Primeira tentativa de golpe falhou

Ministros militares vetaram a posse de Jango em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros. Mas o movimento da Legalidade frustrou o golpe.
João Goulart ainda dormia quando o telefone tocou no quarto do Hotel Raffles, em Singapura, no amanhecer do dia 26 de agosto de 1961. Era um repórter da Associated Press, agência de notícias norte-americana. Ligava de Nova Iorque para ouví-lo sobre a renúncia do presidente Jânio Quadros, no dia anterior.
Na condição de vice-presidente, Goulart presidia uma missão comercial que percorria o Extremo Oriente, em busca de negócios e investimentos para o Brasil. Estivera na República Popular da China, o maior país comunista do mundo e, na véspera, chegara a Singapura, “a esquina do mundo”.
Jantara com parlamentares integrantes da missão num restaurante malaio, perto do hotel e se recolheu. Acordou com o telefone do repórter da AP. Disse que ia se informar para depois falar.
Brinde com champanhe
À hora do café, o senador Barros de Carvalho, pediu uma garrafa de champanhe para “brindar ao novo presidente do Brasil”. Jango atalhou: “Vamos brindar ao imprevisível”.
Jango sabia que para assumir a presidência, como mandava a Constituição, teria que vencer “antigas e arraigadas resistências”.
Os coronéis golpistas que o haviam derrubado do Ministério do Trabalho, em 1953, eram todos generais engajados no mesmo movimento que já levara Getúlio Vargas ao suicídio.
Logo chegou a informação que de que os três ministros militares – Exército, Marinha e Aeronáutica – tinham divulgado uma nota conjunta dizendo que ele não poderia tomar posse.
Em seguida chegou o telegrama com a íntegra da mensagem lida em sessão extraordinária do Congresso Nacional, pelo deputado Rainieri Mazzilli, presidente da Câmara:
“Exmo. Sr. Presidente do Congresso Nacional
Tenho a honra de comunicar a V.Exca. que na apreciação da atual situação política criada pela renúncia do Presidente Jânio Quadros, os Ministros Militares, na qualidade de Chefes das Forças Armadas, responsáveis pela ordem interna, me manifestaram a absoluta inconveniência, por motivos de segurança nacional, do regresso do vice-presidente João Goulart. Brasilia, 28 de agosto de 1961”.
Acontecera o que era bem previsível. Desde que um manifesto de 300 coronéis o derrubara do Ministério do Trabalho, em 1953, Jango não era bem visto por certos setores militares. Aqueles coronéis, que estavam entre os que levaram Vargas ao suicídio em 1954, eram agora generais e não toleravam ver o “herdeiro de Vargas” no poder.
Por algumas horas Jango ficou ao telefone tentando saber o que fazer. Até que chegou o chamado de Brizola. Estava analisando as possibilidades de resistir ao golpe. Combinaram que Jango se deslocaria para Montevidéu e aí aguardaria os acontecimentos.
Aconteceu o que se sabe: com o apoio do comandante do III Exército (hoje Comando Militar do Sul) e da Brigada Militar, Brizola levantou o Rio Grande do Sul no movimento da Legalidade e garantiu a posse de Jango, ainda que com poderes limitados por uma emenda parlamentarista.
Raul Riff, seu secretário de imprensa, registrou a frase de um entusiasmado parlamentar udenista: “Vamos fazer de Jango uma Rainha da Inglaterra. Sentará no trono mas não governará”.
Um presidente sem forças querendo fazer reformas
Jango tomou posse como presidente no dia 7 de setembro de 1961. Mas era um presidente sem força, pois o regime havia mudado para o parlamentarismo, onde quem governa é o primeiro-ministro e seu gabinete. Remendo para tirar os poderes de Goulart, o parlamentarismo foi uma sucessão de crises. Quatro primeiros-ministros foram nomeados em pouco mais de ano. Foi um período em que o país ficou praticamente paralisado pela crise política.
Em janeiro de 1963, o Congresso aprovou a realização de um plebiscito, para o povo decidir se queria continuar no parlamentarismo ou preferia voltar ao presidencialismo. Sem aguentar mais aquela confusãoa, 80% dos eleitores votaram a favor do presidente.
Jango se sentiu fortalecido e começou a trabalhar numa plataforma de reformas, que incluíam alguns temas explosivos, como o controle da remessa de lucros pelas empresas estrangeiras e a reforma agrária. Estes eram os principais pontos do programa de reformas:
– controle dos investimentos estrangeiros e da remessa de seus lucros para o exterior
-encampação das refinarias de petróleo pertencentes ao capital privado
-monopólio da Petrobrás para importação de petróleo e seus derivados
-novas normas para toda e qualquer concessão para exploração de riquezas minerais no país
-desapropriação de latifúndios improdutivos
-regras para o arrendamento, aforamento, parceria ou quaisquer outras formas de locação agrícola
-incentivo à sindicalização rural
-implantação da Eletrobrás
-Lei de telecomunicações
– Relações diplomáticas com a URSS e China
-controle pelo Banco do Brasil dos preços das matérias primas importadas para a fabricação de medicamentos no país
-reforma urbana
-direito de voto ao analfabeto
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Congresso anula sessão que afastou Jango

Soraya Mendanha e Isabela Vilar, da Agência Senado
Depois de ter conseguido boicotar a sessão de terça-feira, o deputado Jair Bolssonaro tentou de novo na noite de ontem. Mas, já na madrugada de hoje, o Congresso Nacional votou o projeto de resolução que anula a sessão de 2 de abril de 1964, que declarou vaga a Presidência da República quando João Goulart ainda resistia, já no Rio Grande do Sul, antes de partir para o exílio, no Uruguai.
“Eu estava com ele, em Porto Alegre”, disse, emocionado, o senador Pedro Simon (PMDB-RS), autor do projeto junto com Randolfe Rodrigues (PSOL-AP). Eles argumentaram que a declaração de vacância da Presidência foi inconstitucional.
O Congresso Nacional comemorou a correção do erro histórico com chuva de papel picado.
Sob chuva de papel picado e com vivas à democracia, o Congresso Nacional aprovou, na madrugada desta quinta-feira (21), o Projeto de Resolução 4/2013, que anula a sessão de 1964 na qual foi declarada vaga a Presidência da República, então ocupada por João Goulart (1919-1976).
A sessão anulada, protagonizada pelo então presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, ocorreu na madrugada de 1° para 2 de abril, quando Jango se encontrava no Rio Grande do Sul, e abriu caminho para a instalação do regime militar, que durou até 1985.
Os senadores Pedro Simon (PMDB-RS) e Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), autores do projeto, argumentaram que a declaração de vacância da Presidência foi inconstitucional, porque a perda do cargo só se daria em caso de viagem internacional sem autorização do Congresso, e o presidente João Goulart se encontrava em local conhecido e dentro do país.
