactuaram com quem não presta sem fiar o pactuado com os oligarcas através de uma espada afiada pronta para ser desembainhada.
Enfim, se levaram um ditador positivista (Getúlio Vargas) ao suicídio em 1954, porque não destituiriam uma keynesiana de centro (Dilma Rousseff) para um cadafalso semelhante em 2016?! Apenas a criminosa ilusão e inocência política poderiam fazer crer o contrário.
Aplicando uma categorização do momento vivido
Categorizando: trata-se de uma disputa intra-elites, quando uma elite dirigente está sendo destituída do poder burguês – embora juridicamente legítimo – por um novo arranjo de posicionamento das elites políticas majoritárias e suas respectivas representações de classe dominante. O povo está desorganizado desde 2013, quando a rebelião popular não resultou em um projeto de maioria apontando saídas para além do jogo das urnas burguesas.
O governo que está sendo derrubado não é de esquerda, sequer é de centro-esquerda ou populista e tem no máximo, traços de nacionalismo autônomo. Com sua destituição, o modelo liberal-periférico vai se aprofundar após a posse definitiva dos interinos golpistas, reposicionando o Brasil no Sistema Internacional, aumentando o grau de subserviência e encurtando as margens de manobra.
No cenário doméstico, a meta estratégica de quem está golpeando e virando a mesa – por aplicar um impeachment sem mérito evidente – é destravar a liberdade absoluta de capital, transnacional de preferência, associado, nacional, diminuindo tanto o papel do aparelho de Estado na organização do capitalismo interno como também nas perdas de regulação e proteção sociais, trabalhistas e nos direitos de 4a geração.
Concluindo, consumado o golpe semi-parlamentarista, está aberto o caminho para uma ampla revisão constitucional no sentido à direita, aplicando uma agenda regressiva, de perda de condições de vida, retomando a restauração (neo)liberal da década de ’90 no século – a que foi ainda mais perdida do que a de ’80.
O debate estratégico que cabe fazer. Qual ‘lugar a ser construído’ as esquerdas vão escolher? Qual o ‘mal menor’ a centro-esquerda escolhe?
Diante desta melancólica derrota política e com a traição da traição, entendo que é necessário entrar em temas de fundo, em debates de tipo estratégico. De forma direta, cabe perguntar. Qual utopia a centro esquerda latino-americana escolhe ou escolherá a partir de agora? Vai seguir na aposta infundada no “aprimoramento das instituições” e esperar a cada 20 ou 25 anos um novo ciclo de virada de mesa por dentro do poder burguês compartilhado e sob a influência direta e indireta do Império?
Ou vai tentar ajudar criar um poder do povo organizado que, mesmo que convivendo em democracia indireta e representativa, vai estar de guarda alta e permanente para não deixar a mesa virar de forma tão simples retirando direitos conquistados?
Vale entender um pouco de estratégia para fundamentar a teoria e as escolhas políticas: “O objetivo finalista subordina o método segundo suas condicionalidades”, correto? Esse conceito operacional é de Golbery do Couto e Silva. Seria bom aprender como a direita se move para poder contrapor estes movimentos. No novo ciclo de golpes – agora brancos – na América Latina, temos Venezuela, Honduras, Paraguai, tentativas na Bolívia e Equador e Brasil. E como fica a resistência aos golpes?
Até quando os partidos eleitorais vão operar estritamente contando com o aprimoramento das instituições pós-coloniais ao invés de criar e ampliar instituições sociais decoloniais e populares?

Uma crítica por esquerda aos militantes ainda vinculados ao governo deposto- 2

 
BRUNO LIMA ROCHA*
Apresentação
Este artigo entra como a segunda parte da série de crítica aos partidos de centro-esquerda e movimentos de esquerda social que foram – são – base de apoio do partido de governo deposto (PT) e seus aliados. Não tomamos como alvo desta crítica o lulismo em si, como fenômeno eleitoral de pacto conservador com melhorias materiais concretas de vulto, mas sim as agrupações organizadas que dentro deste guarda-chuva da governabilidade coexistiram pacificamente dentro do “governo em disputa”. Ao contrário do primeiro texto, este tem abordagem mais de ordem tática (equivalendo ao curtíssimo, curto e médio prazos), sendo a dimensão estratégica e teórica (longo prazo e finalismo) o objeto de terceiro e último artigo desta série.
Reconheço a delicadeza do tema, e assim como no primeiro texto, a meta não é reforçar teses sectárias ou praticar hegemonismo estéril. Apresento conceitos operacionais, do manual da política, e proponho debate franco e sincero. Nenhuma das palavras do artigo foi escrita no sentido de depreciar esforços sinceros, ganhos materiais concretos, melhoria das condições de vida e dedicação militante. É justo o oposto; é para valorizar a militância e o trabalho intelectual comprometido que aqui escrevo.
Princípios da política e a acumulação de forças dispersa do partido de governo
Antes de nada, é preciso voltar ao básico da política e a analogia com as ciências do conflito ou da guerra. Uma agrupação política, partido, corrente, movimento, coletivo, se aglutinado ideologicamente, deveria – tenderia ao menos – ser minimamente consequente com seus objetivos. E para tal, ao menos como forma de sobrevivência de seu próprio projeto coletivo, elencar inimigos estratégicos, apontar adversários táticos, demarcar um campo de alianças possível e outro desejável e criar caminhos ao longo da própria caminhada. Se observarmos o inimigo interno, o general Golbery do Couto e Silva afirmava – e praticava – uma premissa de que “o objetivo subordina ao método, segundo as condicionalidades”. Logo, é fundamental apontar a meta finalista, definir o objetivo estratégico e daí derivar em momentos táticos, com manobras de envergadura ou de posições cambiáveis. Na ausência deste debate, os tempos são imersos dentro da legalidade e institucionalidade burguesa, apenas e não apesar destas, e logo, invertem-se prioridades e mensurações. Óbvio que não se trata de coerência livresca, pureza estéril e menos ainda abstrações belicistas (com motivação classista ou anti-imperialista) que possam ganhar forma distante das sociedades concretas, fora do mundo realmente existente.
Especificamente, o projeto majoritário – e porque não, também o hegemônico – passara por momentos de legitimidade, ascensão, discurso lavado e agora está em xeque. Aponto aqui uma crítica, vejamos. Após a queda do muro de Berlim, o fim da Bipolaridade e do chamado “socialismo” real (preferia afirmar como capitalismo de Estado, e se me permitem o constructo, uma espécie de Estado Hobbesiano Distributivista), realmente a maior parte das esquerdas latino-americanas se encontra sem paradigmas. O mesmo se dá com o Partido dos Trabalhadores (PT), força política que se formara dentro de uma ideia reformista radical, mas que também nasceu plena de legitimidade, como que a expressão política dos renascidos ou nascentes movimentos sociais brasileiros do final da década de ’70.
O tripé movimento sindical (originalmente movimento operário), intelectualidade à esquerda e agentes pastorais orientados pela Teologia da Libertação formou, junto à presença de correntes de esquerda não stalinistas (ou ao menos, não assumidamente stalinistas), formou a base de um partido massificado e com acúmulo o suficiente para construir uma alternativa de poder em 1989, aprofundando o reconhecimento de direitos de quarta geração que constam na Constituição Federal de 1988. Podemos sem exagero, marcar os momentos de disputa presidencial como representações das fases da legenda como um todo. Um primeiro período foi da fundação em 1980 até 1989; o segundo da derrota para Collor, a formação de uma maioria interna, o aprofundamento da relação de dirigentes e chefes políticos, sendo esta fase de 1989 até 2002; a penúltima, o exercício de governo com o Poder Executivo compartilhado, de 2003 até a deposição temporária (no meu entender, através de golpe semi-parlamentarista) da presidente reeleita Dilma Rousseff. A fase atual, arriscando nesta periodização, não teria necessariamente iniciado através do golpe com apelido de impeachment, mas antes, na crise do modelo de governabilidade em 2013 e o arrefecimento tanto da extrema esquerda (primeiro), como das manobras de massificação conservadoras (depois).
Vamos tomar como uma razoável definição de meta de longo prazo do partido de governo fazer do Estado brasileiro um complexo conjunto de instituições e aparelhos públicos, atuando a ação estatal de forma pública. Assim, tornar público o aparelho de Estado e lutar através de um conceito de hegemonia difusa, também trabalhando por um novo consenso político-cultural na sociedade, um ponto de chegada necessário para transformar as relações sociais no país. Digo que, do ponto de vista da legalidade, chegamos perto dessa meta. Se tomarmos a Constituição Federal de 1988, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente, das Cidades, o conjunto de leis ambientais, e as interpretações do Judiciário até pouco tempo atrás, tínhamos, ao menos parcialmente, esferas desta contra-hegemonia dentro de importantes instituições de Estado. A “luta de posições” se justificaria assim, sem levar em conta o médio prazo, que dirá o longo prazo, e absolutamente ignorando o fato de que os limites da democracia formal (liberal-democrática) são mais curtos na América Latina do que na Europa.
Em 2013, antes da ascensão dos protestos massivos em escala nacional, passando após pela sua captura parcial pelos conglomerados de mídia – especificamente em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília – havia um debate bastante diminuto no Congresso Nacional apontando para a necessidade de uma reforma política. A proposta, originalmente do deputado federal Henrique Fontana (PT-RS), trazia importante elementos, e um que poderia virar o jogo político (ver neste link: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/439530-PRINCIPAIS-PONTOS-DA-PROPOSTA-DE-HENRIQUE-FONTANA.html)
O item deste debate, que não fora sequer pautado em nível nacional, permitia um aprofundamento da democracia participativa. O tema em si vale toda uma série de artigos, mas ressalto que este seria o momento devido para, em ano ímpar e ainda distante do cenário eleitoral, o partido de governo e seus aliados de centro—esquerda, não se pusessem contra as agrupações e partidos de esquerda e extrema-esquerda e sim compreendessem a gravidade do momento. Ora, se há reconhecimento nos limites concretos das instituições liberal-democráticas na América Latina, se o modelo econômico do lulismo estava fazendo água, se não havia acumulação necessária para aplicar a Nova Matriz Econômica – e de fato a taxa Selic volta a subir na mesma proporção da queda da popularidade de Dilma – e o consenso político-cultural estava intacto em função do controle dos meios de comunicação de massa (devido também à inação do PT) – seria necessário, ao invés de renovar o pacto de elites, tentar aprofundar a luta por direitos coletivos, mesmo que atropelando governos municipais e estaduais correligionários ou alinhados ao Planalto de então.
Obviamente foi feito tudo ao contrário, e a reforma política que sequer fora ao plenário antes de junho de 2013, após, era apresentada como o “bode na sala” pelos estrategistas da governabilidade. Não há, e não havia na época tampouco, modelo de acumulação de forças e continua havendo uma subestimação do nível ideológico da luta popular. No plano acadêmico, teses e laudas sem fim apostando na “estabilidade do sistema político brasileiro” não resistiram a uma investida bem feita pelo andar de cima pós-colonial, com o aval da mídia hegemônica e o empurrão do Império como de costume. Como se dizia quando era pensado um projeto de poder: sem teoria não há sequer possibilidade, sem organização não há como fazer a aposta teórica e sem a base social necessária, nenhuma das necessidades anteriores é realizável.
Apontando a conclusão óbvia
Como a governabilidade estava fiada no pacto conservador do lulismo e no jogo do ganha-ganha e, como o modelo de primarização de nossa economia aumenta a dimensão da dependência interdependente de preços marcados em outros centros de poder, simplesmente a base social da reeleição ruiu. Já venho afirmando aqui o nível conspirativo do golpe, o acionar das direitas mais ideológicas, o papel dos EUA e dos ultra-liberais. Mas, nenhum destes fatores impede a crítica quanto à ausência de projeto de poder uma vez conquistada, mais uma vez, a reeleição.
Na ausência deste e na inflexão ainda mais à direita do segundo governo Dilma Rousseff, com direito a austericídio e ministro da Fazenda Chicago Boy, estava aberta a porteira para uma aventura política reacionária alimentada pela Operação Lava Jato. Também é certo que a estrutura necessária para um projeto de poder passa pela democracia interna combinada com a coesão de centenas de quadros médios. Houve, e há justamente o oposto.
Precisamos debater de forma franca, mas dura o tema do finalismo, da necessidade de um projeto finalista e dos limites institucionais reais – e não formais – da democracia indireta e representativa em nosso Continente. Do contrário, caso este tema não seja seriamente debatido e sem acusar o inimigo por se portar como tal, teremos outro ciclo de ilusões pelos próximos quinze ou vinte anos, até resultar em novo retrocesso e assim seguiremos na sina latino-americana.
Bruno Lima Rocha é professor de ciência política e de relações internacionais
(www.estrategiaeanalise.com.br / blimarocha@gmail.com – para E-mail ou Facebook)
 

