Sancionada Lei Pietro

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sancionou ontem (22/04) a Lei Pietro. A proposta partiu do deputado Beto Albuquerque, do PSB gaúcho em dezembro de 2007, logo depois do filho Pietro Albuquerque ter sido diagnosticado com a doença – o pai deputado sentiu as dificuldades do brasileiro comum para tratar leucemia pelo SUS.
Leia a história completa de Pietro Albuquerque clicando aqui.

Giovani quer largar o crack

Por Renan Antunes de Oliveira

Quase toda vez que entro apressado no Jornal JÁ tomo cuidado para não pisar em meu amigo Giovani de Souza Pereira, um self made mendigo de 22 anos, podre de drogado. Gio é morador de rua. Há quase 10 fixou residência na nossa, a Augusto Pestana.

Nos dias de bom tempo ele puxa seus roncos estirado na frente do portão da redação. Por alguma razão, prefere o lado ímpar da Augusto. Já deve ter dormido em cada centímetro de chão desde a esquina da avenida Venâncio Aires até o JJ, no número 133 da Augusto.

A gente nota que ele dorme melhor quando o sol está alto. Sabemos que no nosso pedaço ele também se sente mais seguro. Os vizinhos não se atreveriam a chutá-lo, coisa que acontece quando vai dormir sob alguma marquise e é despertado por seguranças de lojas.

Aconhegadinho em algum farrapo Gio ronrona enquanto se recupera das noitadas de crack e das baladas de maloqueiros – adiante eu conto como é intensa a vida social dos sem teto.

Ele é a pessoa mais conhecida do quarteirão. Não sei quem são meus vizinhos, eles não sabem quem sou eu, mas todos conhecemos Giovani – de uma certa forma, ele nos une.

Gio é um amigo que posso chamar de meu desde 2003. Isto porque quando eu entrei no JJ ele já era um veterano da casa – quero dizer, do lado de fora da casa.

Pouco antes da minha estréia nas páginas ele fazia por aqui um bico de entregador. Pena, tivemos que demiti-lo porque nossa contratação informal virou um problema trabalhista: seriamos multados por explorar trabalho infantil.

A idéia de dar trabalho pra ajudar Gio foi do Mariano, filho do patrão. Ele teve pena, queria tirar o menino da rua e das drogas. Mariano agora anda na Alemanha. Casou, tem uma filha pequena, tá lá cuidando dela – mas nosso Gio, adulto, continua na calçada.

Todos nós que ficamos temos boas intenções com ele. Todos nos compadecemos. Todos tentamos ajudar, de uma forma ou outra.

Anos atrás, uma senhora lá do fim da rua notou que ele andava meio abatido – era uma gonorréia, que ela se prontificou a tratar com antibióticos.

Socos e “roubo”

Um senhor notou um inchaço na boca e o levou ao dentista. Alguma coisa foi feita e hoje nada está doendo – o problema mais visível é a sujeira amarela e a falta do canino esquerdo. Tá partido ao meio. Foi quebrado a socos por um motorista de táxi do ponto do HPS. Normalmente o pessoal ali gosta dele, mas naquele dia alguns estavam furiosos porque acharam – erradamente – que ele tinha roubado o rádio de um carro.

No JJ tivemos vários debates de como ajudá-lo. Cada nova estagiária se comove ao vê-lo na calçada. De tanto vê-lo, elas se acostumam. Depois, acabam pulando por cima dele pra poder entrar – hay que perder a ternura e endurecer, senão ninguém entra na redação.

Todo novo repórter passa pela fase de pensar em entrevistá-lo, depois desiste – eles querem alguma coisa mais longe, mais aventurosa, menos doméstica.

Com o passar dos anos eu andei viajando. Passei um ano nos States. Morei meses no Rio, fui pra Amazônia, pra Curitiba, pra Sampa. Cada vez que voltava ao JJ tinha notícias de Gio. Ele estava por ali, todo dia, sempre dormindo na calçada.

Concluímos que ajudar Giovani seria tarefa pros órgãos assistenciais do governo. Telefonamos até pra caixa prego, sem sucesso. Procuramos burocratas de três partidos diferentes, nos níveis municipal, estadual, federal – por telefone é mais difícil conseguir alguma coisa do governo do que pedir qualquer coisa nos 0800 das multinacionais de telefonia celular.

Sugerimos as igrejas católica e evangélica. E fomos até na sinagoga da rua Henrique Dias. Neca, Gio firme na miséria, drogado e sujo, dormindo na calçada.

Giovani parece ter sido um predestinado pra viver nas sarjetas, com vocação revelada cedo. Do pai ele nada lembra, nem o nome, só sabe que morreu. Era bugre. O filho herdou as feições, cor e tamanho. Até fazer oito vivia com a mãe numa casinha na Lomba do Pinheiro. Foi tirado da escola por ela “porque ele só ia lá para comer a merenda”.

Mãe e filho passavam o dia esmolando no Centro. Ele abria e fechava portas de táxis na frente do Guaspari – mas as gorjetas iam todas pra mamãe. “Ela não me dava dinheiro pra jogar fliperama”, conta ele, ainda parecendo revoltado. Fugiu dela e esmolou pra si mesmo.

começo aos 11

Foi pouco antes de fazer nove que ele começou sua carreira de self made mendigo. A primeira noite ao relento foi na Praça XV. Era frio, ele estava só de calça e camisa.

