Freio de Ouro, a Fórmula 1 dos cavalos crioulos

Para muita gente, o evento mais marcante da Expointer é o Freio de Ouro, competição que reúne no primeiro fim de semana da exposição (este ano, os dias 30 e 31 de agosto, sábado e domingo) os melhores cavalos e éguas da raça crioula, a favorita dos gaúchos, presente na grande maioria das fazendas pobres ou ricas do Rio Grande do Sul.
Fruto de uma “peneira” anual pela qual passam mais de 1 500 animais (dos quais saem os 96 finalistas que se encontram em Esteio), o Freio de Ouro premia o animal que conseguir a maior pontuação em oito exames: morfologia, figura e andadura; volta sobre patas, freadas; aparte de gado; pechada; paleteada – esta, a mais espetacular, na qual dois cavaleiros prensam um novilho em disparada, fazendo-o retroceder.
É nessa prova acompanhada ao vivo por milhares de pessoas, inclusive pela TV, que os fotógrafos se esbaldam.
Algumas provas são monótonas, quase burocráticas. A andadura mais valiosa é o trote (peso 8), que vale o dobro do galope (peso 4), o qual pontua mais do que o tranco (passo), que pesa apenas 3 pontos. Essa contagem de pontos faz sentido numa raça equina mais procurada para o serviço cotidiano junto ao gado do que para passeios ou corridas.
O que pouca gente sabe é que o regulamento do Freio de Ouro, com 144 artigos e centenas de parágrafos, manda eliminar da prova de andadura o cavalo marchador, “por não ser a marcha uma andadura própria da raça crioula” (parágrafo único do artigo 49). Os jurados não costumam perdoar: crioulo marchador não só é retirado da competição como tem cassado o registro definitivo na Associação Brasileira dos Criadores de Cavalos Crioulos (ABCCC). Para os técnicos no assunto, o cavalo marchador é defeituoso por trotar de patas trocadas, de tal forma que sua andadura rende menos no serviço campeiro. Além disso, o animal marchador se atrapalha ao saltar um obstáculo, daí ser tradicionalmente descartado pelo Exército, um dos principais interessados na criação de um cavalo de qualidade. Evidentemente, os criadores de mangalarga marchador discordam desses critérios.
GINETES
O Freio do Ouro, ensaiado em provas rústicas no interior gaúcho no final dos anos 1970 e introduzido oficialmente em 1982 no parque da Expointer, criou um sólido mercado de trabalho para profissionais da equinocultura – veterinários, zootecnistas, transportadores, guasqueiros, ferrageadores, treinadores e cavalariços. Os mais cotados são os treinadores-ginetes, que preparam e montam os candidatos ao FO. Para eles, chegar às finais já é uma conquista. Uma vitória na grande prova pode triplicar o valor dos animais, enquanto os seus condutores ganham projeção como treinadores. Alguns têm torcida fiel nas arquibancadas.
Nos bastidores do crioulismo, fala-se que um treinador “top” ganha pelo menos R$ 20 mil por mês para treinar a cavalhada mais promissora das cabanhas mais ricas. Além de receber honorários mensais para preparar os animais, os treinadores-ginetes têm direito a bônus por troféus conquistados. Mas, como os jogadores de futebol, eles não competem por muito tempo. No fundo, no fundo, a profissão de ginete-treinador é doída e arriscada.
Dentre a dezena de ginetes mais em evidência no Freio de Ouro, um dos mais cotados é Zeca Macedo, de 34 anos. Ganhador de vários troféus do FO, ele mantém um concorrido centro de treinamento em Rio Grande, com 30 cocheiras ocupadas a maior parte do ano. Para treiná-los, Macedo emprega uma dezena de ajudantes, mas somente ele monta os animais confiados a seu treinamento. A técnica de preparo dos animais é muito pessoal, sem manual e cercada por certa mística.
Já enquanto estão competindo alguns ginetes se tornam criadores de cavalos e de gado, mas é o adestramento de crioulos que lhes dá mais renda. Para Guto Freire, 31 anos, com dez animais classificados para as finais deste ano, não tem sobrado tempo para exercer seu oficio de médico-veterinário. Ele passa o dia seu tempo no centro de treinamento que mantém em Santo Antonio da Patrulha, a 80 quilômetros de Porto Alegre, de onde só sai para competir ou fazer uma visita técnica.