No rastro da nova-velha direita e o giro reacionário do senso comum brasileiro – 1

bruno_KQBruno Lima Rocha*
Introdução
Neste primeiro artigo, inicio uma breve série tentando mapear a nova (velha) direita. O objetivo deste e dos textos que seguirão é tentar identificar a origem contemporânea do giro reacionário do senso comum brasileiro e suas similitudes com o conservadorismo dos EUA, e, por consequência, a transferência do léxico, do glossário e das identidades políticas gestadas no interior do sistema político do Império. Entendo que, se identificarmos os focos domésticos e internacionais do pensamento conservador, reacionário, ultraliberal e com laços neofascistas, estaremos aptos a tentar estancar o que venho afirmando como “fedor de linha chilena” tendo vasto crescimento no Brasil.
A ascensão do reacionarismo nos últimos dez anos: a aliança entre neopentecostais e a extrema direita militar e policial 
O Brasil vive um momento de ascensão de ideias conservadoras, a maior parte destas transitando pelo ultraliberalismo, podendo ser rastreada esta linha como equivalente às da direita do Partido Republicano (ou seja, a extrema direita de corte neoliberal) e combinadas com o pensamento conservador, ou do pacto neoconservador. Este que se avoluma nos EUA a partir da vitória de Richard Nixon em 1968, reforçada com a Doutrina Reagan e a desregulação financeira – primeiramente em 1973 e depois, ao longo dos anos ’80 do século XX – e por fim, ganhando dimensões absurdas, durante o primeiro mandato do governo democrata de Bill Clinton (1993-2000). A nova direita republicana já constava na convenção deste partido quando George H. W. Bush (Bush pai) era considerado, para a constelação política conservadora do período, como o menos mentecapto dos pré-candidatos da bolha conservadora para a Casa Branca. Da corrida eleitoral no Império, em 1992, passando pela famigerada reeleição de Bush Jr. Em 2004, até a nova onda de golpes brancos na América Latina temos como identificar a transferência da identidade política estadunidense para nosso país.
No Brasil, somos atingidos pela combinação dos neoconservadores no comportamento – uma espécie de reação contra a ação afirmativa e os direitos de reconhecimento – e a primazia do capital financeiro e a cruzada dos neoliberais contra o pacto keynesiano que atinge o Brasil durante o lulismo. Esta soma, bastante explosiva, tem na classe média brasileira, e em sua classe média alta, um bastião mobilizado através das redes sociais e que pode ter ou não algum contato com o fascismo brasileiro na versão contemporânea.
É como se fosse um jogo com rodadas simultâneas, onde os reacionários no comportamento somam viúvas da ditadura e por vezes se encontram nas pautas programáticas de inspiração totalitária e obscurantista, como a famigerada “escola sem partido”, ou campanha contra a doutrinação nos aparelhos ideológicos de reprodução. Por vezes os ultraliberais se encontram, domesticam as “feras” medievais brasileiras, e noutras, de forma autônoma, operam como “cavalo de batalha” da agenda neoliberal de desmonte das capacidades de intervenção estatal na economia capitalista e na regulação do agente econômico por sobre a vida cotidiana.
Podemos identificar os movimentos ultraliberais como as empresas de marketing digital, a exemplo da empresa líder, o Movimento Brasil Livre (MBL). Tais instituições privadas respondem ao agendamento da Fundação Koch (charleskochfoundation.org) e da Rede Atlas (atlasnetwork.org) e demandam um texto específico, ainda nesta série. Já quanto ao neofascismo brasileiro, este é manifesto pelo líder caricato embora perigoso, deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e sua aliança com as estruturas do pastor Everaldo (Assembleia de Deus em Madureira) e o deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP,que comanda uma matriz autônoma e dono da rede de franquias da fé, o Ministério Tempo de Avivamento). Estes dois operadores político-religiosos de matriz econômica (no mercado da exploração da fé) se aproximam, afirmo, perigosamente, de um programa ultraliberal (vinculando seu programa ao do Tea Party), com as viúvas e viúvos da ditadura – tendo a bandeira do reconhecimento dos torturadores e repressores como “heróis nacionais” – e um culto ao revanchismo da linha dura diante da transição negociada comandada por Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva.
Ainda mais obscena é sua liderança ideológica, com o ainda mais caricato e lunático astrólogo Olavo de Carvalho. Este pregador virtual, mescla um libelo em defesa da “civilização judaico-cristã” para fortalecer ambas as posturas acima narradas – neopentecostal e de extrema direita policial militar. A pregação anti-esquerda e anti-latinoamericana do “professor” Olavo de Carvalho, produzindo demências por internet a partir do estado da Virgínia (EUA), surpreendentemente traz consigo centenas de milhares de seguidores. Olavo é em si mesmo a síntese desta perigosa caricatura da nova direita brasileira, e sua pregação de “escola sem partido”, onde afirma que a doutrina se diluiu no comportamento pregado em sala de aula ao ponto de sequer ser explicitada. Ou seja, se a acusação for válida, então o comportamento orientado pela técnica a serviço do mundo do trabalho controlado pelo capital, é a única válida. O fascismo social existente nestas afirmações está na moral conservadora, na negação do outro (ausência de alteridade), na afirmação da norma “ocidental” (judaico-cristã, capitalista, conservador, heteronormativa) como valor único e na disposição para gerar o caos para que deste surja um novo sentido de ordem.
Uma consequência tangível do revigoramento das viúvas da linha dura
É este tipo de demência, retroalimentada pelos programas policialescos e editoriais reacionários de TV aberta – comandados por gente como José Luiz Datena e Raquel Sherazade – acaba por ter dois efeitos políticos simultâneos. Um aponta para a redução da maioridade penal e uma defesa da violência estatal sem questionar o falido e corrupto modelo de polícia brasileiro. O outro foi visto de forma estarrecedora na defesa da intervenção militar ou a volta da ditadura. Tais defensores da ditadura afirmam que todo o pensamento de esquerda – mesmo o de centro-esquerda -, em última análise, não seria compatível com a democracia parlamentar e estaria o tempo todo promovendo a luta ideológica para controlar instituições reprodutoras dos aparelhos centrais – como escolas e universidades – e assim aplicar uma visão de mundo centrada na luta social e no coletivismo. A direita considera isso uma espécie de “totalitarismo” e chega a aceitar a possibilidade de que, na ausência de ordem pública, tenhamos uma intervenção militar (o texto constitucional, no seu artigo 142, tem realmente alguma leitura passível de controvérsia). Neste sentido, ao negar a possibilidade de que qualquer pensamento de esquerda possa conviver em democracia parlamentar e na concorrência pelo poder do Estado burguês, há similitude na análise dos ultraliberais e da extrema direita policial e militar. Daí viria à convergência destas duas formas de pensamento na defesa da suposta “escola sem partido” e de absurdos como o “ensino neutro das ciências humanas e sociais”. Se observarmos a movimentação dos apoiadores de Bolsonaro nos campi da UFRGS, estes afirmam que “a universidade não é um espaço para lutar, mas somente para estudar”. Repetem de forma bastante concreta um dos lemas da ditadura, “estudante estuda e trabalhador trabalha”, aplicando uma fórmula de obediência social cuja única forma de mobilidade seria através da acumulação de capital ou na seleção “meritocrática”.
Mesmo observando que não há nenhuma exequibilidade por parte das Forças Armadas em fazer nada parecido como intervenção militar constitucional, há um ponto de convergência. O governo “interino” – no meu entender, golpista – trouxe o retorno dos militares GSI (Gabinete de Segurança Institucional) e o seu comando a cargo do general de exército (da ativa, quatro estrelas) Sérgio Westphalen Etchegoyen. Esta medida, além de apontar um enlace do presidente golpista Michel  Temer com a ala mais reacionária da Força Terrestre na ativa, seria uma espécie de acerto de contas com a Comissão da Verdade. Esta fora uma tímida comissão e cujo relatório final foi bastante criticado por militantes históricos dos direitos humanos. Mesmo assim, ao mencionar o nome do general Leo Guedes Etchegoyen como um dos 377 agentes do Estado diretamente responsáveis por crimes contra os direitos humanos, atiçou o grito de “revanchismo” por seu filho, general da ativa que ocupava desde março de 2015, o importante cargo de chefe do Estado-Maior do Exército.
Ao se manifestar contra a Comissão da Verdade mesmo estando na ativa, o general Etchegoyen abrira um perigoso expediente. Sua indicação para o cargo de ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional termina soando como um reforço das viúvas da caserna, aproximando-os dos militares da reserva que têm discurso de mágoa em relação ao período pós-Anistia.
* Bruno Lima Rocha é professor de ciência política e relações internacionais.
(www.estrategiaeanaliseblog.wordpress.com / blimarocha@gmail.com para e-mail e Facebook)
 

Golbery: neto fez 102 votos, mas avô está mais vivo do que nunca

O reproduz abaixo artigo do jornalista Luiz Cláudio Cunha publicado originalmente no Observatório de Imprensa, em 2011. Antes, reportagem de Evandro Éboli, de O Globo, que entrevistou o candidato Golbery Neto sobre sua votação inexpressiva nas últimas eleições.

