1964: Imprensa encobriu a conspiração e deu apoio total ao golpe
Luiz Cláudio Cunha*
Nas origens da conspiração que levou ao golpe de 1964, está a digital da mídia que ajudou, por atos, fatos e versões, na criação do clima político que lançou o país num abismo autoritário de 21 anos.
E ajudou, depois, na consolidação do regime, com seu apoio explícito.
Ninguém dissecou isso melhor do que o professor uruguaio René Armand Dreifuss (1945-2003).
Em 1981, aos 36 anos, ele publicou no Brasil sua tese de doutorado produzida nos cinco anos anteriores na Escócia.
Nas 814 páginas de seu livro* (1964: A conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Ed. Vozes) Dreifuss confirma: 1964 não foi uma simples quartelada, ou ato improvisado de um general impulsivo que de repente botou os tanques nas ruas.
Em novembro de 1961, três meses após a posse de Goulart, nasceu no Rio o IPES, Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais. Reunia a nata do empresariado, nacional e multinacional, com todos os nomes, sobrenomes e siglas que ainda hoje enfeitam as listas das maiores empresas do país.
Parecia um inocente clube de homens de negócios. Mas, na sua face oculta, sob siglas e codinomes, o IPES concentrava a execução metódica de um pensado plano para combater, de forma clandestina, três principais inimigos: o Governo Jango, a aliança nacionalista do PTB e o comunismo, que aparentemente resumia tudo aquilo.
O braço político ostensivo do IPES era o IBAD, Instituto Brasileiro de Ação Democrática, que apesar do nome tinha ligações com o MAC, Movimento Anticomunista, e com a organização da direita católica Opus Dei.
O fundador do IBAD em 1959 foi o integralista Ivan Hasslocher, dono da Promotion, agência de publicidade que promovia o lobby do instituto e seu braço parlamentar, a ADP – Ação Democrática Popular, um núcleo conservador de 160 parlamentares da centro-direita no Congresso.
Segundo Dreifuss, a ADP tinha sua ação política patrocinada pela secção carioca da CIA, a agência de inteligência americana.
A partir de 1962, juntaram-se as duas entidades: nascia o complexo IPES/IBAD, matriz ideológica e operacional da conspiração que daria o golpe e, depois, forneceria os quadros e dirigentes do aparato estatal que sustentou o regime militar.
Em 1963, os 80 membros originais do IPES pularam para 500. Eram sócios 26 dos 36 líderes da FIESP, a maior federação industrial do país.
Em Porto Alegre, a versão local tinha o nome de IPESUL e sobrenomes ilustres como o lojista Fábio Araújo Santos, da rede JH Santos, José Zamprogna e Ary Burger, diretor do Grupo Gerdau, Antonio Saint Pastous, presidente da Farsul, entre muitos outros.
A articulação dos empresários com os militares era feita pelo Grupo de Levantamento da Conjuntura (GLC) do IPES, comandado pelo general Golbery do Couto e Silva.
A equipe de Golbery distribuía nos quartéis uma circular bimestral mimeografada, sem citação da fonte, avaliando a atividade “comunista” no país, apontando o dedo para “subversivos infiltrados no governo” e mapeando suas ações. Só no Rio de Janeiro o GLC de Golbery tinha três mil telefones grampeados .
O grupo do general ocupava quatro das 13 salas que o IPES havia alugado no 27° andar do Ed. Avenida Central, na av. Rio Branco. A conta do telefone era faturada em nome do general da reserva Henrique Geisel, irmão de Ernesto. Em Porto Alegre, o IPESUL operava no quarto andar do Ed. Palácio do Comércio, no centro.
Três frentes
O GLC escrutinava a produção diária da imprensa do país e produzia mensalmente cerca de 500 artigos, disseminados pelos jornais ou divulgados em forma de palestras. O Grupo de Atuação Parlamentar (GAP) do IPES proibia qualquer menção à sigla, que era camuflada como “Escritório de Brasília”. O plano era simples e mortal: o IPES, através do IBAD e da ADP, emparedava o governo no Congresso, criando um beco sem saída parlamentar e um ponto morto do Executivo.
Era fundamental manipular a expressão da sociedade. O objetivo central do Grupo de Opinião Pública (GOP) do IPES era disseminar seus objetivos na imprensa falada e escrita.
Dissimulado, o grupo evitava o nome “opinião pública”, preferindo as expressões “divulgação” e “promoção”. O GOP era “a base de toda a engrenagem”. “Conquistar a opinião pública” era a essência da ação política do grupo.
