Em seu Almanaque o jornalista Hélio Gama, ao mesmo tempo que faz semanalmente um apanhado qualitativo dos temas dominantes, está destilando parte de suas memórias, que guardam pelo menos 40 anos de vivências pelos principais projetos da imprensa brasileira.
O trecho que segue é parte de um capítulo inédito da história da imprensa do Rio Grande do Sul. Uma introdução à “História do Diário do Sul”, digamos.
MEMORIA DE JORNALISTA
Uma história que não foi contada (parte final)
Hélio Gama
(…) Nessa época, comecei a fazer o projeto do novo jornal, que ainda não tinha nem nome. Mas o plano era de lançar o jornal em uma nova empresa da GZM, sem qualquer mudança ,na sua estrutura inclusive com a continuidadfe do caderno regional, a Gazeta Mercantil Sul, que vinha obtendo crescente resultado com publicações legais. Como o jornal, no conjunto, tinha um resultado muito positivo no Rio Grande do Sul, pensava, também, que isso poderia representar boa parte do investimento.
Elaborei, então, o projeto editorial do jornal que seria da “família” da Gazeta Mercantil, mas diferente dela. Agregaria, é claro, os princípios básicos tais como independência, separação da opinião do jornal do material noticioso, a obrigatoriedade de ouvir as partes nas reportagens controversas, postura muito definida a respeito de temas centrais, sendo um jornal liberal progressista, vamos dizer assim. Isso significava ter um editorial que fosse considerado importante para os leitores do jornal. Isso exigiu fazer o seguinte: o jornal nasceria como se já existisse por muitos anos tendo opiniões consolidadas (isso foi fácil, com base no histórico das posições do jornal-mãe).
Também planejei algumas características básicas, tais como o jornal ter seis edições por semana, circulando no sábado com a edição de fim de semana. Sempre achei ridículo o hábito de circular pela manhã com a edição de sábado e as 14/15 horas do mesmo dia colocar nas bancas a edição de domingo (sem notícia de sábado!). Além disso, existiam bons motivos de ordem econômica, já que a sétima edição aumentaria os custos de todos os setores.
O nome Diário do Sul nasceu com naturalidade, de tanto que conversei com Luiz Fernando Levy falando no jornal diário do sul. As restrições da direção editorial da GZM ao novo projeto eram evidentes mas educadamente disfarçadas, da mesma forma como ocorrera quando apresentei a ideia de fazer o caderno regional. Raríssimas vezes apareceram oportunidades de conversar com os editores, em São Paulo, sobre o novo projeto. E quando foi decidido que ele seria feito, o raio de Zeus que me atingiu, e aos leitores da GZM, foi que, simultaneamente seria extinto o caderno regional.
Enfim, no início de 1986, tínhamos um projeto de jornal e inclusive, com base na ideia de que, segundo a experiência internacional, os jornais passam a dar resultado positivo no quinto exercício, coordenei a elaboração de um detalhado orçamento de cinco anos, apontando, então, o valor total que a GZM teria de injetar em sua subsidiária até que o retorno fosse possível. Diante das dificuldades da GZM para investir, agravada pela surda oposição de setores da empresa em dividir recursos que já não eram substanciais, a ideia era a de conseguir também sócios locais.
Tudo estava praticamente pronto para o lançamento, quando, no começo de maio, o desembargador Hermann Homem de Carvalho Roenick, síndico da massa falida me chamou e largou uma bomba: o empresário Renato Ribeiro, um milionário brocker do setor de commodities tinha adquirido tudo, inclusive as dívidas! Ou seja, o homem agora era Ribeiro que, semanas antes, tinha ficado furioso com algumas matérias da Zero Hora que sugeriam que ele acrescentava elementos estranhos nos sacos de soja que eram exportados. Consta que um grande amigo dele teria dito que ele evitaria tais ataques se tivesse o seu próprio sistema de comunicação.