O SERVIÇAL DO CAMPO
O preparo de crioulos não dispensa os tradicionais domadores e envolve todo o pessoal que trabalha por salário ou diária nos centros de treinamento, nos locais de prova e nas fazendas, onde o cavalo ainda é o mais eficiente veículo de serviço com o gado.
Um passeio pelo recinto do Parque de Esteio confirma o quanto o trabalho campeiro gira em torno do cavalo. A ABCCC tem o maior número de cocheiras, o maior número de animais inscritos e as instalações mais bem preparadas para suas provas.
Durante a Expointer, com ou sem crise na pecuária, o restaurante da raça crioula mantém um permanente clima de festa. E nas ruas do parque há inúmeros quiosques vendendo apetrechos de montaria fabricados por guasqueiros (artesãos de laços, rédeas e afins) que trabalham boa parte do ano apenas para suprir a demanda associada à Expointer e à Semana Farroupilha.
Para gerir um rebanho de mil cabeças de boi, é preciso revezar pelo menos 25 equinos. No Rio Grande do Sul, há 14 milhões de bovinos. E 4 milhões de ovinos. É no campo, em serviço, que se encontra o maior número de cavalos crioulos. Eles somam pelo menos um milhão de animais no Brasil ou cerca de 20% do rebanho equino nacional, estimado em 4,6 milhões de cabeças.
A poderosa ABCCC, fundada em 1932 em Pelotas, possui apenas 2 500 sócios efetivos, mas tem registrados cerca de 250 mil cavalos (vivos) pertencentes a 20 mil proprietários.
No Brasil o registro do crioulo só perde para o mangalarga e o mangalarga marchador, que somariam, cada um, cerca de 400 mil animais registrados, segundo estimativas mais ou menos confiáveis.
Em seguida vêm o quarto-de-milha, o árabe e o campolina.
Um cavalo/égua enobrecido(a) pelo registro na ABCCC e pelas medalhas em competições pode valer até R$ 500 mil. Desde a criação do Freio de Ouro, o crioulo se tornou um negócio, mais até do que um hobby de ricos proprietários de terras.
Foi um salto espetacular que, paradoxalmente, não atinge o interior remoto, onde um bom crioulo de serviço, castrado e domado, pode ser comprado por R$ 1 000.
Considerando que uma doma não sai por menos de R$ 500, pode-se concluir que um cavalo comum vale pouco mais que nada. Como nas canções, quem mais o valoriza é seu próprio dono.
RAÍZES ARGENTINAS
A história do crioulo, como raça definida, é pouco anterior à ABCCC. Descendente dos cavalos trazidos da Europa pelos colonizadores espanhóis e portugueses, esse cavalo típico das fazendas do Sul da América teve seu padrão estabelecido nos anos 1920 pelo veterinário argentino Emilio Solanet (1887-1979), que foi buscar os biótipos iniciais nas manadas dos índios da província de Chubut, junto aos Andes do sul da Argentina.
Para Solanet, que escrevia artigos em La Nación, o maior jornal de Buenos Aires, as principais qualidades do cavalo crioulo eram a rusticidade, a funcionalidade, a longevidade, a habilidade no trato com o gado, a docilidade e a inteligência.
Para prová-lo, ele teve uma ideia aparentemente maluca: mandou um cavaleiro chamado Aimé Tschiffely (nativo da Suíça) viajar de Buenos Aires a Nova York com dois crioulos, Gato e Mancha.
Se fueran. Por aqueles dias de abril de 1925, o ás do tango Carlos Gardel fazia sua primeira tounée pela Europa. A viagem de 20 mil quilômetros por desertos e geleiras consumiu três anos e cinco meses. Como nas migrações indígenas, era preciso parar para descansos que se prolongavam por causa do clima. De tempos em tempos a viagem era noticiada por La Nación.
A entrada triunfal do gaúcho em NY, montado no pingo Gato, a 20 de setembro de 1928, foi consagrada pelo Congresso argentino, que fixou a data como El Dia Nacional del Caballo – criollo, por supuesto.