O principal articulador do GOP o ex-comissário de Polícia, José Rubem Fonseca, que se tornou, depois, um dos escritores mais festejados do pais. Outros destaques do GOP no Rio eram os jornalistas Glauco Carneiro e Wilson Figueiredo, este do corpo editorial do Jornal do Brasil. Em São Paulo, o GOP atuava com Geraldo Alonso, dono da Norton Propaganda, e nomes ilustres de O Estado de S.Paulo, como Ênio Pesce e Flávio Galvão. Contava ainda com Jorge Sampaio e Alves de Castro, os dois nomes centrais do “Repórter Esso” da TV Tupi, o equivalente ao Jornal Nacional de hoje.
O GOP se valia da tecnologia da época: enviava milhares de cartas e telegramas e fazia chamadas telefônicas, antecipando em décadas o advento telemarketing. Em novembro de 1962 chegava a três mil nomes a lista de organizações de rádio e TV mobilizadas pelo GOP. Aliado a ele funcionava o GPE, Grupo de Publicações/Editorial, que disseminava material impresso pelo país.
Esta campanha de guerra psicológica era tarefa do ex-comissário e contista Rubem Fonseca, que mobilizava intelectuais respeitados como Augusto Frederico Schmidt, Odylo Costa Filho e Rachel de Queiroz. Atuavam em três frentes: artigos para jornais e revistas, panfletos para circular entre estudantes, militares e operários, e livros que comparavam a democracia com a empresa privada.
Nomes fortes do mercado editorial, como Saraiva, Cia. Editora Nacional e GRD Editora, colaboravam na publicação da chamada “literatura democrática”.
Sinal verde
Em janeiro de 1963 a demanda por recursos era tão grande que o comando do IPES decidiu aprovar uma contribuição anual padrão de meio por cento do capital de cada sócio. O caixa 2 ou “contabilidade paralela” da entidade já somava US$ 4 milhões. O orçamento oficial do ano anterior estabelecia despesas mensais de 10 milhões de cruzeiros (US$ 300 mil na época) só no IPES carioca. A projeção do novo ano previa o dobro das despesas, sem contar o gasto com atividades encobertas e sigilosas.
A CPI que investigou a ligação do IPES com o IBAD apurou que, nas eleições gerais de outubro de 1962, foram injetados entre 5 bilhões e 20 bilhões de cruzeiros (em termos atuais, entre 260 milhões a 1 bilhão de reais) para financiar 250 candidatos. Foram eleitos 110.
O embaixador americano no Brasil Lincoln Gordon, bem mais modesto, disse que o valor investido não superou 5 milhões de dólares
No Rio Grande do Sul, a aliança de centro-direita da ADP era integrada por PSD, UDN, PL, PDC e PRP. O vitorioso Ildo Meneghetti, um dos oito governadores apoiados pelo esquema, enfatizou que a indústria e o comércio locais – “sob a égide do IPESUL” – garantiram o resultado das urnas.
Dois dos deputados eleitos pelo IPESUL eram Peracchi Barcellos (PSD) e Euclides Triches (PDC), mais tarde nomeados governadores do Rio Grande, pela ditadura.
Quem se habilitava a integrar a lista de “democratas convictos e anticomunistas de primeira ordem” passava pelo crivo dos analistas do IPES/IBAD. Tinha que assinar um “ato de compromisso ideológico”, pelo qual prometia lealdade ao IBAD, lutar contra o comunismo e defender o investimento estrangeiro.
O chefe do GAP (Grupo de Ação Parlamentar) do IPES, o banqueiro Jorge Oscar de Mello Flores, avaliava os candidatos pelo coeficiente eleitoral. De início, ele calculava que cada deputado “custaria” cerca de 6 milhões de cruzeiros (cotação atual: R$ 317 mil) nos Estados menores. “Os candidatos de Rio e São Paulo eram muito mais caros”, explicou Mello Flores, ao avaliar a conta per capita dos deputados no balcão do IPES: 15 milhões de cruzeiros (cotação atual: R$ 792 mil).
O orçamento de um candidato “apagado”, isto é, pouco conhecido e de limitada agressividade eleitoral, incluía despesas com equipamento de som, 40 mil cartazes, 600 faixas, fotografias, espaço em jornais, mensagens no rádio e TV, discos de jingle, gasolina, correspondência e pessoal de apoio…
Outras empresas ligadas ao IPES colaboravam com seus serviços, como no caso das passagens aéreas gratuitas liberadas pela Panair, Cruzeiro do Sul e Varig. Uma única empresa estrangeira, a Deltec, do americano David Beaty III, sócio do IPES, abriu uma “caixinha” de US$ 7 milhões.