Impulsionado pela imagem negativa dos políticos e no contato diário com as demandas da população fluminense, Golbery do Couto e Silva Neto, de 41 anos, justificou assim sua entrada na política. Ele foi candidato a deputado estadual no Rio, pelo Democratas, o DEM, em outubro. Seu desempenho nas urnas, porém, deixou a desejar. Ele obteve apenas 102 votos e, entre os 1.846 postulantes a uma das vagas, terminou em 1.430º lugar. Neto do general Golbery do Couto e Silva, criador do Serviço Nacional de Informações (SNI) e considerado o ideólogo da doutrina de segurança nacional, Golbery Neto colou a imagem do avô na sua campanha eleitoral. Não aleatoriamente, escolheu como número de campanha 25.064. O 64 não está ali à toa.

— A escolha do número foi uma alusão ao que ocorreu a partir de 1964. Acho esta história bastante deturpada — explicou Golbery Neto.

No seu material de campanha, além do número com o qual concorreu, há uma foto sua e outro do avô. Seu slogan para conquistar os eleitores foi: “Para retomar os rumos do progresso”. Neto justifica a escolha do DEM para se lançar na política.

— Meu avô fez parte dos quadros do PDS. Por uma questão de coerência política me filiei ao DEM. Poderia ser o PP.

O candidato atribui sua baixa votação a questões burocráticas —a candidatura “demorou para se consolidar” — e à falta de doações (“não houve campanha efetivamente”). E reconhece:
— Estes fatos mostram o motivo do resultado da votação, que ficou longe de ser expressivo — disse.

Golbery Neto, que é filho de Golbery do Couto e Silva Júnior, já falecido, rejeita atribuir sua baixa votação à associação de seu nome com os fatos de 64 e o papel de seu avô no regime militar.

— Objetivamente, não tem relação. O deputado federal mais votado do Rio foi o Jair Bolsonaro (PP), que defende visceralmente tudo que se relacione com aquele episódio. Menos a abertura.
Para confrontar a versão de que Golbery do Couto e Silva foi o “mentor do golpe de 64”, o neto prepara um livro em defesa do legado do avô.

— Golbery, e parte dos militares com o qual trabalhava, queriam esperar o fim do governo de João Goulart para que novas eleições fossem procedidas… O país estava em pânico com a administração inconstante do senhor João Goulart — disse Golbery Neto, que é formado em Ciências Sociais e Relações Internacionais. Ele trabalha numa empresa de importação e exportação.
Ter exatamente o mesmo nome do avô já lhe causou dissabores no dia a dia. Mas ressalta que ouve críticas e elogios.

— Acho natural que isso ocorra. Nos tempos de universidade era mais intenso. Um ambiente acadêmico sempre aponta para um embate ideológico mais acirrado. Rapidamente percebi que a melhor resposta que poderia dar naquela situação era o trabalho. Alcançando boas notas passei a ser respeitado pelos professores e por meu colegas. Mas, na maior parte, sempre vi meu avô ser tratado como um dos homens mais sérios, cultos, honestos e competentes do país. (Evandro Éboli, em O Globo)

Jornalista revela quem foi Golbery

Luiz Cláudio Cunha*
“Me sinto extremamente ofendido, com o artigo do Sr. Luiz Cláudio Cunha. Em parte pela infantilidade que entorta os fatos rumo ao que se deseja, ou seja: Demagogia. Em parte pela covardia de ofender o caráter de quem já não pode mais defender-se. Obrigado. (Golbery do Couto e Silva Neto, e-mail ao Observatório da Imprensa, 9/9/2011)

General Golbery, em 1980
General Golbery, em 1980

O sr. Golbery Neto, compreensivelmente, não gostou do que foi publicado neste Observatório (ver “Golbery: benfeitor em Rio Grande, malfeitor no Brasil“) sobre o avô. Gastou quatro linhas e 44 palavras, sem nenhum argumento, para tentar desqualificar um texto de 221 linhas e 2.552 palavras calcado em fatos e na ficha do general gaúcho, inventor do golpe de 1964 e prestes a ser homenageado com um monumento em sua terra natal, Rio Grande.

Quase nada se sabe do neto, que diz residir no Rio de Janeiro e se identifica profissionalmente como ‘internacionalista’, seja lá o que isso possa significar. Mas muito se sabe do avô, que, aliás, sabia muito mais. Sabia quase tudo sobre todos nós, como criador e chefe primeiro do SNI, o Serviço Nacional de Informações que bisbilhotava a vida dos brasileiros em geral, e dos opositores em particular. A vida pregressa de Golbery do Couto e Silva (1911-1987) ganhou súbita atualidade em agosto passado, com a desastrada ideia dos vereadores e do prefeito de Rio Grande (RS) de homenagear o general no mês do centenário de seu nascimento, cravando um monumento na praça central da cidade.

A oferenda sangrou como uma estaca na memória dos brasileiros, especialmente dos gaúchos, que justamente nesse agosto festejavam o cinquentenário da Campanha da Legalidade – o movimento popular de 1961 liderado pelo governador Leonel Brizola em defesa da posse de João Goulart na presidência da República, vaga com a renúncia inesperada de Jânio Quadros.

A transição constitucional foi vetada pelos três ministros militares que leram um manifesto golpista redigido, ironicamente, pelo então coronel Golbery do Couto e Silva. Essa brutal contradição entre as poucas benfeitorias municipais e as muitas malfeitorias nacionais do general teve baixa repercussão na imprensa – com exceção de alguns blogs e opiniões isoladas, contra ou a favor – e nenhum eco entre os políticos brasileiros, desconectados com a coerência histórica e descomprometidos com a memória nacional.

O jovem prefeito de Rio Grande, Fábio Branco, de 39 anos, nem justificou a homenagem intempestiva: “Não vou fazer juízo da ditadura militar. Eu nem era nascido…”. O neto do general, talvez ainda mais jovem, também evita qualquer consideração sobre a obra política do avô, sob o infantil argumento de que seria “covarde” avaliar a biografia dos mortos. Sob este prisma obtuso, prefeito e neto se eximem, portanto, de julgar episódios como a escravidão e o nazismo ou de opinar sobre personalidades já finadas como Hitler, Stálin, Pinochet ou Médici.

Imprensa complacente
Esta omissão deliberada não contaminou os cidadãos mais conscientes, de Rio Grande ou não. Uma pesquisa online do jornal local, o Agora, mostrou que mais da metade (58,5%) da população discorda do monumento. Um abaixo-assinado na internetregistra mais de 1.600 assinaturas de todo o país condenando a homenagem. Indignados, movimentos de sindicatos, estudantes e populares de Rio Grande formaram uma Comissão “Ditadura Nunca Mais” e, na semana passada, entregaram às autoridades locais dois livros do jornalista Elio Gaspari: A Ditadura Escancarada foi ofertadaao prefeito sem juízo e A Ditadura Derrotada foi agraciada aos vereadores sem tino.

Nas duas obras, parte de uma magistral tetralogia de 2002 – portanto escrita quando o general, morto em 1987, já não podia mais se defender, para desencanto do neto – o feiticeiro Golbery refulge merecidamente como personagem central, dividindo a cena com o sacerdote Ernesto Geisel.

A mesma imprensa complacente de hoje com o passado tenebroso do general lembra muito a imprensa conivente de ontem com o general golpista de sempre. Golbery carrega na sua ficha a proeza de ter derrubado Jango duas vezes do poder. A primeira, em 1954, quando redigiu o manifesto de 82 coronéis e tenentes-coronéis que levou à demissão de João Goulart, então ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, criticado pelos militares pelo aumento de 100% do salário mínimo.

A segunda, dez anos mais tarde, quando depôs Jango da presidência da República no golpe vitorioso de 1964, resultado final de uma científica, pensada e cara conspiração civil-militar que juntou o grande empresariado nacional e multinacional com a direita dos quartéis sob a fachada do dissimulado IPES, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais. O coordenador do IPES, que deu em 1964 o troco no golpe frustrado em 1961 pela brava resistência dos seus conterrâneos gaúchos, era o incorrigível Golbery.

Seria útil que o jovem neto de Golbery aprendesse sobre os fatos da tortuosa carreira do avô lendo um livro, pelo menos um livro, o clássico1964: a conquista do Estado – ação política, poder e golpe de classe (Editora Vozes, 1981), do professor uruguaio René Armand Dreifuss (1945-2003).

Ali, em 814 páginas irrespondíveis, Dreifuss desentorta os fatos para revelar ao neto distraído, com documentos do próprio IPES, a lenta, gradual e segura conspirata do vovô Golbery para derrocar um governo democrático e botar no seu lugar uma ditadura de 21 anos sob o rodízio de cinco generais-presidentes – três deles (Castelo Branco, Geisel e Figueiredo) tendo o próprio Golbery como inquilino e feiticeiro-mor no Palácio do Planalto.

O IPES nasceu em novembro de 1961, três meses após a vitória popular da Legalidade – quando nem o prefeito de Rio Grande, nem o neto do general, haviam nascido. Parecia um inocente clube de homens de negócios. Entretanto, na sua face oculta, sob siglas e codinomes, o IPES concentrava a execução metódica de um pensado plano da burguesia nacional para combater de forma clandestina os seus três principais inimigos: o governo Jango, a aliança nacionalista do PTB e o comunismo, que aparentemente resumia tudo aquilo.

O braço político ostensivo do IPES de Golbery era o IBAD, Instituto Brasileiro de Ação Democrática, que apesar do nome tinha ligações com o MAC, Movimento Anticomunista, e com a organização da direita católica Opus Dei. O fundador do IBAD em 1959 foi o integralista Ivan Hasslocher, dono da Promotion, uma agência de publicidade que promovia o lobby do IBAD e seu braço parlamentar, a ADP – Ação Democrática Popular, um núcleo conservador de 160 parlamentares da centro-direita no Congresso Nacional reunido em torno da UDN, PSD e PSP. Segundo Dreifuss, a ADP tinha sua ação política patrocinada pela estação no Rio de Janeiro da CIA, a agência de inteligência americana focada em campanhas políticas e grupos de pressão.
Assalto sincronizado

Homens da mesma linha de pensamento e com igual propósito juntaram, a partir de 1962, as duas entidades: nascia o complexo IPES/IBAD, matriz ideológica e operacional da conspiração que daria o golpe e, depois, forneceria os quadros e dirigentes do aparato estatal que sustentou o regime militar. O IPES operava como centro estratégico e o IBAD, como uma unidade tática. O monstro crescia junto com a conspiração. Em 1963, os 80 membros originais do IPES pularam para 500. Eram sócios 26 dos 36 líderes da FIESP, a maior federação industrial do país. A entidade se espalhava pelas capitais do país.

