1964: Antes do golpe, um assalto à opinião pública

1964: Imprensa encobriu a conspiração e deu apoio total ao golpe

Luiz Cláudio Cunha*
Nas origens da conspiração que levou ao golpe de 1964, está a digital da mídia que ajudou, por atos, fatos e versões, na criação do clima político que lançou o país num abismo autoritário de 21 anos.
E ajudou, depois, na consolidação do regime, com seu apoio explícito.
Ninguém dissecou isso melhor do que o professor uruguaio René Armand Dreifuss (1945-2003).
Em 1981, aos 36 anos, ele publicou no Brasil sua tese de doutorado produzida nos cinco anos anteriores na Escócia.
Nas 814 páginas de seu livro* (1964: A conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Ed. Vozes) Dreifuss confirma: 1964 não foi uma simples quartelada, ou ato improvisado de um general impulsivo que de repente botou os tanques nas ruas.
Em novembro de 1961, três meses após a posse de Goulart, nasceu no Rio o IPES, Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais. Reunia a nata do empresariado, nacional e multinacional, com todos os nomes, sobrenomes e siglas que ainda hoje enfeitam as listas das maiores empresas do país.
Parecia um inocente clube de homens de negócios. Mas, na sua face oculta, sob siglas e codinomes, o IPES concentrava a execução metódica de um pensado plano para combater, de forma clandestina, três principais inimigos: o Governo Jango, a aliança nacionalista do PTB e o comunismo, que aparentemente resumia tudo aquilo.
O braço político ostensivo do IPES era o IBAD, Instituto Brasileiro de Ação Democrática, que apesar do nome tinha ligações com o MAC, Movimento Anticomunista, e com a organização da direita católica Opus Dei.
O fundador do IBAD em 1959 foi o integralista Ivan Hasslocher, dono da Promotion, agência de publicidade que promovia o lobby do instituto e seu braço parlamentar, a ADP – Ação Democrática Popular, um núcleo conservador de 160 parlamentares da centro-direita no Congresso.

Com o clima de vitória criado pelos jornais, até Lacerda saiu para rua
Com o clima de vitória criado pelos jornais, até Lacerda saiu para rua