Nas drogas ele começou aos 11, cheirando solvente, o chamado loló. Foi uma fase difícil, porque sua turma de cheiradores de loló era perigosa – uns roubam dos outros para comprar a droga.

Um dia apareceu alguém do Conselho Tutelar e ele foi levado para o abrigo Miguel Dario, na Serraria. Fugiu de lá semanas depois. Uma vez a Brigada o pegou nas ruas e o mandou para outro abrigo, na Miguel Tostes. Fugiu em oito dias. Desde 1999 adotou e foi adotado pela vizinhança da Augusto Pestana. Às vezes, rola pela Redenção.

Depois da Era do Loló veio o Tempo da Maconha. Fumava todo dia. Pra comprar, fazia bico de flanelinha. Uma vez ele e uns amigos roubaram um depósito da UFRGS. Ele pegou uma TV, mas não conseguiu vendê-la porque foi preso antes.

Não puxou cana. Ganhou “liberdade assistida”, um privilégio para menores concedido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A assistente social do seu caso era dona Érica, ou “tia Érica’, como ele diz.

A prisão lhe rendeu uma ficha na polícia. É seu único documento. Cada vez que é pego num arrastão da Brigada diz o nome. Os brigadianos que por acaso ainda não o conheçam consultam seus computadores, encontrando sua ficha de ladrão em liberdade assistida.

O pessoal da lancheria do Marino não deixa mais ele assistir lá dentro os jogos do Inter, por causa do cheiro de suas roupas e porque supeitam que foi ele que arrombou as grades e roubou cigarros, tempos atrás.

Ele vive num prende e solta. Uma vez reclamou da brutalidade policial, mas aí levou uma coronhada forte no olho esquerdo que quase o perdeu. Estava tão sujo que nem o HPS quis tratá-lo. Foi consertado no postão da Vila Cruzeiro.

O máximo de grana que conseguiu juntar na vida foram 200 reais, na vez em que cuidou do estacionamento de uma churrascaria. Desde os 16, tudo o que ganha ele gasta com crack, a droga da hora, do mês, do ano, da vida dele – tem dias em que está um farrapo que mal pode andar.

Nos últimos tempos os moradores da rua notam que ele anda cada vez mais drogado, mais esfarrapado, mais imundo – tem gente apostando que qualquer dia morre de overdose.

Mas nem tudo está perdido. Saibam todos que ele tem planos de parar com as drogas.

Na terça 31 de março eu o chamei pra esta entrevista. Ele mandou dizer pelo lavador de carros que só viria se ganhasse um troco. Queria 10. Pro crack. Apareceu às 3 da tarde. Foi só entrar na sala pra gente sentir aquela murrinha.

Ele estava falante. Contou que passou a noite transando com uma moça conhecida como Mãe, moradora de rua como ele. O romance foi ali perto do Hospital de Clínicas e ele garante que usou camisinha: “Uma tia me ensinou a usar, tenho que me cuidar”.

Alguém duvidou deste cuidado, lembrando que corre a lenda de que ele é pai solteiro de uma menininha – ninguém nunca viu nem sabe quem é a mãe nem onde anda tal filha.

Ele insistiu que sim, usa camisinha. Afirmou que até os gays que o procuram para programas no Parque da Redenção exigem isso. Não, ele não se considera um michê, não como aqueles da Avenida José Bonifácio. Se diz autônomo. E que cobra 20 reais por sessão, depois das 10 da noite, nos matinhos do parque – a grana é pra comprar crack.

Ele tem um sonho na vida: ser eletricista. Fez um serviços para um tal Paulinho da Farmácia. Segurava a escada. O cara também deixou ele apertar alguns parafusos em tomadas – foi o suficiente para ele tomar gosto pela elétrica.

“Não votaria em ninguém”
Uma tia – tias são assistentes sociais e/ou alguma mulher que o ajude – se prontificou a levá-lo pruma clínica de desintoxicação qualquer dia destes.

Ele disse que pode ser, porque está cansado da vida que leva. Anda pensando em procurar tratamento médico. Está convencido que pode sair da droga quando quiser. E que durante o tratamento vai aprender a ser …eletricista: “Na clínica ensinam alguma coisa pra gente”.

Gio ainda acredita em si mesmo: “Não quero ser conhecido como o Giovani velho, drogado, rabugento, fedorento”.

Se votasse ? “Não votaria em ninguém”. Tem uma pequena divergência com dona Yeda, a quem cita nominalmente. Ele acha que ela botou policiamento demais contra os pobres: “A gente fica um montão de tempo preso no 9º (Batalhão da PM) levando porrada até um tenente sentir bondade e mandar a gente embora”. Magnânimo, ele pede moleza “não para mim, mas para o bem da cidade”.

Gio aceita tirar fotos no meio da rua. Não, ele não espera nada do pessoal do JJ. Nem do governo. Repete que qualquer dia vai pegar nojo da vida de drogado. E então, mudar.
Pede cinco reais, pro ajudar na dose de crack.

Fim da entrevista. São quatro da tarde. E lá vai Giovani às ruas, sujo e esfarrapado, só com cinco no bolso, mas cheio de confiança, repetindo a única lição que aprendeu nas calçadas: “Eu mesmo tenho que fazer por mim”.

