Menores buscam sustento nas ruas

Carla Ruas

Crianças, jovens e adultos pedem dinheiro, roupas e comida nas calçadas do Bom Fim todos os dias. Entre os freqüentadores da rua, alguns são sem-teto, outros vêm de regiões distantes para passar o dia. Todos dependem da caridade alheia.

O bairro, cada vez mais uma extensão do Centro, é um local visado em função do constante movimento de pedestres e carros. Ponto emblemático é o trecho da rua Fernandes Vieira, entre Hernique Dias e Vasco da Gama.

Por ali, dezenas de pessoas se acomodam na tarde-noite, buscando a sobrevivência. Abordam donos de automóveis estacionados ou retidos no semáforo e transeuntes, especialmente os que vão fazer compras no supermercado Zaffari.

A maioria é menor de idade. Caso dos garotos E. e L., que moram na Vila Pedreira, no Morro Santana. Ambos com 15 anos tentam a vida como guardadores de carros. “Fico cuidando e ganho 1 real ou 50 centavos de cada motorista”, diz E. O amigo L., sempre sorrindo, apesar de não ter os dentes na frente, conta que está na 5ª série, mas que não sabe ler. Está desiludido com a escola.

A jovem G., de 16 anos, vem diariamente de ônibus da Vila Laranjeira, no Morro Santana. Ela mora com a mãe, está matriculada na 5a série do Ensino Fundamental, mas troca a sala de aula pela rua Fernandes Vieira. “Não gosto muito do colégio”, explica. Na calçada, ganha um pouco de dinheiro e mercadorias que leva para casa, e convive com jovens que passam pela mesma realidade.

Entre os adultos conhecidos na área, está Dona Maria, 32 anos. “É aqui que tiro o dinheiro para comer e alimentar minha família”, diz ela, que se desloca do Morro Santa Tereza, muitas vezes com as crianças a tiracolo. “São quatro filhos e não tenho com quem deixar a de dois e a de sete anos”. A mais nova fica brincando dentro de uma caixa de papelão.

Maria explica que ganha mais alimento do que dinheiro no local, como arroz, feijão e leite. “Se eu não vier para cá não tenho como sobreviver”. Ela recebe o benefício do bolsa-família, mas usa o dinheiro (R$100) numa casa que está comprando em uma área invadida. “Quero garantir a minha casinha, depois paro de pedir e procuro um emprego”, sonha.

Resistência de vizinhos e comerciantes

O núcleo de menores e adultos que buscam doações na Fernandes Vieira, no Bom Fim, incomoda comerciantes e vizinhos. O proprietário da fruteira Mãe Preta, Ademir José Siqueira, diz que a situação é constrangedora para quem é abordado. “As pessoas saem das lojas com sacolas e eles vêm para cima”.

A gerente da Padaria Pão Nosso, na Vasco da Gama, acredita que já perdeu clientes que não gostam desta aproximação. Ela reclama de um jovem que fica em frente ao estabelecimento, pedindo dinheiro aos motoristas que estacionam em frente ao seu negócio. O proprietário da Sabra Delicatessen, Marcos Brobacz, reclama da sujeira que fica na calçada. “De manhã sempre tenho que varrer os restos de comida”, diz ele, atribuindo o lixo aos pedintes que consomem alimentos no local.

Paulo Alves, zelador de um prédio da Fernandes Vieira, alega que o grupo senta em frente ao portão, atrapalhando a entrada dos moradores. “O pessoal reclama”, diz. O taxista Udolfo Coste, supervisor do ponto localizado na esquina da Fernandes Vieira com a Henrique Dias ensina que a solução é não fazer doações. “Eles vem para cá porque os moradores sempre dão mercadorias do súper”. A moradora Evanice Pauletti sugere uma mobilização e conscientização de comerciantes e moradores, apostando num mutirão de doações a ser entregue nas vilas de onde vêm os pedintes.

O órgão da Prefeitura responsável por menores nas ruas de Porto Alegre é o Serviço de Educação Social de Rua (Sesrua), ligado à Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc). Equipes realizam abordagens em locais pré-definidos e nos solicitados por telefone. Na abordagem, o jovem de até 14 anos é aconselhado a ir para o Lar Dom Bosco, que tem oficinas, jogos e educadores.

De 15 a 18 anos, a opção é a Escola de Porto Alegre, que oferece atividades com professores. O órgão mantém fichas com nome, idade, local de moradia e escolaridade dos menores. O banco de dados confirma que boa parte dos menores e adultos que buscam a sobrevivência na rua moram em locais afastados, como Lomba do Pinheiro, Agronomia, e até de Viamão.

“Não podemos tirá-los da rua à força”, diz a gerente do serviço, Isabel Simões da Silva. Ela observa que o trecho do Bom Fim é apenas um espelho do que acontece no resto da cidade. O telefone para solicitação de abordagens do Sesrua é 3221.2024, de segunda a sexta, das 7h às 24h, e sábados, domingos e feriados, das 7h às 19h.

Jovens querem universidade popular

Carla Ruas

Centenas de jovens da periferia de Porto Alegre e do interior do Estado realizaram manifestações pela democratização da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) nesta quinta-feira, 8 de junho.

A principal bandeira do grupo é a ampliação das vagas da UFRGS e a reserva de quotas para indígenas, quilombolas, negros e pobres.

O ato foi organizado pelo grupo Levante Popular da Juventude, formado no final do ano passado por estudantes de escolas públicas e cursinhos populares, além de integrantes da periferia e de movimentos sociais.

Uma das líderes, Cláudia Comatti afirma que a organização nasceu para defender os direitos dos jovens, como o acesso à educação superior, “que é muito restrito no país”.

A maioria dos integrantes da manifestação veio de ônibus de São Leopoldo, Lajeado, Santa Cruz do Sul, Caxias do Sul, Três Passos e Santo Ângelo. Também participaram jovens dos bairros Restinga, Lomba do Pinheiro e Morro da Cruz.

Pela manhã, o grupo denominado mobilizou cerca de 300 pessoas em uma passeata no Campus do Vale da UFRGS. Os integrantes carregavam faixas e gritavam palavras de ordem como “Universidade! / Pública e Popular!”.

Lá, eles participaram de oficinas de agroecologia, saúde, resistência popular e ações afirmativas, promovidas por estudantes da UFRGS e entidades. Os manifestantes ainda assistiram a uma aula aberta sobre a história da universidade brasileira.

À tarde, os manifestantes se deslocaram de ônibus até o Campus Central da Universidade para entregar uma carta de reivindicações à reitoria. O vice-reitor, Pedro Cezar Dutra Fonseca, recebeu o documento no lugar de José Carlos Hennemann, que está em Brasília. Mas a Reitoria não quis se pronunciar sobre a manifestação.

O documento defende melhorias na educação básica e políticas de acesso e permanência na Universidade. Além disso, pede a valorização da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e o passe livre para estudantes e trabalhadores desempregados.

“Também queremos quotas para os excluídos e uma ampliação das vagas da UFRGS, com unidades no interior do Estado”, afirma a organizadora, Cláudia Comatti. Ela lembra que apenas 9% dos jovens brasileiros de 18 a 24 anos estão na universidade.

Este é o motivo pelo qual Rafael dos Santos, 17 anos, se deslocou do município de Pontão (RS) para participar do dia de manifestações. Ele terminou o ensino médio no ano passado e não conseguiu ingressar na universidade.

Sonha cursar Agronomia.Erida Figueira, 16, diz que gostaria de freqüentar a universidade, mas que não tem como pagar uma particular. Neste ano, teve que interromper o colégio no 3° ano do ensino médio porque não tinha como pagar o material escolar. “Estou trabalhando e depois volto com dinheiro para os livros”.

Segundo o Censo da Educação Superior, realizado pelo Ministério da Educação em 2003, 71,8% das vagas que são oferecidas no ensino superior vêm de instituições privadas. Erida, que estudava na Escola Estadual Paulo Freire, em Caxias do Sul, acredita que deveria existir universidade pública para todos.