O projeto do Diário do Sul tremeu nas bases. O Plano “A” foi por terra. Então, o Plano “B” foi o de tentar fazer uma associação com Renato Ribeiro. O encontro, organizado por Luiz Fernando Cirne Lima, amigo comum dos dois, foi na mansão estilo E o Vento Levou, do empresário, na Avenida Carlos Gomes, em Porto Alegre. Participei, então, da reunião de Luiz Fernando Levy com Ribeiro, mediada por Cirne Lima. Foi um dos piores encontros da minha vida. Com praticamente dez anos de Gazeta Mercantil nunca tinha visto Luiz Fernando ter má participação em reuniões. Ele esteve irreconhecível diante da postura naturalmente agressiva e autoritária de Ribeiro.
Ele rechaçou a possibilidade de qualquer acordo, mas abriu a porta para assimilar o grupo de jornalistas que estava já formado para, então, fazer o Correio do Povo. Quando saímos da reunião, desanimado, Luiz Fernando comentou: “foi a pior pessoa que conheci na minha vida”. Nasceu então o Plano “C”. Luiz Fernando falou com Cirne Lima, este falou com Renato e Renato me chamou para uma reunião em seu escritório.
Sua sala era simples, e o visitante ficava sentado ao lado de um visor onde apareciam as cotações das commodities. Renato conversava com o visitante de olho nos preços e, de vez em quando dava uma ordem para comprar ou vender para um de seus assessores. Conversamos um pouco, ele perguntou se estaria disposto a reiniciar o Correio do Povo e então quis conhecer minha equipe de direção do projeto Diário. E fomos jantar com ele no Rock’s um pequeno restaurante prestigiado pela suposta qualidade de seus filés.
Apresentei as pessoas e cada um expôs o tipo de trabalho que realizava. Ficou interessado no trabalho na parte industrial da Caldas Junior, inclusive com o estreitamento da rotativa para um standard moderno. Ele era rápido. No dia seguinte ele fez o convite para ser Diretor de Redação do Correio do Povo, extensivo à equipe que planejava o Diário, falei pelo telefone com Luiz Fernando, chorei um pouco, não sei se ele chorou também, liguei para o Renato e fui lá ter uma conversa de orientação. Ao contrário do que imaginava, ele disse que queria o jornal standard, que as letras tinham que ser grandes para facilitar a leitura das pessoas mais idosas, falou sobre a importância da cobertura sobre agropecuária e mais algumas coisas. E disse para que já fosse para lá e fizesse o planejamento do novo Correio, inclusive uma proposta de projeto gráfico.
Antiga redação do Correio do Povo, na época em que era líder
Então, no dia seguinte, já como diretor, entramos todos no templo sagrado do jornalismo gaúcho, a redação do Correio do Povo. As luzes estavam apagadas e o ambiente era naturalmente escuro, quase sombrio. Mas quando as luzes foram acesas foi uma alegria. Os profissionais percorriam a redação para reconhecer as mesas. “Aqui era a mesa do Mário Quintana”, gritou um. “Aqui sentava o Gastal”,disse outro (Gastal era o excelente crítico de cinema do Correio, com o pseudônimo de Calvino). Durante o dia, Renato pediu para encaminhar ao antigo gerente de pessoal do Correio os nomes da minha equipe, com as respectivas funções. Nesse meio tempo boquiabertos, assistimos uma cena insólita: a mulher do novo proprietário da empresa, com uma vassoura, balde de água e pano, varrendo e tirando o pó da antiga sala de Breno Caldas.
Pensei comigo: “será que Renato vai querer ficar na redação”? E também não me saía da cabeça uma frase dita por Renato durante o jantar: “tenho horror de comunista, mulher liberada e homossexual”. Lembro que pensei: “Ih, acho que teremos problemas”. E enquanto a sra. Ribeiro varria e o pessoal do projeto gráfico e os editores se reuniam numa sala sem janela e abafada, com uma grande mesa, recebi outra informação: o Correio do Povo mantinha uma lista negra de jornalistas que, por várias razões não podiam voltar a trabalhar nos veículos da empresa. Com essa notícia, conclui que minha administração seria uma espécie de cometa na história do Correio do Povo, inclusive sem registro.