Segundo Dreifuss, a ADP tinha sua ação política patrocinada pela secção carioca da CIA, a agência de inteligência americana.
A partir de 1962, juntaram-se as duas entidades: nascia o complexo IPES/IBAD, matriz ideológica e operacional da conspiração que daria o golpe e, depois, forneceria os quadros e dirigentes do aparato estatal que sustentou o regime militar.
Em 1963, os 80 membros originais do IPES pularam para 500. Eram sócios 26 dos 36 líderes da FIESP, a maior federação industrial do país.
Em Porto Alegre, a versão local tinha o nome de IPESUL e sobrenomes ilustres como o lojista Fábio Araújo Santos, da rede JH Santos, José Zamprogna e Ary Burger, diretor do Grupo Gerdau, Antonio Saint Pastous, presidente da Farsul, entre muitos outros.
A articulação dos empresários com os militares era feita pelo Grupo de Levantamento da Conjuntura (GLC) do IPES, comandado pelo general Golbery do Couto e Silva.
A equipe de Golbery distribuía nos quartéis uma circular bimestral mimeografada, sem citação da fonte, avaliando a atividade “comunista” no país, apontando o dedo para “subversivos infiltrados no governo” e mapeando suas ações. Só no Rio de Janeiro o GLC de Golbery tinha três mil telefones grampeados .
O grupo do general ocupava quatro das 13 salas que o IPES havia alugado no 27° andar do Ed. Avenida Central, na av. Rio Branco. A conta do telefone era faturada em nome do general da reserva Henrique Geisel, irmão de Ernesto. Em Porto Alegre, o IPESUL operava no quarto andar do Ed. Palácio do Comércio, no centro.
Três frentes
O GLC escrutinava a produção diária da imprensa do país e produzia mensalmente cerca de 500 artigos, disseminados pelos jornais ou divulgados em forma de palestras. O Grupo de Atuação Parlamentar (GAP) do IPES proibia qualquer menção à sigla, que era camuflada como “Escritório de Brasília”. O plano era simples e mortal: o IPES, através do IBAD e da ADP, emparedava o governo no Congresso, criando um beco sem saída parlamentar e um ponto morto do Executivo.
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Era fundamental manipular a expressão da sociedade. O objetivo central do Grupo de Opinião Pública (GOP) do IPES era disseminar seus objetivos na imprensa falada e escrita.
Dissimulado, o grupo evitava o nome “opinião pública”, preferindo as expressões “divulgação” e “promoção”. O GOP era “a base de toda a engrenagem”. “Conquistar a opinião pública” era a essência da ação política do grupo.
O principal articulador do GOP o ex-comissário de Polícia, José Rubem Fonseca, que se tornou, depois, um dos escritores mais festejados do pais. Outros destaques do GOP no Rio eram os jornalistas Glauco Carneiro e Wilson Figueiredo, este do corpo editorial do Jornal do Brasil. Em São Paulo, o GOP atuava com Geraldo Alonso, dono da Norton Propaganda, e nomes ilustres de O Estado de S.Paulo, como Ênio Pesce e Flávio Galvão. Contava ainda com Jorge Sampaio e Alves de Castro, os dois nomes centrais do “Repórter Esso” da TV Tupi, o equivalente ao Jornal Nacional de hoje.
O GOP se valia da tecnologia da época: enviava milhares de cartas e telegramas e fazia chamadas telefônicas, antecipando em décadas o advento telemarketing. Em novembro de 1962 chegava a três mil nomes a lista de organizações de rádio e TV mobilizadas pelo GOP. Aliado a ele funcionava o GPE, Grupo de Publicações/Editorial, que disseminava material impresso pelo país.
Esta campanha de guerra psicológica era tarefa do ex-comissário e contista Rubem Fonseca, que mobilizava intelectuais respeitados como Augusto Frederico Schmidt, Odylo Costa Filho e Rachel de Queiroz. Atuavam em três frentes: artigos para jornais e revistas, panfletos para circular entre estudantes, militares e operários, e livros que comparavam a democracia com a empresa privada.
Nomes fortes do mercado editorial, como Saraiva, Cia. Editora Nacional e GRD Editora, colaboravam na publicação da chamada “literatura democrática”.
Sinal verde
Em janeiro de 1963 a demanda por recursos era tão grande que o comando do IPES decidiu aprovar uma contribuição anual padrão de meio por cento do capital de cada sócio. O caixa 2 ou “contabilidade paralela” da entidade já somava US$ 4 milhões. O orçamento oficial do ano anterior estabelecia despesas mensais de 10 milhões de cruzeiros (US$ 300 mil na época) só no IPES carioca. A projeção do novo ano previa o dobro das despesas, sem contar o gasto com atividades encobertas e sigilosas.
A CPI que investigou a ligação do IPES com o IBAD apurou que, nas eleições gerais de outubro de 1962, foram injetados entre 5 bilhões e 20 bilhões de cruzeiros (em termos atuais, entre 260 milhões a 1 bilhão de reais) para financiar 250 candidatos. Foram eleitos 110.
O embaixador americano no Brasil Lincoln Gordon, bem mais modesto, disse que o valor investido não superou 5 milhões de dólares
No Rio Grande do Sul, a aliança de centro-direita da ADP era integrada por PSD, UDN, PL, PDC e PRP. O vitorioso Ildo Meneghetti, um dos oito governadores apoiados pelo esquema, enfatizou que a indústria e o comércio locais – “sob a égide do IPESUL” – garantiram o resultado das urnas.
Dois dos deputados eleitos pelo IPESUL eram Peracchi Barcellos (PSD) e Euclides Triches (PDC), mais tarde nomeados governadores do Rio Grande, pela ditadura.
marcha da familia 1964Quem se habilitava a integrar a lista de “democratas convictos e anticomunistas de primeira ordem” passava pelo crivo dos analistas do IPES/IBAD. Tinha que assinar um “ato de compromisso ideológico”, pelo qual prometia lealdade ao IBAD, lutar contra o comunismo e defender o investimento estrangeiro.
O chefe do GAP (Grupo de Ação Parlamentar) do IPES, o banqueiro Jorge Oscar de Mello Flores, avaliava os candidatos pelo coeficiente eleitoral. De início, ele calculava que cada deputado “custaria” cerca de 6 milhões de cruzeiros (cotação atual: R$ 317 mil) nos Estados menores. “Os candidatos de Rio e São Paulo eram muito mais caros”, explicou Mello Flores, ao avaliar a conta per capita dos deputados no balcão do IPES: 15 milhões de cruzeiros (cotação atual: R$ 792 mil).
O orçamento de um candidato “apagado”, isto é, pouco conhecido e de limitada agressividade eleitoral, incluía despesas com equipamento de som, 40 mil cartazes, 600 faixas, fotografias, espaço em jornais, mensagens no rádio e TV, discos de jingle, gasolina, correspondência e pessoal de apoio…
Outras empresas ligadas ao IPES colaboravam com seus serviços, como no caso das passagens aéreas gratuitas liberadas pela Panair, Cruzeiro do Sul e Varig. Uma única empresa estrangeira, a Deltec, do americano David Beaty III, sócio do IPES, abriu uma “caixinha” de US$ 7 milhões.
O IPES recebeu apoio financeiro de 297 corporações americanas. Passavam o chapéu entre empresas britânicas, suecas, alemãs.
Rezas e cânticos
Na véspera da eleição de 1962, a Promotion, empresa de Ivan Hasslocher, líder do IBAD, arrendou o jornal carioca A Noite por 90 dias, ao custo mensal de 2 milhões de cruzeiros (cerca de R$ 100 mil no câmbio atual) para propaganda direta.
A revista Repórter Sindical também era operada pela entidade. O órgão oficial do IBAD, Ação Democrática, circulava mensalmente com 250 mil exemplares e textos de gente como o economista Eugênio Gudin e o líder udenista Aliomar Baleeiro.
No início de 1963, um manifesto de 500 profissionais de prestígio, organizados pelo Centro Democrático de Engenheiros, ligado ao IPES, foi publicado no Jornal do Brasil e em O Estado de S.Paulo.
Manifestos variados, todos “democráticos”, proliferavam na imprensa e eram retransmitidos pela dupla IPES/IBAD. Eles tinham uma agência de notícias, a Planalto, que redistribuía o material a 800 emissoras de rádio e jornais do país.
Um milhão de cópias da “Cartilha para o Progresso”, feita pelo IPES, exaltando os benefícios da Aliança para o Progresso do governo americano, foi encartada como suplemento da Fatos&Fotos, revista de grande circulação da Editora Bloch.
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O IPES gastou 10 milhões de cruzeiros para produzir 15 programas de TV para três canais diferentes. Eram entrevistas de questionários preparados pela entidade, com jornalistas de confiança e gente selecionada para responder sobre reforma agrária, custo de vida, democracia.
Estavam escaladas neste time algumas personalidades gaúchas como o senador Mem de Sá, os deputados Daniel Faraco, Egydio Michaelsen, Paulo Brossard e Raul Pilla, o prefeito Loureiro da Silva e o arcebispo dom Vicente Scherer.
Em 1962, o IBAD operava diariamente mais de 300 programas de rádio no horário nobre das principais cidades do país. A rede de mais de 100 estações ligadas a ele formava a “Cadeia da Democracia”, sob o comando do senador João Calmon, dos Diários Associados.
O maior produtor de filmes comerciais do país, Jean Manzon, foi contratado pelo IPES para produzir filmes como “Que é a democracia”, “Deixem o estudante estudar”, “Uma economia estrangulada”, “Criando homens livres”.
Eram filmetes de 10 minutos, projetados antes do vibrante faroeste nas matinês do interior do país, em três mil salas de cinema. As cópias ficavam sob guarda de Luiz Severiano Ribeiro, o maior distribuidor e proprietário de salas do Brasil.
Quando a platéia não aparecia, o cinema ia até o público. O IPES montou o projeto do “cinema ambulante” em caminhões abertos e ônibus com chassis especiais, que percorriam favelas, bairros populares e cidades distantes.
Era um mutirão democrático: a Mesbla fornecia os projetores, a Mercedes Benz emprestava os caminhões e a CAIO montava a carroceria dos ônibus.
O IPES jogava seu charme também sobre as mulheres. Custeava, organizava e orientava politicamente as duas organizações femininas mais importantes do país: a CAMDE ( Campanha da Mulher pela Democracia), no Rio de Janeiro, e a UCF (União Cívica Feminina, de São Paulo).
O MAF, Movimento de Arregimentação Feminina, na capital paulista, tinha 6 mil filiadas em São Paulo e era presidido por Antonieta Pellegrini, irmã de Júlio de Mesquita Filho, dono de O Estado de S.Paulo e um dos principais patronos do IPES.
Com um rosário nas mãos e um afiado discurso anticomunista, as donas de casa foram à luta para mobilizar as esposas de militares, sindicalistas e funcionários públicos. Mais de 50 mil cartas atulharam o correio dos parlamentares no Congresso, em Brasília.
A primeira reunião da Camde no Rio realizou-se no auditório de O Globo, que garantia espaço no jornal e na rádio para a agitação das mulheres.
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Em janeiro de 1964, ao saber de um iminente congresso da CUT da América Latina em Belo Horizonte, a LIMDE ( Liga da Mulher Democrata) ameaçou invadir o aeroporto da Pampulha e deitar as militantes na pista para impedir a reunião subversiva. O encontro foi transferido para Brasília.
Em fevereiro, quando Leonel Brizola passou por lá para defender as reformas, o auditório da Secretaria da Saúde na capital mineira foi invadido por um pelotão de mulheres, com o terço nas mãos, gritando slogans contra o belzebu vermelho. Brizola teve que se calar, diante do tumulto e dos objetos voando pelo salão, num episódio conhecido como a “Noite das Cadeiradas”.
No comício da Central do Brasil no Rio de Janeiro, em 13 de março, duas semanas antes do golpe, Jango mirou nas mulheres: “Não podem ser levantados os rosários da fé contra o povo, que tem fé numa justiça social mais humana e na dignidade das suas esperanças”.
O IPES interpretou o ato como uma bofetada nas mulheres e em Nossa Senhora. Uma semana depois, 19 de março, a UCF paulista reagiu no dia de São José, santo protetor da família, com uma marcha na Praça da Sé com cerca de 500 mil pessoas, uma multidão cinco vezes maior do que o comício da Central.
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Eram puxadas pela reza fervorosa do padre americano Patrick Peyton, financiado pelo IPES, e bradavam sua graciosa palavra de ordem: “Vermelho bom, só batom”.
O sucesso da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que originalmente deveria se chamar “Desagravo ao Santo Rosário”, inflamou o movimento.
Marcaram outra, maior ainda, para o Rio de Janeiro em 2 de abril. Mas o general Olympio Mourão Filho sacou primeiro em Juiz de Fora, 48 horas antes da marcha do Rio. E o ato de protesto virou a “Marcha da Vitória”: quase um milhão de pessoas, lideradas pelo Camde e pelo IPES.
Na medida em que avançava a conspiração, crescia a presença militar sobre a base parlamentar. Era hora de sair do discurso para a prática.
O IBAD cede seu lugar de destaque para outra sigla – a ESG, da Escola Superior de Guerra, de onde provinha o núcleo fardado do golpe.
O novo complexo IPES/ESG alinhava 330 oficiais, de majores a generais de Exército, fazendo a ligação do mundo empresarial com os quartéis.
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A classe média doutrinada sai às ruas para comemorar o fim da baderna