O crime da rua Venezuela

Renan Antunes de Oliveira

As três últimas casas antes da rua virar mato são de madeira, pintadas de azul, verde e branco. Na azul, com uma roseira carregada de flores vermelhas, morava Viviane, 14 anos. Na verde vive Tati, 13. A branca é de Clairton, 17, primo de Viviane, apaixonado por Tati. O ódio entre as meninas adolescentes foi maior do que aquele pequeno pedaço do mundo e transbordou em tragédia.

A rua Venezuela é um beco sem saída às margens da BR116. Está quase sempre deserta. Seu João e dona Jovenilda, avós de Viviane e tios de Clairton, passam horas na calçada da casa azul, sob uns pés de cinamomo, tomando chimarrão. Nas conversas, quase sempre lembram da tragédia mais improvável já acontecida na pacata cidade de Ivoti, no Vale dos Sinos.

Aconteceu em dezembro, na noite do dia 18: Clairton matou Viviane a pedido de Tati.

Olhando para trás é fácil entender o crime – Tati, por todos os relatos, apesar de quase criança, tinha inveja de Viviane, adolescente com corpo e aparência de bem mais velha. Difícil é compreender como este sentimento comum deu em morte com gente tão moça.

Viviane reagia com zombaria à inveja da vizinha. A rivalidade das duas foi testemunhada por todos que as conheceram. Começou nos primeiros anos de escola delas, no tempo em que a rua ainda não tinha sido calçada com paralelepípedos.

Muitas vezes Viviane teve que voltar para casa quando estava a caminho do colégio porque Tati jogava barro nela. Viviane xingava a rival de bobinha – mas também revidava com crueldade calculada, dizendo que o pai dela era um bêbado, o que afetava muito Tati.

Viviane era fruto de um romance adolescente do pai. Ele morreu afogado no rio dos Sinos quando ela tinha 7. A mãe sumiu e deixou a menina com os avós. Ela tinha liberdade total na casa azul com roseira. Os velhos lhe davam tudo o que precisava e bastante conforto.

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Tati vivia num ambiente opressivo e repressivo. O pai bebum só a deixava ir à escola e à igreja evangélica. Soube-se depois do crime que Tati tinha sido estuprada aos 10 anos, por outro vizinho – o que a ruazinha tem de calma e florida parece ter de ruim.

A rivalidade entre as meninas foi ignorada por pais e professores. Todos achando que tudo ia passar quando elas crescessem.
Não foi assim. Lá por maio do ano passado, Clairton, um grandalhão desengonçado com quase 100 quilos, motoqueiro sem carteira, drop out da escola e drogado, notou Tati já mais crescidinha. E passou a fazer investidas – queria transar com ela de qualquer jeito.

A mensagem foi passada pelo irmão de Tati. Mas ela tinha aquele problema: depois do estupro, os pais não a deixavam mais sair de casa desacompanhada.

Prisioneira da casa verde, Tati via todos os dias Viviane passar pela frente da sua e ir para a casa branca de Clairton. Os primos eram amigos e confidentes. O rapaz morava no porão da casa, onde seus pais tinham feito um quartão com tv e computador, pra ele curtir seus amigos e drogas longe da família. Viviane tinha trânsito livre na toca.

Quem conheceu bem todos eles garante que os primos nunca transaram. O primeiro de Viviane foi Juarez, um vendedor da Liquigás, 10 anos mais velho – e por isso, o principal suspeito da polícia quando ela foi encontrada estuprada, estrangulada e morta no matagal às margens da rodovia BR 116, apenas 100 metros distante da casa branca.

Tati começou a ser cortejada por Clairton à moda antiga, por carta. Bilhetes em folhas de caderno escolar, trocados de mão por amigas comuns.


Foram estas cartas que esclarecem o crime. Em vários trechos estão as pirações de Tati, seu ódio contra a vizinha, o pedido para matá-la e a oferta irrecusável: se Clairton matasse Viviane, ela, Tati, transaria com ele.

Clairton respondeu cedendo à oferta: “Capaz que eu não deixaria tu fazer aquilo com a Vivi, pra mim tanto faz”, escreveu, sendo “aquilo” o matar a própria prima.

“Eu não sei de onde saiu tanta frieza, não consigo aceitar que tenha sido ele”, diz dona Jovenilda, inconformada com a dupla perda – depois do crime, nunca mais falou com o irmão, pai de Clairton.

Por alguma razão qualquer as cartas acabaram nas mãos de uma amiga de Tati. Quando o caso deu na TV ela as mostrou pros pais, que por sua vez as levaram aos pais de Tati. Eles, mesmo horrorizados ao perceberem o que a filha tinha escrito, ainda tiveram coragem de ir à polícia e entregar tudo, 12 dias depois da morte de Viviane.

As cartas mostram que Clairton se tornou cada vez mais participante na trama macabra de Tati: “Por mim, que se f… a Viviane, pode encher ela de bala”. Os dois passaram até a planejar um segundo crime: matar o estuprador de Tati, jamais identificado.

Clairton foi preso em 11 de janeiro, mas nunca confessou o crime. Até o final de março, ele continuava negando.

A polícia suspeita que ele teve cúmplices, três carinhas maiores de idade, marginais da pesada pra quem ele teria pedido ajuda – mas que agora teme delatar porque seria como pedir para ser morto.

As investigações continuam no mesmo ritmo lento da cidade. A polícia identificou um trecho das cartas onde Clairton diz que botou “200 reais na mão de um ‘louco’ (que tinha pedido 400), mas ele disse que tinha uma proposta melhor pra me fazer”, tipo de papo de um contrato para matar Viviane.