A articulação dos empresários com os militares era feita pelo Grupo de Levantamento da Conjuntura (GLC) do IPES, comandado pelo general Golbery, que atuava sobre o I (Rio) e III (Porto Alegre) Exércitos. A “ordem de serviço com calendário” do GLC, que definia a estratégia de ação, tinha uma edição limitada de 12 exemplares, que não eram registrados nas atas do IPES. A equipe de Golbery distribuía nos quartéis uma circular bimestral mimeografada, sem citação da fonte, avaliando a atividade “comunista” no país, apontando o dedo para subversivos infiltrados no governo e mapeando suas ações.

Só no Rio de Janeiro o clandestino GLC de Golbery tinha três mil telefones ilegalmente grampeados. O grupo dirigente do general ocupava quatro das 13 salas que o IPES havia alugado no 27° andar do edifício Avenida Central, na Avenida Rio Branco, então o prédio mais moderno no centro da cidade. A conta do telefone era faturada em nome do general da reserva Henrique Geisel, irmão de Ernesto, futuro sacerdote no Planalto.

O GLC do vovô Golbery escrutinava a produção diária da imprensa do país, um total de 14 mil edições no ano, e produzia mensalmente cerca de 500 artigos, disseminados pelos jornais ou divulgados em forma de palestras. O Grupo de Atuação Parlamentar (GAP) do IPES tinha vergonha do que fazia. Proibia qualquer menção à sigla, que era camuflada como “Escritório de Brasília”. Ele coordenava a campanha anti-Jango na capital, mas quem aparecia publicamente era o IBAD e o fazendeiro baiano João Mendes, deputado udenista e líder ostensivo da Ação Democrática Parlamentar.

O plano era simples e mortal: o IPES de Golbery, por intermédio do IBAD e da ADP, emparedava o governo no Congresso, criando um beco sem saída parlamentar e um ponto morto do Executivo. A inércia legislativa levaria ao clamor popular pelo poder “moderador” das Forças Armadas, única instituição capaz de tirar o país daquele atoleiro fabricado pela conspiração urdida pelo general no Parlamento.

Neste trabalho era fundamental manipular a opinião da sociedade. Na dura expressão de René Dreifuss, “o IPES conseguiu estabelecer um sincronizado assalto à opinião pública” pela relação especial com os principais veículos da mídia nacional. O objetivo central do Grupo de Opinião Pública (GOP) do IPES era disseminar seus objetivos na imprensa falada e escrita.

Dissimulado, o grupo evitava o nome “opinião pública”, preferindo as expressões “divulgação” e “promoção”. José Luís Moreira de Souza, dono da Denison Propaganda, dizia que “conquistar a opinião pública” era a essência da ação política do grupo. O principal articulador do GOP era um ex-comissário de polícia, José Fonseca, que começou na vida como “tira” no 16° Distrito Policial de São Cristóvão, um subúrbio operário da zona norte do Rio, no réveillon de 1952.

Conspiração sem twitter

Em 1958, trocou a delegacia por um cargo de relações públicas da Light, a empresa americana de energia que se tornaria uma das líderes do IPES e da conspiração. Em 1963, um ano antes do golpe, o ex-comissário José Rubem Fonseca deu aos 38 anos seu primeiro tiro certeiro na literatura: lançou o livro de contos Os prisioneiros com o nome literário de Rubem Fonseca. O festejado autor de Feliz Ano Novo, A grande arte e Bufo & Spallanzani tornou-se nas décadas seguintes o maior contista vivo do país, ganhador em 2003 do Prêmio Camões, uma espécie de Nobel para escritores da língua portuguesa.

Outros destaques do GOP no Rio eram os jornalistas Glauco Carneiro e Wilson Figueiredo, este do corpo editorial do Jornal do Brasil.Em São Paulo, o GOP atuava com Geraldo Alonso, dono da Norton Propaganda, e nomes ilustres de O Estado de S.Paulo, como Ênio Pesce e Flávio Galvão. Contava ainda com Jorge Sampaio e Alves de Castro, os dois nomes centrais do Repórter Esso da TV Tupi, o equivalente ao Jornal Nacional da Rede Globo de hoje, patrocinado pela Esso do Brasil, membro importante do IPES do vovô Golbery.

Em tempos sem e-mail ou twitter, o GOP se valia da tecnologia da época: enviava milhares de cartas e telegramas e fazia chamadas telefônicas, antecipando em décadas o odiado telemarketing. Em novembro de 1962 chegava a três mil nomes a lista de organizações de rádio e TV mobilizada pelo GOP. Aliado a ele funcionava o GPE, Grupo de Publicações/Editorial, que disseminava material impresso pelo país.

Esta campanha de guerra psicológica era tarefa do ex-comissário e contista Rubem Fonseca, que incluía intelectuais respeitados como Augusto Frederico Schmidt, Odylo Costa Filho e Rachel de Queiroz, prima do general Castelo Branco, líder do golpe que derrubou Jango. Rachel foi presa no golpe do Estado Novo, em 1937, acusada de subversiva, e teve seus livros queimados.

Um quarto de século depois, a comunista de Fortaleza era uma intelectual engajada na equipe de propaganda de direita de Rubem Fonseca no IPES. O primo Castelo Branco, já ex-presidente, morreu num acidente aéreo em 1967 quando retornava de um passeio à fazenda da prima Rachel.

Os propagandistas do GOP atuavam em três frentes: artigos para jornais e revistas, panfletos para circular entre estudantes, militares e operários, e livros que comparavam a democracia com a empresa privada. Em comum, eram todos anticomunistas, antitrabalhistas e antinacionalistas – a tríade que embalava o cérebro do vovô Golbery. Nomes fortes do mercado editorial, como Saraiva, Cia. Editora Nacional e GRD Editora, colaboravam na publicação da chamada “literatura democrática”.

Balcão de deputados

A escolha dos candidatos agraciados com o apoio financeiro pelo IPES de Golbery obedecia a uma regra rígida, quase um contrato de compra e venda. Quem se habilitava a integrar a lista de “democratas convictos e anticomunistas de primeira ordem” passava pelo crivo dos analistas do complexo IPES/IBAD.

Mais importante do que a filiação partidária era a orientação das ideias. Cada candidato era compelido a assinar um “ato de compromisso ideológico”, pelo qual prometiam lealdade ao IBAD acima da fidelidade ao seu partido, prometendo ainda lutar contra o comunismo e a defender o investimento estrangeiro.

Mas a mercadoria custava caro. O chefe do GAP (Grupo de Ação Parlamentar) do IPES, o banqueiro Jorge Oscar de Mello Flores, avaliava os candidatos pelo coeficiente eleitoral. De início, ele calculava que cada deputado “custaria” cerca de 6 milhões de cruzeiros (cotação atual: R$ 317 mil), mas percebeu que esta seria a conta de nomes da Paraíba e outros Estados menores.
O preço aumentava no Ceará e ainda mais na Bahia. Os candidatos de Rio e São Paulo eram mais caros, explicou Mello Flores, avaliando a contaper capita dos deputados no balcão do IPES do vovô Golbery: 15 milhões de cruzeiros (cotação atual: R$ 792 mil).

O orçamento de um candidato pouco conhecido e de limitada agressividade eleitoral incluía despesas com equipamento de som, 40 mil cartazes, 600 faixas, fotografias, espaço em jornais, mensagens no rádio e TV, discos de jingle, gasolina, correspondência e pessoal de apoio… Tudo isso ao custo de uns 10 milhões de cruzeiros, o que não era pouca coisa. Dez milhões, que hoje valem R$ 528 mil, equivaliam então à renda diária de 20 mil trabalhadores de salário mínimo, número de votos atualmente suficientes para eleger vereador em capital.
O IPES de Golbery recebeu apoio financeiro de 297 corporações americanas. Passavam o chapéu entre empresas britânicas, suecas, alemãs. A Fundação Konrad Adenauer, órgão do Partido Democrata Cristão alemão, canalizava recursos pelo sólido complexo siderúrgico Mannesmann e pela gigante Mercedes Benz. O neto certamente não sabia, mas o vovô Golbery encarregou-se pessoalmente do contato com o presidente da Mercedes.

Grampo na Casa Branca

Os amigos do general estavam ativos, também, em Washington. Na segunda-feira, 30 de julho de 1962, o presidente John Kennedy entrou no Salão Oval e ligou pela primeira vez seu novo brinquedinho, instalado no fim de semana: o sistema secreto de gravação de voz da Casa Branca.

A estreia prometia: era uma conversa cabeluda de Kennedy com o seu embaixador no Brasil, Lincoln Gordon, parceiro de Golbery no caminho para o golpe militar que derrubaria João Goulart dois anos depois. Começava pelo gasto não contabilizado de US$ 8 milhões nas eleições de 1962, adubando secretamente candidatos apoiados pela CIA e simpáticos aos EUA.

A conexão americana do mundo político brasileiro com os militares golpistas era feita por outro amigo do peito de Golbery – o discreto adido militar da embaixada, coronel Vernon Walters, que chegaria a vice-diretor da CIA no auge do Caso Watergate que derrubou Nixon, em 1974.

A transcrição das fitas foi revelada no livro do jornalista americano Tim Weiner, Legado de Cinzas – Uma história da CIA (Ed.Record, 2008), outra leitura instrutiva que poderia iluminar a cabeça de Golbery Neto. Ela mostra, numa frase de Gordon para Kennedy, que o alvo central da conspiração era o mesmo de Golbery – o próprio Jango:

– Para expulsá-lo, se necessário – disse o embaixador, esclarecendo – O posto da CIA no Brasil deixará claro, discretamente, que não somos necessariamente hostis a qualquer tipo de ação militar, em absoluto, se ficar claro que o motivo da ação militar é…

–… contra a esquerda – completou o presidente Kennedy, dando o sinal verde para o golpe que aconteceria vinte meses depois.

Na véspera da eleição de 1962, a Promotion de Ivan Hasslocher, líder do IBAD, arrendou o jornal carioca A Noite por 90 dias, ao custo mensal de 2 milhões de cruzeiros (cerca de R$ 100 mil no câmbio atual) para propaganda direta. A revista Repórter Sindical também era operada pela entidade.

O órgão oficial do IBAD, Ação Democrática, circulava mensalmente com 250 mil exemplares e textos de gente graúda como o economista Eugênio Gudin e o líder udenista Aliomar Baleeiro. Era gratuita e, ainda assim, não tinha um único anúncio. No início de 1963, um manifesto de 500 profissionais de prestígio, organizados pelo Centro Democrático de Engenheiros, ligado ao IPES, foi publicado no Jornal do Brasil e em O Estado de S.Paulo.