“É um direito nosso”, diz. Ela já fez cursos profissionalizantes como de mecânica, computação e de moda, mas só ficará satisfeita quando for uma universitária.

Pesquisa comprova que RS é rota do tráfico de mulheres

Helen Lopes

Mesmo com indicadores sociais acima da média nacional, o Rio Grande do Sul está na mira do tráfico internacional de seres humanos. Na maioria mulheres adultas e adolescentes entre 12 e 16 anos, elas são aliciadas em pelo menos oito cidades do Estado – Uruguaiana, Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Santa Maria, Rio Grande, Itaqui, Erechim e Porto Alegre.

As informações foram divulgadas nesta terça-feira (6/6) e compõem a pesquisa “O Tráfico de Seres Humanos Para Fins de Exploração Sexual no Rio Grande do Sul”, que faz parte do projeto “Medidas contra o Tráfico de Seres Humanos no Brasil”, do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC), com apoio do Ministério da Justiça e da Secretaria da Justiça e da Segurança do Rio Grande do Sul.

Em Uruguaiana e Caxias do Sul, entre 1996 e 2004, foram registrados sete inquéritos policiais. Somente em um houve condenação. Nas outras cidades citadas, as ocorrências foram informadas por Organizações Não Governamentais. Na maioria dos casos, as mulheres estão em estado de vulnerabilidade social – baixa escolaridade, estão desempregadas e têm filhos. Elas são enganadas, na maioria das vezes, com propostas de emprego ou por “namorados”, que na verdade são agenciadores. Existem também dificuldade na identificação dos casos, pois quando são descobertos antes do embarque, são registrados como estelionato.

Por fazer fronteira com outros países, o Rio Grande do Sul é alvo dos grupos criminosos. “A existência da trama de operacionalização do crime organizado nas fronteiras potencializa a ocorrência desses delitos”, sustenta a coordenadora da pesquisa, Jacqueline Oliveira Silva, professora de Ciências Sociais da Unisinos. A pesquisa aponta que o tráfico de pessoas pode estar relacionado com o tráfico de drogas, armas e mercadorias. Mas a pesquisadora não confirma: “As rotas coincidem, sobrepondo os mapas fica claro, porém, é preciso mais estudos neste ponto”.

De acordo com o levantamento, existem duas rotas de destino: uma para Ásia (em locais como Hong Kong) e outra para países da Península Ibérica (Portugal e Espanha). Há também países do Mercosul, que se apresentam tanto como lugares de passagem quanto de destino, como a Argentina.

Outra questão levantada  pela pesquisa é a relação entre as estatísticas de pessoas desaparecidas e o tráfico seres humanos. Em todos os municípios onde há tráfico, o número de desaparecidos é grande e são na maioria mulheres adolescentes. Um exemplo apontado é em Caxias do Sul, onde se observou queda no número de desaparecidos depois da descoberta da Conexão Hong Kong (esquema de tráfico de adolescentes desvendado em 1997).

O estudo foi feito a partir da analise dos inquéritos policiais existentes no Estado sobre o tema, de questionários aplicados em membros de ONGs, e órgãos governamentais, matérias de dois jornais diários de grande circulação (Zero Hora  e Diário Gaúcho) e de outras pesquisas nacionais. Os dados foram coletados entre outubro de 2004 e maio de 2005.

Produtores preocupados com exigências para plantio florestal no Estado

Patrícia Benvenuti
A Caixa/RS reuniu em sua sede pequenos produtores rurais interessados em parcerias com empresas de celulose. O encontro, na quinta-feira 25 de maio, serviu para a apresentação de normas para o plantio florestal no Rio Grande do Sul neste ano.
As diretrizes foram estabelecidas a partir de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) e Ministério Público (MP).
Essas regras devem ser seguidas pelos técnicos até o final do ano, quando estará pronto o zoneamento ambiental do Estado. Projetos consolidados antes da assinatura do TAC não precisarão de licença ambiental prévia, mas de uma licença única na forma de autorização.
Os pedidos protocolados na Fepam devem apresentar o empreendimento, empreendedor e um Relatório Ambiental Simplificado (RAS). Entre as exigências da Fundação está a identificação e a recuperação de todas as áreas de preservação permanente.
O órgão ambiental também exige a recomposição de 20% da reserva legal em até 10 anos, a utilização mínima da capina química e a destinação final adequada dos resíduos, especialmente de embalagens de agrotóxicos.
A Fepam ainda proíbe intervenções nas áreas de preservação permanente e solicita comprovação de treinamento ou manutenção de brigada de incêndio florestal e a capacitação ambiental para os trabalhadores, direta ou indiretamente ligados à produção.
As diretrizes foram consideradas rigorosas pelos produtores. O ponto mais polêmico é o que trata de prazos para protocolo e emissão da autorização, pois, dependendo do atraso no trâmite burocrático, todo plantio pode ser prejudicado.
A proibição da capina em estradas e aceiros, segundo eles, causará erosão, e dificilmente será respeitada, bem como a obrigatoriedade de uma brigada de incêndio em pequenas propriedades.
As medidas determinadas para o plantio buscam minimizar ao máximo os impactos ambientais dos plantios. O consultor florestal da Caixa/RS, o agrônomo Floriano Isolan, diz que muitas das críticas feitas à silvicultura são infundadas. “Estamos plantando para o bem do Rio Grande do Sul. As pessoas que estão combatendo as florestas não sabem disso, mas 100% dos produtos originários da madeira no Estado são de florestas plantadas”, afirma.

Olhos que acompanham o Bom Fim há 84 anos

Helen Lopes

É um apaixonado pelo Parque Farroupilha – na inauguração, em 20 de setembro de 1935, ele estava lá. Trata-se de Jayme Lewgoy Lubianca, filho de duas famílias judias pioneiras do Bom Fim.

Convidado a falar de sua vida e a identificação com o bairro, este engenheiro agrônomo e compositor prefere lembrar do pai, o médico José Lubianca, famoso na região – deu atendimento a mais de uma geração de moradores do Bom Fim.

Nesta entrevista, nosso personagem conta esta e outras histórias.

Quando sua família veio a Porto Alegre?

Meu pai ainda era pequeno. Minha avó era austríaca e o meu avô russo. Chegaram no Brasil por São Paulo, onde meu pai nasceu. Quando meu avô registrou meu pai, ele não sabia falar bem português. Com isso, o nome ficou José Faibes Lubianca, mas ele queria dizer José Fábio Lubianka, com k. Em Porto Alegre, meus avôs alugaram uma casa onde hoje é a esquina da Riachuelo com a Borges de Medeiros.

A prefeitura estava abrindo a Borges e ofereceu, em troca da casa que iam derrubar, dois terrenos na Felipe Camarão. Eles foram um dos primeiros moradores do bairro. Os terrenos eram enormes, 25 por 50 metros. Tinha um jardim, pomar e uma horta. Meu pai viveu a infância toda aqui, depois, estudou Medicina.

Enquanto cursava a faculdade, trabalhava no setor de segurança da prefeitura, o que corresponde à polícia. Durante a Revolução de 1922, ingressou na Brigada Militar como soldado, os chamados provisórios. Como estudava Medicina, foi promovido a capitão. Neste ano, eu nasci. Meu pai estava em Passo Fundo e mandou buscar a família. Minha mãe contava que eu chorei todo o trajeto até Passo Fundo, que era feito de trem em dois dias.

Quando a revolução terminou, voltamos a Porto Alegre, ele terminou a faculdade e continuou servindo na polícia. Foi designado para o Instituto de Identificação onde se aposentou. Lá ele era especialista em datiloscopia. Ele tem um trabalho reconhecido no Brasil inteiro nessa área. Ministrava cursos, fazia pesquisa, desenvolveu técnicas de tomada de identificação digital e, além disso, foi fundador da policia técnica do Rio Grande do Sul.