– Eu estava com ele, em Porto Alegre – disse, emocionado, Pedro Simon, ao relatar os acontecimentos dramáticos relacionados à deposição de Jango.
Simon exaltou a coragem e a responsabilidade de Jango ante a possibilidade de uma guerra civil e até de uma intervenção norte-americana.
– O momento é histórico.
Este Congresso restabeleceu a verdade histórica. Viva o presidente João Goulart! – disse o senador, que classificou a sessão de 1964 de “estúpida”, “ridícula” e “imoral”. Ele sublinhou que aprovação da proposta reconstitui a verdade para o povo brasileiro e permite que a história seja ensinada de maneira diferente nas escolas e universidades.
– Nós não temos desejo de vingança, nem ódio, nem mágoa. Não temos nada disso. Nós queremos apenas reconstituir a história. Quem ler, vai saber – afirmou.
Após o início do golpe de Estado, em 31 de março de 1964, o presidente João Goulart decidiu ir a Porto Alegre a fim de encontrar aliados políticos e estudar como poderia resistir ao golpe de Estado. Foi nesse período que o então presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarou vaga a Presidência da República.
“Em poucos minutos, sem discussão, Jango foi usurpado do cargo de presidente da República, num ato unilateral do então presidente do Congresso Nacional, Senador Auro de Moura Andrade”, argumentam no texto Pedro Simon e Randolfe Rodrigues.
Randolfe Rodrigues lembrou que vários parlamentares, como o então deputado Tancredo Neves (1910-1985), se manifestaram à época contra a decisão, por meio de questões de ordem. Randolfe afirmou que o país precisa reparar as “manchas no passado” para engrandecer a democracia.
– Não se constrói um país decente, justo, se não tiver lealdade com a sua memória. Não se constrói um país democrático se a Casa guardiã da democracia não reparar as arbitrariedades e as manchas do passado – disse.
A aprovação do projeto, segundo os senadores, mostra que o Congresso, passados 49 anos do Golpe de 1964, não se mantém curvado às circunstâncias que levaram ao regime militar e repudia a contribuição ao golpe dada pela Casa no passado. Para eles, trata-se de um “resgate da história e da verdade”, uma correção, ainda que tardia, de “uma vergonha histórica para o Poder Legislativo brasileiro”.
O deputado Domingos Sávio (PSDB-MG) falou sobre a tristeza de relembrar a madrugada em que foi realizada a sessão em que Jango foi destituído, mas disse que o ato é necessário para evitar que episódios dessa natureza se repitam. Para ele, e o Congresso escreveu, durante aquela sessão, uma das páginas mais obscuras da sua história já que, ao declarar a vacância, propiciou o ambiente para o golpe militar.
– Ao declarar a vacância criou, aí sim, o ambiente para o malfadado golpe militar que levou o Brasil a um período de obscurantismo e ditadura – disse.
Vários deputados também discursaram, para repor a verdade histórica.
Protesto
O deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) foi o único a se manifestar contrariamente à proposta. Ele tentou derrubar a votação, com questões de ordem, destacou que a destituição de João Goulart teve apoio, não só das Forças Armadas, mas de amplos setores da sociedade, e ainda da Igreja Católica, da Organização dos Advogados do Brasil (OAB), da imprensa e afirmou que a tentativa de apagar o passado é um ato “infantil” e “stalinista”.
– Isto é mais do que stalinismo, onde se apagavam fotografias. Aqui se estão apagando sessões do Congresso. Pelo menos está servindo para alguma coisa: botar por terra a farsa de que foi um golpe militar a destituição de João Goulart – disse, sublinhando a participação do Congresso na destituição do então presidente da República.
A votação da proposta estava prevista para a noite de terça-feira (19), mas foi adiada devido ao pedido de verificação de quórum feito pelo próprio deputado Jair Bolsonaro. Na sessão desta quarta (20), o deputado voltou a pedir a verificação, mas teve o pedido negado pelo presidente do Congresso, Renan Calheiros.
– Vossa Excelência, contra todos os líderes, contra todas as bancadas, isoladamente, não pode paralisar e imobilizar os trabalhos do Congresso, contrariando a Constituição federal. Aceitamos a questão de ordem na outra sessão, mas não podemos aceitar hoje para não perder a oportunidade de reparar a história e reparar o papel constitucional do Parlamento – explicou.
As sessões de terça e desta quarta foram acompanhadas por familiares do ex-presidente, entre eles, o seu filho João Vicente Goulart.
Exumação
A anulação da sessão que tirou Jango da Presidência ocorre no momento em que peritos da Polícia Federal examinam os restos mortais do ex-presidente, na tentativa de descobrir se ele foi ou não assassinado. A suspeita surgiu depois de declarações de um ex-agente da repressão da ditadura uruguaia, segundo o qual Jango teria sido envenenado.
A exumação, feita a pedido da família, ocorreu na última quarta-feira (13) e os restos mortais chegaram a Brasília na quinta-feira (14), onde foram recebidos com honras de Estado.
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Jango foi perseguido até a morte

A suspeita de que o ex-presidente João Goulart foi assassinado estava presente já no seu enterro, no dia 6 em dezembro de 1976, em São Borja. Fazia muito sentido: em maio daquele ano, dois líderes da oposição uruguaia, o senador Zelmar Michelini e o deputado Gutierrez Ruiz, haviam sido seqüestrados e mortos em Buenos Aires.
Em setembro, Orlando Letelier, ex-ministro do Chile, morreu num atentado em Washington. No Brasil havia ainda a morte do ex-presidente Jucelino Kubtscheck, em agosto, num acidente na via Dutra, fato até hoje cercado de suspeitas.
O risco de Jango era evidente. Ex-presidente no exílio, “herdeiro político de Vargas”, tornara-se um incômodo no momento em que o regime militar enfrentava resistência cada vez maior no meio civil. Sua vida era vigiada, sua correspondência violada. Nos últimos meses, o cerco parecia se fechar: prenderam sua mulher, um amigo mandou avisar que não dormisse duas noites no mesmo lugar.
Teve que mandar os dois filhos para Londres, por segurança. Depois, as circunstâncias de sua morte, num lugar isolado, só com a mulher e um caseiro, com atestado de óbito de um médico que mal olhou o cadáver e declarou que ele morreu de “enfermedad” (doença). Por fim, a maneira como o governo militar
reagiu ao pedido da família para que o corpo fosse enterrado em São Borja, a terra do presidente morto.
Primeiro não queriam permitir, depois não podia levar por rodovia, só avião. Por fim, foi liberado, mas não podia ser um cortejo, tinha que ser um carro, em alta velocidade, sem parar na fronteira, direto para o cemitério. Não foi permitido à
família ver o corpo…
Tudo isso alimentou a suspeita que, desde aquele dia, nunca abandonou as conversas dos antigos correligionários de Jango. A saúde dele era precária, era cardíaco, tinha sido advertido pelo médico do grave risco que corria se não parasse de beber e fumar (ele
não parava), um enfarto fulminante não seria surpresa.