Manifestos variados, todos “democráticos”, proliferavam na imprensa e eram retransmitidos pela dupla IPES/IBAD. Eles tinham uma agência de notícias, a Planalto, que redistribuía o material a 800 emissoras de rádio e jornais do país. Tudo gratuito, tudo pela pátria, tudo pela “democracia”. Um milhão de cópias da Cartilha para o Progresso, feita pelo IPES, exaltando os benefícios da Aliança para o Progresso do governo americano, foi encartada como suplemento da Fatos&Fotos, revista na época de grande circulação da Editora Bloch.

O extremista do Estadão

Num país de elevado analfabetismo, o esperto vovô Golbery percebeu a importância do rádio e da nascente televisão. O IPES gastou 10 milhões de cruzeiros para produzir 15 programas de TV para três canais diferentes. Eram entrevistas de questionários preparados pela entidade, com jornalistas de confiança e gente selecionada para responder sobre reforma agrária, custo de vida, democracia.

Estavam escalados nesse time alguns ilustres conterrâneos de Golbery, como o senador Mem de Sá (presenteado com a cadeira de ministro da Justiça no governo Castelo Branco), os deputados Daniel Faraco, Egydio Michaelsen e Raul Pilla, o prefeito de Porto Alegre Loureiro da Silva e o arcebispo dom Vicente Scherer.

Em 1962, o IBAD operava diariamente mais de 300 programas de rádio no horário nobre das principais cidades do país. A rede de mais de 100 estações ligadas a ele formava a “Cadeia da Democracia”, sob o comando do senador João Calmon, dos Diários Associados, que tinha o cuidado de ir ao ar no mesmo horário das transmissões do líder trabalhista Leonel Brizola, que derrotara Golbery um ano antes com a “Cadeia da Legalidade”.

O maior produtor de filmes comerciais do país, Jean Manzon, foi contratado por Golbery para produzir filmes como Que é a democracia, Deixem o estudante estudar, Uma economia estrangulada, Criando homens livres. Eram filmetes de 10 minutos, projetados antes do vibrante faroeste exibido nas matinês do interior do país, onde se espalhavam três mil salas de cinema.

Quando a plateia não aparecia, o cinema ia até o público. O IPES montou o projeto do “cinema ambulante” em caminhões abertos e ônibus com chassis especiais, que percorriam favelas, bairros populares e cidades distantes. Era um mutirão democrático: a Mesbla fornecia os projetores, a Mercedes Benz emprestava os caminhões e a CAIO montava a carroceria dos ônibus.

Na medida em que avançava a conspiração, crescia a presença militar sobre a base parlamentar. Era hora de sair do discurso para a prática. O IBAD cede seu lugar de destaque para outra sigla – a ESG, a Escola Superior de Guerra, de onde provinham Golbery e o núcleo fardado do golpe.

O novo complexo IPES/ESG alinhava 330 oficiais, de majores a generais de Exército, fazendo a ligação do mundo empresarial com os quartéis. Sempre sob a liderança do vovô Golbery, lá estavam nomes que, mais tarde, fariam parte do poder revolucionário, como ministros ou até presidentes. Orlando Geisel, Mário Andreazza e Walter Pires formulavam planos com Castello Branco, Ernesto Geisel e João Figueiredo.

Um grupo que Dreifuss nomeia como “Extremistas de Direita” juntava fanáticos anticomunistas com adeptos da modernização industrial conservadora. Curiosamente, o grupo era mais ligado ao jornalista Júlio de Mesquita Neto, expoente da “linha dura” paulista que pregava uma forte mensagem anticorrupção e contra a esquerda. Com Mesquita estavam seu irmão Ruy e os deputados Abreu Sodré e Paulo Egydio Martins, mais tarde governadores indiretos de São Paulo indicados pelos quartéis.

Os três ministros militares que Golbery transformou em locutores de seu manifesto no golpe frustrado de 1961 – o marechal Odylio Denys, o almirante Sílvio Heck e o brigadeiro Grun Moss – mandaram emissários da conspiração a São Paulo para um encontro, no início de 1962, com Júlio Mesquita Filho, a quem entregaram um documento sobre as normas que iriam orientar o governo militar após a queda de Jango. O grupo, integrado pelos generais Cordeiro de Farias e Orlando Geisel, foi mais explícito com o dono do Estadão: o regime discricionário teria de ficar no poder por pelo menos cinco anos.

Animado com a conversa, Mesquita chegou ao ponto de sugerir oito nomes para o futuro ministério revolucionário. Com o jurista Vicente Rao, advogado da mineradora americana Hanna, Mesquita chegou a fazer o rascunho de um Ato Institucional para fechar Senado, Câmara e Assembleias e cassar mandatos – o mesmo instrumento de força que a ditadura anos depois faria seu jornal engolir com o AI-5, na forma de versos e receita de bolo.

Ciência e violência

No Rio Grande do Sul, quartel-general do III Exército, a maior concentração de tropa terrestre do país e foco principal da resistência de Brizola na Campanha da Legalidade, dois terços da oficialidade já estavam engajados na rebelião. O coronel da Brigada Militar Peracchi Barcelos (PSD), eleito deputado pela máquina do IPES do general Golbery, tratava de sublevar a força pública do estado.

O general Armando Cattani – que comandou no período 1958-59 a poderosa 6ª Divisão de Exército em Porto Alegre, exatamente quando Brizola deixava a prefeitura da capital gaúcha para assumir o governo do estado – organizava grandes fazendeiros no interior do Rio Grande do Sul em unidades paramilitares que seriam acionadas na hora precisa do golpe.

O general Cattani era tão amigo do general Golbery que foi selecionado por ele para assumir como interventor a prefeitura de sua terra natal, Rio Grande. O posto ficou vago de repente graças à quartelada de março de 1964, que transformou a cidade portuária em “área de segurança nacional” e cassou o mandato do prefeito do PTB, Farydo Salomão, no cargo havia apenas três meses.

Não é a juventude, mas a alienação, que pode explicar o desconhecimento que o atual prefeito de Rio Grande e o neto do general têm sobre as violências praticadas pela ditadura de Golbery e seus comparsas nos primeiros dias do golpe exatamente na cidade onde ele nasceu.

Golbery, evidentemente, não tem nenhum envolvimento pessoal com as truculências na sua terra. Mas o general tem tudo a ver com o regime de força que permitiu esses abusos. Como porto e área estratégica no extremo sul do país, Rio Grande coordenava a repressão ali pela SOPS-RG, a Seção de Ordem Política e Social que unia forças do 6º Grupamento de Artilharia de Campanha (GAC) do Exército, o Batalhão de Polícia Motorizada, a Polícia Federal e a Polícia Civil, que cobriam seis municípios da região, de Pelotas a Chuí.

A SOPS era subordinada ao DOPS de Porto Alegre, onde brilhava o nome mais importante do aparato repressivo gaúcho, o delegado Pedro Seelig. Foi pelo Chuí que ele devolveu à ditadura uruguaia os ativistas Lilian Celiberti e Universindo Diaz, sequestrados em Porto Alegre em novembro de 1978 por um comando binacional da Operação Condor, integrado por agentes de Seelig e militares enviados por Montevidéu. A SOPS de Rio Grande e o DOPS de Seelig eram todos membros fraternais da “comunidade de informações”, gerenciada desde Brasília pelo SNI criado pelo grande-irmão Golbery.

O neto ainda não deve saber, mas as brutalidades do regime não poupavam nem os conterrâneos do avô. Um bom exemplo foi relatado por Leandro Braz da Costa, mestrando em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, num trabalho sobre repressão publicado este ano na Jornada de Estudos sobre Ditadura e Direitos Humanos, do Arquivo Público do Rio Grande do Sul.

O historiador ouviu em 2009 um inspetor lotado em Rio Grande, na década de 1970, na 7ª Delegacia Regional da Polícia Civil, dotada de celas especiais com pau-de-arara e choque elétrico para a prática de torturas. A sofreguidão por informações do preso excitava a criatividade, como revela o inspetor:

[…] quando o delegado exigia que obtivéssemos rapidamente uma confissão ou uma informação, tínhamos que apertar o cara ainda mais… levávamos o indivíduo vendado e sem roupa lá pra praia do Cassino, na madrugada. Daí amarrávamos as mãos e os pés dele com uma corda e entrávamos com ele no mar. Afogávamos o cara… contávamos a passagem de seis ou sete ondas e depois retirávamos ele da água. Repetíamos isso várias vezes, até quase ele não aguentar mais. Se mesmo depois disso ele não falasse nada, nós eletrocutávamos ele com os fios ligados no dínamo [do motor] do Opala. Isso sempre funcionava […]

Tortura no mar

Na terra de Golbery, o terror vinha do mar. Em 28 de março de 1964, três dias antes do golpe, o NHi Canopus (H22), um navio hidrográfico da Marinha de 1.800 toneladas e 78 metros de comprimento, concluiu seu trabalho científico de 30 meses para o levantamento da costa sul brasileira desde Torres até Chuí.

Missão cumprida, tomou o caminho de Rio Grande, onde ancorou ao largo do porto. Era comandado pelo capitão-de-fragata Maximiano da Fonseca, que na década de 1980 seria colega de ministério de Golbery, como almirante e ministro da Marinha do governo Figueiredo. Levava a bordo 116 tripulantes, um helicóptero e 14 cientistas. Mas, naqueles dias agitados dos idos de março, o barco abrigou uma carga inesperada: presos políticos.

Transformado em navio-prisão, o Canopus de Maximiano virou o cativeiro do prefeito cassado Farydo Salomão, ali submetido a torturas por ser amigo de Brizola e Jango. A violência é denunciada no livro Centenário do Colégio Lemos Júnior, escrito pelo jornalista Willy Cesar, riograndino como Golbery e que hoje defende o preito ao general. Outro depoimento, ainda mais forte, é do ex-capitão da Brigada Militar Athaídes Rodrigues, vereador e aliado do prefeito.

No dia 7 de abril de 1964, 50 homens cercaram sua casa e o levaram preso, ainda de pijama, num jipe que rodou pela cidade até chegar à Capitania dos Portos. Dali, o vereador trocou o jipe por uma lancha e foi transportado à prisão flutuante do Canopus, onde se juntou a vários ferroviários detidos, incluindo o presidente do sindicato, Miguel Gomes.

Incorporado à Marinha em 1958, seis anos antes do golpe, o Canopus sobreviveu ao regime, aposentando-se doze anos após a queda da ditadura, em 1997. Nesse período, passou 3.342 dias no mar e navegou mais de um milhão de quilômetros, o suficiente para 26 voltas ao mundo. A longa, impecável ficha funcional do Canopus ficou manchada, contudo, pelo desvio de rota ética que o imobilizou no porto de Rio Grande, abandonando por uns tempos a ciência das águas para lançar âncora na violência das mágoas políticas.

