Um seqüestro disputa o Açorianos

Geraldo Hasse, especial para o JÁ
Está completando um ano de boa carreira comercial e grande sucesso de crítica o livro de Luiz Cláudio Cunha sobre o fracassado sequestro dos uruguaios Lilian Celiberti e Universindo Diaz praticado em novembro de 1978 em Porto Alegre por militares uruguaios e policiais brasileiros mancomunados num lance clandestino, da Operação Condor, conchavo terrorista das ditaduras do Cone Sul.
Lançado na Feira do Livro de Porto Alegre em novembro de 2008, O Sequestro dos Uruguaios vendeu 2524 exemplares até 1 de dezembro de 2009, segundo Ivan Pinheiro Machado, sócio-diretor da L&PM, a maior editora do Sul, que nos últimos anos se especializou na edição e venda de livros de bolso (pocket books).
“Pessoalmente achei que venderia mais, até pela grande qualidade do livro”, afirma Pinheiro Machado, “mas estes assuntos do tempo da ditadura estão cada vez mais distantes dos jovens de hoje, mesmo porque são fatos ocorridos há 30 anos”. Segundo Pinheiro Machado, o mercado brasileiro não segue o padrão dos EUA e da Europa, onde os prêmios alavancam as vendas de livros.
Denso e brilhante, o livro ganhou dois prêmios (Herzog e Jabuti) e é finalista de mais um – o Açorianos, com premiação prevista para esta segunda, 14 de dezembro. Apesar do inegável sucesso de critica, O Sequestro não se manteve nas vitrines das livrarias, disputadas por mais de dois mil títulos novos a cada mês. De qualquer forma, a marcha das vendas indica que o livro poderá ter em 2010 uma terceira edição de dois mil exemplares. É bastante para um livrão de 460 páginas sobre um assunto pesado, mas pouco para a qualidade da obra.
Segundo livro de Cunha em 40 anos de jornalismo – ele começou em 1969 como repórter da Folha de Londrina e publicou em 1985 Assim Morreu Tancredo, baseado no testemunho do jornalista Antonio Britto –, O Sequestro poderia ser um relato enfadonho nas mãos de outro redator. Nas unhas de Cunha, virou quase um romance. Como um carcará do jornalismo, ele pega-e-mostra algumas das cobras mais venenosas das ditaduras militares sulamericanas. Com informações precisas e metáforas preciosas, mergulha nos porões e “oficinas” dos países onde trabalharam os artífices do terror paramilitar.
Se tivesse ficado apenas no caso que testemunhou em Porto Alegre como repórter da revista Veja, em 1978, já seria um bom serviço, mas ele vai muito além do caso Lilian Celiberti.
Rico em detalhes sobre os métodos de interrogatório policial-militar, aponta quem estava por trás, como mentor e instrutor da tortura de prisioneiros. O pau-de-arara pode ser um invento brasileiro, mas a maquininha de choque elétrico tinha o patrocínio dos americanos da CIA.
Além de dissecar a lógica militar que determinou a montagem do monstruoso esquema de extermínio de adversários e dissidentes políticos, o livro desvenda os mecanismos políticos por trás das operações policiais-militares contra inimigos dos regimes ditatoriais sulamericanos.
Também apresenta e descreve os principais agentes desse processo. Uma das personagens centrais é Carlos Alberto Brilhante Ustra, unanimemente apontado como um mestre da tortura na Rua Tutóia em São Paulo.
Em Porto Alegre destacou-se o delegado Pedro Seelig, peça-chave no sequestro de Lilian e Universindo. Constam dos textos os nomes de diversos operadores dos serviços condenados pela Convenção Internacional dos Direitos Humanos.
Além dos atores centrais, o livro expõe o comportamento de coadjuvantes civis como os governadores gaúchos Synval Guazelli e Amaral de Souza, a quem o patrão da imprensa Breno Caldas (Correio do Povo) atribuía uma deficiência de um palmo e meio na estatura física e moral.
Não há como negar: Cunha aproveita a oportunidade para retocar o perfil de algumas autoridades que no passado posaram como democratas e, no fundo, eram capachos dos ditadores de plantão.
Quem diria que o simpático Guazelli foi o autor secreto da Lei Falcão, o sistema de propaganda eleitoral criado pelo general-presidente Geisel?
Tempos sombrios
Nesse ajuste de contas, o jornalista vinga também a imprensa humilhada por anos de arrogância e mentira. Predominam os perfis de alguns dos maiores canalhas da moderna história política do continente, mas aparecem também alguns mocinhos como o advogado Omar Ferri e o ativista civil Jair Krischke.
Com mais de 1 milhão de caracteres (o que daria uns seis pocket books), O Sequestro tira de letra o risco de ser prolixo. Não há trechos obscuros. Tampouco excessos ou lacunas. É claro e denso como deveriam ser todos os textos jornalísticos. Não lhe faltam frieza, distanciamento ou imparcialidade mas, sem dúvida, é um livro tocado de ponta a ponta pela paixão de narrar com precisão.