No Rio Grande do Sul, foco principal da resistência de Brizola na “Campanha da Legalidade”, dois terços da oficialidade já estavam engajados na conspiração. O deputado Peracchi Barcelos (PSD), coronel da Brigada Militar, eleito pela lista do IPESUL, tratava de sublevar a força pública do Estado.
O general da reserva Armando Cattani organizava grandes fazendeiros no interior em unidades paramilitares que seriam acionadas na hora precisa.
Na dura expressão de René Dreifuss, “o IPES conseguiu estabelecer um sincronizado assalto à opinião pública” pela relação especial com os principais veículos da mídia nacional.
Com exceção da Última Hora de Samuel Wainer, fiel até o fim a Jango e ao PTB que financiou seu jornal, todos os grandes veículos foram ostensivamente partidários do golpe, antes e depois. Pelo menos até a ruptura violenta do AI-5, que transformou velhos companheiros da conspiração em vítimas da truculência da ditadura.
No Rio Grande do Sul, o alinhamento dos jornais com a conspiração e com o regime militar era natural. O Diário de Notícias, de Chateaubriand, tinha orientação do dono para bater no governo e apoiar a oposição empresarial e militar. Zero Hora já nasceu depurada e lavada ideologicamente em 4 de maio de 1964, um mês e quatro dias depois do levantamento militar do general Olympio Mourão.
Nota discreta
Nos idos de 1962, o líder do IPES carioca José Luiz Moreira de Souza, dono da Denison Propaganda, viajou a Porto Alegre para botar a Caldas Júnior (Correio do Povo, Folha da Tarde e Rádio Guaiba) no balaio da conspiração.
Ganhou as graças de Arlindo Pasqualini, irmão de Alberto, ideólogo do trabalhismo que o IPES combatia. Arlindo, diretor da Folha da Tarde e o sucessor natural do dono da empresa, Breno Caldas, recebeu a missão de produzir uma série de artigos contra Leonel Brizola.
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No editorial da primeira edição do jornal, no longínquo ano de 1895, Caldas Jr. tinha definido um lema e uma linha para o jornal que se tornaria centenário: “Independente, nobre e forte – procurará sempre sê-lo o Correio do Povo, que não é órgão de nenhuma facção partidária, que não se escraviza a cogitações de ordem subalterna.”
Nos primeiros editoriais após o golpe de 1964, o jornal abandonou sua histórica divisa, aderiu à facção vitoriosa e adotou uma postura subalterna à nova ordem militar.
E escancarou seu apoio em editoriais didáticos para explicar por que os revolucionários de 31 de março estavam certos: “Aquele era o único caminho para salvar o Brasil”, dizia o jornal, fazendo coro com a grande imprensa golpista do centro do país.
* Resumo do ensaio “Máximas e Mínimas: os ventos errantes da mídia na tormenta de 1964”.