Ele e meu avô, juntamente com o meu outro avô Lewgoy, foram fundadores do Israelita, do qual meu pai também foi presidente. Ele teve nove filhos, oito homens e uma mulher. Lembro que ele tinha um consultório particular na nossa casa e outro na Alberto Bins para atender tanto os que podiam quanto os que não podiam pagar. Até hoje, algumas pessoas me atacam na rua para me abraçar e me beijar em função dele, dos benefícios que ele fez. Ele atuou em todas esferas de participação social. Mas esse lado dele na polícia poucas pessoas conhecem bem.

E a sua atuação profissional?

Entrei no Instituto de Identificação como aspirante, ao invés de salário, recebia passagens de bonde. Fui promovido e fiquei lá 12 anos, trabalhando com impressões digitais lá e depois no Instituto de Perícias Técnicas. Paralelamente, fazia a faculdade de Agronomia. Quando me formei, pensei em ficar lá, mas meu irmão já trabalhava nisso, meu pai também. Iam pensar que era só para os familiares!

Passei meio ano ainda no Instituto e fui convidado por um professor para trabalhar na Secretaria da Agricultura. Fiz concurso e trabalhei primeiro no setor de Defesa Sanitária Vegetal. Depois, um colega, que fez concurso comigo, me convidou para desenvolver um estudo de olivicultura no Estado. Fizemos um simpósio de olivicultura, viajamos para o Chile e até nos aproximamos de uma variedade que poderia ser plantada no Rio Grande do Sul.

Aí, toquei a minha vida como engenheiro agrônomo. Eu já estava há 10 anos aposentado, quando me convidaram para trabalhar no departamento de piscicultura da Secretaria. Meus colegas me convenceram. Aí eu voltei. Fiquei lá mais uns cinco anos. Depois entreguei as chuteiras. Fiquei em função da família, dos netos, primos…

E sua relação com a Redenção?

Fui guri de parque, assistindo às coisas que aconteciam. Usei muito o parque, principalmente com os meus filhos, era praticamente nosso quintal. Eu, minha mulher e os meus filhos sempre saíamos para lá. Na minha vida, o Parque da Redenção representou o pátio e o jardim. É claro que mudou muito, principalmente, na área de habitação. Isso aqui era um campo.

Eu vi arrumarem o solo para instalar o parque. Lá por 1935, eles aterraram tudo com lixo. Foram um ou dois anos com um cheiro horrível. Depois, em cima, colocaram saibro. E, ainda, mais uma camada de uns três metros de areião e molhavam constantemente. A fermentação foi diminuindo, o cheiro passou e eles passaram os tratores para compactar. Foi assim que fizeram o parque. Acho que era o monumento mais lindo do país naquela época. Feito para a inauguração da exposição do centenário da Revolução Farroupilha.

O senhor nunca saiu do bairro?

Saí muito pouco tempo, 90% da minha vida eu morei no Bom Fim. Cheguei a morar no final da Jacinto Gomes, perto da polícia, um meio ano. Voltei e morei na Ramiro Barcelos, depois na Fernandes Vieira. Os filhos chegavam e o apartamento ficava pequeno. Quando estava na Fernandes Vieira, visitei esse apartamento, de novo na Jacinto.

Em que momento a música entrou na sua vida?

Sempre gostei de música. Meus pais tocavam piano. Meu pai também tocava violino. Isso foi impregnando. Quando guri, ouvia muito a rádio Nacional, ficava até às 3h da madrugada. Fui crescendo e comecei a sair com amigos nos lugares onde tinha música ou gente tocando violão. O pessoal fala que eu fundei o Conjunto Baldauf porque onde tinha amigo meu tocando eu estava junto.

Eu gostava era de cantar, não era muito dos instrumentos. Às vezes, acompanhava o ritmo com um chocalho ou tambor. Vai daqui, vai dali, conheci um grande compositor, num verão em Belém Novo – a minha família tinha uma casa de veraneio lá – que tinha feito a música da Rua da Praia. E convidei ele para fazer uma música, que eu faria a letra. Passaram vários anos e nada. Desisti e comecei a compor. Lembrei das coisas bonitas de Porto Alegre, principalmente, do pôr-do-sol e dos lampiões da Rua da Praia.

Como a música “Porto dos Casais” tornou-se conhecida?

Quem lançou essa música foi Sílvio Caldas. Ele esteve em Porto Alegre para um aniversário da rádio Gaúcha e alguém cantou para ele a minha música. Ele gostou, mas queria que eu cantasse. Daí, 6h da manhã, telefona meu primo dizendo que o Silvio Caldas queria me conhecer. “Ele pediu para tu ir lá no City Hotel ao meio-dia”. Não acreditei: “Mas tu tá louco rapaz, bêbado já essa hora?”.

Meu primo insistiu tanto que acreditei. Fui lá e falei com o Silvio Caldas. Ele gostou da música e pediu para eu ir às 18h30 na Gaúcha, que ele estaria ensaiando e queria lançar a música. Quando estava cantando, me lembro que ele pegou um chapéu, que estava pendurado num cabide, enterrou na cabeça e disse: “Ta louco! Que música maravilhosa é essa! Na mesma noite, ele lançou a música.

Depois, ele escreveu uma carta pedindo autorização para gravar. Porto dos Casais foi interpretada ainda por Elis Regina e Simonal. Também compus “Quatro Estações” e “Nasce uma Canção”.

E sua relação com o rio?

Fui sócio do Grêmio Esportivo Masson, fundado pelo Leopoldo Geyir, que adorava barco à vela. Tinha um barquinho e eu navegava por tudo. A beleza do rio era empolgante. No verão, saía de barco bem cedo e voltava no pôr-do-sol. Uma coisa linda. Você vai chegando na cidade e vê o sol batendo nas construções, nas igrejas, no Porto. Era fantástico! Uma das vistas mais lindas de Porto Alegre é no rio.

Em um desses passeios, eu me empolguei e decidi o motivo da música: Porto Alegre. Como gostava muito de história, lembrei que o nome da cidade era Porto dos Casais. Já tinha o nome da minha música. Daí, primeiro fiz a letra. Depois de uma noite na praia da Alegria (em Guaíba), acordei de uma bebedeira daquelas com a música em cima da letra. Despertei com a música na cabeça. A minha grande mágoa é não ter estudado música. Estudei muito pouco no IPA, deveria ter sido mais, já que eu gosto tanto.

Força e Luz: um time na marca do pênalti

Área nobre: é permitido construir até 44 mil m2 no terreno de 1,6 hectares(Fotos: Tânia Meinerz/JÁ)

 

Guilherme Kolling

Fracassou a primeira tentativa para vender o estádio do Força e Luz. A única proposta apresentada em leilão no dia 5 de abril não atingiu a cifra exigida, que é de R$ 11 milhões. A sede do clube, de 85 anos, tem 1,6 hectares (16.816 metros quadrados), onde se pode construir até 44 mil metros quadrados.

A Sala Figueira do Hotel Plaza São Rafael ficou lotada de sócios e conselheiros para ver quem arremataria o campo. Depois de iniciar os trabalhos, o leiloeiro Norton Fernandes aguardou uma proposta por alguns minutos, segurando o martelo. Tudo em vão. O silêncio foi total na platéia de cerca de 40 pessoas.

O mestre de cerimônias insistiu, repetindo “11 milhões, 11 milhões, tenho 11 milhões?”. Até que recuou, perguntando se haveria qualquer oferta menor, que seria submetida ao clube. Mais uma vez, não se ouviu um pio na sala. Mas Fernandes ainda viu um lance de R$ 10 milhões, de um empresário de Santa Catarina, que não quis se identificar, e encerrou a sessão, sem bater o martelo.

Agora, o conselho deliberativo e a assembléia geral de sócios do Força e Luz farão reuniões para decidir se fecham o negócio. O presidente, Rubem Franco, diz que a tendência é rejeitar a proposta. Um novo leilão deve ser realizado até o final de maio. Nesse meio tempo, o clube segue com suas atividades.

Enquanto isso, muitas especulações. Norton Fernandes falou de sondagens de grupos de São Paulo, redes de supermercado e incorporadoras, que devem aparecer no próximo evento. Outro leiloeiro, Luís Agostinho Farias, garantiu à direção do Força e Luz que o Carrefour está interessado, e só não veio porque foi avisado muito em cima da hora.