Envenenamento
Mas nem isso diminuiu as dúvidas. Nem mesmo o testemunho de Maria Tereza, sua mulher, que o viu morrer no leito conjugal e sempre rejeitou a hipótese do envenenamento.
Passaram-se 15 anos até que a suspeita fosse além das conjeturas. Preso como assaltante, no ano 2000, um ex-policial uruguaio, Mario Neira Barreiro, revelou aos jornais uma suposta Operação Escorpião, da qual participou, para matar Goulart.
Ele forneceu fatos concretos, plausíveis. Tinha, de fato, trabalhado como rádio-escuta para os órgãos da repressão política durante a ditadura uruguaia, eram corretas as informações que tinha sobre a rotina e a família de Jango no Uruguai e Argentina. Mas não ia além de uma boa história a ser confirmada.
No ano seguinte a Câmara dos Deputados instalou uma CPI para investigar a morte do ex-presidente João Goulart. Cerca de 60 depoimentos foram tomados, mas a CPI encerrou com um relatório contraditório: não há dúvidas que um “Mercosul do terror” operou na região, mas no caso especifico de Jango, faltavam provas.
Um “romance reportagem” dos jornalistas Carlos Heitor Cony e Anna Lee (O Beijo da Morte, Ed. Objetiva, 2003) retomou o tema do assassinato, associando-o com as mortes do ex-presidente Jucelino Kubitscheck e de Carlos Lacerda, ambas acidentais em circunstâncias pouco convincentes.
Barreiro foi uma das fontes de Anna Lee e Cony. Ouvido na Penitenciária de Charqueadas, RS, ele contou novamente a historia da Operação Escorpião, para eliminar Jango. Conclusão de Cony: “É um sujeito perigoso,
com uma tendência ao delírio. Mas seu delírio tem uma espinha dorsal que supera detalhes assombrosos de seu relato. Prometeu mostrar provas que estavam com outro preso. Não tivemos as provas, mas fortes indícios de uma operação destinada a eliminar o ex-presidente”.
No final de 2006, uma equipe da TV Senado que prepara um documentário sobre Jango, obtém permissão para ouvir Barreiro na prisão de Charqueadas. Ele exige alguém da família. O filho de Goulart, João Vicente, participa da gravação de duas horas e sai decidido a reabrir as investigações sobre a morte do pai. Barreiro conta a mesma história: Diz que a ordem para matar Jango foi dada diretamente pelo presidente Ernesto Geisel ao delegado Sérgio Fleury, do Dops paulista.
Quer pela hierarquia, quer pelas relações entre os personagens, quer pelo temperamento de Geisel, é uma afirmação discutível. Mas as recentes revelações sobre a Operação Condor, o esquema terrorista multinacional que operou na América Latina, deram mais sentido às declarações de Barreiro. No final do ano
passado, o filho de Jango entrou no Ministério Público Federal com o pedido de investigação sobre o caso, anexando cópia da entrevista.
No início de 2008, a repórter Simone Iglesias entrevista Barreiro em Charqueadas e a Folha de São Paulo mancheteia na capa: “Brasil Mandou Matar Jango”. Da Folha o assunto foi ao Jornal Nacional e nos dez dias seguintes, Barreiro deu mais de 30 entrevistas para jornais, rádios e tevês de todo o país.
É provável que tenha havido um plano para eliminar Jango. O infarto pode ter chegado antes. Entre os amigos mais chegados, o que o matou, mesmo, foi o “desgosto”. Ele queria voltar ao Brasil, tentara renegociar seu retorno inúmeras vezes. Cumprira dez anos de cassação, passara por dezenas de inquéritos, mantinha-se distante da política brasileira, queria cuidar de suas fazendas.
Homem amargurado
Mas o regime militar havia lhe negado até o passaporte, viajava com passaporte paraguaio. Manoel Leães, que por 30 anos foi piloto de Jango, em seu livro de memórias diz que o expresidente era “um homem amargurado com o fato de não poder voltar ao Brasil”. Um amigo de infância contou que ele vinha para a beira do rio Uruguai, do lado argentino, e ficava olhando os campos de São Borja na outra margem.
Dois meses antes de morrer declarou que estava disposto a arriscar a travessia. O ministro do Exército deu ordem para que fosse preso imediatamente e posto incomunicável pela Polícia Federal.
Quando a notícia de sua morte chegou ao Brasil, as redações receberam a seguinte nota: “De ordem superior, fica proibida a divulgação, através do rádio e da televisão, de comentários sobre a vida e a atuação política do sr. João Goulart. A simples notícia do falecimento é permitida, desde que não seja repetida sucessivamente”.
Foi negado luto oficial e, no Congresso, a bandeira, hasteada a meio pau, foi depois arriada. Dias depois de sua morte, aos 57 anos, a diretoria do Internacional decidiu que o ex-atleta ilustre (ele jogara nos juvenis do clube) merecia um minuto de silêncio no jogo com o Atlético mineiro, no domingo seguinte no Beira Rio. O assunto chegou à cúpula militar e o minuto de silêncio foi proibido.
“Não sou inimigo de vocês”
O que Mario Neira Barreiro revela é o embrião da Operação Condor, grande ação conjunta dos aparelhos repressivos do Cone Sul para eliminar inimigos dos regimes militares da região. Ele conta que entrou aos 18 anos para o Grupo de Ações Militares Anti-Subversivas (Gamma). Foi escolhido para espionar Jango porque sabia português.
“Eu monitorei tudo o que falava através do telefone, de escuta ambiental e em lugares públicos, de meados de 1973 até sua morte em 6 de dezembro de 1976”.
Uma vez Barreiro falou com Jango. Ele e um colega, estavam rondando a casa. Jango convidou para entrar, disse que sabia que estavam espionando. “Não sou inimigo de vocês”, teria dito. Segundo Barreiro, o delegado Sérgio Fleury, do Dops em São Paulo, fazia a ligação com a inteligência uruguaia.
Partiu dele a ordem para que Jango fosse morto. A equipe que monitorava Jango se chamava Centauro (em Montevidéu outra equipe, Antares, se encarregava de Brizola). A operação para matar Jango chamou-se Escorpião, segundo Barreiro, e foi acompanhada e apoiada pela CIA.
O plano consistia em colocar comprimidos envenenados nos frascos de medicamentos que Jango tomava para o coração. O efeito seria semelhante a um ataque cardíaco. “Ele tomava Isordil, Adelfam e Nifodin. O primeiro ingrediente veio da CIA e foi testado com cachorros e doentes terminais.
