ANISTIA versus TORTURA
SENADOR PEDRO SIMON DESTACA O JULGAMENTO HISTÓRICO
DESTA QUARTA-FEIRA, 28, SOBRE A ANISTIA E A TORTURA
Discurso na tribuna do Senado Federal – segunda-feira, 26/abr/2010
Senhor Presidente,
Senhoras Senadoras e Senhores Senadores:
Em janeiro de 1975, a polícia política do Chile prendeu uma jovem médica pediatra de 24 anos.
Eram tempos difíceis. As tropas do general Pinochet tinham derrubado o governo constitucional de Salvador Allende dois anos antes.
No ano seguinte, o pai da jovem médica, um brigadeiro leal ao presidente deposto tinha sido preso e, ainda detido, morreu do coração, ao não resistir ao sofrimento de tantos camaradas.
A jovem médica sobreviveu ao pai, à prisão e às torturas que lá sofreu, durante um ano, até se exilar na Austrália.
Essa mesma jovem médica estudou mais, aperfeiçoou seus conhecimentos, e retornou ao Chile de Pinochet, o homem que levou seu pai à morte, e engajou-se na política, na luta pela democracia.
Ela venceu. E tanto convenceu que, 31 anos após sua prisão e as torturas que sofreu, Michelle Bachelet, a jovem médica, tornou-se presidente do Chile por vontade soberana do povo chileno.
Apesar de tanto sofrimento, tanta dor, Bachelet nos legou uma frase de profunda sabedoria, de elevado teor humanista: “Só as feridas lavadas cicatrizam”.
Senhor Presidente,
Senhoras Senadoras e Senhores Senadores:
Na próxima quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal terá uma oportunidade de reconciliar o país com sua história, de ajustar a memória à verdade, de reafirmar a auto-estima de uma Nação que respeita seu passado sem medo de seu futuro.
A Suprema Corte brasileira terá, enfim, a chance de lavar nossas feridas e permitir a cicatrização de uma chaga que ainda sangra, dói e machuca.
Após dois anos, o STF julgará, enfim, a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) número 153, proposta em outubro de 2008 pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
O que pede a OAB é simples: que o STF interprete o Artigo 1° da Lei da Anistia, declarando, de forma clara e definitiva, que a Anistia não se aplica aos crimes comuns praticados por agentes da repressão durante o regime militar que manteve o país sob ditadura entre 1964 e 1985.
Tortura, assassinato e desaparecimento forçado são crimes de lesa-humanidade, imprescritíveis, conforme tratados internacionais assinados pelo Brasil e nunca colocados em prática aqui dentro.
São crimes que não podem, portanto, ser objeto de anistia ou auto-anistia.
Não são crimes políticos e nem conexos, e assim não podem se nivelar às punições dadas a tantos brasileiros que, condenados às prisões ou ao exílio, acabaram beneficiados em 1979 pela Lei de Anistia que os abrigava.
Lei nenhuma, porém, no Brasil ou no mundo, acolhe a tortura, ou a reconhece.
O Brasil é o único país da América Latina que ainda não julgou criminalmente os homens que se excederam na ditadura, torturando e matando.
Ao longo de 21 anos de regime autoritário, vicejou aqui um sistema repressivo estimado em 24 mil agentes que, por razões políticas, prendeu cerca de 50 mil brasileiros e torturou algo em torno de 20 mil pessoas – uma média de três torturas a cada dia de ditadura. Que não foi branda, nem curta, nem clemente.
“Anistia não é amnésia”, disse o presidente da OAB, Cezar Britto, que apresentou a ação ao Supremo.
Líderes de várias correntes políticas reconhece que tortura não é crime político.
É muito pior do que isso: é um grave atentado à dignidade da pessoa humana, ontem, hoje e sempre. Torturadores e criminosos que atentaram contra a vida e a dignidade não são esquecidos em todos os lugares, em todos os tempos.
É por isso que, até hoje, um ou outro criminoso de guerra nazista ainda é caçado e preso, embora tenha 80 ou 90 anos de vida. Não é pelo prazer da caça, mas pelo dever moral que a civilização tem de lembrar a todos que os seus crimes não se apagam, não se perdoam.
O Tribunal de Nuremberg, no julgamento de criminosos da Segunda Guerra, ouviu 240 testemunhas em 285 dias de julgamento, gerando um sumário de 4 bilhões de palavras para uma acusação final de 25 mil páginas contra os 18 principais chefes do Reich nazista. Os juízes negaram o argumento da defesa que eles apenas “cumpriam ordens”.