O IPES recebeu apoio financeiro de 297 corporações americanas. Passavam o chapéu entre empresas britânicas, suecas, alemãs.
Rezas e cânticos
Na véspera da eleição de 1962, a Promotion, empresa de Ivan Hasslocher, líder do IBAD, arrendou o jornal carioca A Noite por 90 dias, ao custo mensal de 2 milhões de cruzeiros (cerca de R$ 100 mil no câmbio atual) para propaganda direta.
A revista Repórter Sindical também era operada pela entidade. O órgão oficial do IBAD, Ação Democrática, circulava mensalmente com 250 mil exemplares e textos de gente como o economista Eugênio Gudin e o líder udenista Aliomar Baleeiro.
No início de 1963, um manifesto de 500 profissionais de prestígio, organizados pelo Centro Democrático de Engenheiros, ligado ao IPES, foi publicado no Jornal do Brasil e em O Estado de S.Paulo.
Manifestos variados, todos “democráticos”, proliferavam na imprensa e eram retransmitidos pela dupla IPES/IBAD. Eles tinham uma agência de notícias, a Planalto, que redistribuía o material a 800 emissoras de rádio e jornais do país.
Um milhão de cópias da “Cartilha para o Progresso”, feita pelo IPES, exaltando os benefícios da Aliança para o Progresso do governo americano, foi encartada como suplemento da Fatos&Fotos, revista de grande circulação da Editora Bloch.
O IPES gastou 10 milhões de cruzeiros para produzir 15 programas de TV para três canais diferentes. Eram entrevistas de questionários preparados pela entidade, com jornalistas de confiança e gente selecionada para responder sobre reforma agrária, custo de vida, democracia.
Estavam escaladas neste time algumas personalidades gaúchas como o senador Mem de Sá, os deputados Daniel Faraco, Egydio Michaelsen, Paulo Brossard e Raul Pilla, o prefeito Loureiro da Silva e o arcebispo dom Vicente Scherer.
Em 1962, o IBAD operava diariamente mais de 300 programas de rádio no horário nobre das principais cidades do país. A rede de mais de 100 estações ligadas a ele formava a “Cadeia da Democracia”, sob o comando do senador João Calmon, dos Diários Associados.
O maior produtor de filmes comerciais do país, Jean Manzon, foi contratado pelo IPES para produzir filmes como “Que é a democracia”, “Deixem o estudante estudar”, “Uma economia estrangulada”, “Criando homens livres”.
Eram filmetes de 10 minutos, projetados antes do vibrante faroeste nas matinês do interior do país, em três mil salas de cinema. As cópias ficavam sob guarda de Luiz Severiano Ribeiro, o maior distribuidor e proprietário de salas do Brasil.
Quando a platéia não aparecia, o cinema ia até o público. O IPES montou o projeto do “cinema ambulante” em caminhões abertos e ônibus com chassis especiais, que percorriam favelas, bairros populares e cidades distantes.
Era um mutirão democrático: a Mesbla fornecia os projetores, a Mercedes Benz emprestava os caminhões e a CAIO montava a carroceria dos ônibus.
O IPES jogava seu charme também sobre as mulheres. Custeava, organizava e orientava politicamente as duas organizações femininas mais importantes do país: a CAMDE ( Campanha da Mulher pela Democracia), no Rio de Janeiro, e a UCF (União Cívica Feminina, de São Paulo).
O MAF, Movimento de Arregimentação Feminina, na capital paulista, tinha 6 mil filiadas em São Paulo e era presidido por Antonieta Pellegrini, irmã de Júlio de Mesquita Filho, dono de O Estado de S.Paulo e um dos principais patronos do IPES.
Com um rosário nas mãos e um afiado discurso anticomunista, as donas de casa foram à luta para mobilizar as esposas de militares, sindicalistas e funcionários públicos. Mais de 50 mil cartas atulharam o correio dos parlamentares no Congresso, em Brasília.
A primeira reunião da Camde no Rio realizou-se no auditório de O Globo, que garantia espaço no jornal e na rádio para a agitação das mulheres.
Em janeiro de 1964, ao saber de um iminente congresso da CUT da América Latina em Belo Horizonte, a LIMDE ( Liga da Mulher Democrata) ameaçou invadir o aeroporto da Pampulha e deitar as militantes na pista para impedir a reunião subversiva. O encontro foi transferido para Brasília.
Em fevereiro, quando Leonel Brizola passou por lá para defender as reformas, o auditório da Secretaria da Saúde na capital mineira foi invadido por um pelotão de mulheres, com o terço nas mãos, gritando slogans contra o belzebu vermelho. Brizola teve que se calar, diante do tumulto e dos objetos voando pelo salão, num episódio conhecido como a “Noite das Cadeiradas”.