“O Wal-Mart foi contatado e está analisando. O Zaffari também fez sondagens, mas não uma proposta oficial. E as grandes construtoras também se interessaram, mas não chegaram ao valor estipulado”, disse Farias ao JÁ.

Negociações começaram no início da década de 90


Estádio da Timbaúva já foi considerado o melhor gramado da cidade

Nas atas do Força e Luz, é possível ver que a discussão sobre a venda da sede do clube começou na década de 1990. Uma série de mudanças no estatuto foram feitas, para permitir que o conselho deliberativo tivesse poder para definir o negócio. Em princípio, a idéia era troca de imóveis – o estádio por outro local com melhor infra-estrutura.

Em 2 de janeiro de 1991, a necessidade da construção de um pavilhão social foi lembrada. No mesmo encontro, o conselheiro Argil da Silva Barros revelou o interesse manifestado por grupos financeiros na permuta da área do Força e Luz por outra já construída. O então presidente do Conselho Deliberativo, Alfredo Costa Maliar, comunicou a formação de uma comissão para tratar com possíveis interessados, a partir de março de 1991.

Nos anos seguintes, o assunto ficou para segundo plano. Em 1992, a direção decidiu investir em obras como a construção da cancha de bocha. Em 1994, foi constituída uma comissão para dar seguimento às intervenções no clube. A questão da venda do estádio só voltou a baila em 1997. O presidente na época, Antonio Carlos Barcellos Lunes, conta que manteve uma série de reuniões com o presidente da construtora Goldsztein, Sérgio Goldsztein. “A negociação foi até 1999. Já estava tudo certo, o projeto tinha maquete, nome – Condomínio Timbaúva –, seriam três edifícios, dois de frente para a Alcides Cruz e um na rua Dona Eugênia, que seria prolongada até a Silva Só” (hoje ela termina no Força e Luz).

O negócio só não passou por medo de desentendimento entre os associados. Estava previsto que parte do terreno continuaria sendo a sede do clube. Só que o pagamento viria através de apartamentos. “O pessoal ficou com receio de não conseguir alugar, vender, então optou por não fechar negócio”, lembra Lunes. O tema continuou nas conversas dos conselheiros. Mas só em 2005 a venda foi aprovada. Com a divulgação do boato de que o Força e Luz ia mal das pernas, as propostas foram baixas e não agradaram. Por isso, a comissão de venda decidiu fazer um leilão. O primeiro não foi bem sucedido.

Estatuto prevê destino de troféus e até pavilhão

O estatuto do Força e Luz foi alterado diversas vezes desde que o primeiro texto foi feito, em 15 de abril de 1932. Nos últimos anos, as alterações têm relação com uma possível venda. Em 1997, um artigo estabeleceu que troféus, medalhas, arquivos e até o pavilhão deverão ser recolhidos ao Museu do Estado, após a extinção do clube.

Depois, o conselho deliberativo passou a ter poderes para decidir sobre a venda dos bens imóveis do Força e Luz. Houve mudanças no estatuto em pelo menos seis oportunidades nos últimos 20 anos: 1986, 89 1997, 2001, 2003 e 2005. Outras medidas foram o estabelecimento de um número máximo de sócios (o teto passou a ser 470), e um valor alto para ingressar no clube – a partir de 1997, a jóia passou para R$ 12 mil.

Mas o estatuto ainda mantém um artigo que existe desde 1932 e que segue praticamente igual: o Força e Luz é uma sociedade “sem fins econômicos”, com o objetivo de promover atividades de caráter desportivo, social, cultural entre seus associados e familiares.Estatuto prevê destino de troféus e até pavilhão.

Finanças do clube estão equilibradas

Ao contrário do que a situação deixa a entender, a venda do Força e Luz não se deve a uma crise financeira. Balanços dos últimos anos mostram saldo positivo ou pelo menos zerado, caso de 2005, quando foram gastos e arrecadados cerca de R$ 140 mil. A entidade mantém ainda uma poupança no banco. Por  que se desfazer do estádio da Timbaúva? Diretores e conselheiros justificam que apenas 20 ou 30 associados participam da vida do clube. A maioria não usufrui da infra-estrutura, apesar de sustentar a instituição – as mensalidades ainda são a principal fonte de renda.

Direção no que restou do pavilhão de Airton: venda é a única alternativa que resta, acreditam

Muitos sócios já estão em idade avançada, vários morreram nos últimos anos, passando o título para viúvas ou filhos, que não demonstram o mesmo entusiasmo pelo “Forcinha”. Com o desinteresse da nova geração e o esvaziamento de um dos palcos mais importantes da história do futebol gaúcho, decidiu-se pela venda do estádio. A medida foi definida em assembléia realizada em 29 de abril de 2005, com apoio da maioria: 133 integrantes aprovaram a venda de 100% do patrimônio, outros 10 votaram pela venda parcial. “O clube está bem, não deve para ninguém, mas os associados querem vender. O fato é que está todo mundo ficando velho, cansado, alguns nem aparecem mais no clube. Eles também têm direito a usufruir”, conclui o presidente Rubem Franco.

“E se não fizermos isso (vender o estádio), logo alguém toma conta, entram novos sócios e aí eles vão querer vender o Força e Luz e ganhar dinheiro para eles”. A explicação do presidente deixa claro o destino dos recursos: devem ser rateados entre os 384 associados, resultando em pouco mais de R$ 28 mil para cada um. A decisão ainda tem que ser sacramentada em assembléia geral.

Um capítulo da história do futebol gaúcho

Time da década de 1950: Força e Luz foi celeiro de craques e sede de grandes jogos (Reprodução)

O Grêmio Esportivo Força e Luz é um capítulo da história do futebol gaúcho. Teve o melhor estádio da cidade por anos, o que levou jogos importantes para sua sede. É o caso da primeira partida de campeonato brasileiro disputada no Rio Grande do Sul, em 7 de junho de 1936, entre as seleções carioca e gaúcha.

Outra passagem marcante se refere ao hino do Grêmio Futebol Porto-Alegrense. Conta o presidente do Força e Luz, Rubem Franco, que a composição de Lupicínio Rodrigues foi criada num dia em que houve greve dos bondes e o tricolor tinha compromisso no estádio da Timbaúva. Consta que a torcida foi a pé – daí o verso “Até a pé nós iremos”.

O clube também revelou grandes talentos. O ponta-direita Dorval começou no “Forcinha” e foi direto para o Santos Futebol Clube, onde integrou um ataque mágico: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Abigail, integrante da linha média do lendário Rolo Compressor do Internacional também começou no campo da Timbaúva. Sem falar em Aírton Pavilhão, que marcou época no Grêmio.

Apesar dessa biografia, o clube não obteve grandes títulos. Suas maiores glórias foram o tricampeonato de aspirantes em 1935, 36 e 37, e o vice-campeonato da cidade em 1941, 47 e 48. A equipe endurecia em alguns confrontos contra Grêmio e Internacional, mas nunca chegou a ser um time de ponta.

Fundada em 8 de setembro de 1921, a agremiação era mantida pela companhia de Força e Luz, sob o comando da empresa Light, dos Estados Unidos. Foi extinta ao ser estatizada por Leonel Brizola mas o nome do clube ficou o mesmo. Funcionários da Companhia Carris Porto-alegrense e Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), criadas a partir da Força e Luz, continuaram sendo os sócios do clube.

Hoje quase todos associados são eletricitários. Isso porque a CEEE descontava o valor da mensalidade no contracheque e a Carris não. Mas quem comprou o campo na rua Alcides Cruz, 125, hoje bairro Santa Cecília, foi a empresa de transportes, em 1934. A inauguração, em 14 de abril, contou com a presença do bispo e do então governador do Rio Grande do Sul, General José Antônio Flores da Cunha.

O Força e Luz teve futebol profissional até a década de 70. Depois, ainda manteve categorias inferiores – o juvenil encerrou suas atividades em 2002. Restou apenas o time veterano, que se apresenta todos os domingos, às 10h.