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2 de abril de 1964: Presidente acuado chega a Porto Alegre pensando em resistir

ELMAR BONES
O presidente João Goulart chegou a Porto Alegre às 3h15 da madrugada naquele dois de abril de 1964.
Desceu do avião fumando e tenso, mas procurou mostrar-se sorridente ao chegar no saguão do aeroporto, onde o esperava uma pequena multidão de políticos e autoridades.
Ali estavam o comandante do III Exército, general Ladário Telles, o ex-governador e então deputado Leonel Brizola, o prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise entre muitos outros.
No carro, a caminho da casa do general Ladário Telles, o presidente quase não falou. Descansou um pouco e às 8h da manhã saiu na porta da casa, onde falou rapidamente com os jornalistas. Disse que ia resistir.
Em seguida, reuniu-se com os chefes militares de todas as unidades no Rio Grande do Sul para avaliar as chances de resistência.
Há dois dias o presidente via seu governo desmoronar. Primeiro, teve que deixar o Rio, onde estava quando estourou a rebelião militar em Juiz de Fora.  Depois em Brasilia, onde mal teve tempo de limpar as gavetas. E, finalmente, Porto Alegre, no seu Estado Natal, onde iniciara sua carreira política.
Em Brasilia, inclusive, àquela hora já tinha outro na sua cadeira, o deputado Rainieri Mazzili, entronizado na madrugada pelos golpistas.
O general Telles foi o primeiro a falar e se mostrou disposto a seguir instruções do presidente, inclusive partindo para o contra-ataque aos golpistas.
Jango quis ouvir os outros generais. O primeiro deles, Floriano Machado, disse que “qualquer resistência seria uma aventura”.  Os demais seguiram no mesmo tom. Apenas Leonel Brizola insistia em enfrentar a quartelada.
Propôs a formação de um novo governo e a formação de corpos de voluntários que seriam armados e apoiados por unidades militares que se mantinham fiéis ao presidente em São Leopoldo, Vacaria, São Borja e Bagé.
Jango atalhou, com a frase que vários testemunhos guardaram: “Não quero derramamento de sangue em defesa do meu mandato”.
E ordenou ao general Ladário: “Tome providências para me dirigir ao aeroporto”
Jango voou para São Borja, onde se deslocou entre suas fazendas enquanto aguardava aconcessão de asilo pelo governo uruguaio.
Dois dias depois, no dia 4 de abril, desembarcou na base aérea de Pando, próximo a Montevidéo, onde recebeu asilo político. O golpe no Brasil estava vitorioso.
Em Porto Alegre, a cidade que havia resistido ao golpe dois anos antes, o clima está resumido no depoimento de Olympio Tabajara, ex-secretário do governo estadual: “Eu saí da repartição, no centro, ao meio dia. Quando fui atravessar a Praça da Alfândega, encontrei um amigo que me disse: tudo acabado o Jango fugiu. Fui para minha casa, no Partenon, almoçar “.
 O GENERAL QUE NÃO SABIA DE NADA
O chefe da Casa Militar da Presidência da República no governo Jango, era o general Argemiro de Assis Brasil, gaúcho.
Nas primeiras horas da manhã de 31 de março, quando chegou ao Palácio Laranjeiras, no Rio, o general foi informado que havia “um levante na guarnição de Minas Gerais”.
Ele passou a informação ao presidente João Goulart, que indagou: “Você acha que isso é verdade?”. O general respondeu: “Acho, porque o general Mourão Filho e o general Guedes estão conspirando há muito tempo”.
Dias antes, o general havia dito ao presidente que Mourão era “um velhinho que não é de nada”.
Jango ficou fechado em seu gabinete. Saiu pouco depois das nove para visitar o ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro, que estava hospitalizado. O ministro apontou o telefone na mesinha ao lado e tranquilizou o presidente. Estava acompanhando tudo, situação sob controle.
Jango mencionou Policia Militar na mão de Lacerda. já em movimentos ostensivos pelas ruas do Rio. O general, impassível: “Deste telefone eu resolvo tudo, presidente”.
Manoel Leães, o Maneco, que foi piloto de Jango trinta anos assistiu à conversa e em seu livro “Meu Amigo Jango” registra: “Até hoje acredito que o ministro Jair Dantas Ribeiro estava mancomunado com outros generais golpistas, ao menos para facilitar a deposição do presidente.
A intenção de Jango, segundo diversos testemunhos era substituir o ministro pelo marechal Henrique Teixeira Lott. Por que Jango não trocou o ministro? “Acho que ele não quis desmoralizar o general, talvez em consideração a sua doença”, diz Maneco. “O presidente João Goulart não quis substituir seu ministro para não desgostá-lo”, diz Hélio Silva.
O outro homem do dispositivo militar de Goulart era o general Assis Brasil. Costumava dizer: “Não tem perigo. Comigo é na ponta da faca. Nosso dispositivo é o melhor já armado neste país”. Assis Brasil disse depois do golpe “que nunca houve tal dispositivo militar”.
Eram três da tarde, quando Jango chamou o general Ladário Telles, que estava de férias em Friburgo. A mudança do comando no III Exército estava decidida há vários dias, mas só agora o presidente iria efetivá-la.
Seu plano era colocar o gaúcho Ladário Telles no Rio Grande do Sul, substituindo Benjamin Galhardo, que deveria voltar para o Rio e ocupar o lugar de Castello Branco, na chefia do Estado Maior das Forças Armadas. Castello era um dos líderes ostensivos do movimento contra o governo.
A caminho do palácio para a reunião com o presidente, o general Telles notou o “movimento desusado” no prédio do Ministério da Guerra: “Dizia-se que, no quinto e sexto andares, 200 oficiais armados preparavam-se para atacar o QG da 1ª Região Militar do I Exército, no terceiro e segundo andares”.
Hoje se sabe que eram sessenta oficiais da Escola Militar da Praia Vermelha, que tinham ocupado quatro andares no prédio, para impedir a prisão de Castello Branco, o líder dos conspiradores.
A audiência com o presidente durou poucos minutos. Um avião já estava à disposição para transportar Telles a Porto Alegre. Jango determinou também que, antes de embarcar, ele providenciasse a prisão de Castello Branco. Pela hierarquia, cabia ao comandante do I Exército, general Armando de Moraes Âncora, executar a ordem. Ladário, então, transmitiu a ele a ordem do presidente. “Senti hesitação no general Âncora. Várias vezes fiz-lhe ver que o tempo passava e o general Castello se retiraria do Ministério sem ser preso. Somente às 18 horas Âncora chamou Castello. Me pareceu que a prisão seria efetuada…”
Àquela hora Castello Branco não estava mais no prédio do ministério. Saíra em companhia de Ernesto Geisel e estava escondido num apartamento na avenida Atlântica.
Acreditando que a prisão seria efetuada, Ladário Telles foi para casa arrumar as malas. Eram 22h55min quando partiu. A bordo ouviu a declaração de Adhemar de Barros, o governador de São Paulo, aderindo ao golpe. Chegou em Porto Alegre a 1h20min, mas só na madrugada conseguiu assumir o comando. Já era tarde demais.
Ninguém acreditava no golpe
No dia 31, uma terça-feira, Porto Alegre amanheceu fria e com chuvisqueiro. O governador despachava no Palácio como se nada estivesse acontecendo. Desde cedo corriam boatos de golpe, mas isso não era novidade. O noticiário morno dos jornais do dia não indicava qualquer anormalidade.