Colocamos os comprimidos em vários lugares: no escritório, na fazenda, no porta-luvas do carro, no Hotel Liberty, em Buenos Aires”. Fleury deu a palavra final, disse que Jango era um conspirador. Ouviu uma conversa de Fleury com militares uruguaios dizendo que conversara com Geisel. “Faça e não me diga mais nada sobre Goulart”, teria dito o general.
Barreiro foi expulso do serviço de inteligência uruguaio em 1980, por razões que não revela. Morou em cidades da fronteira, depois fixou-se em Gravataí, na região metropolitana de Porto Alegre. Em 1999 foi preso pela primeira vez no Brasil.
Em sua casa a polícia encontrou granadas, pistolas e fuzis. Foi recolhido à penitenciária de segurança máxima de Charqueadas, em 2000. Em maio de 2003,
em regime de semi-aberto, fugiu mas foi recapturado em seguida.
Aos 54 anos, cumpre pena de 17 anos por tráfico de armas, falsidade
ideológica, roubo e formação de quadrilha.
“Eu vi quando ele faleceu”
Maria Tereza Goulart, a menina do interior que casou com o moço bonito e milionário, viveu ao lado de Jango trinta anos. Estava sozinha com ele na noite de sua morte e, desde o início, rejeitou a hipótese de assassinato.
Hoje ela evita o assunto, certamente para não contradizer filhos e netos que sustentam a tese do atentado. Uma das últimas vezes em que falou sobre o assunto foi neste depoimento ao programa Teledomingo, da RBS TV, em 2003.
”Nós chegamos em Libres, almoçamos, e fomos embora para a fazenda. No caminho, vi que ele estava meio cansado… com olheiras, cansado… Eu falei: “Jango, você não quer que eu dirija um pouco?” Ele disse: “Não, estou bem ainda, se eu precisar, te digo”.
“A fazenda era muito bonita, mas era um buraco. Não tinha ninguém por perto. Eu estava sozinha… “
“Era um casarão enorme, um horror… Só nós dois, tinha uma casa de caseiro lá do lado… Aí, começou a bater uma janela. O Jango disse: “Vou dormir, porque estou cansado”. Eu disse: “Vou apagar a luz, então… Ele falou: “Não, pode ficar lendo”. Fiquei lendo uma
revista, e a janela batendo, batendo… E eu louca de medo de ir fechar esta janela, porque a casa era assim um negócio que ia daqui até aquela outra esquina, de tão grande. Pensei: ah não vou me levantar, não; sair por essa casa, com essa janela batendo… A essa hora da noite…”
“Aí, eu apaguei a luz e fiquei algum tempo acordada. De repente, vi que o Jango estava respirando diferente. Acendi a luz de novo e comecei a chamar: Jango, Jango. Mas quando chamei, eu vi que tinha virado o corpo assim (sabe, quando segura com uma força incrível o travesseiro… ). E ele nunca dormia assim de lado… Aí, fui para o outro lado da cama dele e comecei a chamar, chamar. Aí, ele soltou o corpo, assim… Eu vi quando ele faleceu.”
“ Aí abri a porta e sai correndo e comecei a gritar pelo caseiro: Júlio, Júlio. E o cara veio armado, porque ele pensou que alguém tinha invadido a casa. Foi uma cena horrível. Vocês já imaginaram, perder uma pessoa, dentro de uma casa que não tem a ver contigo, sem ninguém por perto, e o caseiro… Que nem sabia falar direito….”
“O médico veio, um médico de algum lugar dali, que não sei bem. Nem vi a cara dele direito. Ele me falou: “Dona Maria Teresa, ele teve um enfarte total: aquele que parte o coração”. Em seguida, ficou uma mancha assim…”
“ Aí, começaram as pessoas: porque o Jango morreu assim, porque Jango morreu assado. Porque foi enterrado assim; porque estava de pijama… Quem disse que Jango estava de pijama? Ele estava vestido com uma camisa branca, uma calça jeans, que era o que tinha ali, na hora. Arrumamos ele, fizemos o velório ali na casa. Não, mas as pessoas ficam inventando umas coisas que não têm explicação. Aí veio o tal do envenenamento…”
“Disseram que eu impedi a autópsia.… Eu nem sabia que se fazia autópsia, nunca tinha visto ninguém morrer na minha vida…”
“Eles disseram que o Jango não podia sair… Se quisesse trazer o Jango para São Borja, tinha de sair de barco pelo Rio Uruguai, mas era um calor de não sei quantos graus. O corpo teria que ser embalsamado. Mas em um buraco daqueles quem é que saberia fazer
isto? Então, fomos de carro para São Borja, passando por Libres”.
“Eles mandaram descer o corpo; depois disseram que não podia descer; que não podia isso, que não podia aquilo… Mas o Almino Afonso já estava lá e ligou para o Presidente, ou para sei lá quem, e disse: “Não podemos fazer uma coisa dessas. Estou aqui com a
família, Dona Maria Teresa está sozinha, os filhos estão na Inglaterra, o corpo está mal-embalsamado e tem de seguir para São Borja para ser enterrado”. Então, eles liberaram. Mas, até liberar, foi uma cena”.
”Meus filhos estavam em Londres. Quando chegaram não puderam ver o Jango porque o caixão já estava fechado por causa do calor, não chegaram a ver o Jango”.
Texto publicado originalmente na Revista JÁ de abril de 2008
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33 anos sem Jango

“Sob a miséria do povo não se constrói a paz social”
(João Belchior Marques Goulart)
A semana que passou foi marcada por homenagens à memória de meu avô João Goulart em praticamente todo o Rio Grande do Sul.
Peço permissão ao leitor para, ao menos neste texto, referir-me ao Presidente João Goulart apenas como meu avô. Em São Borja, na Fronteira Oeste, na Capital e em muitas cidades, seu sacrifício em prol da pátria foi saudado com reverência.
Sem dúvida, um herói da República, a quem, gradativamente, o Brasil reforça o reconhecimento ao seu legado político reformista.
Jango foi um injustiçado. Um líder de vanguarda. Um fazendeiro próspero de São Borja, que teve a coragem de contrariar os interesses econômicos de sua própria classe ao propor uma reforma agrária capitalista em nosso país. Mas ele foi além. Seu projeto de nação, amparado nas reformas estruturais e institucionais do Estado brasileiro, visava uma mudança profunda na concepção de interesse público.
Meu avô sonhou que, para lograr um desenvolvimento soberano em nosso país, com reais chances de ser considerado “primeiro mundo”, uma consciência coletiva deveria ser aplicada na prática.
Por isso transcendeu ao discurso e ousou comprometer-se publicamente com as conhecidas reformas de base, no maior comício registrado na história nacional, em 13 de março de 1964.