Na noite em que a matariam, Viviane foi vista pela última vez pelos avós em companhia do primo, mas eles nada suspeitaram.


Eram sete da noite. “Entrei em casa e vi que ela tinha tomado banho e saído limpinha e bem vestidinha”, conta dona Jovenilda. Na calçada, vó e neta conversaram sob os cinamomos. Viviane usava tamancos de salto alto, saiu pipocando pelo calçamento irregular, aos pulos pelos 50 metros da casa azul até a branca, passado pela verde onde, é bem possível, Tati espreitava na janela.

“Quando começou a novela das 9 e ela não voltou, eu liguei. Ela me disse que estava baixando músicas pelo celular do Clairton”, ainda lembra a vó. A velha senhora foi então até o porão do sobrinho, espiou por uma fresta, nada viu de suspeito, bateu na porta e perguntou pra Clairton por Viviane: “Tia, Ela foi embora faz tempo”, mentiu, com calma.

Na manhã seguinte, angustiada, dona Jovenilda foi na casa de Juarez. Ela não estava lá. Ele jurou que a respeitava muito e que estaria esperando que Viviane completasse 18 anos para ficar com ela – uma mentira que a avó dispensou, porque sabia de tudo: “Se ela quisesse ficar com ele eu deixaria, ela não precisaria mentir, nem fugir”.

Se não estava com Juarez, tentaram a casa da mãe, mas ela dificilmente passaria por lá. Então só restava a polícia. Dia 19 de dezembro, manhã de sexta. Na delegacia, disseram pra vovó que “uma menina na idade dela faz coisas que nem o diabo acredita”, avisando que buscas só iniciariam 72 horas depois.

A juíza Célia Lobanowisky acreditou nas coisas que a polícia diz que Tati e Clairton fizeram, mandando os dois para a Febem, ela em Nova Hamburgo, ele na da Porto Alegre.

No início de abril ela preparava a sentença sigilosa para puni-los. É uma tarefa inútil, já que pelo Estatuto da Criança e do Adolescente os dois não podem ser presos. Suas fotos e seus nomes sequer podem ser publicados, o caso corre em segredo de Justiça.

Em juízo, Tati negou ter mandado matar Viviane. Disse que Clairton a interpretou mal e que fez tudo por conta própria – descontada a possibilidade dele ter agenciado o crime com aqueles carinhas pra quem ofereceu os 200 reais.


Quem quer que tenha matado Viviane foi bem cruel. Não se sabe os detalhes, nem quando e se ela percebeu que iria morrer, mas sabe-se o resultado da ação do matador/matadores.

Do porão da casa de Clairton ela foi levada por uma picada no matagal dos fundos da casa para perto de um tronco de guarapuvu, cerca de 100 metros distante.

Seu corpo foi encontrado apenas na manhã de 23 de dezembro, o quinto dia do desaparecimento, sem que a polícia tivesse organizado nenhuma busca. Foram outros irmãos e sobrinhos de dona Jovenilda e seu João que combinaram, na noite do dia 22, começar a procurar perto de casa.

Quem se ofereceu pra ajudar ? Clairton solícito com os tios.

“Eu sai procurando pelo lado do muro (de uma empresa de lacticínios) e fui indo pra baixo”, conta o avô. “Clairton me apontou uma árvore lá longe (o tronco seco do garapuvu) e me disse pra ir praquele lado, eu nem imaginei nada”.

Seu João, falando sob os cinamomos, chora quando lembra a cena final: “Eu dei uns passos perto de um córrego e vi um vulto no chão, gritei ‘ai está ela’ e sai correndo, porque tudo se escureceu na minha vista”.

E lá estava a menina mais bonita da rua Venezuela: morta, deitada de costas, sobre os braços amarrados pra trás por um fio elétrico, com um saco plástico enfiado na cabeça e um pano cobrindo o rosto.

Os legistas confirmaram que ela foi estuprada e morta por estrangulamento e asfixia. O assassino ou assassinos tentaram encobrir o crime queimando seu tórax, mas apenas chamuscaram o corpo.

O cadáver ficou exposto aos vizinhos por quatro horas, que fizeram cortejos para vê-la. Dona Jovenilda fez questão de ir ver o cadáver. Chocada, não quis que tirassem o pano do rosto – sob o qual, soube-se depois, estavam dentes quebrados. Ela disse que reconheceu a neta por um piercing que usava no umbigo: “Era a minha Vivi”.

 

Pietro Albuquerque: vida e morte do guri que virou lei

Por Renan Antunes de Oliveira | Com reportagem de Daiane Menezes

Anote o nome: Pietro. Pietro Albuquerque. Com certeza você ainda vai ouvir falar deste jovem classe média alta da Zona Sul. Morto de leucemia mielóide poucos dias antes de fazer 20 anos, ele já tem um lugar na história: em sua homenagem a Câmara Federal aprovou a “Lei Pietro”.

A proposta foi do pai dele, o deputado federal do PSB gaúcho Beto Albuquerque, apresentada em dezembro de 2007, logo depois do filho ter sido diagnosticado com a doença – o pai deputado sentiu as dificuldades do brasileiro comum para tratar leucemia pelo SUS.

A lei designa de 14 a 21 de dezembro “Semana de Mobilização Nacional para Doação de Medula Óssea” – como transplante é a única chance de cura, a lei transformou a dor da família Albuquerque em esperança para milhares de pessoas na mesma situação.