Porto Alegre, 1º de abril: quem saiu para saber o que estava acontecendo, viu a repressão
Porto Alegre, 1º de abril: quem saiu para saber o que estava acontecendo, viu a repressão

O Correio do Povo trazia na capa um terremoto no Alasca, com manchetes para Camboja, Hungria, Espanha e Rússia. Um destaque local era a crise de atendimento na agência dos Correios, em Santa Rosa.
Outra notícia importante foi o casamento de dona Vanisa Melo com o senhor Theodoro Medeiros, lá em Santa Maria. O único texto sobre o Brasil era do presidente americano Lyndon Johnson acusando Jango de ter muitos comunistas no governo.
Os jornais da época desinformavam tanto assim porque ou estavam alinhados com os conspiradores, ou totalmente contra, como no caso do tablóide Última Hora – sendo o único da esquerda, cometia o mesmo pecado dos demais de defender apenas um lado.

Jornais saúdam o golpe

As narrativas daqueles dias variam: muita gente viu muita gente nas ruas, mas a maioria viu só algumas escaramuças no centro. A tal massa, que já começava a se sentir órfã, ainda tentou agitar, com protestos no eixo Borges de Medeiros, rua da Praia, Largo da Prefeitura e Praça da Alfândega nos dias primeiro e dois de abril. Houve repressão e correrias. Alguém deu tiros numa das janelas da CEEE, não houve vítimas.

O Correio do Povo descreveu os protestos do dia primeiro como “atos de desatino de moradores de vilas e estudantes, sentindo-se abandonados à própria sorte”. O jornal saudou o golpe contra “o pólo infeccioso que tem em seu agente o ex-governador Leonel Brizola”.

Anos depois, Breno Caldas, dono do Correio do Povo, admitiria a parcialidade: “A posição do Correio foi favorável diante dos acontecimentos de 64. Cooperamos para sua eclosão. Aqui havia um foco dinâmico da esquerda manobrado pelo governador Brizola. Nós estávamos contra a situação que ele representava. Desta maneira, a revolução de 64 foi para nós bemvinda, desejada e saudada”.
O resultado óbvio da parcialidade generalizada é que o povão pouco sabia das coisas. Naquele 31, os jornais traziam apenas algumas dicas da tempestade que desabaria sobre a vida política.
Na primeira página do Diário de Notícias a manchete era quase uma mensagem em código do golpe: “Em Minas Gerais, Exército e FAB em rigorosa prontidão”, sem nenhum explicação do contexto.
O mais lido cronista social da época, Ibrahim Sued, deu em sua coluna do Diário apenas uma notinha de política: “O novo ministro da Marinha é um gagá que será joguete nas mãos de Leonel Brizola e sua troupe de comunistas”. Ele fechou a coluna com uma frase romântica, “quem nunca amou, nunca viveu”.
O mesmo Diário trazia uma mensagem de Páscoa do arcebispo Dom Vicente Scherer. Ela sim vinha carregada de política: “Cabe-nos, diletos fiéis, render graças a Deus haver preservado em nosso país a paz pública e a capacidade de resistir às adversidades econômicas e sociais”.
Lendo hoje as declarações dos luminares da política gaúcha da época, seria possível perceber que alguma coisa grave iria mesmo acontecer. Por exemplo, o ex-prefeito José Loureiro da Silva, deu uma entrevista na sede da Ação Democrática Feminina (ADF), reproduzida naquele dia pelo Correio, criticando “a ocupação de cargos da administração pública por comunistas”.
Ainda no fatídico dia 31, os jornais anunciaram uma possível reunião secreta que deveria acontecer no dia 2, no Palácio Piratini, entre os governadores Meneghetti, Carlos Lacerda (RJ) e Adhemar de Barros (SP), três conspiradores da primeira hora.
O Diário trazia uma nota interessante. Nela até se poderia identificar um dos golpistas – coisa que naquela hora poucos sabiam. Ao pé de uma lista de associados da Caixa de Assistência Social dos Oficiais, constava que “o general Humberto de Alencar Castello Branco vai deixar a chefia do Estado-Maior do Exército” – ele, Castello, deixou sim, mas para assumir, quase duas semanas depois, a cadeira de Jango.
Como 31 era terça e segunda os jornais não circulavam, eles traziam notícias do domingo anterior, de Páscoa. Alguns foram cordiais com o prefeito Sereno Chaise, que passara aquele dia visitando obras, e à primeira-dama Terezinha, por entregar 25 mil barras de chocolate Neugebauer para crianças carentes nos bairros da periferia.
Legislativo em parafuso
A Assembleia Legislativa entrou em parafuso no dia primeiro. Os deputados trabalhistas queriam instalar uma sessão permanente no teatro São Pedro, porque temiam que com o golpe a casa fosse fechada “pelos esbirros do governador Meneghetti”, como diziam.
No plenário, o deputado Paulo Brossard de Souza Pinto, mais tarde um formidável opositor da ditadura, fez um discurso a favor do golpe: “Felizmente para nós, as Forças Armadas encontraram em seu íntimo a defesa das instituições democráticas e a ordem constitucional que as exprime”.

Dia 3 de abril: já não havia mais protestos, mas tanques continuavam estacionados nas ruas
Dia 3 de abril: já não havia mais protestos, mas tanques continuavam estacionados nas ruas

A resposta veio de Pedro Simon, num duro protesto contra a deposição do presidente. Na Câmara de Vereadores, o presidente Célio Marques Fernandes, mais tarde prefeito nomeado pela ditadura, convocou uma sessão extraordinária – apressava-se para assumir o cargo vago com prisão de Sereno Chaise, horas depois.
Apesar do feriado bancário e escolar, que esvaziou a cidade, uma massa descrita como “janguista-esquerdista-brizolista-comunista” saiu às ruas, mas não chegou a reunir mais de três mil pessoas. Policiais do Dops e soldados da Brigada e do Exército dissolviam com violência as aglomerações. A Folha da Tarde saiu pouco depois do meio-dia, já trombeteando a vitória e elogiando o rigor das tropas na manutenção da ordem.
“A noite em que chegaram os tanques”
A casa que foi cenário do último ato de Jango no governo ainda está lá, intocada, 50 anos depois. Ainda serve à mesma função, ser a residência do general que estiver no comandante do III Exército.
Foi ali, na esquina da Cristóvão Colombo com a Carlos von Koseritz, que o general Ladário Telles hospedou Jango nas suas últimas nove horas como presidente do Brasil, em 2 de abril.
A casa já foi mais elegante, na época em que o bairro era mais nobre – hoje ela está numa esquina barulhenta, vizinha de um hotel e de um restaurante japonês. Os vizinhos amam sua presença porque um destacamento 24 horas guarda o pedaço.