Aírton: “O pessoal não tem memória”

 


Aírton com a camisa do “Forcinha”(Reprodução acervo Força e Luz)

Quem não está nada satisfeito com a venda do Força e Luz é seu atleta mais famoso, Aírton Ferreira da Silva, o “Pavilhão”. Aos 71 anos, funcionário público aposentado, ele lamenta que “o pessoal aqui do Sul não tenha memória”, o que seria mais uma vez comprovado com a demolição do estádio.

“Quando vem gente do centro do país para cá fazer documentários, filmagens, sempre falam da história do pavilhão, lembram minha trajetória. Seria bom que tombassem, mas acho difícil isso acontecer. É uma pena”, comenta o emblema vivo do “Forcinha”.

O pavilhão branco com distintivo em vermelho – cores oficiais do clube – é mencionado até no estatuto do Força e Luz. Ainda está lá, em frente ao campo. “É como se estivesse morrendo um pedacinho da gente”, diz Aírton, ao comentar a venda. Aos 13 anos ele já era atleta do clube. Aos 15 virou titular do time principal, igualando feito de ninguém menos que Pelé, que subiu para os profissionais com a mesma idade.

Além de seu futebol, o que o tornou famoso foi a inusitada negociação que resultou em sua venda para o Grêmio, em 1955: aos 20 anos, Aírton Ferreira da Silva seguiu para o clube da Azenha em troca de 50 cruzeiros (Cr$ 50) mais o pavilhão do estádio da Baixada, sede do Grêmio até 1954, que depois foi transformada no Parque Moinhos de Vento.

Aírton marcou época no tricolor gaúcho. Jogou lá até 1967, quando passou a defender o Cruzeiro, de Porto Alegre. Encerrou a carreira no ano seguinte, aos 34 anos. Marcou seu último gol no antigo estádio do Cruzeiro, que depois virou cemitério. “Pelo menos o Cruzeiro fez outro estádio”, compara.

Ligado ao futebol até hoje, Aírton mora em frente ao Olímpico, na avenida José de Alencar. “Estava pensando outro dia: vão vender o campo e o Força e Luz vai acabar”, prevê. O pavilhão ao menos, poderia ser mantido. O Grêmio chegou a manifestar interesse na década de 90, mas o intento não vingou. O que resta é uma pequena arquibancada que ficará no campo da Timabaúva até que o destino do clube seja definido.

Presidente: “Eu amo esse clube!”

 

O presidente Rubem Franco afirma que o clube terá um novo local de encontro

 

“Confesso que me deu uma vontade danada de chorar na hora do leilão”. A declaração do presidente do Força e Luz, Rubem Borba Franco, 65 anos, não deve ser mal interpretada. Ele não estava lamentando o insucesso do evento, mas expressando seu sentimento com o fim da instituição. “O coração velho aqui sofreu muito vendo aquela cena. Eu amo esse clube!”, declara.

Ex-atleta, ele jogou de goleiro nos juvenis. Não chegou a ser profissional, mas continuou em contato porque, como eletrotécnico, se tornou sócio aos 22 anos. Antes dos 30, em 1969, ele fundou os veteranos, categoria que segue até hoje. Também foi o único time que conseguiu bater a dupla GreNal, no campeonato de 1975, promovido pela Associação dos Veteranos do Rio Grande do Sul. “Fui o artilheiro naquela temporada”, comemora o atacante, que até hoje bate uma bolinha.

O presidente foi um dos que votou a favor da venda do Força e Luz. Mas promete agitar caso o negócio não se concretize. “Já estamos em contato com o ex-jogador Mauro Galvão, que mostrou interesse em alugar o campo durante a semana para sua escolinha de futebol”. Também promete realizar eventos com instituições beneficentes para excepcionais, idosos, e com fundações como a Thiago Gonzaga. Outra idéia é fazer um torneio início à moda antiga, reunindo os principais times da Capital. “Dá para repetir esse tipo de evento, todo mundo gosta. Vamos conversar com a Secretaria Municipal de Esportes”, planeja.

Guardião do estádio torce contra a venda

Seu Múcio: “o guardião do campo”

Não é só Aírton Pavilhão que está sofrendo com a venda do estádio. Mais do que os peladeiros de plantão e freqüentadores tradicionais, quem vai sentir falta do Força e Luz é o vice-presidente de patrimônio do clube, Múcio Torres, 71. Membro da diretoria há 12 anos, esse eletricitário aposentado é dos poucos que torce para que o leilão não se consume.

A explicação: Seu Múcio é o guardião do campo da Timbaúva. Ele chega lá todo dia de manhã cedo e só sai a noitinha. “Até os lagartos daqui me conhecem”, brinca. Responsável pelo estádio, também faz compras para o clube, resolve problemas, cuida da infra-estrutura, dá bronca nos colegas exigindo mais cuidados com o local. O homem não pára, está sempre preocupado com algum detalhe.

“Ainda não sei o que eu vou fazer se venderem”, lamenta. De fato, sua rotina será totalmente alterada. Ele não é de jogar bola, mas cuida do gramado como se fosse sua horta. “O estádio é uma das amantes dele”, comenta um conselheiro, em tom jocoso. Também é Seu Múcio quem abre o portão e recebe quem chega na sede do clube. Ele ainda comanda os quatro funcionários – uma secretária, dois empregados em serviços gerais e o zelador. Quem está a favor do negócio é a família desse eletricitário aposentado. A esposa e o filho reclamam que ele passa mais tempo no estádio do que em casa.

Lustosa em campanha para salvar o estádio

Ambientalista Caio Lustosa sugere que Prefeitura adquira o campo do Força e Luz

O ambientalista Caio Lustosa, 72, mora há 50 anos numa casa na rua Alcides Cruz, bem em frente ao estádio do Força e Luz, um dos mais tradicionais clubes esportivos de Porto Alegre que está cerrando as portas. Advogado, ex-vereador e ex-secretário do Meio Ambiente, ele está iniciando aquela que pode ser sua última luta na causa ecológica. “Achei que já tivesse concluído minha participação como ativista. Mas não teria como me omitir com isso acontecendo aqui na minha porta”, diz ele.

Lustosa iniciou um movimento contra a venda da área do Força e Luz  para um empreendimento imobiliário ou comercial. Colocou o caso na internet, passou mensagens para vizinhos, movimentos de bairro, autoridades e meios de comunicação. Conseguiu levar o tema para a crônica esportiva.
Às vésperas do leilão em que a área seria vendida, Lustosa publicou um artigo sobre o tema no Jornal do Comércio e no site do Jornal JÁ. Agora, com o auxílio de arquitetos, ele busca amparo no Plano Diretor e leis que regulam o solo urbano. Já tem uma sugestão: “Segundo o Estatuto das Cidades, o Município tem preferência na aquisição. Por que não exercê-la, ressarcindo o clube com índices construtivos ou outros mecanismos?”, questiona.

Em sua argumentação, Lustosa diz que o local não pode ser tratado como um mero bem imóvel, por ter indiscutível interesse público, sendo importante para a qualidade de vida dos moradores da região e do público que o utiliza. Ele observa: “Com seus 1,6 hectares, é a maior área verde do bairro Santa Cecília” – formado pelo quadrilátero Ramiro Barcelos-Ipiranga-Vicente da Fontoura-Protásio Alves.

“O estádio existe desde a década de 1930 e tem imenso valor histórico, paisagístico e ambiental para as comunidades circundantes (Rio Branco, Bom Fim, Petrópolis, Santana)”. Até hoje acolhe o futebol amador e é local de lazer. Foi sede do Bambas da Orgia por anos. A concretizar-se a transação, Lustosa prevê um impacto grande na vizinhança – envolvendo aspectos como insolação, aeração, fluxo de veículos, volume da população.

“Nem entro na questão dos bandos de quero-quero que ficam no campo e entorno porque vão dizer que é bobagem, frescura. Fico no tema da verticalização dessa área, cada vez mais densificada. Os bairros estão sofrendo inúmeras agressões, para não dizer crimes, contra sua malha urbana nos últimos anos. A mais recente foi um empreendimento implantado nessa mesma região, na antiga Instituição Chaves Barcelos, à rua Dona Leonor”.