No comício da Central do Brasil no Rio de Janeiro, em 13 de março, duas semanas antes do golpe, Jango mirou nas mulheres: “Não podem ser levantados os rosários da fé contra o povo, que tem fé numa justiça social mais humana e na dignidade das suas esperanças”.
O IPES interpretou o ato como uma bofetada nas mulheres e em Nossa Senhora. Uma semana depois, 19 de março, a UCF paulista reagiu no dia de São José, santo protetor da família, com uma marcha na Praça da Sé com cerca de 500 mil pessoas, uma multidão cinco vezes maior do que o comício da Central.
Eram puxadas pela reza fervorosa do padre americano Patrick Peyton, financiado pelo IPES, e bradavam sua graciosa palavra de ordem: “Vermelho bom, só batom”.
O sucesso da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que originalmente deveria se chamar “Desagravo ao Santo Rosário”, inflamou o movimento.
Marcaram outra, maior ainda, para o Rio de Janeiro em 2 de abril. Mas o general Olympio Mourão Filho sacou primeiro em Juiz de Fora, 48 horas antes da marcha do Rio. E o ato de protesto virou a “Marcha da Vitória”: quase um milhão de pessoas, lideradas pelo Camde e pelo IPES.
Na medida em que avançava a conspiração, crescia a presença militar sobre a base parlamentar. Era hora de sair do discurso para a prática.
O IBAD cede seu lugar de destaque para outra sigla – a ESG, da Escola Superior de Guerra, de onde provinha o núcleo fardado do golpe.
O novo complexo IPES/ESG alinhava 330 oficiais, de majores a generais de Exército, fazendo a ligação do mundo empresarial com os quartéis.
No Rio Grande do Sul, foco principal da resistência de Brizola na “Campanha da Legalidade”, dois terços da oficialidade já estavam engajados na conspiração. O deputado Peracchi Barcelos (PSD), coronel da Brigada Militar, eleito pela lista do IPESUL, tratava de sublevar a força pública do Estado.
O general da reserva Armando Cattani organizava grandes fazendeiros no interior em unidades paramilitares que seriam acionadas na hora precisa.
Na dura expressão de René Dreifuss, “o IPES conseguiu estabelecer um sincronizado assalto à opinião pública” pela relação especial com os principais veículos da mídia nacional.
Com exceção da Última Hora de Samuel Wainer, fiel até o fim a Jango e ao PTB que financiou seu jornal, todos os grandes veículos foram ostensivamente partidários do golpe, antes e depois. Pelo menos até a ruptura violenta do AI-5, que transformou velhos companheiros da conspiração em vítimas da truculência da ditadura.
No Rio Grande do Sul, o alinhamento dos jornais com a conspiração e com o regime militar era natural. O Diário de Notícias, de Chateaubriand, tinha orientação do dono para bater no governo e apoiar a oposição empresarial e militar. Zero Hora já nasceu depurada e lavada ideologicamente em 4 de maio de 1964, um mês e quatro dias depois do levantamento militar do general Olympio Mourão.
Nota discreta
Nos idos de 1962, o líder do IPES carioca José Luiz Moreira de Souza, dono da Denison Propaganda, viajou a Porto Alegre para botar a Caldas Júnior (Correio do Povo, Folha da Tarde e Rádio Guaiba) no balaio da conspiração.
Ganhou as graças de Arlindo Pasqualini, irmão de Alberto, ideólogo do trabalhismo que o IPES combatia. Arlindo, diretor da Folha da Tarde e o sucessor natural do dono da empresa, Breno Caldas, recebeu a missão de produzir uma série de artigos contra Leonel Brizola.
No editorial da primeira edição do jornal, no longínquo ano de 1895, Caldas Jr. tinha definido um lema e uma linha para o jornal que se tornaria centenário: “Independente, nobre e forte – procurará sempre sê-lo o Correio do Povo, que não é órgão de nenhuma facção partidária, que não se escraviza a cogitações de ordem subalterna.”
Nos primeiros editoriais após o golpe de 1964, o jornal abandonou sua histórica divisa, aderiu à facção vitoriosa e adotou uma postura subalterna à nova ordem militar.
E escancarou seu apoio em editoriais didáticos para explicar por que os revolucionários de 31 de março estavam certos: “Aquele era o único caminho para salvar o Brasil”, dizia o jornal, fazendo coro com a grande imprensa golpista do centro do país.
* Resumo do ensaio “Máximas e Mínimas: os ventos errantes da mídia na tormenta de 1964”.
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