Amos Gitai: os horrores da guerra na Mostra da Paz

A visita do cineasta israelense Amos Gitai à capital gaúcha foi breve, o tempo de abrir a Mostra da Paz, fazer uma conferência, receber a comenda Simões Lopes Neto do governador Tarso Genro, e debater com cinéfilos, estudantes e intelectuais. A Mostra terá sequência em novembro, com filmes palestinos.
Fica a reflexão sobre a obra de Gitai que, sem dúvida, é um dos cineastas mais interessantes da atualidade. Na Mostra de Porto Alegre, foram apresentados trabalhos já conhecidos e consagrados: Kadosh (1999); O dia do perdão (2000); e Kedma (2003).
Neles, e na maioria dos seus mais de 40 filmes, temas como, principalmente, a sociedade israelense, as relações entre judeus e árabes. Colocam, enfim, importantes abordagens sobre conceitos como território, fronteiras, paz, identidade, memória, numa das regiões mais conflituosas do mundo, o Oriente Médio. Gitai, na guerra do Iom Kipur, serviu numa unidade de salvamento, encarregada de resgatar feridos nos campos de combate. É desse testemunho que trata O dia do perdão, misto de ficção autobiográfica e linguagem de documentário, gênero muito apreciado por Gitai e responsável por grande parte da sua respeitável filmografia.
Terça-feira, 29 de outubro. Quarenta anos após a guerra do Yom Kipur, o cineasta israelense Amos Gitai, 63, fez, na abertura da Mostra da Paz, na Cinemateca Paulo Amorim, a apresentação do seu filme O dia do perdão (Kippur, 2000). Não era uma apresentação qualquer. Também era um testemunho.
Arquiteto de formação, Gitai ainda era estudante quando, em seis de outubro de 1973, Israel foi surpreendido com os ataques conjuntos dos exércitos egípcio e sírio.
Começava a guerra do Yom Kipur, que terminaria com uma vitória tática de Israel, mas que deixou, mais do que nos três conflitos anteriores, o gosto amargo de um estrago em baixas e equipamentos, e a necessidade de encontrar uma saída diplomática para a questão palestina, algo que, quatro décadas depois, ainda parece estar longe de acontecer.
Na capital gaúcha, a visita de Gitai foi breve, o tempo de abrir a Mostra, fazer uma conferência, receber a comenda Simões Lopes Neto do governador Tarso Genro, e debater com cinéfilos, estudantes e intelectuais. Tudo como parte do pacote da Paz, iniciativa do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, no intuito de promover a concórdia tão esperada entre palestinos e judeus.
Mais de 40 filmes
Se a visita e a Mostra (que terá uma sequência, em novembro, com filmes palestinos) foram breves, resta à reflexão sobre a obra de Gitai que, sem dúvida, é um dos cineastas mais interessantes da atualidade. Na Mostra de Porto Alegre, foram apresentados trabalhos já conhecidos e consagrados: Kadosh (1999); O dia do perdão (2000); e Kedma (2003).
Neles, e na maioria dos seus mais de 40 filmes, temas como, principalmente, a sociedade israelense, as relações entre judeus e árabes. Colocam, enfim, importantes abordagens sobre conceitos como território, fronteiras, paz, identidade, memória, numa das regiões mais conflituosas do mundo, o Oriente Médio.
Gitai, na guerra do Iom Kipur, serviu numa unidade de salvamento, encarregada de resgatar feridos nos campos de combate. É desse testemunho que trata O dia do perdão, misto de ficção autobiográfica e linguagem de documentário, gênero muito apreciado por Gitai e responsável por grande parte da sua respeitável filmografia.
A película começa mostrando o jovem Weinraub (Liron Levo. Weinraub é também o sobrenome original da família de Gitai) caminhando solitário pelas ruas vazias de Haifa, comércio fechado, como reza a tradição do Yom Kipur. Corte para uma cena erótica onde Weinraub e sua namorada fazem sexo e, ao mesmo tempo, se lambuzam de tintas coloridas. Outros preferem rasgar roupas, unhar-se. Não importa.
Trata-se de uma alegoria e belo efeito plástico ao desejo e a vida, em claro contraste com o baixo-astral do resto do filme, a tinta sendo substituída pela lama, numa região onde a paz é um breve interregno entre ataques e contra-ataques violentos.
O toque da sirene interrompe o sexo, mas não chega a ser uma surpresa. Em Israel o estado de prontidão é permanente. Todos sabem o que fazer e Weinraub e seu amigo Ruso (Tomer Russso) seguem a bordo de um velho Fiat rumo a sua unidade de operação.
Antimilitarista, assim como em seu filme Kedma (também presente na Mostra), Gitai mostra que a guerra além de um conflito armado é acima de tudo um esmagamento existencial.
Mas, se é impossível apagar o lado heroico e épico daqueles que combatem, mesmo sendo cético em relação as suas causas, é possível reforçar o mal-estar, como a longa na sequência, plano fixo, trágico-cômica da tentativa de resgate de um soldado ferido, quando todos, literalmente, ficam chafurdados na lama.
Neutralidade
Por outro lado, quando as condições de resgate são “satisfatórias”, também é preciso escolher quem socorrer, estabelecer prioridades, pois, não cabem todos no helicóptero que, numas das sequências finais, acaba sendo derrubado por um míssil.
Nisso, a ficção de Gitai foi mais branda do que na história real, quando o copiloto foi decapitado pelo projétil. Dá para imaginar o deleite que seria este fato para certo cinema hollywoodiano.
O filme, enquanto ponto de vista, transmite uma certa neutralidade, ou subjetividade como prefere Gitai, sem tomar partido e sem figuração dos exércitos sírio ou egípcio, cuja presença narrativa é constada somente através das explosões dos projéteis que lançam. Mas faz questão de mostrar os horrores da guerra, não faltando mortos, mutilados e corpos queimados. Afinal, o efeito surpresa do início da guerra do Yom Kipur foi devastador para Israel.
Na sequência final, Weinraub, em Haifa, volta para os braços da namorada, num movimento narrativo circular da história, repetindo a encenação da segunda sequência, os dois transando, lambuzando-se de tintas, que agora substitui a lama, enquanto aguardam o próximo toque da sirene convocando para o combate.
Até quando?
Questão complexa e cuja síntese parece estar inserida no final de Kedma, nos monólogos do palestino, expulso de sua terra, e do judeu, condenado ao sofrimento.
No próximo dia seis de novembro (quarta-feira) será vez do cineasta Kamal Aljafari apresentar filmes com a temática palestina. Pena não poder reunir, no Bom Fim, Gitai e Aljafari, que, dividindo um faláfel, ou um Kebab (especialidade turca, mas não importa) falariam de paz, coabitação, e daquilo que certamente fazem melhor: cinema.