O juiz americano Francis Biddle fulminou esta tese com uma frase imortal: “Os indivíduos têm deveres internacionais a cumprir, acima dos deveres nacionais que um Estado particular possa impor”.
Ficou assim encravado na consciência moral do mundo que todos nós somos responsáveis pelos atos que praticamos. Ninguém é inocente para “cumprir ordens” contra a lei, a moral, a ética e a verdade.
Ninguém, neste país, tinha ordens para torturar. Nem mesmo o AI-5, a lei mais dura do período mais sangrento do regime de 64, mencionava ou liberava o uso da tortura. Os torturadores têm algo em comum: eles têm vergonha do que fizeram.
É um crime, portanto, sem pai nem mãe.
Anistia não é esquecimento, é perdão, ensinam os juristas que não escamoteiam as palavras. Não se pode esquecer o que não se conhece. Também não se pode perdoar o que não foi punido – privilégio imaculado de todos os torturadores que ainda existem no país.
O nazismo não merecia a amnésia, muito menos a anistia.
A tortura, também.
Nossos vizinhos de Cone Sul, que padeceram ditaduras tão violentas como a nossa, acertam suas contas com o passado. A justiça argentina neste momento processa 263 militares e policiais por crimes contra direitos humanos.
Na Argentina, os generais Jorge Rafael Videla e Reynaldo Bignone cumprem longas penas de prisão pelo regime de tortura que comandaram.
No Uruguai, está preso o civil que deu o golpe em 1973, Juan Maria Bordaberry, e o presidente da ditadura, o general Gregório Alvarez, condenado, em 2009, a 25 anos de prisão pela morte de 37 opositores. São três mortes a menos do que os 40 presos políticos mortos durante os 40 meses que o DOI-CODI da rua Tutóia foi comandado pelo major Carlos Alberto Brilhante Ustra, no Governo Médici. Hoje coronel, na reserva, Brilhante Ustra não teve os percalços de vida de seus colegas argentinos e uruguaios. Vive bem, tranqüilo, aposentado, aqui mesmo em Brasília.
O historiador americano Edward Peters, professor da Universidade da Pensilvânia, advertiu: “O futuro da tortura está indissoluvelmente ligado ao futuro dos torturadores”.
No berço da tortura não punida nasceu a impunidade da violência não resolvido do Brasil, antes na ditadura, agora na democracia.
Ou seja, a impunidade do torturador acaba garantindo a perenidade da tortura e de sua filha dileta, a violência.
O Brasil que evita punir ou sequer apontar seus torturadores acaba banalizando a violência que transborda a ditadura e vitimiza o cidadão comum em plena democracia, principalmente nas duas maiores capitais, São Paulo e Rio.
O esquecimento da história é o berço da impunidade. E a impunidade é ancestral da violência. Pais cuidadosos dos delinqüentes que puxam gatilhos, ou que arrastam inocentes pelas ruas, esfolados até a morte. O João Hélio, menino inocente, preso por um cinto que se diz de segurança, é, igualmente, vítima da impunidade de quem prendeu outros tantos nomes nos paus-de-araras, também em nome da segurança. Um, torturador, outro, torturado. Ambos, porém, inesquecíveis.
A política silenciosa é cúmplice, portanto, da impunidade e de seus filhos diletos: a violência, a corrupção e a barbárie. É a construção de uma cultura, que vem de longe, desde quando se torturavam escravos e se dizimavam índios, e que chega aos nossos dias, contra quem ainda não conseguiu desbravar o “novo-oeste” da globalização e do mercado.
Quem esquece a história é cúmplice nos mais de cinqüenta mil assassinatos, por ano, no Brasil. Quinhentos mil numa única década! É como se uma Niterói sumisse do nosso mapa, a cada dez anos. Vítimas dos descendentes da impunidade. E dos cúmplices, que se escondem sob o manto do silêncio.
Nos 24 anos seguintes à anistia (1979-2003), armas de fogo mataram no Brasil 550 mil pessoas – 44% delas jovens entre 15 e 24 anos.
Este Brasil varonil, pacífico e cordial, viu morrer quase tanta gente quanto os Estados Unidos durante os cinco anos que lutou na Segunda Guerra Mundial (625 mil soldados).