O projeto se arrastou um ano na Câmara – ao mesmo tempo a doença ia consumindo Pietro. Para tratar-se, ele recorreu a bancos de doadores em Paris e Nova York. Um dia depois de sua morte, em 3 de fevereiro, os parlamentares se deram conta do drama do colega e aprovaram a lei.

O mérito da proposta é mobilizar a sociedade para conseguir doadores no país: “Se meu pai não fizer mais nada no mandato, já terá feito muita coisa por muita gente”, diz Rafael, publicitário, 23 anos, irmão de Pietro.

É um elogio ao pai, mas também um fato: segundo estatísticas do Ministério da Saúde, todo ano quase 10 mil pessoas contraem leucemia. O Brasil tem 300 mil doadores cadastrados. É pouco: cada doente tem só uma chance em 100 mil para encontrar alguém compatível.

Entre os vários tipos da doença, a mielóide é a mais difícil de curar, mata oito de cada 10 pacientes. Na maioria das vezes ataca homens adultos, dos 50 pra cima, embora tenha acertado Pietro na flor da juventude, aos 18.

Em 14 meses de luta contra a doença, ele usou todo arsenal médico disponível. Era beneficiário da mãe no plano de saúde do Banco do Brasil e se tratou no melhor hospital brasileiro, o das Clínicas, em São Paulo.

APOIO
Foi preciso mudar de cidade porque não havia leito do SUS para pacientes da doença na base eleitoral do deputado: “Porto Alegre só tem sete ou oito leitos especiais para essa doença. Tentei outros lugares públicos mais próximos, mas também não consegui lugar para ele”, disse Beto – e se foi difícil para um dos líderes do governo, imagine-se para o cidadão comum.

Pietro teve apoio de pai, mãe, irmãos, madrasta, avós. Teve todo dinheiro necessário para todas as despesas. Fez quimioterapia e radioterapia. Foi mantido em quartos isolados para evitar contaminação. Tentou até o transplante de cordão umbilical, a última moda em soluções mágicas.

Quando nem os bancos de medula no exterior ajudaram, os médicos tentaram transplante de medula com material doado pela mãe. Esta cartada final da medicina também não funcionou.

Por todos os relatos, o Pietro que se foi era um cara na dele, muito tranqüilo. Nasceu em Passo Fundo, veio pequeno para Porto Alegre. Gostava de garotas, de ler, de música, de Floripa, de cinema, do Colorado, do gato Tinkleydison.


Olhando para trás, ele parecia saber que estava marcado para morrer cedo. Aos 16, publicou um livro com título premonitório: “Dias Contados”.

A obra saiu durante a Jornada Nacional de Literatura da Universidade de Passo Fundo. No texto de apresentação a professora Tânia Rosing escreveu que “Pietro de Albuquerque terá longa vida como escritor” – ela não teve a menor intuição do que estava por vir.

O livro é muito bom, ainda mais considerando que foi escrito quando o guri tinha 15. E são 296 páginas – uma façanha nestes tempos em que adolês falam por email e torpedos.

“Dias Contados” é sobre o cotidiano de quatro personagens meio autobiográficos: Yuri, Caíque, Cecília e Priscila. Seriam ele mesmo, seu irmão e duas primas. O irmão diz que muito do que está escrito é da vivência, “ele era muito observador”, mas que também há coisas inventadas porque “ele era muito criativo”.

No texto, o personagem Yuri se descreve como “um garoto bem sociável, nada tímido, mas também não muito extrovertido. Ao mesmo tempo em que gosta de dar uns beijos sem importância, é muito romântico”.

Pietro balançou um pouco, lá pelos 10 anos, quando os pais se divorciaram. “Foi surpreendente, inesperado, pois para todo mundo parecia um conto de fadas”, diz Rafael. “Pietro ficou muito pra dentro”, dando no ponto em que o brother se tornou introvertido.

Os dois ficaram vivendo com a mãe, dona Débora. Logo estabeleceram uma rotina sem o pai, que só viam nos fins de semana e datas especiais – o deputado, sempre ocupado em Brasília, casou de novo e tem mais uma filha, Nina, pequena.

Muitas das estrepolias contadas no livro foram a maneira que Pietro encontrou para lidar com a separação. A primeira frase: “O menino era muito parecido com o pai, embora tivesse alguns traços da mãe”.

Quando fala dele, o pai tenta não se emocionar muito: “O Pietro era um menino muito envolvido com a cultura”, disse, em entrevista, algumas semanas depois da morte.

Ele lia Josué Guimarães, Érico Veríssimo, Machado de Assis, Lima Barreto, Umberto Eco. “Eram autores que ele tinha que ler para o vestibular, mas que acabou gostando e indo adiante”, conta Rafael.

Beto e Pietro: nos bons tempos

O deputado agora está lendo o segundo livro do filho, “Quem tem coragem”, uma obra inédita que Pietro escreveu no hospital e deixou na memória de seu notebook. O texto tem uma leve marca da tragédia que se aproximava:

Agora, ele já podia comemorar aliviado o seu feito. Havia completado a sua missão. Havia terminado o que antes não havia conseguido. Restava-lhe esperar. Esperar por um juízo. Nunca fora de acreditar em destino, mas talvez os acontecimentos mais primordiais de sua vida o fizessem repensar. Era até irônico. Mais atrás, às suas costas, quatro homens de arma em punho vinham na sua direção sedentos por vingança. “Achar vai ser fácil, o difícil é conseguir sair”. E riu, preferindo nem olhar para o que lhe aguardava. E tirou do bolso o seu amuleto. Coragem, rapaz, coragem.
NAMORADOR

Até ser diagnosticado com a doença, Pietro vinha se dando bem na vida. Fotos mostram que ele não era de se botar fora. Não tinha namorada, mas era um “ficante” que “honrava as tradições” – é a linguagem de Rafael para descrever o irmão namorador.