Sonhou com a efetiva justiça social, contrariando interesses das elites dominantes que mandam até hoje no Brasil. Morreu pela pátria, na solidão do exílio, no dia 6 de dezembro de 1976. Não é pouca sorte lutar e morrer pela pátria, em busca da realização de um sonho libertário.
Passados 33 anos do assassinato de meu avô no exílio – ele começou a morrer lentamente quando foi forçado a deixar sua terra natal – saudamos a sua luta.
Esse é o nosso compromisso. O legado de meu avô não será em vão. Podem ter silenciado sua voz, através de sua morte programada por uma conspiração dos serviços secretos do Brasil, Uruguai, Argentina e Estados Unidos, mas jamais calarão o sentimento transmitido de geração para geração.
Sua lição transforma-se em caminho a ser seguido, neste momento tão singular da perda de valores éticos e morais que atravessa o nosso país.
Momento de tantos exemplos negativos para as novas gerações, descrentes dos políticos e sem esperanças, que não conheceram o passado dos que, como meu avô, tombaram no caminho da liberdade, democracia e justiça social.
Por tudo isso reafirmamos nosso pacto de continuar lutando por um país que ofereça oportunidades iguais a todos os brasileiros. Continuamos a escutar a voz de Jango!
Jamais esqueceremos as palavras pronunciadas por meu avô, no comício do dia 13 de março de 1964: “… quero dizer que me sinto reconfortado e retemperado para enfrentar a luta que tanto maior será contra nós quanto mais perto estivermos do cumprimento de nosso dever.”
Jango Vive!
Christopher Goulart
Presidente da Associação Memorial João Goulart

Memórias do amigo capataz

Deoclécio Motta, o tio Bijuja, foi o melhor amigo de João Goulart. Eram quase irmãos. Brincaram na infância, dividiram segredos na adolescência e, já adultos, fazendeiro e capataz continuaram confidentes. Jango lhe confiou uma procuração para tocar os negócios nas estâncias enquanto amargurava no exílio.
Em 2004, durante pesquisas para compor a biografia de João Goulart, os jornalistas João Borges de Souza e Cleber Dioni Tentardini visitaram a casa dos Goulart, que agora virou museu, acompanhados de um amigo de infância de Jango, Deoclécio Barros Motta, chamado carinhosamente de tio Bijuja.
Os jornalistas queriam conhecer o outro lado do ex-presidente da República, o perfil do fazendeiro sãoborjense e sua relação com a cidade natal. Entrevistaram tio Bijuja em duas tardes abafadas de janeiro. Melhor do que uma entrevista, foi uma ‘contação de causos’.
Bijuja faleceu em 2007. Ele foi o amigo fiel de João Goulart. Eram quase irmãos. Brincaram na infância, dividiram segredos na adolescência e, já adultos, fazendeiro e capataz continuaram confidentes. Jango lhe confiou uma procuração para tocar os negócios nas estâncias enquanto amargurava no exílio.

Bijuja | Foto: Cleber Dioni
Bijuja | Foto: Cleber Dioni

Aos 81 anos, se vangloriava das quatro safenas: “Tenho cada remendo véio de assustá, é ponte, aterro, pinguela, fiz de tudo, mas tô aqui ainda, peleando bonito”. Ele tinha um humor imbativel.
Nesta conversa, Bijuja falou das coisas simples que dividia com o amigo no Interior. Da esperteza de Jango nos negócios, da amizade com Getúlio, das idas e vindas ao exílio no Uruguai, dos filhos de Jango, inclusive sobre Noé, mas foi logo avisando: “Eu acompanhei a vida particular dele e sempre tive muito carinho e respeito por sua família, e o lado político eu não sabia nada. Quando tinha visitas lá nas fazendas, ele dizia: “Olha, vocês fiquem tomando mate aí, que eu vou conversar com o coronel, nós vamos dar nossas bolichadas”.
Por que Bijuja?
Uma vizinha veio me conhecer, bebê, e disse “olha, parece um bijujinha”, não sei por quê. Depois, meu pai chegou e disse pra botar o nome dele e tava resolvido.
Como ficaram amigos?
Tinha sete anos quando me juntei com o Ivan e o Jango no pátio da casa deles. Eu tinha idade parelha com o Ivan, que era cinco anos mais moço que o Jango. Fiquei com eles até a hora de morrerem, sempre ao lado, mas nunca tirei vantagem desses homens que eram ricos, nem um centavo, a não ser amizade, e hoje uso o chapéu tapeado na testa, não preciso me esconder de ninguém. Me chamavam de coronel, agora de tio Bijuja.
Coronel era um apelido?
Me chamavam gratuitamente. A única ligação é meu irmão, general da reserva, Astolfo Motta.
O pai do Jango tinha muitas terras?
O pai do Jango era um homem rico, mas a herança não chegava nem perto do que o Jango juntou. O Vicente deixou 17 quadras de campo pra cada filho quando faleceu. Eram sete filhos. Uma vez ele disse: “Janguinho, parece que tu vai prestar, trabalhador que tu é, eu vou te dar uma mão pra ti começar a trabalhar por conta. Vou garantir um dinheiro, mas vou depositar no banco, não posso te dar dinheiro porque senão teria que dar para os outros também e vocês são sete.
O Banco avalizou não sei quantos contos e o Jango pegou e comprou tudo em bois. O pai dele disse: “E não vou te dar mais campos porque iria ter de dar para os outros, então tu vai te arranjar, arrenda um campo bom, paga mais, mas que seja bom, não arrenda porcaria.” Aí, ele arrendou uma fazenda lá em Itacorubi, o dono do campo era Viriato Vargas Andrade. Ali deu o tiro, já ganhou um saco de dinheiro, e dali por diante arranjou não sei quantos bois. Tinha muito crédito.
Por honrar as dívidas?
Era um homem cumpridor. Uma vez num Cassino no Uruguai chegou um graúdo do Brasil. Tava cheio do dinheiro, mas se pelou. Foi pedir par trocar um cheque e o gerente recusou. Ele engrossou a voz : “Vocês não sabem com quem estão falando?”. O gerente disse que a única pessoa ali que trocava cheque era o presidente Jango. Esse coronel ficou furioso e falou mal do Jango. E o gerente retrucou : “Do doutor Jango a casa aceita até guardanapo com a assinatura dele”. Esse coronel bufava.
Como era o amigo fazendeiro?
Me lembro de uma fazenda que o Jango tinha uns 900 hectares. Tinha que andar uns 10 quilômetros pelo corredor e depois entrar nos campo de um francês para chegar lá na dele e o Jango me dizia:
– Mas que merda desse francês que não me vende essa porqueira, tem que tá sempre pedindo licença pra cruzar.
– Mas tu é pretensioso, hein, Jango, o outro tem 10 mil hectares e tu com 900 querendo comprar do homem.