O ambientalista cita ainda Bela Vista, Higienópolis, Petrópolis e o morro do IPA, como locais que estão em rápida transformação. “Estão virando paliteiros. O mercado fala mais alto, a coisa está livre, essa zona toda está entregue!”, denuncia. Lustosa pretende acompanhar o caso de perto para evitar que o projeto só seja descoberto quando o fato estiver consumado. “As diversas secretarias que têm relação com o caso nada disseram até agora. Espera-se que, diante de tanta omissão, o Ministério Público venha em socorro da cidadania. Que, aliás, deve deixar o conformismo e se mobilizar”, propõe Lustosa.

A campanha do ecologista assemelha-se à do jornalista Alberto André, há 35 anos, contra a venda do antigo estádio do Grêmio para a construção de espigões. A campanha de André, que era também vereador, resultou no atual Parque Moinhos de Vento.

 

Comunidade prejudicada


Comunidade que usa o clube vai ser prejudicada com transformação da sede em empreendimento comercial

Se os associados não terão suas atividades prejudicadas com o fim do estádio – poderão continuar com os tradicionais almoços da terça e da quarta-feira, e até com o futebol de veteranos aos domingos, em campos alugados -, a comunidade será prejudicada.

Quem mais vai sentir a transformação da sede do Força e Luz em um conjunto de espigões ou num supermercado é a vizinhança que aluga o local, ou mesmo gente que vem de longe para jogar bola no tapete, que já foi considerado o melhor da cidade.

Durante a semana, o campo era utilizado por escolinhas – o ex-jogador de Grêmio e Internacional, Mauro Galvão, estava negociando com o clube para iniciar aulas no local. O movimento forte acontece nos finais de semana. No sábado, o campo é ocupado do início da manhã até de noite. O aluguel custa R$ 350 por partida.

No domingo pela manhã, a área é dos veterandos do Força e Luz – são poucos ex-jogadores, hoje o grupo mescla com uma gurizada, que paga mensalidade para participar do time. Na parte da tarde, o gramado volta a ser alugado. O clube também é bastante utilizado para churrasquinhos, festas de aniversário e rodas de pagode, já que dispõe de quiosque e salão de festas.

Chance de sobrevida

A diretoria do clube continua com a disposição de vender o estádio, para distribuir parte do dinheiro aos sócios e outra parte investir na aquisição de uma nova sede – menor, apenas para manter as atividades sociais, como almoços e encontros em datas festivas.

A proposta  tem apoio de quase todos os diretores. Resta saber se será aprovada pela assembléia geral, já que a aquisição de um imóvel reduziria o valor obtido por cada sócio no rateio do dinheiro obtido no leilão.

Para o ex-presidente Antonio Carlos Barcellos Lunes, a solução é simples. Comprar a nova sede e depois fazer a divisão entre os associados. “Será uma área pequena, com churrasqueira, quadra de bocha. Vamos gastar no máximo R$ 1 milhão, R$ 1,5 milhão. Com isso teremos um local de encontro”.

O futebol de veteranos – única categoria ativa do departamento – pode seguir com atividades, alugando campos de terceiros, para as partidas. Ao sócio Ladislau Honório Santos agrada a idéia de um outro espaço. “Pode ser uma coisa pequena, só para reunir o pessoal”, concorda o conselheiro Iesmar Faria, mais de 30 anos de clube.

Mas o presidente Rubem Franco alerta: “A assembléia é quem decide o que vai ser feito com dinheiro. Tudo depende da vontade dos sócios. Mas acredito que o clube não vai terminar, teremos um novo ponto de encontro”, prevê.

Inter pretende negociar estádio dos Eucaliptos

Cruzeiro, Nacional, Força e Luz… O Spor Club Internacional deve ser o próximo da lista a negociar seu campo de futebol. Trata-se do histórico estádio dos Eucaliptos, desativado há décadas. Depois de obter a regularização de toda área do Complexo Beira-Rio, em 2004, a direção do clube está negociando com a Prefeitura a permuta do local, que foi sede da Copa de 1950, por um terreno anexo, na avenida Padre Cacique.

Área no Menino Deus seria permutada com a Prefeitura (Arquivo JÁ Editores)

“Já iniciamos as conversas com o Município”, revela Pedro Affatato, vice-presidente de Patrimônio do Inter. Ele explica que, apesar de ocupar uma área nobre no bairro Menino Deus, o Eucaliptos, com seus 2,3 hectares, não está sendo utilizado. “É um patrimônio histórico, mas não temos o que fazer com aquela área. A Prefeitura poderá dar um destino melhor”, acredita. Hoje, parte do local está ocupado por quadras de grama sintética, alugadas ao público.

Porto Alegre em festa

Cerca de 30 mil pessoas participaram do já tradicional Baile da Redenção (Naira Hofmeister/JÁ)

Naira Hofmeister

Finalmente Porto Alegre sente os primeiros ares outonais. Numa noite onde a temperatura média não ultrapassou os 20°C, cerca de 30 mil pessoas se aqueceram comemorando os 234 anos da capital do estado.

A festa começou no final da tarde, com a chegada dos primeiros ambulantes. Às oito da noite, as 14 barraquinhas da Praça de Alimentação já estavam prontas para receber os convidados dessa festa. O tradicional Baile de Porto Alegre estava pronto para começar.

Tradicional, mas não convencional: para entrar na festa, não é necessário convite e o salão é um enorme jardim, símbolo da capital. O Parque Farroupilha estava enfeitado na noite de sábado, 25. Brilhavam o Monumento do Expedicionário, o Chafariz e o espelho D’Água, que receberam iluminação especial.

Vista do Espelho D’Água, com o palco ao fundo (Naira Hofmeister/JÁ)

Brilhavam também os badulaques high-tech vendidos pelos ambulantes do local. Pulseirinhas e colares de neon, que começaram a ser comercializados na edição de 2005, se transformaram numa febre entre adolescentes e crianças em 2006.

Brinquedinhos de neon foram atração para crianças e adolescentes (Naira Hofmeister/JÁ)

Passava um pouco das nove da noite quando o Conjunto Impacto subiu ao palco, montado em frente do Chafariz Central. No repertório, os hits que, literalmente fazem a galera levantar poeira. Axé Music, Raggae e Pop Rock foram os estilos que embalaram a primeira parte da noite, mas não faltaram também os clássicos dos anos 70 e 80 da música internacional, como Creedence e The Eagles. Na Tenda da Juventude, os DJs das rádios da cidade se revezavam na discotecagem, tocando desde o funk carioca até famosos clássicos dos anos 80 do Rock Nacional. Destaque para o Legião Urbana, e seu fã club, que sempre se faz presente.

Na Tenda da Juventude, discotecagem de famosos animou a galera (Naira Hofmeister/JÁ)

Todos os tipos de som, todos os tipos de público. Tinha porto-alegrense de tudo que era jeito: cabeludo, careca, hippie e punk, velho e moço. Tinha até porto-alegrense meio baiano, como o Tétão, vendedor de amendoins. Apesar do chapéu de cangaceiro, Tétão garante que nasceu aqui mesmo: “É só marketing, moça”, se desculpa.

Vendedor de amendoins apostou no  marketing nordestino (Naira Hofmeister/JÁ)

Aproxima-se a meia noite e a festa só aumenta, embalada por quantidades industriais de cerveja, Comemoram os festeiros e também os catadores de latinha, que não precisavam nem de dez minutos para fechar os sacos, completamente cheios.  O Parabéns à Você foi entoado com vontade, e Porto Alegre ganhou uma extensa salva de palmas.

O ápice da festa foi a queima de fogos, que esse ano, teve quatro minutos a menos, em função dos habitantes que querem comemorar em silêncio. A organização explicou que os animais do Mini-Zôo da Redenção ficavam muito agitados com o show pirotécnico. Isso sem falar nas reclamações dos prédios vizinhos, que, com a festa no quintal de casa, não conseguiam dormir. Ao som de uma peça do compositor Radamés Gantalli, oito minutos para olhar o céu. Se estava sem estrelas quando a festa começou, brilhou muito e arrancou suspiros da platéia durante a queima do fogos.