Pietro queria ser escritor e roteirista de cinema. Já doente, passou no vestibular para cinema na federal de Santa Catarina.

Outra paixão era a praia do Campeche, em Floripa, onde vivem as duas primas do livro. Ia seguido pra lá. No álbum da família ele aparece em fotos na praia, saudável, sorridente, como se nada pudesse lhe acontecer.

Pietro não era do tipo consumista – seus gastos quase nunca eram maiores do que a pensão de 200 reais que recebia do pai. O programa preferido era ver filmes com a mãe e o irmão. O último foi Na Natureza Selvagem, a história amarga de um jovem andarilho americano morto no Alasca.

Ele queria muito viajar. Tinha ido pra Disney quando pequeno, conhecia um pouco Uruguai, Paraguai e Argentina, mas sonhava com lugares exóticos. Um plano maluco era mudar-se para Valetta ou Birkirkara, cidades de Malta, uma ilha do Mediterrâneo.

Parece 100 por cento garantido que ele planejava mesmo mudar-se para lá quando desse, tanto que o projeto estava no Orkut dele – e se está no Orkut é pra valer.

Outros sonhos ? Andar de trenó. Abrir uma padaria em sociedade com a prima Yve – ela também adoradora de Malta, país cuja característica mais notável foi ter sido cristianizado por São Paulo em pessoa.

Pietro acreditava em Deus, mas a última vez que pisou numa igreja foi na primeira comunhão, lá pelos 10 anos. Não acreditava em política. “Acho que é porque sempre vivemos com a política na família, ele acabou indiferente”, conta Rafael – um tio deles, Francisco Turra, também é deputado federal e cordial adversário do pai.

No Orkut ele se definia como quem “narra a vida na terceira pessoa”, além de ouvinte da banda Coldplay. Fotografava a si mesmo nas situações mais hilárias, como se dando um tiro imaginário quando rodou no vestiba da URGS.

Já minado pela doença, mantinha o bom humor na web, onde tinha 454 amigos. Estava ligado na comunidade “Doe Medula Óssea”. Na parte onde os internautas buscam namoradas ele só pedia como companheira ideal “uma medula nova bem fresquinha”.


A medula dele deixou de produzir sangue normal em algum momento no final de 2007. Os primeiros sintomas foram tonturas e náuseas. Um dia ele desmaiou durante uma aula no cursinho Unificado. No Hospital Mãe de Deus, os médicos diagnosticaram uma anemia profunda e pediram mais exames – em poucos dias a terrível doença foi descoberta.

A mãe estava com ele na hora do diagnóstico e foi sua enfermeira até o fim: “Os dois eram muito apegados, ficaram mais ainda”, lembra Rafael.

Dali pra frente a rotina da família virou de pernas para o ar. Pietro começou a fazer quimioterapia. Um mês no hospital, uma semana em casa. Em maio, depois de quatro meses de quimio, a traiçoeira doença parecia ter desaparecido: “Pensamos que ele se enquadraria entre os que conseguem se dar bem apenas com tratamento”, conta o pai – agora o deputado dedicava todos os fins de semana para estar junto com o filho.

A pequena melhora deu esperanças à família. Beto comemorou levando Pietro para Gramado e Canela, dias de brincadeiras com Nina. Ele ainda teve condições de ir pra Maceió com a mãe.

DOADORES

Em junho, o drama recomeçou. Ele começou a sentir-se mal outra vez. Testes confirmaram o pior. Foi aí que médicos e família começaram a procurar um doador de medula compatível – não adianta ser da família, tem muito a ver com o tipo de sangue e outras variáveis. Basta ver que o irmão era 80% compatível, mas ao mesmo tempo não era melhor do que os 65% de compatibilidade da mãe.

O transplante só é solução se é encontrado um doador cedo. Pietro demorou 10 meses para o primeiro e 13 para o segundo, quando então já estava muito debilitado. O que faltou ? Justamente pessoas cadastradas como doadoras.

Até no exterior, a busca por um doador compatível foi infrutífera – isto que o banco americano de medula tem 15 milhões de doadores. Em agosto, os médicos tentaram a nova técnica de usar cordões umbilicais.

Eles encontraram um na França e outro nos Estados Unidos. Sangue 80% compatível com o de Pietro. Mas era puro risco: até ali, só 500 transplantes assim tinham feitos no mundo. Por questões burocráticas, o transplante de cordão demorou até novembro, o que não ocorreria se o país tivesse um bom banco do material – como Pietro já tava mal, piorou mais.

O ano em São Paulo foi duro também para a família, mas ela se uniu em torno dele. Rafael conta que houve “entrega total de todo mundo. Ninguém media esforços. O pai era bom na tomada de decisões sob pressão. Cada um tinha um papel diferente. A mãe sempre dormia com o Pietro no hospital”.