Num único ano, 2003, segundo dados do Ministério da Saúde, assassinaram no Brasil uma população civil (51 mil pessoas) quase tão grande quanto as perdas dos Estados Unidos (58 mil) ao longo dos 16 anos da Guerra do Vietnã.
Esta mesma impunidade, que nasce nos quartéis, sobrevive hoje, portanto, nas ruas.
A tortura é verdade. A verdade sob tortura é mentira.
Esconder da história a verdade é a maior de todas as mentiras. Ou cumplicidade, se repetida a mesma história. A história é, normalmente, contada pelos vencedores. Neste caso, pelos torturadores. Quem teima em esquecer essa história, é cúmplice dela. É protagonista, do mesmo lado.
O esquecimento é uma forma de perdão. Mas, existem fatos que são imperdoáveis. Portanto inesquecíveis.
Como perdoar, por exemplo, os autores do holocausto? Esquecendo o próprio holocausto? Negando-o, como querem alguns? Como negar as fileiras e os amontoados de corpos esquálidos nos campos de concentração nazista? Ou do genocídio de Sabra e Chatila? Como haver misericórdia em tiros? Ou em gás?
É o esquecimento, artéria principal da impunidade, a razão principal da repetição.
Punir os torturadores, de hoje e de ontem, não é revanchismo.
É uma obrigação moral e ética de um país que deve olhar sem medo, para trás, para encarar sem receios o caminho que tem pela frente.
Vamos lavar nossas feridas.
Que isso comece nesta quarta-feira, pela histórica decisão que será dada pelo STF, acatando o pedido da OAB e os clamores de um país consciente de seu passado e confiante em seu futuro.
Senador PEDRO SIMON – 26abril2010
Tag: ditadura
General diz que não houve tortura
O jornalista Geneton Moraes Neto, é um gênio da raça. Da raça dos jornalistas. Sua empreitada atual é escarafunchar os subterrâneos da ditadura militar, ouvindo agora a voz sempre silenciosa de alguns de seus principais personagens: os generais.
No sábado (3/4), o Globonews Dossiê de Geneton entrevistou o general Leônidas Pires Gonçalves, ex-comandante do DOI-CODI do I Exército, no Rio de Janeiro, no período mais sangrento do governo Ernesto Geisel.
No sábado (10/4), será a vez do general Newton Cruz, o notório Comandante Militar do Planalto, que em 1984 chicoteava os carros na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, enquanto suas tropas cercavam o Congresso no momento em que o trator governista esmagava em plenário a emenda das Diretas Já.
Fantasias fardadas
O primeiro impacto foi bombástico: a entrevista de Leônidas, mais conhecido como o primeiro ministro do Exército pós-ditadura, o general nomeado por Tancredo Neves e que se tornou o principal cabo eleitoral e fiador da posse de José Sarney.
A primeira surpresa é que o entrevistado aparece não como o ministro da democracia, mas como o chefe da repressão da ditadura. Leônidas é identificado, na legenda, como “chefe do DOI-CODI, 1974-77”.
O general falou, com uma fluência inédita e uma sinceridade desconcertante, levantando temas que beiram à fantasia, a leviandade e a arrogância.
Desafiou qualquer um a dizer que foi torturado no DOI-CODI que ele comandou durante quase três anos, na fase mais turbulenta do governo Geisel. “Não houve tortura na minha área”, garantiu Leônidas.
Deve ser um milagre na Terra, porque no mesmo I Exército, comandado pelo general Sylvio Frota entre julho de 1972 e março de 1974, o DOI-CODI carioca era um centro de morte, conforme apurou O Globo.
Naquele espaço de 21 meses, contou o jornal, morreram 29 presos nas masmorras da Rua Barão de Mesquita, onde funcionava o centro de torturas do Exército, comandado pelo notório major Adyr Fiúza de Castro, um dos radicais mais temidos da ditadura.
Bastou chegar ali e assumir o DOI-CODI carioca, diz o general Leônidas, e a paz dos anjos se instalou.
Confessa que foi dele a idéia de subornar um ex-dirigente do PCdoB, Manoel Jover Telles, que revelou local, dia e hora da reunião do Comitê Central do partido, em dezembro de 1976, em São Paulo.
Leônidas diz que entregou uma quantia equivalente a R$ 150 mil à filha do delator, que depois ganhou um emprego na fábrica de armas Rossi, em São Leopoldo, onde hoje vive aposentado.