No dia seguinte, Renato me ligou cedo e disse que vários profissionais do meu time constavam da lista negra, que, por sinal, ele tinha decidido que continuaria em vigor. Disse-lhe, então, que isso alterava nosso acerto inicial pois prejudicaria um grupo de profissionais de alta qualidade e que não poderia continuar naquela função. Ele me disse que imaginava isso, e assim terminou o contrato não assinado, nos despedimos educadamente e deixei a diretoria de redação do tradicional Correio do Povo. Comuniquei com tristeza os fatos aos meus colegas e regressamos para a Gazeta.
Contei ao Luiz Fernando, pelo telefone, tudo o que tinha acontecido. Alguns garantem que fiz um pedido para ele retomar o projeto do Diário. Mas não foi assim. Quando terminei o relato, ele disse: “Vamos fazer esse jornal. Venha amanhã a São Paulo para a gente acertar isso”. Foi o que fiz, levando a tiracolo todos os planos e o orçamento. Quando regressei estava autorizado a colocar em prática o Plano “D”. E foi o que fiz. No dia 4 de novembro de 1986 começou a circular o Diário do Sul. Um dia desses vou contar essa história sobre o jornal que, numa homenagem da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, foi definido pelo orador, o grande radialista e vereador Lauro Hagemann, como “um jornal feito com amor”.
(Transcrição autorizada)
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Jornalistas debatem e autografam livro sobre o Coojornal
No dia 15 de novembro, a Feira do Livro de Porto Alegre recebe Rafael Guimaraens, Elmar Bones, José Antônio Vieira da Cunha, Edgar Vasques e Ayrton Centeno para falar da obra ‘Coojornal, um jornal de jornalistas sob regime militar’. O debate acontece às 18h na Sala Oeste do Santander Cultural.
Em seguida, Guiamaraens, Bones e Centeno estarão na Praça de Autógrafos, a partir das 19h30min. A Feira do Livro acontece na Praça da Alfândega, no Centro da Capital.
O LIVRO
O livro tem 272 páginas. O livro reproduz algumas das principais reportagens, cerca de 30, transcritas na íntegra, envolvendo nomes como Leonel Brizola, Chico Buarque de Hollanda, Henfil, Elis Regina, José Lutzenberger, Golbery do Couto e Silva, Dom Vicente Scherer, entre outros. Acompanha um DVD com documentário de uma hora de duração. Alem de um breve histórico do mensário, traz ainda charges, ilustrações e fotos originais da época.
A SELEÇÃO
Ao longo de sete anos, foram produzidas 78 edições do Coojornal, mais duas especiais e duas de humor. As reportagens no livro foram escolhidas pelos jornalistas Elmar Bones, Ayrton Centeno e Rafael Guimaraens, após várias consultas junto a integrantes da Cooperativa.
As matérias estão apresentadas na forma em que foram publicadas originalmente e transcritas de acordo com a nova ortografia.
OPOSIÇÃO
O Coojornal representou um caso bem sucedido de trabalho cooperativado, onde trabalhadores associados conseguiram sustentar, por anos e com autonomia, um jornal crítico da ideologia dominante, tendo sido a única cooperativa importante de jornalistas a explorar a fundo e de forma consciente o ideal cooperativo.
“A principal função ideológica do Coojornal, ao longo de sua história, foi o fortalecimento da oposição ao regime ditatorial”, explica um dos autores, Rafael Guimaraens..
A publicação apoiou direta ou indiretamente partidos políticos e movimentos sociais de oposição, apresentando matérias críticas sobre questões nacionais e internacionais (especialmente latino americanas) de política, economia e cultura. Tratou de ditaduras latino americanas dos anos 1960 e 1970 e suas práticas repressivas (Brasil em especial); Operação Condor; conservadorismo de setores da Igreja Católica; greves, sindicalismo, cooperativismo e lutas dos trabalhadores; grande imprensa; guerrilha; imperialismo; corrupção; violência contra mulheres e crianças; dentre outros temas.
O Coojornal atingiu seu ápice financeiro em meados de 1977, possuindo 260 pontos de venda em Porto Alegre. No final dos anos 1970, uma matéria sobre a quantidade de cidadãos cassados durante a ditadura militar (4.682 até então) afastaria grande parte da publicidade e marcaria o início de sua derrocada. Entre os autores das matérias figuram Caco Barcellos, André Pereira, Eduardo Bueno e Luis Claudio Cunha.