O navio-prisão na terra de Golbery era um resumo preciso do país-presídio a que Golbery e sua conspiração reduziram a terra dos brasileiros. O cativeiro temporário do Canopus em Rio Grande não era uma exclusividade do sul, mas uma fatalidade que se reproduzia em outras águas, em outras terras.

No maior porto do país, Santos, no litoral paulista, estava fundeado o caso mais notório de navio-prisão do país, o Raul Soares. Era um velho transatlântico alemão construído em 1900, comprado pelo Lloyd Brasileiro em 1925 e transformado em navio de carga e passageiro para a rota Santos-Manaus.

Faca para o bife

Quase duas vezes maior que o Canopus, com 125 metros de comprimento, o Raul Soarestinha 110 tripulantes e acomodação para 580 passageiros. Os 80 da primeira classe tinham cabine reservada, salão de jantar e orquestra a bordo com pista de dança.

Os outros 500 se acomodavam em redes e cobertas nos quatro porões, e comiam ali mesmo, disputando espaço com a carga – homens na proa, mulheres na popa. No espaço de dez anos, o Raul Soares navegou ao sabor das marés da história: serviu de prisão para os comunistas da fracassada rebelião de 1935 e trouxe para casa em 1945 os pracinhas da FEB que, aliados aos comunistas da União Soviética, derrotaram o Eixo nazifascista.

Em 24 de abril de 1964, o navio lúgubre de casco negro e uma enorme chaminé fumegante foi rebocado pela nova ordem militar até um banco de areia na ilha do Barnabé, em Santos. Cinco dias depois recebeu ali sua primeira leva de passageiros compulsórios: 40 sargentos do Exército que se opuseram ao golpe.

Outros mais – militares e civis, sindicalistas e suspeitos em geral – chegariam depois, num total de quase 500 presos políticos, todos sem processo legal, sem direito a cabine reservada, nem orquestra, nem pista de dança. Ousaram desafiar a partitura desafinada da ditadura e foram jogados como carga nos seus porões infectos.

O Raul Soares tinha três calabouços, batizados pelos presos com nomes de boates famosas da época. O “El Morocco”, um salão metálico sem janelas, ventilação ou luz ao lado da caldeira, tinha uma atmosfera irrespirável de mais de 50 graus. O “Night and Day”, colado à geladeira, era uma sala menor onde os presos ficavam com água gelada na altura do joelho.

O “Casablanca”, talvez o pior deles, era o depósito de fezes, onde a elas se misturavam os presos que precisavam ter a resistência quebrada, pela humilhação ou pelo mau cheiro. Este era o fedor institucional e jurídico emanado pela desordem militar manipulada no caldeirão malcheiroso do vovô Golbery.

Os detalhes escabrosos dessa história foram publicados em 1979 pelo repórter Mauri Alexandrino no jornal Preto no Branco, da Cooperativa dos Jornalistas de Santos. A desordem gerada pela prepotência da nova ordem foi percebida no dia em que 16 presos receberam uma boa notícia: haviam recebido habeas-corpus do juiz da 2ª Vara Criminal de Santos, Antônio Granda.

À noite, aliviados, embarcaram na lancha e deixaram para trás aquele inferno. Foram direto para a sala do capitão dos Portos de São Paulo, Júlio de Sá Bierrenbach, encarregado dos inquéritos policiais na área sindical e política. O capitão chamou a imprensa, autorizou fotos, dispensou os jornalistas e, a sós com os presos, avisou:

“Quero comunicar que vocês estão soltos. Agora que estão em liberdade, estou dando nova voz de prisão. Vocês saíram do processo da Aeronáutica, mas ainda não enfrentaram o da Marinha. Estou abrindo novo inquérito.”

Os soldados reconduziram os presos para a lancha que os devolveu ao inferno. Muitos deles choravam, afogados num sentimento que mesclava tristeza e ódio. Jornalistas só tinham acesso ao Raul Soares como prisioneiros ou pelo filtro rigoroso do servilismo. Certo dia, dois jornalistas da Gazeta de Santos, escolhidos a dedo pelos militares, foram convidados a visitar a prisão flutuante. Elogiaram muito os comandantes pelas “ótimas condições carcerárias” e, na edição do dia seguinte do jornal, lembraram-se de uma única queixa dos prisioneiros: “Não existiam facas para cortar os bifes”, anotaram.

Caneta e metralhadora

Um jornalista subiu a bordo a contragosto: Nelson Gatto, repórter policial dos Diários Associados, penou ali 43 dias encarcerado. Sobreviveu para contar seu martírio em 1965 num livro – Navio Presídio – que ninguém leu. Foi apreendido pelo DOPS antes de alcançar as livrarias. A Justiça mandou liberar, a Aeronáutica mandou apreender de novo. No Superior Tribunal Militar (STM), Gatto ganhou por 10 a 0, com voto do ministro Olympio Mourão Filho, o general de Juiz de Fora que botou os tanques na rua em 31 de março.

O movimento militar desfechado em nome da santa hierarquia se convertera, naqueles dias agitados, num constrangedor foco de subversão: os oficiais-generais da suprema corte militar do país mandaram liberar o livro, um reles oficial da Aeronáutica fez exatamente o contrário.

O coronel-aviador Francisco Renato de Melo invadiu a gráfica, recolheu toda a edição e a jogou no mar. Escapou um único exemplar. O coronel da Aeronáutica justificou assim a truculência: “Os juízes têm canetas, nós temos metralhadoras”. Em 1967, cumprindo a maldição do capitão Bierrenbach, Gatto foi preso novamente para responder sobre o livro que nunca circulou.

Os defensores de Golbery, sem a ingenuidade do neto, lembram sempre o seu papel na distensão e na abertura do regime executadas pelos dois generais – Ernesto Geisel e João Figueiredo – que lhe deram o longo reinado de sete anos como poderoso ministro da Casa Civil, entre 1974 e 1981. É verdade. No entanto, indulgentes, esquecem-se de dizer que Golbery estava também na outra ponta do processo político, fechando o ciclo democrático em 1964 e inaugurando uma ditadura que sobreviveria 21 anos.

A diástole que descontraía o sistema, segundo seu cardíaco pensamento político, foi antecedida pela contração da sístole. O general que comandou a sístole de 1964 não conseguiu pilotar a diástole de 1984, que acelerou com a hipertensão popular das multidões nas praças e avenidas das Diretas-Já e terminou com o surto de Tancredo Neves em pleno Colégio Eleitoral. Os amigos não lembram, e o neto não diz, mas é sempre bom repetir que o candidato de vovô Golbery no colégio era Paulo Maluf, confirmando sua teimosa vocação para estar sempre do lado oposto aos interesses populares.

Príncipes do bruxo

O teórico da “doutrina da segurança nacional” instaurou, por ardis, aparatos e artimanhas, uma rotina de insegurança pessoal que sacramentou o medo e a delação num país intimidado pela repressão e assustado pela síndrome da intriga, do grampo, da denúncia. Essa inclinação para o mal, como já deve ter suspeitado o jovem Golbery Neto, reforça a tese de que o avô tinha forte inclinação por dois príncipes – o de Maquiavel e o de Lampedusa.

O ardiloso general tinha a consciência da fortuna, a idéia romana de sorte, definida pelo gênio florentino como algo inevitável, que pode levar alguém ao poder ou tirá-lo de lá. Como se sabe, uma obsessão muito golberyana. E, como o autor de O Leopardo, o generaltentava “tudo mudar para que tudo ficasse como está”. A desastrada campanha de Maluf no Colégio Eleitoral mostra que Golbery tentava “mudar para preservar”, dando uma sobrevida civil ao regime militar que definhou como a aristocracia siciliana do século 19 desenhada por Lampedusa.
Maluf, na cabeça de Golbery, era o meio que justificava – ou adiava – o fim.

Golbery Neto provavelmente era nascido em 1977, quando o vovô Golbery cometeu sua derradeira bruxaria bem sucedida, o “Pacote de Abril”. Como de hábito, contra o povo. Sob o comando do sacerdote Geisel, o feiticeiro e meia dúzia de áulicos cozinharam uma sulfúrica emenda constitucional e seis decretos leis que, em resumo, dissolviam a vontade popular, um estorvo permanente aos planos de Golbery.

Fecharam o Congresso para ruminar em paz seus feitiços, cancelaram a eleição direta de 1978 para governadores, inventaram um monstrengo sem voto (o senador-biônico), ampliaram para seis anos o mandato do sucessor de Geisel e aumentaram o peso de Estados menos populosos e politizados no Congresso Nacional.

Era Golbery, de novo, num surto de Lampedusa.

Mito na granja

Dois anos depois vovô Golbery recrudesceu, cada vez mais assustado com o crescimento do MDB, que pela força do voto emparedava a ARENA, a sigla da ditadura. Era preciso mudar o quadro partidário, implodindo a frente oposicionista, para que tudo ficasse como estava.
A ARENA virou PDS (o povo não esquece) e o MDB virou um caco, rachado entre cinco legendas: o PMDB de Ulysses, o PTB de Ivete Vargas, o PP de Tancredo Neves, o PDT de Leonel Brizola e o PT de Lula. A fortuna do mago florentino sorria para o bruxo riograndino. O marido de Ivete, Paulo Martins, trabalhava com Golbery no Gabinete Civil.
Ivete, que tinha o apoio de Golbery para arrebatar o PTB das mãos de Brizola, foi chamada em 1979 à Granja do Ipê, residência do general em Brasília, para ouvir este satânico raciocínio do feiticeiro:
– Precisamos trazer o Brizola de volta para o Brasil, porque ele está se tornando um mito muito forte fora do país. É melhor que ele volte e dispute eleição, porque assim perderá prestígio político.
O ex-deputado federal Sinval Boaventura, um radical arenista mineiro, foi lá na granja conferir a ideia com Golbery. O general ampliou sua tese, apostando num nome:
–A estratégia é estimular a imprensa para projetar Luiz Inácio Lula da Silva, o Lula, um grande líder metalúrgico de São Paulo, uma liderança inteligente e expressiva. Ele precisa ser preparado para ser o anti-Brizola.
Todo esse prontuário de Golbery passou em branco pela grande imprensa, que não abriu espaço para a atrevida homenagem ensaiada em Rio Grande. Um historiador da terra, Chico Cougo, 24 anos, portanto bem mais jovem que o alienado prefeito de sua cidade, nasceu dois anos após a queda da ditadura. Nem por isso deixa de abastecer seu blogpara emitir seu juízo ferino sobre o conterrâneo general, alinhando textos inteligentes, devastadores numa série imperdível sobre “Golbery e a cidade surreal”.