A operação de cerco foi montada pelo chefe do setor de operações do CIE (Centro de Informações do Exército), coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o criador e primeiro chefe do DOI-CODI paulista do II Exército, na Rua Tutóia.
Ustra comandou pessoalmente o ataque à casa do PCdoB, num tiroteio que prendeu dirigentes e matou três chefes do partido num entrevero sangrento conhecido como o “Massacre da Lapa”.
Por coincidência, o coronel Ustra chefiou a tropa de ataque do CIE no mesmo período – 1974-77 – em que o general Leônidas comandava o remanso de paz da Barão de Mesquita.
Entre outras fantasias, Leônidas continua acreditando que o jornalista Vladimir Herzog é apenas um “suicida assustado” pelo simples fato de ser convocado ao centro de torturas da Tutóia.
Efeitos desastrosos
O que não surpreende, nesta entrevista, é a competência do entrevistador, talvez o melhor perguntador da imprensa brasileira.
Aos 54 anos, Geneton Moraes Neto é um repórter discreto, persistente, talentoso e criativo, que tem o faro da notícia e uma habilidade invulgar para fazer as perguntas precisas para as pessoas certas nos momentos mais inesperados, jogando luz sobre a história e dissecando biografias com a precisão de um legista.
Entre uma e outra pauta na TV, Geneton ainda encontra tempo, método e talento para escrever. Já são nove livros, entre 1983 e 2007, que revelam o prazer visceral de um jornalista veterano que exibe o ardor de um repórter iniciante.
Ele mesmo se descreve, exibindo a diversidade de quem descobre temas e personagens de velhas histórias renascidas e recontadas com o viço de coisas novas, diferentes e inéditas. Escreve Geneton sobre seu fascínio pelo bom jornalismo e suas peripécias:
“É a melhor profissão para quem não consegue ser outra coisa na vida. [Tive] a chance de percorrer corredores da morte em prisões de segurança máxima americanas, ruínas de campos de concentração na Alemanha, além de entrevistar três astronautas que pisaram na Lua, duas sobreviventes do naufrágio do Titanic, o co-piloto do avião que jogou a bomba atômica sobre Hiroshima, o produtor de todos os discos dos Beatles, o assassino do líder negro Martin Luther King, o promotor britânico que comandou a condenação dos criminosos nazistas no Tribunal de Nuremberg, o agente secreto britânico que armou um atentado – frustrado – para matar Hitler, o golpista que engendrou o célebre assalto ao trem pagador inglês. Entre trancos e barrancos, o jornalismo pode valer a pena.”
E vale mais a pena quando vem pelo cálamo e pelo talento de Geneton, que consegue tornar simples uma dos mais complexos fundamentos do jornalismo: a arte de perguntar.
Uma pergunta bem formulada, precisa, cirúrgica, não deixa saída ao entrevistado, não permite fuga, não abre desvios. O bom repórter, antes da acuidade para ouvir, deve ter a competência para inquirir. E, neste campo, ninguém é melhor, mais certeiro, mais direto do que Geneton.
Seus livros e seus programas na TV valem por um curso completo de jornalismo.
Algo mais doura esta habilidade inata de Geneton.
Suas perguntas são objetivas, enxutas, minimalistas.
Sem arrogância, Geneton enfrentou o general Leônidas com perguntas precisas que iluminaram a história e conseguiram arrancar o melhor (e o pior) do chefe da repressão política que se orgulha de seu trabalho na ditadura.
Preocupado com a edição do programa na TV, Leônidas se apressou em ensinar jornalismo a Geneton: “Que minhas idéias não sejam suprimidas na edição. Se houver um corte, você me deixa mal”, avisou o general, esquecido de que o regime que ele defendeu se esmerava em cortes sistemáticos pela censura burra que suprimia idéia e fatos que sempre deixam mal as ditaduras.
Geneton não cortou, e ainda assim o general Leônidas ficou muito mal pelas idéias que exprimiu, livremente.
Sempre educado, mas incorrigivelmente firme, Geneton questionou a exótica versão do general de que líderes do regime deposto – como Arraes, Brizola, Jango, Prestes – saíram do Brasil, a partir de 1964, “porque quiseram”. Leônidas mirou no ex-governador Miguel Arraes:
– Ele podia ficar em casa.
– Deposto – emendou Geneton.
– E qual é o problema? – admirou-se o general.