Brizola: “Tomem os quartéis a unha”

O ponto alto da resistência foi o comício da noite do dia primeiro no Largo da Prefeitura. Brizola falou por volta das oito, para duas mil pessoas.
Brizola vinha botando fogo na massa todo dia pelo rádio e repetiu no comício seu mantra: “Quero iniciar a derrubada destes chefes militares golpistas e traidores. Atenção, sargentos do III Exército. Atenção, sargentos das unidades chefiadas por esses militares golpistas. Atenção, oficiais nacionalistas… O povo pede que os sargentos se levantem, tomem os quartéis e prendam os gorilas… tomem a iniciativa, a unha mesmo, com o que tiverem na mão, tomem as armas desses gorilas, tomem conta dos quartéis e prendam os traidores…”

Dali ele foi para o QG do III Exército usar o rádio para falar com Jango. O presidente estava voando para Porto Alegre e os dois teriam concordado que nenhuma reação seria organizada enquanto ele não chegasse. Mas Jango só chegaria na madrugada do dia 2 de abril, quando já era tarde para a resistência.

A tropa se esmera para cuidar do pequeno jardim da frente, com uma burocrática roseira no centro, uma cerca viva de metro e meio de altura e uma discreta guarita.
Naquele dia 2 de abril, a calma das noites da Cristóvão foi quebrada às 4 horas. O professor Francisco Outeiro, vizinho, lembrou anos mais tarde: “Acordei com aquele barulho enorme, estranho e assustador. Meu pai disse ‘são as lagartas dos tanques nos paralelepípedos’. Abrimos a janela e eram mesmo tanques”.
A barulheira também incomodou seu Albino Neitcke, dono da padaria Vitória, na esquina oposta da Koseritz. Mais tarde, às 7 da manhã, quando abriu a loja, soldados apareceram ordenando que ele afastasse mulheres e crianças.
“Eles ocuparam todas as esquinas com seus tanques”, lembrou seu Albino. “Um deles ficou estacionado no meu jardim”. Outra lembrança: “Minha mulher não deu bola para a ordem e ficou trabalhando, aquele foi um dia de muito movimento”.
A marquise da padaria ficou tomada por fotógrafos. “Deputados e outros políticos entravam toda hora na loja para tomar café, comer sanduíches, foi mesmo uma loucura”.
Seu Albino contou que os mordomos da casa do general vieram buscar quantidades extras de pão, manteiga, queijo e salame. “De repente, vi o Brizola sair da casa pela porta da frente, entrar num Fusca clarinho que estava estacionado no portão e descer a rua, ele mesmo dirigindo”.
Os jornalistas e os tanques sumiram para sempre. A padaria Vitória cresceu, continua firme na esquina. Mordomos do general ainda fazem compras ali. No jardim, um pé de cinamomo cresceu onde antes o tanque ficara estacionado.
Legalidade não se repetiu
No início da noite de 31 de março, o governador Ildo Meneghetti tentava saber a exata extensão da rebelião militar, quando foram cortadas as linhas telefônicas do Palácio Piratini. O governador convocou seus auxiliares para uma reunião. Havia chegado uma notícia alarmante: os sargentos haviam tomado um quartel em Bagé, obrigando o comandante a se refugiar em outra unidade.
O governador ficou também sabendo que ia chegar naquela noite um novo comandante para o III Exército, o mais poderoso dos quatro exércitos brasileiros, com jurisdição sobre Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina.

Avenida São João, São Paulo, dia 3: a vida volta ao normal
Avenida São João, São Paulo, dia 3: a vida volta ao normal

A lembrança da Legalidade, menos de três anos antes, fazia do Rio Grande do Sul um ponto estratégico, onde certamente os defensores de Jango tentariam resistir. Mas agora a situação era outra. A começar pela vitória da oposição a Jango e Brizola, que conseguira ganhar a eleição de 1962 e colocar o conservador Meneghetti, da UDN, no governo do Estado. Brizola estava em Porto Alegre no dia 31 de março. Só que agora ele era um deputado federal, não podia dar ordens à Brigada Militar nem requisitar emissoras de rádio para mobilizar a população em defesa do governo.
Além disso, ao contrário dos seus adversários, que há muito se preparavam para impedir que se organizasse uma resistência ao golpe no Rio Grande do Sul, os aliados de Brizola estavam completamente despreparados.
Mala de dinheiro para pagar a polícia
No dia 2, depois do meio dia, Jango decidiu partir para o exílio. Não havia mais como resistir.
Foi aí que começaram as trevas. Os golpistas soltaram as rédeas do Dops para prender seus adversários.
Houve um pequeno atraso no cronograma das prisões porque a turma estava com os salários atrasados. Os zelosos policiais se recusavam a prender antes de receber.
“De repente, uma mala de dinheiro apareceu no Palácio da Polícia e todos foram pagos”, lembrou anos mais tarde o então delegado Cláudio Barbedo. Com tal estímulo, um dos primeiros presos foi o prefeito Sereno Chaise – entrou no xadrez vestindo um impecável sobretudo cor de camelo.

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31 de março de 1964: 25 anos de ditadura começaram nesta noite

ELMAR BONES
Juiz de Fora, 31 de março de 1964, uma e meia da madrugada. O general Olympio Mourão Filho desiste de tentar dormir e retoma as anotações em seu diário.
Há quase uma semana, Mourão se considera pronto para um golpe, mas desconfia que o estão traindo.
Esperava um manifesto do governador de Minas, que seria a senha para colocar as tropas na rua.