Queima de fogos iluminou a noite na Redenção (Foto Ivo Gonçalves/PAMPA/JÁ)

Daí em diante, assumiu o controle da festa a Super Banda Caravelle, que tirou todo mundo do chão. Nobres e populares se misturavam no ritmo do caldeirão musical da banda. De Lambada ao Rock’n Roll, de Radamés Gnatalli à Teixeirinha, o povo esqueceu o relógio. Quando alguém percebeu, as quatro badaladas indicavam que era hora de ir para casa. Ainda bem que ano que vem tem mais…

Últimos dias para ver Joan Brossa no MARGS

Naira Hofmeister
As letras, a sujeira – em todos os seus aspectos – a humanidade e seus dilemas. Tudo aparece representado nas obras do Joan Brossa, em exposição no MARGS até domingo, 5 de março, na mostra De Barcelona ao Novo Mundo. O título alude à pouca divulgação que a arte de Brossa possui na América Latina, em oposição à fama de “catalão mais representativo do século 20” que construiu entre seus conterrâneos. A exposição faz uma retrospectiva das diversas vertentes do trabalho do artista através de objetos, instalações, poemas visuais, livros e cartazes, além de documentos sobre sua trajetória em fotografias e vídeos
Nas três salas do MARGS destinadas à mostra, uma variedade de materiais, temáticas, suportes e indagações. Brossa incorpora um ativista político na instalação que representa uma orquestra com seu regente, que ao invés de instrumentos, tocam a sinfonia da guerra com metralhadoras. A obra – assim como muitas outras – revelam um lado autobiográfico: o artista lutou ao lado do exercito republicano durante a guerra civil espanhola. Che Guevara também é homenageado em uma das obras de poesia concreta do catalão.
Através dessa vertente, Brossa revela a paixão que nutre pelas palavras, mas também o medo que elas podem provocar, como na representação onde, de um revolver, brota a palavra Poema. As relações humanas também estão explicitas na exposição: há analogias entre o casamento e a liberdade, ou o empregado e a exploração.
A mostra é resultado de uma parceria entre a Fundació Joan Brossa, o Institut Ramon Llull e o Ministério de Assuntos Exteriores e de Cooperação espanhol, com curadoria de Glòria Bordons e Sérgio Valenzuela. Já foi vista no Museo de Artes Visuales (MAVI, Chile, julho de 2005) e no Centro Universitário Maria Antonia da USP (São Paulo, outubro de 2005). Depois de passar pelo MARGS, a exposição segue para o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM, abril de 2006) e para o Centro Cultural Recoleta (Argentina, julho de 2006), encerrando o calendário de exibição no Instituto Camões (Portugal, outubro de 2006). A visitação tem entrada franca, das 10h às 19h.
O artista e sua obra*
Joan Brossa (1919-1998) é filho de uma modesta família barcelonesa. Remonta de sua infância o contato com o teatro popular, a literatura tradicional catalã e os espetáculos de ilusionismo e magia que tanto marcam sua obra. Para o artista catalão, magia é sinônimo de poesia, já que ambas possuem o poder de transformar a realidade. Grande quantidade dos trabalhos de Brossa tenta responder a questões sobre o lugar e a produção da poesia, além de demonstrar preocupação com o homem e com o mundo em que vivemos.
Com o fim da Guerra Civil, na década de 40, Brossa passa a sobreviver do comércio de livros, especialmente aqueles proibidos pelo franquismo. De volta a Barcelona, o artista conhece J.V.Foix, Joan Miró e Joan Prats que o introduzem no movimento surrealista. Em 1947, graças ao contato com Arnau Puig e Joan Ponç, Brossa empreende a aventura de Algol, embrião do que depois seria a revista Dau al Set. Começa daí uma constante ação na trajetória do poeta catalão: a parceria de trabalho e amizade com grandes nomes da arte como Eduardo Chillida, Chema Madoz e Fernando Krahn. No final da década de 40, Brossa realiza odes livres onde começa a reivindicação de uma Catalunha livre de submissões econômicas, políticas ou religiosas.
A partir de 1950, a produção poética do artista empreende um novo caminho, marcado pelo compromisso social, em parte graças ao poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, que lhe proporciona uma aproximação com a cultura brasileira e latino-americana. A partir daí Brossa passa a produzir odes, sonetos e peças, que na década de 60 vão somar-se à poesia visual, ultrapassando o significado da palavra para concentrar-se na letra.
Na década de 70 o impacto causado pela publicação de Poesia Rasa e os seis volumes de Poesia Escènica colocam Joan Brossa no patamar das figuras capitais da literatura contemporânea catalã, ao mesmo tempo em que seu trabalho nas artes plásticas é reconhecido internacionalmente. Neste mesmo período, o artista começa a trabalhar um novo gênero poético, a sextina, forma medieval com a qual experimentou até ao limite.
Às vésperas de completar 80 anos, Brossa continuava produzindo, até seu falecimento em 1998. Em seus últimos livros se constata uma serena e emotiva reflexão sobre a vida e a morte. Entre os inúmeros prêmios que o artista recebeu destacam-se o Cidade de Barcelona (1987); a Medalha Picasso da UNESCO (1988) e o Nacional das Artes Plásticas (1992).
* Com informações do MARGS

O espanhol Fernando Trueba sem papas na língua

Naira Hofmeister

Sua estréia em longas-metragens rendeu-lhe o urso de Prata do Festival de Berlim, em 1980. Ópera Prima não tinha nenhuma intenção de ser, como o significado da tradução no Brasil, algo primoroso, genial. Pelo contrário, leva esse título por ser a primeira obra do diretor, filmada em quatro semanas, sem verba alguma.

A aposta de Trueba foi que, após o estrondoso sucesso naquela temporada, seu nome ficasse conhecido e recebesse muitas indicações para novos filmes. Não foi o que aconteceu: “Um ano depois, desisti de esperar o telefone tocar e decidi converter-me em produtor”.

Vinte e cinco anos depois, o cineasta espanhol vem a Porto Alegre lançar o documentário O Milagre do Candeal, seu 12º longa-metragem, rodado em Salvador e protagonizado por Carlinhos Brown. Traz na bagagem 25 Prêmios Goya, mais do que seu colega, conterrâneo e, talvez, desafeto, Pedro Almodóvar: “Não sou fã dele, nem ele é meu”, diz.

Foi assim, direto, o diálogo que Fernando Trueba trocou com uma platéia de cerca de 40 pessoas no Hotel Sheraton, nessa terça-feira, 14. Além de cinema, e por meio dele, falou-se de política, globalização, neoliberalismo, música. E outras cositas más

Mesmo acumulando essa galeria de prêmios, Trueba continua desconhecido em boa parte do mundo, apesar de seus 12 longas. O mais famoso é Bélle Epoque, que lhe rendeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1993. “Todos os prêmios são uma estupidez, mas vão ajudar a montar novos filmes”, brinca.

Sem papas na língua, o cineasta zombou inclusive ao receber a estatueta mais cobiçada do mundo do cinema: “Gostaria de acreditar em Deus para agradecê-lo, mas só acredito em Billy Wilder. Obrigado”. Reclamou da retórica de agradecimentos “à Deus, à família e à toda aquela merda insuportável”. Controverso e polêmico, mas jamais autoritário.

Escrita: a essência da criação

A graça ele faz com facilidade. A poesia, com muito trabalho.  “O que mais gosto é de escrever. Com o tempo, aprendi a ter prazer na direção também, esquecer as pressões”, conta. Para Trueba, a ‘escritura’ de um filme passa por três partes. Primeiro, o roteiro, que  têm seqüência durantes as filmagens, “onde se escreve com a luz, os diálogos e a câmera” e, principalmente, na montagem. “Aceito que John Ford nunca tenha ido à sala de edição, ou que Buñuel montasse seus filmes em uma semana, pois tinham uma só possibilidade diante das poucas tomadas que realizavam para cada cena”.