– Todo – encerrou Geneton, com a sintética sabedoria que o general, aos 88 anos, ainda não apreendeu. – Não havia condições de exercer a política no Brasil, naquela época, general.
O ex-chefe do DOI-CODI desdenhou toda uma fase de arbítrio e violência, dizendo que o país não teve exilados pelo golpe de 1964, mas apenas ‘fugitivos’.
– Eles que ficassem aqui e enfrentassem a justiça – pregou Leônidas.
– General, num regime de exceção, a justiça não é confiável – replicou o repórter.
Trinta anos depois, Lilian encara sequestrador
O policial Irno processa o jornalista
que denunciou o seqüestro em 1978
O ex-policial do DOPS gaúcho João Augusto da Rosa, codinome Irno, está processando o jornalista Luiz Cláudio Cunha, autor do livro Operação Condor: O Sequestro dos Uruguaios, lançado em 2008 pela editora L&PM.
O livro conta a história do sequestro de Lílian Celiberti, seus dois filhos menores e Universindo Diaz, ocorrido em Porto Alegre em novembro de 1978. Irno – ex-inspetor do DOPS e membro da equipe do delegado Pedro Seelig, principal nome da repressão no sul do país durante a ditadura militar – foi o agente que recebeu Cunha com uma pistola apontada para sua testa, no apartamento da rua Botafogo, no bairro do Menino Deus, onde os policiais do DOPS e oficiais do Exército uruguaio mantinham Lílian seqüestrada.
Irno – juntamente com outro policial do DOPS, o escrivão Orandir Portassi Lucas, o ex-jogador de futebol Didi Pedalada – foi reconhecido por Cunha e pelo fotógrafo J.B. Scalco como seqüestradores dos uruguaios. Ambos foram condenados pela Justiça em 1980.
Na ação, Irno pede indenização por dano moral, alegando que Cunha não menciona sua absolvição por “falta de provas” no recurso que apresentou em 1983, em segunda instância. O policial esqueceu de dizer que as “provas” do seqüestro – Lílian e Universindo – estavam então presas, sob tortura, nas masmorras da ditadura uruguaia, que acabou apenas em 1985.
O seqüestrador do DOPS gaúcho tenta reverter na Justiça a verdade que a imprensa brasileira publicou na época e que é recontada, em detalhes, no livro de Cunha: “Lembro apenas uma história que o Brasil todo conhece. Irno é um dos policiais que nós identificamos como seqüestradores dos uruguaios. O livro conta e reafirma uma história que narrei há 30 anos, na série de reportagens da revista Veja que ganhou os principais prêmios de jornalismo do país”.
Agora, 32 anos depois do sequestro, Irno terá que enfrentar não só a verdade publicada pela imprensa. Como uma das testemunhas de defesa de Cunha, a uruguaia Lílian Celiberti terá a chance de falar o que lhe foi sonegado dizer há três décadas.
Pela primeira vez desde 1978, Lilian estará frente a frente com o seqüestrador Irno na audiência do processo marcada para esta quinta-feira, dia 04/02, às 15h, na 18º Vara Cível, no Foro Central de Porto Alegre.
Operação Condor: O Sequestro dos Uruguaios – que em 2009 recebeu o troféu Jabuti da Câmara Brasileira do Livro e a Menção Honrosa do prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos – acaba de ser agraciado em Havana no Prêmio Casa de Las Américas de 2010, que reuniu 436 obras de 22 países. Cunha ganhou menção honrosa na categoria Literatura Brasileira, vencida pela escritora Nélida Piñon.
Jornalista processado por livro sobre sequestro
Está marcada para 4 de fevereiro, na 18a. Vara em Porto Alegre, a primeira audiência do processo que o policial aposentado João Augusto da Rosa, o Irno, move contra o jornalista Luiz Cláudio Cunha, autor do livro “O Sequestro dos Uruguaios”, um dos lançamentos mais premiados em 2009.
Irno, segundo o jornalista, era um dos policiais que estavam num apartamento do Menino Deus, em Porto Alegre, em novembro de 1978, para sequestrar os uruguaios Lilian Celiberti e Universindo Dias.
Irno seria o chefe da operação e foi ele quem apontou a pistola para a cabeça do jornalista, que com o fotógrafo J.B. Scalco, surpreendeu a ação em pleno andamento.
Reconhecido e identificado pelos jornalistas, o policial chegou a estar preso, mas foi inocentado em 1983, por falta de provas.
