Há algo de podre na saúde

A decisão do governo de alocar médicos em cidades do interior e na periferia das grandes cidades toca na ferida, mas não trata (nem poderia) das origens do mal em si: a brutal desigualdade de renda entre pessoas, grupos sociais com acesso à educação e controle dos meios de produção e, ainda, os desequilíbrios regionais históricos que produziram concentrações populacionais no litoral e no entorno das capitais.
Sim, é dura a vida dos pobres, quer morem nos sertões ou nas capitais, mas a partir da iniciativa de contratar médicos, inclusive estrangeiros, a R$ 10 mil por cabeça, mais benefícios e vantagens não divulgados, o governo pode começar a controlar o intenso fluxo de ambulâncias e vans do interior sem médico para as capitais bem providas de profissionais da saúde e bem equipadas.
Ter médicos no interior ganhando salários a que só as elites bem educadas têm acesso pode ser o começo do processo de correção dos problemas do sistema brasileiro de saúde, 25 anos depois que a Constituição de 1988 pariu o SUS, deixando a porta aberta para seguradoras e consórcios de saúde subverterem o lado bom da coisa em favor da mercantilização da medicina.
Uma das coisas mais tristes do Brasil é ver médicos mais interessados no próprio bolso do que naquilo de que falava Hipócrates, o pai da Medicina. Mas não se deve confundir a elite com a corporação. É incompreensível a reação dos órgãos representativos dos médicos contra a iniciativa oficial de mexer no esquema de atendimento médico à população situada fora do alcance do mercado-da-doença.
Nós brasileiros estamos diante de uma baita sinuca: ou damos sequência às medidas de correção do caos na saúde ou temos de continuar engolindo diariamente o atual estado de coisas, no qual uma minoria de médicos ganha extraordinariamente bem, enquanto a maioria da categoria precisa operar em péssimas condições para ganhar o mínimo em dois ou três empregos, sabendo-se que a saúde não depende só do médico, mas de uma infraestrutura humana e de equipamentos também mal distribuída no território nacional.
Indústria farmacêutica
Segundo dirigentes de entidades profissionais, é preciso aumentar significativamente a parcela do PIB que vai para a saúde, sem o que não haverá como se implantar uma estrutura adequada de unidades básicas de atendimento nas diferentes regiões do país.
Para um médico recém-formado, é interessante ganhar 10 mil por mês no interior, mas sem infraestrutura (pessoal, material e de equipamentos) ele não atenderá direito as necessidades da população e, depois de dois anos, estará correndo o risco de ficar desatualizado, pois tudo rola nas capitais, como é praxe em nosso modelo concentracionista.
Há algo podre na saúde pública. Programas de atendimento básico nos postos de saúde e de médicos de família não prosperam porque tiram “clientes” dos planos de saúde e reduziriam o absurdo consumo de medicamentos nas farmácias, o que só favorece a indústria alimentada por concorrências manipuladas.
Não se deve duvidar que esse conjunto de incongruências alimentou as recentes manifestações de rua. As demandas coletivas foram expostas e o governo começou a dar respostas mais ou menos aleatórias, como para acalmar o berreiro dos bebês famintos.
Deve-se lembrar que o começo do programa Mais Médicos nasceu de um pedido da Frente Nacional dos Prefeitos. Em fevereiro, o presidente da Frente, José Fortunati, prefeito de Porto Alegre, pediu à presidenta Dilma que fizesse alguma coisa para evitar o problema de dupla face: de um lado, a sobrecarga da estrutura hospitalar das capitais; de outro, a falta de atendimento médico no interior.
Segundo Fortunati, a presidenta chamou o ministro Alexandre Padilha e ordenou que ele tomasse providências imediatas. Talvez Padilha tenha visto nisso uma alavanca para sua candidatura ao governo paulista, mas se ele concorrer em 2014 os eleitores é que vão decidir se ele deve ou não ficar no lugar de Geraldo Alckmin, aliás também médico.
Assim como na saúde, outros setores governamentais (infraestrutura, educação, energia, segurança) estão buscam saídas para reverter as diversas crises setoriais, mas a maioria parece não acreditar em soluções consensualmente construídas a partir de discussões nas bases sociais. Nesse aspecto o PT, que veio da base, do chão de fábrica, das comunidades eclesiais, das assembleias sindicais, deu um gigantesco passo atrás, elegendo o mercado como o mediador dos conflitos. (Geraldo Hasse)
LEMBRETE
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. ”
Artigo 196 da Constituição do Brasil

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