Essa fazenda lá ele comprou dum turco velho, o Martin Sema, e um dia o turco me chamou:
-Tio Bijuja, doutor Goulart vai pro céu assim que morra.
– Porque diz isso?
– Conseguiu lograr um turco velho e ladrão como eu
Esse turco tinha umas cinco mil ovelhas, capão, lanuda, e disse que só vendia a estância se comprasse todo o bicharedo também. Aí o Jango tironeava, visitava o velho, mas não havia jeito de vender sem os bichos. E o Jango sempre a par de tudo, soube que a lã não sei aonde, subiu muito, aí o Jango comprou todas ovelhas e com a venda da lã comprou a estância do velho.
O Jango gostava de fazer um negócio que era coisa linda de se ver. Ele fez negócio com uns gringos da Swuift Armour, frigorífico, vendeu 10 mil boi gordo, mas ele não tinha tudo isso de boi invernado.
Aí ele vendeu, comprou, vendeu, e saiu com sacos de dinheiro. Numa outra fazenda, o Jango ia comprar umas vacas, pegou um cavalo manso, porque tinha que ser por causa da perna dura dele, deu uma volteada e disse que queria 50 e perguntou qual era o prazo pra pagar.
Mas o prazo era só o tempo de dar a volta na guaiaca, tinha que ser ali mesmo. Ele comprava já fazendo os cálculos de quanto ia ganhar nos frigoríficos.
E quantas fazendas o Jango tinha?
As fazendas que ele teve aqui pro Sul, se não me esqueço, era a Rancho Grande, Santa Luíza, Cinamomo, Granja, Palermo. Teve no Mato Grosso também, as Três Marias, mas bem mais tarde. Na Argentina ele teve a La Periá, La Sussi, La Villa.
A fazenda Rancho Grande era a rapariga dos olhos do Jango, a maior de todas e a melhor. Tinha oito mil e poucos hectares, o melhor campo do mundo, era melhor em tudo, só a casa que não era de luxo, porque o Jango não era de luxo.
A Granja São Vicente era mais conhecida porque ficava dentro da cidade, mas tinha meia dúzia de gado, o Jango passava ali mas logo se mandava para Rancho Grande. Tinha uma outra bem pequenininha, que o Jango sempre visitava, Palermo, era de difícil acesso, estrada ruim, ele ia num aviãozinho e ficava por lá, na beira do rio Uruguai. Inclusive, no dia em que foi embora do Brasil, ele deu uma passada por lá.
E passou lá na fazenda Santa Luíza. Que é pegada a Rancho Grande. Nesse dia, o Jango mandou me chamar e pediu para eu desse uma controlada nas suas fazendas. Eu fui capataz da fazenda São José, da dona Tinoca, a mãe dele.
E no Uruguai?
No Uruguai ele não tinha campos antes de ir para o exílio. Tanto que ele foi para casa de um amigo, não lembro o nome, que ficava na praia de Piriápolis me parece, ou num daqueles lugares ali. Depois ele comprou uma em Taquarembó, teve outra em Maldonado.
Foto: Cleber Dioni
Foto: Cleber Dioni

Nos fale de quando eram jovens, o que faziam?
Eu tirei o ginásio e depois tive que trabalhar. O Jango estudou por aí, em outras cidades, mas sempre voltava para passar as férias. Fazia coisa de guri. E o Jango era muito popular aqui. Participava do Carnaval, entrava em tudo. Tinha a Jorgina e a Jocelina, aqui, uma preta bem alta e magra, e outra baixa e gorda.
Morreram com noventa e tantos anos. O bloco delas era na frente do Comercial e o Jango tomava a frente do bloco, puxava o cordão e se ia pro Comercial, bah, aquela veiada graúda ficava tudo sem jeito. Tinha até um versinho: “Hoje é de graça no boteco da Jorgina, entra o Jango e o Ivan, e o Bijuja com as china.”
Mentira do pessoal, né, mas sabe que pega. Depois ele participou do bloco dos rengo.
E ele tinha muito bom gosto com as namoradas. Lá em Porto Alegre ele teve um problema de saúde, com a perna, teve gonorréia, que se alojou no joelho, infeccionou. Um dia ele comentou comigo: “-
Olha Bijuja, o que o pai gastou com essa perna lá em São Paulo dá uma estância”. Ele fez uma cirurgia, trouxe aparelhos de fisioterapia, mas não fazia direito o tratamento, dizia que tavam judiando dele. O bicho era teimoso, não gostava de médico. Um dia, depois que eu passei a administrar as fazendas dele, isso foi por volta de julho de 64, eu disse que ia comprar uns touros charolês, e ele :
– Me desculpe coronel, mas eu não gosto de gado charolês. Os campos lá do Rancho Grande servem para criar qualquer bicho, mas esses charolês são muito exigentes, comem muito.
– Bueno, então não vamos criar. Mas eu criava igual, era pro bem dele.
Como assim, administrar?
O Jango, já como exilado político, me pediu para administrar oficialmente as fazendas dele. Tava lá o que era procurador dele, o Aírton Ayub. E Jango me disse: “Coronel, precisamos de ti, tu é um homem campeiro, vou te dar uma procuração, pra assinar guias, vender, comprar.”
Ele andava muito de avião sobre as fazendas ?
O Jango voava que não era brinquedo. As fazendas tinham pistas porque ele sempre teve avião particular. Como muitos outros. O Uruguai era uma quantidade de avião pequeno. No exílio, o piloto provocava, dizia que ia passar lá na fazenda tal, mas nunca chegou a descer em São Borja, e depois o Jango vinha contar que tinha dado um aperto no peito, de saudade.
Mas o Jango era um homem simples, gostava de gente humilde, era bem povo. Chegava na Rancho Grande, ia na cozinha, pegava um fervido com mandioca, e comia conversando ali com a senhora. Pra ele aquilo era o máximo. E gostava muito de cachorro. E de carro, teve vários.
Ele tinha um modelo preferido?
Era um homem apaixonado por autos. Uma vez ele me pediu para comprar um doge. Mas olha, tchê, tinha que sair dum posto e entrar no outro. Aí ele devolveu de vereda. E a rural. Naquele tempo o Uruguai não tinha estradas, e a rural tinha tração nas quatro rodas.
Um dia eu quase me incomodei com esse carro, porque veio um da cor da Brigada e eles encrencaram:
– Não pode andar com carro dessa cor.
– Mas eu comprei assim
– É, mas o senhor pode ser preso.
– Mas então pode aproveitar, eu não vou mandar pintar.
Eu era encrenqueiro.
Eu tive uma veraneio, caminhonete grande, e a licença era 90 dias. Aí o Jango me pediu pra tirar a licença por mais dias pra ir mais seguido lá no exílio visitar ele. Ele tinha visto o doutor Getúlio isolado, no auto-exílio, e foi um dos poucos que ia visitar ele. Então ele sabia como era isso.