Além de objetividade, sua maior qualidade é a contextualização histórica. Graças à qualidade da matéria-prima e aos bons temperos usados, muitos trechos configuram ricas crônicas dos (maus) costumes daqueles tempos sombrios.
A maior parte focaliza acontecimentos ocorridos no Brasil, mas o autor reuniu tanto material que compôs um painel das safadezas antidemocráticas praticadas também no Uruguai, na Argentina e no Chile.
O relato do sequestro em si termina na página 338, mas Cunha acrescenta dois anexos terríveis. No primeiro, que daria um substancioso pocket book, ele enche 40 páginas sobre o Uruguai antes e depois da ditadura. No outro, o leitor tem um extra de 70 páginas sobre as raízes, motivações e práticas da Operação Condor, que alguns jornalistas e historiadores ainda acreditam que não existiu. Cunha demonstra que o bicho não só voou como pegou muita gente.
Foi liderada pelo coronel chileno Manuel Contreras, chefe da DINA (o serviço secreto da ditadura de Pinochet), que se articulava informalmente com os serviços secretos dos países vizinhos – o Brasil ajudava, mas tomando cuidado para não sujar as mãos com o sangue das milhares de vítimas de tantas operações. Extraoficialmente, porém, havia muitos brasileiros envolvidos na sujeira até o pescoço.
Assim, a pretexto de recontar uma história da qual foi protagonista involuntário trinta anos antes, o jornalista nascido em 1951 em Caxias do Sul faz um balanço das maldades praticadas por militares e civis à sombras das ditaduras de direita que assombraram a América Latina por vários anos na segunda metade do século XX.
Seu livro é uma referência, um documento básico que merece ocupar um lugar de honra nas estantes de professores, estudantes, donas de casa e pais de família, engajados politicamente ou não. Um livro que não pode faltar nas bibliotecas universitárias e de escolas secundárias, nos sindicatos e nas sacristias, nas repartições públicas e militares.
Em especial, não pode faltar nas estantes das escolas de jornalismo e nas redações em geral. Perfeita lição de jornalismo, história e literatura, O Sequestro tem conteúdo e dá gosto ler.
Paradoxalmente, é um livro corajoso que começa com uma confissão de medo. Cunha e o fotógrafo JB Scalco tremiam dentro do carro depois de serem calçados a pistola no apartamento de Lilian Celiberti, na rua Botafogo, em Porto Alegre, onde tudo começou, numa tarde chuvisquenta de novembro de 1978.
Parece distante no tempo – foi de fato no fim da ditadura militar –, mas em termos históricos esses 30 anos decorridos de lá para cá são um pequeno fragmento na marcha da civilização.
Uma edição espanhola está sendo negociada com uma editora de Buenos Aires. Em seguida virá a edição em inglês. Vertido em outras línguas, é provável que o livro ganhe mais alguns prêmios, abrindo caminho para uma versão cinematográfica dessa história de espionagem e terror, que expõe pela primeira vez detalhes ignorados por diversos livros sobre as ditaduras conectadas antes do Mercosul.
Se vier o filme, ele bem que poderia começar com uma cena ocorrida numa tarde de novembro de 2008 na Feira do Livro do Porto Alegre. A fila de autógrafos do livro O Sequestro dos Uruguaios fazia a volta na lateral do prédio do Memorial do Rio Grande do Sul.
De repente, destoando do clima de desconcentração do ambiente (ali se festejava mais uma vez o fim da ditadura militar), uma senhora colocou gravemente diante do autor Luiz Cláudio Cunha um exemplar em que se destacava, numa folheta de cartolina, o nome da pessoa a quem devia ser feita a dedicatória: In Memorian de Didi Pedalada.
Cunha se levantou para ficar à altura da futura leitora.
– Por que o senhor escreveu isso? – perguntou a mulher.
– Quem é a senhora? – quis saber o jornalista.
– Eu sou a viúva do Didi Pedalada…
– Escrevi para mostrar que esse e outros episódios do tempo do Didi Pedalada foram praticados com a cobertura de muitos governantes.
– Mas tinha que colocar no livro o nosso endereço?
– Não me diga que a senhora mora no mesmo lugar?!
– Sim, aquela casa era a única coisa que tínhamos.
Tenso mas aliviado ao ver que se tratava mais de um desabafo do que de uma cobrança, Cunha sentou-se e escreveu a dedicatória possível aos descendentes do ex-jogador de futebol Didi Pedalada, um dos participantes do sequestro de Lilian Celiberti em novembro de 1978, em Porto Alegre. Na frase, lembrou que muitos agentes da história não sabiam o que estavam fazendo, apenas cumpriam ordens.
Enxugando as lágrimas, a viúva pegou o livro e retirou-se. A fila voltou a andar.