Mourão já tinha morrido quando foi publicada a sua versão do golpe, em 1978
Mourão já tinha morrido quando foi publicada a sua versão do golpe, em 1978

Em vez de mandar o texto antes, para ele, o governador entregou o manifesto à imprensa. E o conteúdo não era o que haviam combinado!
“Eu estava uma verdadeira fúria”, anotou depois. “Meu peito doía de rachar. Tive que pôr uma pílula de trinitrina embaixo da língua”
Mourão Filho, general de três estrelas, comandante da 4ª Região Militar, uma das principais forças terrestres do Exército brasileiro, estava mesmo descontrolado naquela noite.
-“Idiotas. O Chefe Militar sou eu. Magalhães não terá desculpa perante a história… E o Guedes, um falastrão vaidoso que aceitou o papel triste… Fizeram isto, bancando os heróis, porque sabiam que eu era a própria revolução. Do contrário não se atreveriam a dar um passo. Irresponsáveis! Arriscando uma revolução tão bem planejada num momento de vaidade!”
Depois da explosão, acalma-se: “Acendi o cachimbo e pensei: não estou sentindo nada e, no entanto, em poucas horas deflagrarei um movimento que poderá ser vencido porque sai pela madrugada e terá que parar no caminho. Não faz mal…”
Em seu plano original, Mourão previa sair de Juiz de Fora, no início da noite, com 2.300  homens. Cobriria os 200 quilômetros até o Rio de Janeiro em cinco ou seis horas.
Antes de clarear o dia, tomaria de surpresa o prédio do Ministério da Guerra e o Palácio das Laranjeiras, onde estaria ainda dormindo o presidente João Goulart. Depois começava a caçar os comunistas.
Há uma semana “estava pronto”, mas vinha sendo retardado por artimanhas do governador Magalhães Pinto que, mineiramente, temia “se envolver numa aventura”.
Agora está decidido: “Vou partir para a luta às cinco da manhã… Ninguém me deterá. Morrerei lutando. Nosso sangue impedirá a escravização do Brasil”.
Depois se acalma novamente: “E o mais curioso de tudo isto é que, passada a raiva (já estou normal, bebi água e café) não sinto nada, nem medo, nem coragem, nem entusiasmo, nem tristeza, nem alegria. Estou neutro.”
Ilustração de Enio Squeff em acrílico sobre papel
Ilustração de Enio Squeff
em acrílico sobre papel

Anotou alguns nomes num papel e, quando o relógio marcou cinco horas, chamou a única telefonista de plantão na central de Juiz da Fora: “Quero prioridade absoluta e rápida para as ligações que vou pedir. Estou mandando a PM ocupar a Estação e a senhorita não diga palavra a ninguém”.
Considerou-se em ação: “Eu já havia desencadeado a Operação Silêncio”, anotou.
No primeiro telefonema, tentou alcançar o tenente coronel Everaldo Silva, que estava de prontidão no QG, “o telefone estava enguiçado”. Tocou, então, para o major Curcio e mandou desencadear a “Operação Popeye”, o plano militar que ele, Mourão, havia traçado e ao qual batizara com o apelido que lhe haviam dado no quartel pelo uso constante do cachimbo.
Em seguida, convocou os coronéis Jaime Portela e Ramiro Gonçalves para que se apresentassem imediatamente no quartel (nenhum dos dois apareceu). A seguir, ligou para o almirante Silvio Heck, comandante da Marinha, golpista de primeira hora: disse que estava partindo em direção ao Rio, para depor Goulart.
O próximo foi o deputado Armando Falcão, para que avisasse Carlos Lacerda, governador da Guanabara, o mais notório inimigo do presidente.
Falcão, assustado, ligou para o general Castello Branco, que era o líder militar de uma outra conspiração e que evitara sempre se envolver com Mourão.
Castello, que não tinha tropas, tentou falar com Amaury Kruel, o comandante do II Exército, a maior força militar do país. “Isso não passa de uma quartelada do Mourão, não entro nessa”, disse Kruel, quando foi alcançado por emissários. Kruel ainda era amigo de João Goulart.
Nesse meio tempo, Castello recebeu uma ligação do general Antonio Carlos Muricy, outro conspirador sem comando.
Muricy diz que fora chamado a Minas por Mourão, “que está rebelado”. Castello aconselha que vá “para prevenir qualquer bobagem”.
Enquanto isso, Mourão segue anunciando o golpe por telefone. Ao final de sua rajada de chamadas, fez questão de registrar que “estava de pijama e roupão de seda vermelho”. E não esconde o “orgulho pela originalidade”: “Creio ter sido o único homem no mundo (pelo menos no Brasil) que desencadeou uma revolução de pijama”.
Subiu um lance de escada até o quarto onde estava seu hóspede e cúmplice, o desembargador Antonio Neder, “que dormia como um santo”. Gritou: “Acabo de revoltar a 4ª Divisão de Infantaria e a 4ª Região Militar”. O amigo, “entre espantado e incrédulo”, perguntou: “Você agiu certo? Tem elementos seguros?”.
Mourão desdenha : “Vocês, paisanos, não entendem disso”. Eu estou certo, pode crer”. Na verdade, não tinha certeza de nada, nem mesmo se conseguiria tirar suas tropas do quartel.
Mourão em março de 1965, no Superior Tribunal Militar: o general linha de frente acabou na burocracia
Mourão em março de 1965, no Superior Tribunal Militar: o general linha de frente acabou na burocracia

Entrou no banheiro, fez a barba e leu alguns salmos da Bíblia, como fazia todos os dias. “Eu era um homem realizado e feliz. Não pude deixar de ajoelhar-me no banheiro e agradeci a Deus a minha felicidade, havia chegado a hora de jogar a carreira e a vida pelo Brasil!”
Abriu o chuveiro, banhou-se calmamente. Só então vestiu o uniforme de campanha e foi tomar café com Maria, sua mulher (“Não consigo me lembrar se o Neder tomou café conosco”, diz ele nos registros que fez dias depois).
A notícia de um golpe militar se espalhava rapidamente pelo país, mas o comandante do levante ainda não saíra de casa.
“A insurreição estava envolta numa nuvem que se parecia ora com uma quartelada sem futuro ora com uma tempestade de boatos”, registra Elio Gaspari.
Por volta das dez horas, ainda sem saber direito o que realmente estava acontecendo, o general Castello Branco saiu de seu apartamento, em Ipanema. Foi para o Ministério da Guerra, no centro, onde tinha seu gabinete de trabalho, no sexto andar. De lá ainda insistiu com o general Luiz Guedes, comandante da 4ª Divisão de Infantaria em Belo Horizonte, e o governador Magalhães Pinto para que detivessem Mourão. “Senão voltarem agora serão esmagados”.
Guedes, em suas memórias, tentou associar-se à ousadia de Mourão, dizendo que àquela hora também já estava rebelado, mas a verdade é que até aquele momento Mourão estava sozinho.
Mourão registra, desde o primeiro encontro entre ambos, a frase que Guedes repetia: “Quem levantar a cabeça primeiro, leva pau”.
Mourão Filho (E), ao lado de Magalhães Pinto: já articulava o golpe
Mourão Filho (E), ao lado de Magalhães Pinto: já articulava o golpe