Outra exceção à regra do silêncio é o jornalista e escritor Juremir Machado da Silva, que acaba de lançar o livro Vozes da Legalidade, tem programa na rádio Guaíba e coluna noCorreio do Povo, onde provocou:

“Rio Grande quer homenagear o ‘Rasputin’ nacional. Por que não uma estátua para os ministros militares que tentaram dar o golpe em 1961?… O mais incrível é que [o prefeito] Fábio Branco pertence ao PMDB, que se orgulha de ter combatido a ditadura… Resta uma hipótese radical: Branco quer expor Golbery às pombas da praça Tamandaré…”

A maior corrupção

Duas vozes expressivas da imprensa gaúcha discordam. Lasier Martins, âncora da RBS TV, o principal grupo de comunicação do sul, acha que a homenagem é parte da democracia. Indaga: “É tão difícil assim entender isso?”. É, é muito difícil entender, considerando que nenhuma democracia deve exaltar quem conspirou contra a democracia.

O experiente jornalista Érico Valduga, dono do Periscópio, um respeitado blog político do sul, acha que a homenagem “é uma questão local legítima” em que “a sociedade de Rio Grande preferiu ver no conterrâneo o governante que beneficiou a cidade com obras públicas importantes”.

Há dois graves problemas nesse raciocínio. A sociedade riograndina, pelo que se vê na pesquisa do jornal local, vê mais as malfeitorias nacionais do que as benfeitorias municipais, condenando como ilegítima a homenagem por maioria de quase 60%. A proposta ainda foi aprovada por menos da metade dos vereadores da Câmara, apenas seis em 13 representantes.

Valduga arrisca uma tese mais ousada para condenar os que se opõem ao louvor a Golbery: “É uma irresponsabilidade diversionista, que contribuirá para desfocar as lutas contra a corrupção”. O jornalista esquece que não há maior exemplo de corrupção do que um golpe que fecha o Parlamento, castra a vontade popular pelo veto ao voto, cassa mandatos políticos, censura, prende, tortura e mata, impondo ao país uma treva de 21 anos, consagrando a impunidade e estimulando a corrupção. Foi o louvado Golbery quem pensou esta irresponsabilidade que nos privou da democracia por duas décadas.

Nada mais diversionista.

O que espanta, de fato, não é a voz condescendente de alguns jornalistas, mas a afonia das principais lideranças do PMDB gaúcho, herdeiro do mais aguerrido e mais atingido MDB do país, que lutou e sangrou contra a ditadura gestada pelo general Golbery. O autor da proposta indecente é vereador do PMDB de Rio Grande, Renato Albuquerque, que viu seu PLV (projeto de lei de vereador) nº 93/2009 aprovado pela minoria da casa na sessão de 21 de dezembro de 2009. Cinco dos 13 vereadores estavam ausentes, só seis (menos da metade) aprovaram, contra dois votos.
O prefeito Fábio Branco, também do PMDB, apôs sua assinatura na lei nº 6.835 exatos dez dias depois, em 31 de dezembro, quando a cidade e o país, desatentos, só estão preocupados com o réveillon damadrugada. Cobrado pela homenagem ao general, o prefeito que veio ao mundo em 1972 evocou o calendário para se eximir de um juízo sobre a ditadura de 1964: “Eu não era nascido…”

Tributo à treva

Não se conhece nenhum juízo, qualquer manifestação pública ou privada das principais lideranças, dos nomes históricos do PMDB gaúcho – todos nascidos e crescidos bem antes das malfeitorias antidemocráticas de Golbery. O Congresso Nacional, três vezes fechado e pesadamente mutilado pelo golpe engendrado pelo general desde os idos de 1961, recebeu a decisão de Rio Grande com um atordoante silêncio. À esquerda e à direita, nenhum dos 513 deputados, nenhum dos 81 senadores emitiu uma palavra, um só discurso, um mísero aparte, a favor ou contra.
Do PMDB nacional não se podia esperar nada de mais. Afinal, o MDB velho de guerra que um dia foi comandado por gente como Ulysses Guimarães, Teotônio Vilela, Tancredo Neves, Alencar Furtado, Itamar Franco, Mário Covas, José Richa e Franco Montoro hoje é um PMDB rebaixado a gente como José Sarney (o último presidente do PDS, que o povo não esquece), Michel Temer, Renan Calheiros, Romero Jucá, Jáder Barbalho, Henrique Eduardo Alves, Newton Cardoso, por aí.

O alheamento do Parlamento a uma questão moralmente tão grave mostra o grau de desmemória a que se relegou a política brasileira, talvez o derradeiro legado do general Golbery para um país que não preza sua história e não consegue nem identificar os malfeitores da democracia.

O desastrado, debochado ensaio de louvor a Golbery do Couto e Silva no sul coincide com a criação de uma Comissão da Verdade em Brasília que, em tese, irá dissecar a obra mais monstruosa do general: a ditadura de 21 anos. Um país que se recusa a discutir um tributo infeliz ao mentor da mais longa escuridão da República pode estar, na prática, erigindo um mausoléu da decência, da justiça, da consciência política.

Golbery Neto, antes de se ofender com um simples artigo baseado na história, devia ler e estudar um pouco mais para entender a real dimensão de seu avô, um contumaz cérebro do arbítrio que deve ser conhecido, debatido e lembrado pelos brasileiros – jamais exaltado.

Afinal, se a omissão paralisa até a sociedade politicamente organizada, essa sanção moral ficará por conta dos pombos da praça Tamandaré.

* Luiz Cláudio Cunha é jornalista.

Benfeitor em Rio Grande, malfeitor no Brasil

O aziago mês de agosto do ano da graça de 2011 marcou a confluência de duas comemorações contraditórias: os 45 anos do afogamento sob torturas do ex-sargento do Exército Manoel Raimundo Soares e os 100 anos de nascimento do general Golbery do Couto e Silva.

Uma exalta a memória, outra ofende a história – uma ofensa com o beneplácito do silêncio cúmplice da imprensa.

Em 1966, ainda agosto, o cadáver putrefato do sargento veio à tona num dos afluentes do lago Guaíba que banha Porto Alegre, após 152 dias de tortura num quartel do Exército e nas celas do DOPS. Aflorou nas águas barrentas do rio Jacuí com os pés e as mãos amarradas às costas, marca brutal da tortura que estarreceu até o homem que, dois anos antes, iniciara o golpe que impôs a ditadura: “Trata-se de um crime terrível e de aspecto medieval, para cujos autores o Código Penal exige rigorosa punição”, indignou-se o general Olympio Mourão Filho, então ministro do Superior Tribunal Militar (STM).

O “Caso das Mãos Amarradas” ficou ali, boiando no medo viscoso de alguns, constrangendo a inércia de muitos, incomodando a consciência de todos. Apesar dos 20 nomes envolvidos na prisão, tortura e morte de Soares – dez sargentos, três delegados, dois comissários, dois tenentes, um guarda-civil, um major e um tenente-coronel do Exército –, o IPM foi arquivado sem que ninguém fosse denunciado. No último dia 26 de agosto, aniversário de sua morte, o sargento Soares foi lembrado em Porto Alegre com a inauguração de um monumento em um parque às margens do Guaíba de onde seu cadáver emergiu para a história.

A viúva, dona Elizabeth, abriu um processo em 1973 contra a União pedindo indenização por danos morais. Sucessivamente, nos últimos 16 anos de presidência dos democratas Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, a União recorria teimosamente da sentença para defender os assassinos da ditadura.

Dona Elizabeth morreu no Rio de Janeiro em 2009, aos 72 anos, com as mãos amarradas pela impunidade e o coração sangrado pela amargura – ainda sem saber o nome dos assassinos do marido, sem ser indenizada pelo Estado que o matou, sem ver a homenagem tardia ao sargento, trucidado aos 30 anos de idade.

O repúdio da terra

No domingo anterior, 21 de agosto, uma cerimônia parecida resgatou a lembrança de outra ilustre figura, morta em 1987: o mentor da ditadura que supliciou e assassinou o sargento, o general Golbery do Couto e Silva, nascido exatamente um século antes em Rio Grande, o porto mais importante do extremo sul do país.

O prefeito da cidade, filiado ao PMDB bastardo que nada lembra o MDB velho de guerra que combateu o regime militar, plantou na praça Tamandaré a pedra fundamental de um busto em honra ao filho ilustre, conterrâneo do almirante e patrono da Marinha.

A mais alta autoridade militar no ato da praça era um major da guarnição local, o 6º GAC (Grupo de Artilharia de Campanha). Nem o comandante, um tenente-coronel, apareceu por lá. Era a terceira tentativa de homenagear Golbery na sua terra natal: as duas anteriores, para dar seu nome a uma rua, foram negadas pelos vereadores. Até que, no Natal de 2009, o projeto do busto foi aprovado na Câmara local com um único voto contrário.

O pequeno diário de 16 páginas da cidade, Agora, nasceu em setembro de 1975, quando Golbery estava no auge de seu poder como chefe do Gabinete Civil do general Ernesto Geisel. O editorial do Agora que defendia a homenagem, sob o título “Dívida de gratidão”, relacionava alguns benefícios que o general trouxe para sua terra: mudou para lá a sede do 5º Distrito Naval, antes baseado em Florianópolis, defendeu a construção do sistema que capta água do canal de São Gonçalo, facilitou a pavimentação de uma avenida e ruas do bairro Cidade Nova. Apesar disso, dois de cada três habitantes da cidade não são nada gratos a Golbery.

Uma pesquisa onlineno site do jornal, perguntando aos leitores se concordavam ou não com a homenagem, mostrava no domingo (4/9) que Golbery é mais detestado (67,55%) pelo envolvimento com a ditadura do que louvado (32,45%) pela mera condição de riograndino. No fim de semana, mais de 900 pessoas já haviam firmado um abaixo-assinado virtual contra o general, a ser entregue ao prefeito de Rio Grande (ver aqui).

Estrutura gongórica

O busto de Golbery na maior praça do interior gaúcho, com 44 mil m², um terminal rodoviário, uma pracinha infantil e um minizoo, vai dividir espaço com figuras ainda mais famosas: as hermas de Napoleão Bonaparte, Guglielmo Marconi, Marquês de Tamandaré e Jesus Cristo e os restos mortais do general Bento Gonçalves, líder da Revolução Farroupilha (1835-1945).

Haverá quem considere justa a homenagem a Golbery como benfeitor de Rio Grande. Mas muitos, muitos mais, têm justa razão para lembrar de Golbery como malfeitor do Brasil.

Basta compulsar sua atribulada ficha militar, com uma sádica inclinação pelo mal, pelo conluio, pela trama, pelo ardil, pela conspiração contra a lei, o direito e a Constituição. Golbery tinha um especial fascínio pela manipulação das pessoas certas para fazer as coisas erradas de uma forma inteligente, um talento na hora certa para fazer a coisa errada, uma habilidade que induzia o bem para o mal e dava a uns e outros a errada e útil convicção de cometer o erro como se acerto fosse.

