GERALDO HASSE
“As Três Mortes de Che Guevara” (L&PM, 2017): eis um livro pra dar de presente e/ou pra guardar na estante dos grandes livros do jornalismo histórico.
Com sua última obra, lançada no final do ano passado, o gaúcho Flavio Tavares leva ao extremo sua experiência como testemunha ocular da História e intérprete privilegiado de fatos vividos e narrados por ele há mais de 60 anos.
Jornalismo-memorialístico do qual emana um luminoso painel da segunda metade do século XX.
Coisa rara, temos aqui as lembranças do Flávio – dirigente estudantil que conheceu Moscou em 1954; as anotações do Flávio Tavares repórter em Punta del Este em 1961, quando conheceu o revolucionário Ernesto Che Guevara; do jornalista-testemunha do desbaratamento do poder civil em Brasília em 1 de abril de 1964; do preso político/exilado de 1969 no México; do correspondente jornalístico por longos anos em Buenos Aires; do autor de “Memórias do Esquecimento”(Globo, 1999), um dos melhores livros sobre a ditadura militar brasileira de 1964/85…
Por fim, mas não por último, surge nas entrelinhas de “As Três Mortes de Che Guevara” o analista político que não hesita em colocar-se pessoalmente na narrativa para refletir sobre alguns dos principais acontecimentos políticos do século XX no âmbito da esquerda – a revolução de 1917 na Rússia, a revolução de 1949 na China, a revolução cubana de 1959 e os desdobramentos da Guerra Fria que manteve o mundo em suspense por décadas no período 1950-1990.
Resulta um privilégio gratificante ler Tavares discorrendo sobre um dos maiores personagens do século XX.
Nesse livro de 233 páginas, despojado de sua condição mitológica, Che Guevara desponta como o humanista que acreditou no nascimento do Homo solidarius, criatura que se deixaria pelo sentimento de solidariedade comunitária numa sociedade — a cubana — teoricamente livre do egocentrismo.
Já nas primeiras páginas fica claro que Che ficou praticamente sozinho, isolado politicamente, no meio de revolucionários acuados por Washington e alinhados a Moscou.
Descontente, talvez desiludido com o rumo das coisas na ilha de Fidel Castro, o argentino de 30 e poucos anos, pai de quatro filhos, saiu pelo mundo disposto a aplicar os conceitos do internacionalismo proletário. Missionário da revolução comunista num mundo bipolar…
Já pela página 80 o livro vai ficando pontilhado de sinais de interrogação que, bem ou mal, refletem pontos obscuros da biografia de Che Guevara, de seu relacionamento com Fidel e do próprio desenrolar da história de Cuba a partir do sua aliança com a União Soviética e sua inimizade com o vizinho ianque.
A partir daí Tavares se revela um mestre do jornalismo litero-histórico, um gênero em que poucos se dão bem.
Quando Che chega calvo ao Congo, escondendo sua identidade dos próprios soldados cubanos que vai comandar, o livro adquire a dimensão de uma novela policial.
O livro de Tavares cresce ao jogar luz sobre as contradições do argentino Ernesto Guevara de la Serna. Afinal, o que um branco asmático, filho de uma família de classe média de Buenos Aires, vai fazer nas montanhas da África tribal?
A tese guevarista era libertar o homem do jugo do imperialismo capitalista, ainda que tal revolução precisasse ser sustentada pelo imperialismo comunista, como ocorria em Cuba e em outros países, com nuances regionais ora pró-soviéticas, ora pró-chinesas.
Embora aconselhado (pelos líderes Nasser e Ben Bella) a não se intrometer no continente negro, Che usou sua condição de médico para encobrir sua compulsão pela aventura revolucionária.
Quebrou a cara, tanto no Congo como na Bolívia, o país mais pobre da América do Sul, onde aliciou um grupo de assustados camponeses — mais interessados na boca livre oferecida pelo revolucionário estrangeiro do que em seus ideais libertários.
O desfecho é conhecido: Che morreu em outubro de 1967 metralhado por um sargento embriagado de quem era prisioneiro. Foi executado por ordem do comando do Exército da Bolívia, devidamente assessorado por agentes do governo dos Estados Unidos.
São fatos cujas luzes se projetam até os dias de hoje.
Ungido por uma aura romântica, o guerrilheiro emergiu da selva boliviana com um boina estrelada na cabeça e um charuto cubano entre os dentes, transformando-se pelas artes da propaganda no apóstolo predileto da juventude idealista do Terceiro Mundo e até de cabeças coroadas das esquerdas do Primeiro Mundo.
Difundida em camisetas, posters e panfletos, a herança intelectual de Guevara foi resumida numa frase ambígua — “Hay que endurecer pero sin perder la ternura jamás” – que acabou se tornando uma espécie de mantra de esquerdistas que ignoravam ou faziam questão de não tomar conhecimento das lutas pelo poder nos bastidores dos governos das repúblicas ditas populares.
O comunismo agoniza em Cuba, mas a lenda do argentino audaz e charmoso permanece misteriosamente viva.
Uma história ainda sem ponto final, admite Flávio Tavares, no final do seu livro.
Sem acusar diretamente, ele sugere que Che foi descartado pela cúpula da revolução cubana, que usou seu idealismo missionário para afastá-lo de Cuba, onde seu inconformismo se tornara incômodo.
Por ter vivido muito tempo fora do Brasil, o jornalista-historiador conheceu pessoas, entrevistou políticos, teve acesso a documentos e leu livros que jamais chegaram à maioria dos leitores do Brasil.
Vem daí e dos seus 80 anos de vida a riqueza desse livro que coloca seu autor no pódio dos melhores jornalistas-historiadores brasileiros.
Membro do raro clube de escritores que narram os fatos sem torcida nem distorção, Flávio Tavares não esconde, porém, o sentimento de compaixão pelo destino de seu trágico personagem.