Pioneira lição de “marketing equino”, a proeza argentina entrou para a história como um atestado de resistência desses animais que durante décadas foram selecionados no Cone Sul por criadores anônimos para manejar o gado, transportar cargas e deslocar exércitos em lutas por territórios ou poder. Nos tempos de paz, quando o contrabando era livre, o vaivém de tropas facilitava o intercâmbio de cavalhadas. Assim se criou no Pampa o mito do centauro, metade homem, metade cavalo. Em cima, o gaúcho; em baixo, o crioulo. Não por acaso o melhor pintor da simbiose homem-cavalo no Pampa foi o argentino Molina Campos (1891-1959), cuja obra foi largamente difundida em calendários rurais no Cone Sul.
No início dos anos 1950, a mística do crioulo argentino pairava sobre a fronteira, tanto que o recém-formado veterinário Flávio Bastos Tellechea foi passar um tempo no interior da Argentina, para estudar in loco. Seu objetivo primordial era aprimorar o gado da Fazenda Paineiras, herança do pai, João Francisco Tellechea, um dos fundadores da Ipiranga, a primeira refinaria nacional de petróleo, criada em 1937. Somente no início da década de 1960 ele e o irmão Roberto Bastos Tellechea (diretor da Ipiranga) enveredaram para a criação de crioulos. Já encontraram então na própria Paineiras boas matrizes que seriam do tempo do primeiro Tellechea, um basco chamado Domingos, que se estabeleceu em Uruguaiana em 1865, no começo da guerra do Brasil com o Paraguai.
No início, os irmãos BT cruzaram crioulos gaúchos, argentinos e uruguaios. Como criador, cavaleiro e juiz de exposições equinas, Flávio concluiu que os melhores cavalos para os serviços campeiros eram aqueles de bons aprumos dianteiros, pescoço mais leve e quartos profundos — combinação nem sempre encontrada em crioulos importados da Argentina e do Uruguai, onde os criadores davam mais atenção à morfologia do que à funcionalidade.
UMA LENDA CHAMADA HORNERO
Em meados dos anos 1970, em busca de sangue novo, os cabeças do crioulismo gaúcho começaram a comprar garanhões de La Invernada, estância chilena que viera expor em Esteio, num raro movimento de integração em plena efervescência das ditaduras militares do Cone Sul. Foi quando os Tellechea compraram o chileno Hornero, marco de uma revolução genética que chegou a despertar o interesse do general de cavalaria João Figueiredo, presidente da República (1979-1985), durante uma visita dele a Jaguarão, berço das provas que formatariam o Freio de Ouro.
Não há como negar que, em pouco mais de 30 anos, o FO transformou a criação do crioulo num dos ramos mais florescentes da pecuária gaúcha. Antigamente, na economia das fazendas, o cavalo ocupava o último lugar, perdendo para os ovinos, que garantiam o custeio, e os bovinos, que traziam os lucros. “Hoje em dia, em muitas fazendas, o cavalo é o maior negócio, o gado segue em segundo e os ovinos estão sumindo na poeira”, diz o veterinário Wilson Aguiar, com mais de 30 anos trabalhando na ABCCC.

Tordilho Hornero / Foto Divulgação
Tordilho Hornero / Foto Divulgação

No início, quando o único patrocinador do FO era a Ipiranga, os próprios irmãos Flavio e Roberto Tellechea participavam das provas pioneiras; hoje, sobram patrocínios e até as 12 provas seletivas regionais são transmitidas pelo Canal Rural, a partir de fevereiro. Os comentaristas de TV conhecem o esporte, que reproduz em raias demarcadas os trabalhos elementares – e brutais – com o gado.
Espetáculo rural levado ao público predominantemente urbano (e indisfarçavelmente saudoso da vida campeira) de Esteio, o FO não é a única competição dos cavalos crioulos. A ABCCC mantém hoje uma média de 400 eventos por ano pelo interior. As provas de tiro de laço mobilizam cerca de 10 mil laçadores por ano. O Crioulaço, cuja final se realiza em janeiro, lota o parque de exposições de Esteio. Desde 1971 disputa-se a marcha de resistência, na qual os animais precisam percorrer 750 quilômetros em 15 dias – uma réplica das tropeadas de outrora. Os cavalos crioulos também estão sendo levados a disputar provas de enduro e de rédeas, que envolvem outras raças, principalmente o quarto-de-milha. Além disso, nas comunidades rurais do interior, onde pouco se liga para a genealogia dos animais, persistem ainda as corridas de cancha reta, costume campeiro que ignora a decadência dos jóqueis clubes, dominados pelo puro-sangue inglês e sustentados por apostas.