Um típico circunlóquio, uma perífrase, que lembra bastante a parábola do poeta grego Arquíloco, do século 6 a.C., usada pelo pensador inglês Isaiah Berlin no seu famoso ensaio sobre O porco-espinho e a raposa. Ensinava: “A raposa sabe muitas coisas, mas o porco-espinho sabe uma grande coisa”. Golbery pescou este ensinamento e o cravou na conclusão do segundo capítulo (“Aspectos Geopolíticos do Brasil, 1959”)de seu perifrásticoGeopolítica do Brasil, uma seleta de ensaios de sua gongórica estrutura mental, juncada de mapas, esquemas, hemiciclos, geistória, ecúmenos e outras esquisitices.

Os verdadeiros inimigos

Contrariando seu próprio mito, Golbery parecia menos a raposa e mais o porco-espinho. Ele, ao contrário dela, vê o que é essencial e ignora o resto, desprezando a complexidade em torno para concentrar a mira no objetivo central. No mundo bipolar da Guerra Fria do pós-guerra, Golbery enrolou-se cuidadosamente em seu anticomunismo, escolheu o lado e apontou todos os espinhos para a cruzada de salvação que embolou o estamento militar e a elite empresarial numa esfera redonda, pontiaguda e ideologicamente coesa na luta contra o inimigo comum. Como na fábula, e apesar da felpuda astúcia dos inimigos, o porco-espinho de Golbery sempre vence. Como venceu, na maioria das vezes, nas duas espinhadas décadas da ditadura instalada em 1964.

Diferente do tosco sargento afogado no rio Jacuí, o general que emergia no Rio Grande era, desde criança, uma cabeça privilegiada, voraz, ardilosa. Golbery queria saber uma grande coisa, como o sabido porco-espinho, mas também queria saber muitas coisas mais, como a raposa astuta. Com 11 anos era o orador da turma da escola municipal num discurso na capela da igreja da Conceição, em 1922, pedindo a recuperação de Ruy Barbosa, adoentado no Rio. Com 14 anos já tinha lido a maioria dos clássicos da literatura portuguesa. O boletim na escola brilhava com notas 9 e 10 em matemática, português, línguas, ciências.

Com 15 anos ele se formou em ciências e letras no ginásio, exibindo a melhor média da história do colégio: nota 9,3. Aos 16 ingressou na Escola Militar do Realengo, no Rio. Aos 18 o cadete Golbery já era o redator-chefe da Revista da Escola Militar. Em meados de 1929, o precoce conspirador afiava os espinhos no texto principal da revista, intitulado “Antimilitarismo”, avisando:

“Não é caso inédito o fato de batalhões e regimentos e de guarnições de navios de guerra empunharem armas contra o Governo e de mesmo haverem, ao lado dos revolucionários, deposto um chefe de Estado e eleito outro. Os partidários políticos da oposição a um governo não são, propriamente falando, antimilitaristas. Os verdadeiros inimigos das classes armadas são, de fato, os anarquistas e a maior parte dos socialistas”.

Do nazismo à ditadura

Com 19 anos chegou a segundo-tenente e deixou Realengo na crista de sua primeira revolução, a de 1930, como aspirante da primeira turma da nova ordem. Com 33, o capitão Golbery ingressou na War School de Fort Leavenworth, no Kansas, por onde anos antes passaram os generais Eisenhower e Patton, heróis da Segunda Guerra Mundial. No final do ano estava no front italiano da guerra, com a FEB, fazendo o que gosta como oficial de inteligência e informações. O capitão que lutava contra o nazismo, em 1944, mudaria de lado duas décadas depois, como coronel, para implantar a ditadura de 1964.

Os graves desvios de conduta de Golbery, contudo, começaram dez anos antes. Em 1954 redigiu o manifesto de 82 coronéis e tenentes-coronéis que protestavam contra o aumento de 100% do salário mínimo decretado por Getúlio Vargas. A primeira subversão de Golbery acabou derrubando João Goulart do Ministério do Trabalho e o general Ciro do Espírito Santo do então Ministério da Guerra.
Em 1955, nova insubordinação: Golbery escreve o discurso que o coronel Jurandyr de Bizarria Mamede lê no enterro do general Canrobert Pereira da Costa, líder da oposição militar a Getúlio. É a senha para tentar barrar a posse de Juscelino Kubitscheck, que Golbery espicaça como “indiscutível mentira democrática”.

Ganhou espinhosos oito dias de cana por conta do marechal Lott, o ministro da Guerra que abortou o golpe. Em 1961, o teimoso porco-espinho de Golbery reaparece no texto bicudo em que os três ministros militares – ébrios pelo bafo inesperado da renúncia de Jânio Quadros – tentam vetar a posse de João Goulart, detonando a resistência popular em torno do governador Leonel Brizola e a vitoriosa “Campanha da Legalidade”, que festejou meio século agora em agosto.

O pai do monstro

A raposa de Brizola, daquela vez, venceu o ouriço de Golbery. O troco viria três anos depois. Em menos de 90 dias, Golbery já aprontava de novo, assumindo no final de 1961 a conspiração científica do golpe em andamento, pilotando o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, o notório IPES, que coordenava empresários, jornalistas, políticos, sindicalistas, agitadores, marqueteiros e militares a partir de 13 salas do 27º andar do edifício Avenida Central, no centro do Rio de Janeiro.

No início de 1963, o aparelho subversivo de Golbery já mobilizava 320 dos maiores empresários, de famílias tradicionais do país a poderosas corporações estrangeiras. Era um cartel golpista das 278 maiores empresas do país, que cortavam no ato a publicidade de qualquer jornal, revista, rádio ou TV que desse apoio ao governo Goulart. O porco-espinho, afinal, sempre vence.

Dali, afundado cada vez mais na senda da ilegalidade, Golbery operava o grampo de três mil telefones só na capital fluminense. Com a vitória do golpe, em 1964, Golbery criou e assumiu o Serviço Nacional de Informações (SNI), montado a partir da grampolândia inaugurada por ele no IPES. “O SNI era uma aberração do Estado”, definiu o jornalista Lucas Figueiredo, autor de Ministério do Silêncio, um brilhante histórico do serviço secreto no Brasil, desde Washington Luís (1927) até Lula (2005). Seis meses após a posse de Costa e Silva como o segundo general da ditadura, o diretor do combativo Correio da Manhã, Edmundo Moniz, profetizava em editorial de fins de 1967:

“O SNI ainda não se transformou numa Gestapo ou na KGB dos tempos de Hitler e Stálin. Mas começa a engatinhar e mostrar os dentes. Dentro em breve poderá firmar-se em suas quatro patas. É um filhote de monstro!”.

O SNI gestado e encorpado por Golbery agia dentro, fora e acima do governo, imune a controles externos do Judiciário e do Congresso. Fazia e acontecia, consagrando o Estado da delação e infiltrando o Big Brother do regime em todas as instâncias dos governos, das cidades do interior às capitais, das estatais à Esplanada dos Ministérios.

Dois meses após deixar o governo do general João Figueiredo, no rastro do frustrado atentado terrorista do Riocentro, em meados de 1981, Golbery ecoava o que o jornalista prenunciara 14 anos antes: “Criei um monstro!”. O general, enfim, já não conseguia controlar os espinhos de seu porco de estimação.

A ditadura, sempre

O melhor prontuário do general que saiu de Rio Grande para desestabilizar a democracia brasileira, já em 1954, e arquivá-la por duas décadas, a partir de 1964, está na magistral tetralogia do jornalista Elio Gaspari sobre as Ilusões Armadas, publicada entre 2002 e 2004. Ali, o “feiticeiro” Golbery divide o palco, a cena, os bastidores, o enredo, a trama, os aliados, os inimigos e o poder com o “sacerdote” Ernesto Geisel, seu companheiro de conspiração e trincheira de luta militar e política, do início dos anos 1950 ao final da década de 1970.

Os quatro volumes estão ancorados em 25 caixas do arquivo pessoal de Golbery, com cerca de cinco mil documentos, em 220 horas de conversas gravadas com Geisel e seu staff e no arquivo privado e no diário pessoal do capitão Heitor Ferreira, sucessivamente secretário particular de Golbery (1964-67) e de Geisel (1971-79).

Com base nesses papéis e depoimentos, é possível perceber na obra de Gaspari o ecúmeno do pensamento golberyano, pela via oscilante da “sístole” e da “diástole” política que, em rodízio, explicariam os momentos de contração (centralização autoritária) ou dilatação (descentralização democrática) de nossa história, a partir da cardíaca imagem de Golbery.

O comprometimento do general nesse processo espinhoso fica mais bem definido pelo título comum que atravessa os quatro volumes da obra – A Ditadura –, redefinida pelas circunstâncias históricas de cada período, de Castelo Branco a Geisel:Envergonhada, Escancarada, Derrotada eEncurralada.

São ditaduras diferentes, mas sempre ditadura. Sem perífrase.

É disso que se trata: Golbery do Couto e Silva, com seu engenho e arte voltados para o mal, pensando, agindo, criando, fazendo e acontecendo para desfazer o Estado democrático e impor o seu modelo autoritário, afinado com sua “doutrina de segurança nacional”, imune à suposta contaminação ideológica que o regime liberal, mais do que permitia, induziria.

A derradeira afronta

Era o general e seus comparsas agindo com a máquina do Estado, todo poderoso, contra o cidadão, todo intimidado. Em alguns momentos, Golbery esteve mais distante do centro do poder militarizado, não porque divergia dele, mas por mera medição de força ou simples cálculo político.

Golbery não afrontava o “Sistema”. Golbery era o próprio “Sistema”, pensado e criado para sobreviver às suas peculiares sístoles e diástoles. Sempre preservando o Estado, mesmo que à custa do cidadão, do eleitor – do povo, enfim, de quem toda ditadura prescinde.

Quando Golbery rompeu com Figueiredo e saiu do governo, em 1981, não era por súbita devoção democrática. Era por aversão absoluta àquele que queria ser o sexto general-presidente do regime, Octávio Medeiros, então chefe do renegado SNI. A alternativa presidencial de Golbery, como se sabe, define bem o caráter do general: era Paulo Maluf, o nome civil que a ditadura embalava para lhe dar uma sobrevida no Colégio Eleitoral. O sonho de Golbery foi atropelado pela vitória do adversário Tancredo Neves e virou pesadelo com a posse inesperada do ex-aliado José Sarney.
A confirmação do busto do general em Rio Grande não seria só um novo espinho, cutucando a memória, machucando a consciência.

A intempestiva irrupção de Golbery na praça do povo poderia ser a última afronta do general contra a história do povo que ele sempre combateu, tolheu, bisbilhotou e desrespeitou por atos, fatos e manifestos.

Será que o porco-espinho vai vencer, pela última vez?