Rafael ainda encontra tempo para dizer que a doença o fez descobrir de novo o pai em Beto: “Me reaproximei dele, fiquei com uma admiração imensa por quem ele é, pelo que ele fez”.
Os médicos iam fazendo o que podiam por Pietro. Rafa acha que “a medicina em São Paulo está cinco anos na frente de Porto Alegre em agilidade e remédios”, mas ela não faz milagres.

O transplante de material genético obtido dos cordões umbilicais do exterior pareceu dar certo. A medula pegou no tranco. Chegou a produzir sangue saudável, mas isto durou pouco. Pietro ganhou uma quase alta em São Paulo. Passava algumas horas por dia no ambulatório do HC e o resto do tempo num flat com a família – era o máximo possível de normalidade.

Exatos 85 dias depois, justo no Natal, a doença voltou. A tentativa seguinte foi o transplante de medula da mãe – a segunda chance para dona Débora Gelatti lhe dar a vida.

Para fazê-lo, é necessário que o paciente passe por pesadas sessões de quimioterapia e radioterapia – isto rala o corpo, com o objetivo de zerar a imunidade para não rejeitar o material doado.
Pietro enfrentou esta barra, mas foi para o transplante nas últimas energias. A operação caiu no dia 6 de janeiro, aniversário de Beto – se alguma coisa isto significa, que outros busquem o sentido: medula da mãe, no dia do pai.

O deputado apelou até para seu santo de devoção: “Se desse certo, nós iríamos visitar a terra de São Francisco, na Itália”.

Dali pra frente o quadro se complicou de vez. Ele teve uma sinusite que virou pneumonia, que virou infecção pulmonar, que virou Síndrome de Angústia Respiratória de Adulto, tudo isso em 16 dias após o transplante.

Nesta etapa ele já estava todo ligado em tubos e diferentes aparelhos. “Apesar de tudo, Pietro sempre foi muito confiante. O cara estava a fim de viver. Quando a gente falava o que estava fazendo, ele só dizia ‘beleza, vamos tentar’”.


E aí, entre 22 de janeiro a 3 de fevereiro foi só sofrimento. Pietro caiu na inconsciência, da qual não mais voltaria. Fazia gestos de sim com a cabeça, apertava a mão do interlocutor, mas já era pura agonia. Beto resume tudo: “Pietro foi um guerreiro”.

Na tarde do dia 3 os médicos avisaram a família que o menino deles estava em seus últimos momentos – ele morreria horas depois, mansamente, na madrugada. “Ali choramos tudo o que tínhamos, eu, meu pai e minha mãe”, lembra Rafael, agora tranqüilo. Um padre esteve no quarto e lhe deu a extrema-unção.

Recuperado e também sereno, o deputado diz que o filho lhe deixou uma tarefa: “Quero evitar que outros pais passem o que eu passei”.

Pietro foi enterrado no Jardim da Paz. Presentes, 17 deputados, o presidente da Câmara Michel Temer e o ministro das Relações Institucionais José Múcio, representando o presidente Lula.

A família retomou sua rotina. Na casa da Zona Sul, nada de culto a Pietro. Seu computador e a TV ainda estavam no mesmo lugar no início de março, mês em que ele faria 20 anos, mas as roupas já foram doadas para os pobres. A cama estava feita, embaixo escondia-se o gato Tinkleydison.

Fotos dele continuam nas paredes. Sobre a mesa, dois recuerdos do Pietro que se foi. Uma engraçada caneca imitando seio feminino. E um pequeno jipe feito com massa de modelar, envernizado e colorido, com pranchas de surf na capota – tipo coisa sonhada para seus dias na ilha de Malta.

SAIBA COMO E ONDE DOAR A MEDULA ÓSSEA

Falta abrir a caixa-preta

Renan Antunes de Oliveira

Existem falências e falências na economia brasileira. Mas nenhuma tem os ingredientes da monumental derrocada daquela que foi a primeira empresa aérea do país, a maior da América Latina e a 15ª do mundo.

A Varig conseguiu quebrar mesmo faturando US$ 1 bilhão por ano. Caiu na mão de especuladores estrangeiros pela bagatela de US$ 24 milhões. Eles a revenderam para a Gol por US$ 320 milhões.

Mesmo parecendo um negócio bem amarradinho, ele ainda pode gorar. Vai depender dos resultados da CPI do Apagão. Para usar linguagem aeronáutica: se a CPI conseguir abrir a caixa-preta da Varig, pode encontrar provas de que houve intervenção indevida do governo e corrupção no Judiciário para favorecer os investidores estrangeiros que serviram de intermediários da compra pela Gol.

Por 80 anos a Varig cruzou os céus e as crises econômicas do país. Foi pilotada pelas melhores cabeças do empresariado nacional – e mesmo sendo a marca mais conhecida do Brasil caiu com um rombo de quase R$ 8 bi.

Na quebra, arrastou o fundo de pensão dos empregados, outrora uma potência. Deixou quase 20 mil credores na chuva. Não pagou impostos. Deu o calote nos salários, FGTS e aposentadorias de 9 mil trabalhadores – é de se pesquisar se não se trata do maior caso de fraude trabalhista do continente.

Esta falência anunciada esteve no radar de empresários, políticos e juízes desde a década de 90. Leonel Brizola e Yeda Crusius, Aécio Neves e José Serra, Lula e Zé Dirceu, Dilma e Onix Lorenzoni, FHC e Collor – todos, em algum momento, deram seus pitacos para tentar corrigir a rota da companhia.