Por trás de tantas disputas, agita-se um grande mercado de compra e venda de potros, potrancas, matrizes e reprodutores. Ao longo do ano, as cabanhas mais ricas competem na organização de eventos. São festas para quem tem dinheiro – ou, pelo menos, dispõe de crédito para pagar suas compras em até 50 parcelas. Atualmente, as transações em hastas públicas envolvendo crioulos giram pelo menos R$ 100 milhões por ano, dez vezes mais do que há dez anos. Nos leilões da Expointer, o crioulo gira 70% do dinheiro aplicado na compra de animais em geral. Uma potranca de boa filiação não sai por menos de R$ 30 mil nas noitadas das cabanhas mais prestigiosas. A cobertura de um ganhador do Freio de Ouro custa tanto quanto uma moto. Como um garanhão pode cobrir 100 éguas por ano, a conquista do FO dá ao proprietário e ao criador do campeão um largo horizonte para trotear tranquilo na senda da fortuna.
O crioulismo está recheado de criadores emergentes, que entram no negócio para aplicar dinheiro amealhado em atividades urbanas – como, aliás, aconteceu com os Tellechea,.que aplicaram na pecuária parte do que ganhavam com o refino de petróleo e a venda de gasolina nos postos Ipiranga. Uma das cabanhas mais em evidência é a La Passión, sociedade entre Chico Bastos Tellechea e Jayme Monjardim, diretor de cinema e TV.
Em meio à espiral festiva do crioulismo, a Cabanha Paineiras continua viva em Uruguaiana. Desde a morte de Flavio Bastos Tellechea, em 1990, a empresa é gerida por mulheres. No começo, ficou sob controle de Lila, a viúva. Hoje está nas mãos da primogênita Maria da Glória Tellechea Cairoli, que cuida da “porteira afora”, e da caçula Mariana Franco Tellechea, veterinária responsável pela “porteira adentro”.
Para se manter na liderança do mercado, a Paineiras promove três leilões por ano para colocar a maior parte de sua produção, também vendida avulsamente, para criadores mais chegados à família. Há sete anos, numa noitada cujas vendas ultrapassaram R$ 3 milhões, a Paineiras vendeu por R$ 675 mil a campeã BT Doriana, 16 anos, uma das últimas filhas de Hornero, imprimiu seu DNA em 70% dos ganhadores do Freio de Ouro.
Uma das histórias mais incríveis do Freio de Ouro é que Hornero, um lindo tordilho, foi desclassificado na prova de morfologia por apresentar um sobreosso na canela — na época, considerado defeito fisiológico. Não para os Bastos Tellechea, que colocaram no animal sua marca BT. Morto em 1997, Hornero deixou mais de 1,3 mil filhos no Brasil, tornando-se a lenda recontada por todos os que viram nascer o Freio de Ouro. Não é de estranhar, portanto, que os cavalos crioulos sejam cantados em prosa e verso pelos chamados cantores nativistas, que dominam os shows das agrofestas sulinas.
Joca Martins tem dois CDs cujo tema central é o cavalo crioulo. Com letras de Rodrigo Bauer, ele canta rancheiras, milongas, chacareras e chamamés enaltecendo cabanhas, cavalos, estâncias e ginetes. Os versos têm rimas bizarras e suas metáforas lembram os sambas-enredo do carnaval carioca. Em Rodopio de São Pedro, canção em homenagem ao tordilho ganhador do Freio de Ouro 2008, a dupla Bauer-Martins descreve as principais aptidões exigidas dos animais:
“É o Rodopio de São Pedro, tordilho alma de touro;
Pingo que sabe o segredo pra ganhar o freio de ouro;
Função e morfologia, raça, coragem e ‘brio’;
A noite parece o dia quando chega o rodopio…
Aparta, pecha e esbarra, galopa, trota e tranqueia;
Quem busca o freio com garra, não teme a volta feia;
Corre o bovino sobrando, retoma e não vira o fio;
Levanta terra girando, que afinal é um rodopio…”

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