O governador Magalhães Pinto, a quem Guedes seguia, desenvolvia um plano que permitisse recuos. Sua intenção era declarar Minas Gerais em “estado de beligerância”, contra o governo federal.
Esperava obter o reconhecimento dos Estados Unidos e, então, forçar João Goulart a renunciar. Seria instalado um mandato tampão até as eleições de 1965 , quando ele, Magalhães, seria o candidato imbatível – o libertador que afastara o perigo comunista.
O manifesto que lançou no dia 30 de março, escrito pelo mineiríssimo Milton Campos, defendia reformas de base e era tão cauteloso que o deputado federal Wilson Modesto, do PTB de Minas, leu a íntegra por telefone para Jango e o presidente respondeu: “Diga a Magalhães que está muito bom estou de acordo com ele”.
As ações do general Guedes, àquelas alturas, se limitavam à Prontidão da Polícia Militar, força estadual, e a consultas ao cônsul dos Estados Unidos em Belo Horizonte, para saber se os americanos estavam dispostos a ajudar com “blindados, armamentos leves e pesados, munições, combustíveis, aparelhagens de comunicações…”. Para “mais tarde”, precisaria de “equipamento para 50 mil homens”.
***
Enquanto isso, Mourão enfrentava dificuldades para levar as tropas à rua. O comandante do 10º Regimento de Infantaria, coronel Clóvis Calvão, não apoiava o levante. Mourão contornou o impasse dando férias ao coronel.
Dois outros coronéis e o comandante da Escola de Sargento de Três Corações, também rechaçaram a ordem de botar a tropa na rua e foram para casa.
Os recrutas de Mourão começam a se deslocar em direção ao Rio de Janeiro
Os recrutas de Mourão começam a se deslocar em direção ao Rio de Janeiro

Nada disso influiu no apetite do general. À uma da tarde, ele foi para casa almoçar e não dispensou sequer a sesta. Nessa hora, já se movimentavam forças para atacá-lo a meio caminho do Rio.
“Na avenida Brasil, principal saída do Rio e caminho para Juiz de Fora, marchavam duas colunas de caminhões. Numa iam 25 carros cheios de soldados, rebocando canhões de 120 mm… Noutra, em 22 carros, ia o Regimento Sampaio, o melhor contingente de infantaria da Vila Militar. De Petrópolis, a meio caminho entre o Rio e Mourão, partira o 1º Batalhão de Caçadores” (Gaspari).
“Tinham-se passado oito horas desde o momento em que se considerara insurreto. Salvo os disparos telefônicos e a movimentação de um pequeno esquadrão de reconhecimento que avançara algumas dezenas de quilômetros, sua tropa continuava onde sempre estivera: em Juiz de Fora.” (Gaspari)
Fardado, de capacete, Mourão, auto-intitulado Comandante em Chefe das Forças Revolucionárias, foi fotografado no meio da tarde, no QG da 4ª DI. Mas aos jornalistas ainda negava que estivesse rebelado.
O general Antonio Carlos Muricy, que Mourão chamou para chefiar a vanguarda da tropa que desceria em direção ao Rio, só foi chegar à Juiz de Fora às 18 horas.
Ao inspecionar as forças de que dispunha, Muricy comprovou que mais da metade eram recrutas mal preparados e a munição dava para poucas horas.
***
“Ele não é bem visto no Exército e provavelmente não liderará uma conspiração contra o governo, em parte porque não tem muitos seguidores. É visto como uma pessoa que fala mais do que pode fazer”, dizia um informe da embaixada americana.
A maioria dos 60 generais em atividade naquele momento, achava que Mourão não conseguiria tirar os soldados do quartel. Lacerda lhe disse isso diretamente. O general Murici, que ele convidou para comandar a vanguarda de suas forças em direção ao Rio, disse-lhe: “Você está louco? Acha que pode fazer uma operação dessas com soldados meninos com um mês de treinamento!”
Quando ele chegou a Minas, em setembro de 1963 para assumir o comando da 4ª.Região Militar, o governador Magalhães Pinto declarou depois da primeira conversa que tiveram, comentou: “Este general que veio comandar a Região ou é agente provocador do governo ou é louco, quer fazer uma revolução logo!” O general Costa e Silva a quem procurou várias vezes, sempre esquivou-se. “Não temos nada”. Para o historiador Hélio Silva, Mourão era um “homem bom, sofredor, pitoresco, capaz de assomos de cólera”.
***
O embaixador americano soube da rebelião por volta do meio dia do dia 31 de março. Imediatamente avisou Dean Rusk, chefe do Departamento de Estado. Ele não tinha Mourão em boa conta, mas ponderou: “(…) pode ser a última boa oportunidade para apoiar uma ação contra Goulart”.
Tanques e jipes do II Exército descem para o Vale do Paraíba. O golpe venceu
Tanques e jipes do II Exército descem para o Vale do Paraíba. O golpe venceu

A segunda vitória de Mourão aconteceu já na madrugada do dia primeiro de abril, quando o Regimento Sampaio, a mais bem treinada e equipada força militar do Rio, que saiu para atacá-lo. Ao alcançar a dianteira das tropas rebeladas, em vez de atirar, os oficiais simplesmente aderiram ao golpe. Os calejados “tarimbeiros” do Regimento Sampaio abraçaram os “soldadinhos meninos” de Mourão. “Eles passaram-se quando tudo parecia indicar nossa derrota”, anotou o general em seu diário.
Pouco depois, quando se deslocava para assumir a vanguarda das tropas que se dirigiam ao Rio soube pelo rádio do carro que não havia mais resistência. O golpe vencera e o general Costa e Silva havia assumido o Comando Supremo da Revolução, por ser o general mais velho em atividade. Não lhe restou mais que ir ao QG e apresentar-se ao novo comandante. Costa e Silva dormia e atendeu-o de cuecas. Ele quis reclamar, Costa colocou a mão em seu ombro: “Mourão foi tudo resolvido na base da hierarquia ( …) Não se preocupe velho, isso vai dar certo”. E recomendou-lhe ficar mais uns dias no Rio antes de regressar com as tropas. “Achei razoável , de vez que Costa e Silva não contava com quase nada, não dispunha de tropa. Minha obrigação era ficar e garanti-lo”. Ele  já era carta  fora do baralho.

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