Na ação judicial, por dano moral (indenizatória), ele alega que foi ridicularizado no livro em que Luiz Claudio Cunha reconstrói toda a história 30 anos depois.
Alega também que não é mencionada sua absolvição e que foram publicadas fotos suas sem autorização.
“Não menciono a absolvição porque minha história termina em 1980, com a condenação do Didi Pedalada, o outro policial que flagramos no apartamento. Quanto às fotos, todas já foram publicadas pela imprensa na época, são públicas, portanto”.
Para se defender, o jornalista convocou o testemunho de Lilian Celiberti, que hoje vive em Montevidéo.
Pela primeira vez, depois de 30 anos, ela estará frente a frente com o homem que, segundo o relato de Cunha, comandou o sequestro, um dos mais rumorosos casos da repressão política nos anos das ditaduras do Cone Sul.
Quando Irno foi absolvido, em 1983, Lilian estava presa no Uruguai. “Irno foi absolvido por falta de provas porque a principal prova contra ele estava no pau de arara naquele momento”, resume Cunha.
Osmar Béssio Trindade, um jornalista
Se me coubesse escolher um caso exemplar nessa geração de jornalistas gaúchos que enfrentou a ditadura militar, eu não hesitaria em apontar o nome de Osmar Béssio Trindade.
Ele era desses que nascem prontos, nos quais o tempo e a experiência só fazem aperfeiçoar as qualidades inatas.
Conheci-o na nossa Santana do Livramento, eu era um garoto imberbe, ele já repórter da Folha Popular, o jornal editado pelo Ivo Caggiani.
Fazer a cobertura policial num jornal do interior, ainda mais numa cidade como Livramento, não é para qualquer um. A praxe, para o repórter que tem amor à própria pele, é copiar estritamente o livro de ocorrências e, mesmo assim, com muito tato.
Pois, como descobri mais tarde, o Trindade já fazia o que nem os repórteres da capital faziam: apanhava o registro, ouvia os policiais, as pessoas envolvidas, ia no local ouvir as testemunhas, para então montar o seu relato, que muitas vezes contrariava a versão policial.
Coragem serena
Não me lembro que tenha sofrido alguma vez represália ou agressão e nisso certamente influía outra de suas grandes qualidades – a coragem serena, sem arroubos, nada fronteiriça, a firmeza tranqüila com que defendia o seu exercício profissional.
Reencontrei-o anos depois na Folha da Manhã, onde ele entrou como repórter e logo se tornou o chefe de uma equipe jovem e aguerrida que sacudiu a modorra do jornalismo oficioso que se praticava na Casa de Caldas.
Atento e meticuloso, não deixava passar nada e na zoeira daquela redação ensandecida era um ponto de equilíbrio – o chefe que não precisava levantar a voz, o líder que motivava pelo exemplo, o colega mais velho que tinha paciência com os focas, o profissional rigoroso que não dormia se levava um furo da concorrência.
Quando a truculência fez sucumbir a “Folhinha”, ele mudou de trincheira e, com a mesma serenidade e a mesma competência, foi continuar sua tarefa na Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre. Muito do sucesso e do prestígio que o Coojornal alcançou se deve à sua firme liderança na chefia de reportagem.
Coojornal
Depois, quando a Coojornal, acossada pela brutal repressão do regime militar, entrou em parafuso, ele aceitou assumir a presidência como um nome de consenso para tentar salvar o projeto. Era tarde.
Pouco depois, decepcionado com os rumos que o jornalismo tomava, decidiu sair do país. Foi para Moçambique. Ele achava que um jornalista devia estar sempre do lado dos mais fracos. De volta ao Brasil, foi trabalhar em Macapá e, nos últimos anos, mudou-se para Brasília, mas não conseguiu se adaptar ao pragmatismo dos novos tempos, em que para sobreviver é preciso estar mais atento às conveniências do que aos princípios.
Sobretudo, Osmar Béssio Trindade era um homem generoso. Que o digam os repórteres que trabalharam (e muito aprenderam ) com ele: Caco Barcelos, Erni Quaresma, Caco Schmitt, Najar Tubino, André Pereira, Rafael Guimarães, Carlos Wagner e tantos outros. Eu perdi um amigo, um irmão. Para todos nós, que acreditamos que essa profissão pode ter algum sentido, sua morte é uma perda inestimável.