Frequentou a casa do Getúlio Vargas?
Uma vez nós chegamos lá de carro, o Jango com uma baita dor de estômago. O doutor Getúlio tava tomando um café e mandou chamar a senhora que cuidava da casa:
– Tia, faz um chá de marcela pro Jango.
O Jango foi tomando chá, e comendo bolachinha, quando viu tinha comido toda. E o doutor Getúlio:
– Mas que lindo a tua dor, não. Tomou um balde de chá e comeu toda minha bolacha.
Num aniversário do doutor Getúlio, no capão do mata fome, diz que fizeram um churrasco tão grande que só para o tira-gosto carnearam 30 vacas. O homem que cuidava dos espetos tinha um zaino que tava suado de tanto andar pra lá e pra cá. Diz que pra salgar, usaram aquelas máquinas semeadeira de arroz.
O doutor Getúlio era muito conservador nos negócios, pensava muito antes de comprar alguma coisa. E tinha uma fazenda aqui, a Santa Amélia, que o doutor Getúlio não queria comprar, era muito caro, e foi o Jango quem praticamente obrigou ele a comprar, gado de primeiríssima qualidade. Eu fui ajudar a receber. O doutor Protásio Vargas, irmão do doutor Getúlio, mais velho, também era amigo do Jango.
Outro que conheci foi o Gregório Fortunato. Ele chegou a ser minha babá. Em 23, a mamãe já tava pra ganhar outro e o papai tava aquartelado aqui em São Borja, e eu fiquei lá no meio dos milico. Era homem valente, bagual. Tinha um outro que foi capanga do papai. Eu brincava com ele:
– Quantos o senhor matou na sua vida?
– Que o seu pai mandou, diversos.
– Então vamos encerrando o assunto.
O senhor acompanhou todo o tempo do exílio do Jango?
Sim, e durante o exílio, o Jango nunca foi de noite em São Borja, isso que dizem é invenção. Ele passava perto com o avião, e dizia: “Coronel, passei perto da tua terra lá, e o Rivera ligou a rádio de São Borja, que foi minha, deu uma saudade”. Não me lembro bem se foi a rádio Cultura de São Borja ou a Fronteira do Sul que o Jango começou, tinha jornal também. Ele comprou a rádio com o Manoel Antônio Vargas, filho do doutor Getúlio. E também eu nunca soube que o Che Guevara tivesse visitado o Jango.
É que misturavam as coisas. Por exemplo, o Jango teve um piloto que era Tupamaro, ficou um monte de anos preso no Uruguai.
Me lembro de um guarda que cuidava o Jango na cidade, dia e noite, o dom Soto. Ficava numa cadeira na entrada do prédio. Um cagalhão. Uma vez, fazia um frio horrível no Uruguai.
Nós congelamos um lagarto vivo e colocamos um buçalzinho pra não morder o focinho e a hora que o guarda tava dormindo, botamos o lagarto embaixo do cobertor. Daí umas horas, se aquentou o lagarto e saiu pelas calças e esse castelhano saiu correndo, rasgou o cobertor porque enganchou no portão, bah.
Outra vez botamos um cágado na cama do castelhano, bah, outro cagaço. Aí, o guarda começou a ficar chaveado num quarto. Nós tinha que fazer um pouco de graça também, né.
O que ele comentava sobre o Brasil? Ele recebia visitas, os companheiros de partido?
Ele saiu, custou muito pra sair porque ele não queria deixar essas terras nem atado, ele amava esse Brasil como ninguém, e não se sentia culpado de nada. Ele fazia os cálculos pequenos pra voltar. Dali de San Tomé se enxerga São Borja. Ele tinha o pesqueiro na costa, Palermo. Ele gostava de ficar ali pra pescar e como era de difícil acesso, não iam muitos chatos bijujas incomodar lá, sabe.
São Borja era tudo pra ele. Ficava triste quando eu ia lá na fazenda, no exílio, e no outro dia já me preparava pra ir embora. Ele dizia: “Tu gosta dessa vida porque tu vem e vai a hora que tu quer, e eu tenho que ficar nessa merda aqui, obrigado”. E às vezes ele contava na mão, e sobrava dedo, os amigos mesmo dele que iam visitar no exílio. Muita gente ia só pra pedir favores, cria de cavalo.
Quando era empréstimo muito grande, ele me mandava um bilhete : “Coronel Bijuja, peço que resolva o problema do fulano dentro das nossas possibilidades”. Aquilo era uma senha pra eu não dar o empréstimo. Ele não podia resolver o problema de todos.
Mas era um homem generoso. Quando o Jango comprou terras do Brizola, eram 1,2 mil hectares, ele me disse:
– Coronel, bota esses campos no teu nome.
– Mas porque Jango , não sou teu herdeiro, nem teu filho.
Aí peguei a procuração, mas na hora de escriturar, não botei. Aí coloquei mil hectares para o João Vicente e menos pra Denise, que é no caso de algum alcaide querer casar com ela por causa dos campos. Teve outra estância que ele queria me dar, então essa aceitei, mas depois de uns acontecimentos também não quis mais. Eu era amigo do Jango, então vou ficar pobre e amigo da alma dele.
Eu cuidei de toda a fortuna do Jango, se eu quisesse me enchia de dinheiro, mas hoje teria que andar com o gorro tapando os olhos, mas não, qualquer bem bom ou filha da puta tem que me respeitar. E isso faz bem, dignidade não se compra, ou se tem ou não se tem.
E ele tinha um grande coração. Uma vez ele me chamou e disse que tinha um problema pessoal com o Brizola, mas que não era pra eu deixar de ir lá visitar o Brizola e a irmã dele, a Neuza: “Eles vão ficar sentidos contigo e comigo também, vão achar que eu não deixo tu ir lá ver eles”, ele disse.
O senhor chegou a ser preso?
Uma das tantas vezes que eu fui preso, quer dizer, fui convidado pra dar depoimento, lá no quartel, um coronel diz assim:
– Mas o Jango é um baita comunista, né?
– O senhor quem tá dizendo?
– Se o senhor não sabe, fique sabendo que ele é um baita comunista.
Aí pensei comigo: o que esse véio vai saber de alguma coisa do Jango comunista? Esse pessoal de extrema esquerda nem gostava do Jango.
E a mulher e os filhos do Jango, se adaptaram rápido no Uruguai?
A Maria Tereza e os filhos moraram na praia de Pocitos, estudavam nos colégios uruguaios, mas iam seguido lá ver o Jango.
Sempre que podia o Jango tava grudado com o João Vicente e a Denise. Eles estudaram em Montevidéu por um bom tempo. Eu andava de carro com o João Vicente e a Denise, almoçava com eles, ia pra praia com as crianças, a Denise era pequeninha e eu tinha uma filha, que eu criei.
