Naira Hofmeister
Com um “parabéns à você” cantado em afinados tons graves e velinhas assopradas em uma tradicional torta Marta Rocha, o Cipel – Círculo de Pesquisas Literárias – comemorou 50 anos de estudos da história, cultura e manifestações sociais do Rio Grande do Sul.
A reunião festiva ocorreu neste sábado, 10 de dezembro, em um restaurante na Galeria Chaves, em pleno Centro Histórico de Porto Alegre. Ali na Rua da Praia, uma das tantas que o historiador e decano do clube Moacyr Flores não se conforma por terem mudado de nome (oficialmente ela é “dos Andradas”). “Agora mesmo, fui dar o endereço para o taxista e não conseguia me lembrar o nome da Jerônimo Coelho, só me vinha ‘do Poço’ na cabeça…”, admite.
“Nós trocamos os nomes populares das ruas, que tinham muita sabedoria, pelos nomes dos generais. Foi depois da Guerra do Paraguai. Mais tarde, com o golpe de 1889, não se podia mais falar nada do Império, então a Rua do Imperador virou da República; a da Imperatriz, Venâncio Aires e assim por diante”, recorda, incomodado.
O papo chegou a este ponto porque, aos 82 anos, Moacyr Flores prepara seu artigo para a 32ª antologia do Cipel, publicação anual temática da casa. A edição 2017 vai abordar “Literatura & Cinema” e o historiador está escrevendo sobre a adaptação de O Cortiço, de Aluísio de Azevedo para as telas. No livro há descrição minuciuosa do tecido urbano do bairro de Botafogo no Rio de Janeiro, por coincidência, onde Moacyr e a esposa, a também historiadora Hilda Flores possuem um apartamento. “Lá está tudo igual: vamos a um supermercado em uma rua que é mencionada no romance”, exemplifica.
Se Moacyr é o decano, Hilda foi a sócia que mais tempo permaneceu no cargo máximo do Cipel – de presidente, não presidenta, conforme sua preferência. Foram 26 anos à frente da instituição, 13 gestões, capítulo que se encerrou também neste sábado, quando ela passou as chaves da instituição ao novo – e jovem – presidente da casa, Rafael Bán Jacobsen, um físico e escritor de 36 anos.
O ato soa solene, mas Jacobsen logo desmistifica: “Agora sou eu que tenho que tomar conta da faxina, cuidar para que os cupins não ataquem o acervo…”. Nada de glamour.
O Cipel se mantém com a anuidade paga pelos seus sócios, que não chegam a 100 pessoas. As antologias são fruto de trabalho caseiro – capas, diagramação, editoração, tudo fica por conta de algum integrante do grupo. No caso, a maioria do trabalho recai sobre Lotário Neuberger, que mantém a Ediplat – Editora Plátano Ltda – responsável pelas publicações da casa. No número mais recente, que se dedica aos 50 anos do círculo, a capa é obra criativa de Moacyr Flores, que produziu e fotografou a imagem, e desenvolveu a arte no computador.
Dissidência anti-discursos
O Cipel foi fundado em 8 de dezembro de 1966, fruto de uma dissidência da Academia Rio-grandense de Letras (ARL). “Na Academia tinha muito discurso, auto-elogios. Pesquisa mesmo e debate, era muito pouco”, explica Moacyr Flores.
Foi quando Lothar Hessel, professor da Faculdade de Letras da Ufrgs, “aglutinou um grupo de ex-alunos, amigos e colegas da ARL em torno de debates que desejavam conhecer melhor”, conta Hilda, no texto introdutório da 31ª antologia, dedicada ao cinquentenário da instituição.
“Costumavam encontrar-se na Livraria do Globo, até que um dia Pedro Leite Villas-Bôas ofereceu um apartamento no centro da cidade. Na segunda reunião criaram o Cipel”, detalha.
Nos primeiros anos o trabalho consistiu em fazer levantamentos bibliográficos no interior do Estado. “Não havia nenhuma pesquisa sobre a nossa literatura. Chegávamos nas bibliotecas e perguntávamos: o que tem de produção daqui? Se lembravam o nome do autor, não sabiam as obras ou conheciam apenas uma”, relata Moacyr Flores.
Dessa pesquisa surgiram os primeiros dicionários de literatura gaúcha.
Homenagem ao Partenon Literário
Outro dos objetos de estudo desse grupo pioneiro foi o Partenon Literário, associação cultural porto-alegrense do século XIX. Entre outras atividades, o Partenon promovia saraus, aulas noturnas para pobres e escravos, editava uma revista literária – tudo isso em uma cidade onde a maioria esmagadora da população não sabia ler nem escrever.
O Partenon foi o tema da primeira antologia do Cipel, publicada em 1976. Na quarta-feira da semana passada (7 de dezembro), o Círculo de Pesquisas Literárias reinaugurou um monumento em homenagem à associação pioneira na Praça da Matriz. A antiga placa de bronze com a nominata dos sócios mais ativos do Partenon, instalada no local nos anos 80 por iniciativa do Cipel, mas roubada posteriormente, foi substituída por uma de pedra.
“O Partenon foi um marco cultural , chegou a reunir 80 sócios e é anterior inclusive à Academia Brasileira de Letras. Fez campanha pela abolição e defendeu o republicanismo muito antes de esses temas ganharem as ruas”, elogiou, na ocasião, Moacyr Flores.
Outro feito notável do Partenon foi ter levado a cabo uma campanha pela emancipação das mulheres através da educação. A professora Luciana de Abreu foi o símbolo dessa causa, ao ter sido a primeira mulher a falar em uma tribuna – a do Partenon – no Brasil.
O grupo também criou um curso noturno de alfabetização para pobres e escravos que desejassem aprender a ler e escrever e incentivou a criação de bibliotecas no interior do Estado.