Por isso, faz questão de ter material suficiente para escolher e montar o filme como quiser. “Pode ser insegurança, mas gosto de ter opção”, diz. Uma das poucas ‘imposições’ de Trueba é, sem dúvida, rolos de filme em quantidade. Para gravar quantas vezes quiser. Mesmo porque, o diretor não ensaia seus atores. “Quero sempre captar a virgindade do ator naquele plano. O ensaio pode resultar na perda da naturalidade”, defende.

A partir da primeira tomada, pode repeti-la quantas vezes for necessária, até que o resultado o agrade. Mas a técnica vale exclusivamente para a ficção. “No documentário não se tem o direito de repetir uma cena. É falta de respeito”, define. No caso de O Milagre do Candeal, ele explica que utilizou várias câmeras, bem distanciadas do núcleo da ação, para não intimidar os personagens.

Música para os olhos

Assim como O Milagre do Candeal, seus outros dois documentários Calle 54 (2000) e Mientras el Cuerpo Aguante (1982) versam sobre a música. Fã dos ritmos cubano e brasileiro, ele fundiu os dois universos em O Milagre do Candeal. Através do olhar visitante de Bebo Valdés, afamado pianista cubano, Trueba mostra a realidade do bairro do Candeal, em Salvador. O que outrora foi uma favela, hoje se transformou em um centro de excelência musical através do projeto da Escola Prakatum e outras iniciativas de Carlinhos Brown. A música desperta a cidadania e esforço da comunidade, que através de mutirões (re)constrói o lugar e o próprio modo de viver de cada um.

Ele faz um paralelo de suas duas paixões: “A música foi destruída nos anos 60 pela indústria fonográfica. E é isso que tentam fazer as majors com o cinema”, acredita. Trueba é crítico feroz da dominação americana. Credita aos Estados Unidos a culpa pela “hipnose coletiva sem sentido” a que somos conduzidos quando entramos numa sala de projeção.

Para Trueba, existem palavras intraduzíveis em todos os idiomas, e são elas que representam as características de seus povos. “No caso do Brasil é a saudade, enquanto nos Estados Unidos, bullshit.” Cita como exemplo o atual presidente da nação norte-americana, George W. Bush, de quem é ferrenho inimigo.

Obras históricas viram pó no velho Instituto

Naira Hofmeister
A cena se repete todos os dias: centenas de alunos do Instituto de Educação General Flores da Cunha sobem as escadarias do prédio para as salas de aula, biblioteca e outras dependências da escola.
Poucos reparam nas três grandes telas que ornamentam o lugar, preservando a memória histórica e o patrimônio artístico gaúcho. Mesmo um observador atento encontraria dificuldades para distinguir nas pinturas as figuras de Garibaldi, a Ponte da Azenha, os imigrantes açorianos na chegada a Porto Alegre, em 1752. As imagens, pintadas por Augusto Luiz de Freitas e Lucílio de Albuquerque, praticamente desapareceram depois de anos de abandono. Afora a sujeira – as telas estão cobertas de pó –, as três obras tem manchas de água, consequência de uma inundação ocorrida em 1984.
Pode-se observar ainda partes rasgadas pelo cascalho que ficou entalado entre a tela e o suporte. Mais: a tinta está ressecada e sem pigmentação, os contornos das figuras se perdem, as molduras estão tomadas por cupins e a iluminação local é péssima. Teias de aranha, chiclés e nomes “assinados” nas molduras completam a triste realidade dessas obras de arte. “Considerando que as
telas estão nessa escola pública, onde não há educação patrimonial nem conscientização de conservação, poderia ser muito pior”, exclama Thaís Gomes Fraga, funcionária do arquivo do IE.
A despeito da desconsideração diária que sofrem, as telas mantém sua imponência, ao menos por seu tamanho. As duas menores medem mais de 5m x 3m e a maior, localizada no centro da escadaria, 6m30cm x 5m50cm. Datam do início do século 20, entre 1916 e 1923 e originalmente deveriam adornar as paredes do Palácio Piratini, sede do governo gaúcho. No Brasil, apenas duas
outras telas clássicas superam em tamanho as expostas no IE.
“Agora parece que estamos no caminho certo”
Após 20 anos de luta, finalmente um projeto da Associação de Ex-alunas foi aprovado pela LIC estadual, para receber investimentos em troca de isenção fiscal, mas Cecília Heckthever diz que está tendo dificuldades em encontrar parceiros para o trabalho: “As pessoas têm medo de apoiar, pois há um descrédito nas coisas públicas”, exclama.
Segundo Cecília, o vice-governador Antônio Hohlfeldt “prometeu céu e terra” ao grupo que pede a restauração. “Ele disse que se sentia compromissado com a instituição na qual sua mãe havia estudado, mas agora deve ter coisas muito mais importantes para fazer”, ironiza.
Por conta do descaso dos governantes, um dos prováveis parceiros da obra, se mantém indeciso: “O Tumelero viu com simpatia a idéia, mas está esperando uma palavra do vice-governador para liberar os recursos”.
O maior problema para a restauração das três telas do Instituto de Educação é o estado e o tamanho de cada quadro. “Precisaremos de dois ou três meses de trabalho antes de removê-las, pois assim como estão, vão se romper com certeza”, diz Leila Sudbrack, a restauradora. O primeiro passo será a limpeza, no local onde elas estão. Depois, uma substância fixadora da tinta será colocada sobre as telas. “A primeira fase da restauração é o que eu chamo de terapêutica ou hospitalar”, brinca a restauradora. “É a etapa mais preocupante, que leva mais tempo e dá mais trabalho, mas é pura tecnologia”, esclarece.
As técnicas utilizadas serão as mais avançadas no mundo: “São as mesmas usadas na recuperação da Capela Sistina”, exemplifica.
O trabalho final, ao contrário, utiliza técnicas artesanais do século 19 onde entra a habilidade dos restauradores. Leila explica que o maior cuidado desses profissionais será o de não intervir nas características do pintor. “São pinceladas quase matemáticas, calculadas para que o novo traço não venha a competir com os do artista”. A cor utilizada também não é a mesma que a utilizada originalmente, ficando um tom abaixo. A previsão é que as obras durem 2 anos.
IE pode entrar para o Circuito Cultural porto-alegrense
Se tudo der certo, dentro de 2 anos os quadros estarão totalmente renovados e prontos para serem apreciados pelo público. O projeto da Associação, que tem todo o apoio de Leila Sudbrack, é incluir o Instituto de Educação na rota artística de Porto Alegre.
Para isso, estudam alternativas como investir em iluminação adequada, realizar campanhas de preservação patrimonial entre os alunos e ate mesmo cobrar ingressos dos visitantes para observar as obras. “Temos que rever a conservação, mas eu só abraço uma briga por vez”, brinca Cecília.
Dados das obras
Chegada dos Açorianos
Autor: Augusto Luiz de Freitas
Localização: Centro da escadaria
Dimensões: 6m30cm X 5m50cm
Local e data: Roma, 1923
Batalha da Azenha
Autor: Augusto Luiz de Freitas
Localização: Lado direito da escadaria
Dimensões: 5m64cm X 3m76cm
Local e data: Roma, 1922
Expedição à Laguna
Autor: Lucílio de Albuquerque
Localização: Lado esquerdo da escadaria
Dimensões: 5m45 X 3m312cm
Local e data: Rio de Janeiro, 1916
Para ajudar

Associação dos Ex-alunos do Instituto de Educação general Flores da Cunha
Endereço: Av. Oswaldo Aranha, 527 – Bairro Farroupilha – Porto Alegre – RS
Fones: 3311.0386 (segundas, quartas e sextas das 14h00 às 17h30).
Ligue também: 3221.7941/9961.7623 Amélia Bulhões/ 3227.3918 Valdeci Bezerra
3217.9406/9115.0426 Gilda Vasconcelos
E-mail: ass_exalunosie@yahoo.com.br
Site: www.sosarteie.com.br