Como o senhor soube do Noé?
Essas histórias de filho do Jango, bah, o que vinha de gente aqui. Veio uma advogada bonita falar comigo:
– Mas coronel, o senhor acha que pode ser filho ?
– Não sei, como é que eu vou falar da mãe dele, mas uma coisa eu posso lhe garantir, se aparecer alguma terneira ou potranca parecida com o Jango, é filha dele, porque gostava de um sereno no lombo. Tchê, essa advogada riu tanto que passou mal.
Fui no Fórum e tava o seu Noé lá, eu nunca tinha visto, achei parecido, aí o juiz me pergunta:
– O senhor conhece esse cidadão?
– Sei quem é mas não conheço.
No exílio, o Jango me perguntou :
– O que tu acha coronel?
– Tu é quem tem que saber, Jango.
– Se é verdade que é meu filho, eu vou ajudar.
Esse era o coração dele.
Um coração doente também
Ele fumava muito, não comprava, mas fumava dos outros:
– Cigarro, coronel. Era um, dois, três, lá pelo quarto eu dizia:
– Tu sabe duma coisa Jango, dá câncer fumar, não comprar”. Aí ele pedia pra outro e assim ia.
O pessoal admirava a nossa intimidade, mas porque nós andávamos juntos desde criança, né. Com os outros era doutor pra lá, doutor pra cá, e comigo ele se sentia um homem comum.
Eu chegava lá na fazenda, no Uruguai, e dizia: “Olha, eu não sou pobre pra andar comendo ovelha velha, bichada no casco”. E os peões olhavam pro Jango, que dizia: “É o coronel que está mandando aí, vocês se arrumem com ele, e vamos carnear, o que adianta ter esse mundo de boi e dinheiro, pra andar comendo ovelha velha”. Aí já se carneava uma vaca e meta carne.

São Borja ganha Memorial João Goulart

A prefeitura de São Borja e a Associação Amigos João Goulart inauguram nesta quinta-feira, 1º de outubro, o Memorial João Goulart. O casarão que pertenceu à família do ex-presidente da República foi doado ao município e restaurado com apoio da iniciativa privada.
Casa do Jango Foto: Cleber Dioni
O espaço cultural disponibiliza fotografias e objetos pessoais de Jango, materiais que estavam no Museu da República, no Instituto João Goulart, administrado pela família, e na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, e também presentes recebidos em diferentes países.
Os visitantes poderão ainda assistir a vídeos e conhecer móveis originais do local. Na área anexa à casa, nos fundos do terreno, onde Jango, o irmão Ivan e amigos como Deoclécio Motta* (*leia entrevista abaixo), costumavam brincar, serão instalados um escritório do Instituto João Goulart, uma cafeteria e uma loja de produtos artesanais.
Construído em 1927, o imóvel foi tombado como patrimônio histórico do Estado em 1994. Fica na avenida Presidente Vargas, 2033, no Centro, mesma rua do museu Getúlio Vargas.
O projeto de restauração foi executado pela Lahtu Sensu Administração Cultural e pela Cida Planejamento Cultural, com apoio da prefeitura, do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico do Rio Grande do Sul (Iphae) e patrocinado pela AES Sul, via Lei Estadual de Incentivo à Cultura.
Getulio Vargas
O advogado Christopher Goulart, neto de Jango e filho de João Vicente, está à frente da mobilização em defesa da memória do avô, inclusive foi o único que lembrou em seu blog a passagem dos 90 de nascimento do líder trabalhista, em 1º de março deste ano.
Christopher destaca que o mais importante na iniciativa é permitir que as gerações mais novas conheçam a trajetória de Jango e parte da história brasileira. “Aproveitamos para propor uma reflexão sobre o período da ditadura militar, um golpe contra as reformas de base propostas por Jango”, diz .
Informações para visitação pelo telefone (55) 3431-5730 ou por e-mail: casajoaogoulart@saoborja.rs.gov.br.
QUEM FOI
João Belchior Marques Goulart, filho de Vicente Rodrigues Goulart e Vicentina Marques Goulart, nasceu no dia 1º de março de 1919 na Estância Yguariaçá, no distrito (hoje município) de Itacurubi, em São Borja.
Foi casado com Maria Thereza Goulart, a primeira-dama mais bonita do país, com quem teve dois filhos, João Vicente e Denise, hoje com 41 e 39 anos, respectivamente.
O início da carreira política foi como deputado estadual em 1947, quando se elegeu com pouco mais de quatro mil votos para a Assembléia gaúcha.
Antes de assumir a presidência da República, foi por duas vezes vice-presidente, de Juscelino Kubitschek (1956-1961) e de Jânio Quadros (31 de janeiro a 25 de agosto de 1961).
Através das “Reformas de Base” de seu governo, criou admiradores e inimigos poderosos. Foi deposto da presidência em 1964 através de um golpe militar, tendo se exilado no Uruguai e na Argentina. Morreu 12 anos depois, quando se preparava para voltar e ser apenas o estancieiro Jango.

Relatório aponta fortes indícios de que Jango foi assassinado

“São fortes os indícios a apontar o assassinato – premeditado – do ex-presidente João Goulart, ordenado e com conhecimento das instâncias mais elevadas do governo Geisel. Comprovou-se a articulação entre as Forças Armadas e os serviços secretos e de inteligência dos governos brasileiro, uruguaio e argentino, mesmo antes da denominada Operação Condor”. Essa é um das mais importantes conclusões que o deputado Adroaldo Loureiro (PDT) apresentou no Relatório Final da Subcomissão da Assembléia Legislativa que investigou as circunstâncias da morte de Jango, em 1976, na Argentina. O material foi entregue nessa quarta-feira (02) na Comissão de Cidadania e Direitos Humanos. A votação deve ocorrer na próxima semana.
No relatório, o deputado indica uma série de encaminhamentos, que servirão de base para que o trabalho de investigação prossiga, tanto em nível do Ministério Público Federal, quanto da Polícia Federal e dos próprios parlamentares. Um desses encaminhamentos pede a desclassificação de todos os documentos relativos ao ex-presidente, até 1977, em todos os graus de sigilo, especialmente as comunicações com as embaixadas brasileiras de Montevidéu, Buenos Aires, Washington, Paris e Londres. Também pede às autoridades dos EUA que tomem o depoimento do ex-agente da CIA Frederick Latrash, como forma de esclarecer sua participação no monitoramento de Jango.
O papel do então integrante do DOPS, Romeu Tuma, hoje senador da República, na investigação dos passos de Jango na França, é outro encaminhamento listado no Relatório Final.
Loureiro diz que ainda não é possível provar o assassinato, mas que os indícios, tanto documentais, quanto testemunhais, apontam para essa direção. “Temos compromisso com a história do Brasil. Por isso, o trabalho vai continuar”, comentou.