Nada funcionou. Em 2005, embarcou na viagem o vivaldino empresário chinês Lap Chan, testa-de-ferro do fundo de especuladores americano Matlin-Patterson.

Manobrando entre a nata da inteligência econômica brasileira, ele conseguiu a mágica de desmembrar a Varig da Fundação Ruben Berta para comprar a parte boa pelos US$ 24 milhões, em julho de 2006, para revendê-la pelos US$ 320 milhões, em março.

Esta manobra, rara até no mundo dos grandes negócios, nem foi ainda bem explicada e já parece assimilada pelo mercado – só ressalvando que a CPI ainda não decolou. Os donos da Gol compradora estão sendo incensados pelas revistas de economia como gênios da década.

Na quinta 26 de março, quase um ano depois da quebra e apenas um mês após a venda para a Gol, outra CPI, então aparentemente inofensiva, conduzida pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, se antecipou e pediu à Justiça a quebra do sigilo bancário e fiscal do chinês e do juiz carioca Luiz Ayoub, que autorizou o negócio (lembrando que a Varig foi vendida na primeira vez num leilão judicial conduzido por ele).

Juiz suspeito? O homem se sentiu ofendido e processou os deputados. Seu protesto foi abafado pelo escândalo da venda de sentenças pelos colegas.

Na mesma quinta, o Superior Tribunal de Justiça condenou a União a pagar a indenização de R$ 3 bilhões à Varig por prejuízos causados pelos planos econômicos de governos anteriores.

Se e quando tal sentença passar pelo STF, e quando for corrigida para quase R$ 7 bilhões, e se for paga pelo governo (que deverá descontar seus impostos….), o céu vai ficar nublado outra vez. Quem vai levar a bolada? A quebrada Fundação Ruben Berta? A Gol? É bom saber logo, antes que o chinês leve tudo.

Astúcias de um chinês chamado Lap Shan

Nos bons tempos a Varig mantinha 450 vôos diários, um enorme desafio logístico vencido com eficiência e classe: o serviço de bordo chegou a ser o melhor da aviação internacional. O luxo acabou com a chegada da Era do Amendoim com Barrinhas de Cereal.

A crise pintou no horizonte nos anos 90, quando ela estava bem de saúde e com muita gordura para queimar: tinha frota própria com 100 aviões e U$ 2,4 bilhões de patrimônio líquido positivo. No dólar de hoje, seriam 4 bilhões e 800 milhões de reais.

A Varig começou a quebrar quando perdeu o monopólio dos vôos internacionais. Os executivos da época foram sendo abatidos pelo preço da gasolina, por crises internacionais, pela competição com a concorrência e até por seus próprios umbigos: a empresa trocou seis presidentes em cinco anos.

Em uma década voando sem rumo a Varig vendeu a frota. E passou a alugar aviões. Assim, queimou a gordura de US$ 2,4 bilhões. Pior: abriu um rombo de US$ 2,5 bilhões. Gordura e rombo somados, ela perdeu quase US$ 5 bilhões, média de 500 milhões de dólares anuais de prejuízo.

De onde saiu tanta incompetência gerencial? No mundo dos grandes negócios dá para viver por anos rolando esta dívida. No da Varig seria barbada porque até em seu pior momento, março de 2006, ela ainda faturava 100 milhões de dólares por mês, US$ 1,2 bi por ano.

Com este dinheiro até um gerente medianamente inteligente seria capaz de rolar a dívida principal e ir cozinhando a crise por décadas: daria para esperar até a possível abertura de uma rota espacial para Marte, quando a empresa teria foguetes e se credenciaria para fazer tal viagem.

Mas não. Dando tiros e mais tiros no próprio pé, em novembro de 2005 a Varig vendeu sua subsidiária de carga VarigLog para o espertalhão chinês Lap Chan (foto).

Ele pagou US$ 69 milhões. Mas a VarigLog vendida levava junto uma dívida de US$ 153 milhões com a própria Varig, por serviços de transporte já realizados. Logo, a VarigLog valia os 69 pagos e mais os 153. Sacaram a operação? Seria tão bom como comprar um carro usado, cheio de barras de ouro no porta-malas.

Tendo feito este primeiro negócio com a Varig, o chinês ficou bem perto da garganta da empresa, preparando-se para beber seu sangue.

Os executivos brasileiros não enxergaram o vampiro voando na sala? Parece que não, porque logo o chinês se ofereceu para comprar o dinheiro em caixa da Varig…

Isto mesmo. Comprar dinheiro! E pagar com dinheiro. É duro de entender mas fácil de explicar: a Varig vendia uma passagem por 1.000 reais no cartão de crédito, para receber no fim do mês. O chinês pagava, adiantado, 500 pelos mil, aí Varig não precisava esperar o fim do mês.

Assim, a partir de dezembro de 2005 ele começou a comprar estes créditos futuros (as vendas de janeiro por cartão de crédito, dinheiro bom em poder das administradoras de cartões Visa e Mastercard).

Enforcada, a Varig foi vendendo seu dinheiro de caixa até junho, quando não tinha mais nem para pagar gasolina dos aviões. O dinheiro bom dela estava todo com Chan.

Aí Chan, já dono de uma parte da Varig, tentou comprar toda companhia por mais 400 milhões de dólares. Prometeu que se comprasse faria aparecer dinheiro para gasolina – imagine o vampiro guloso já agarrado no pescoço, mas procurando mais uma veia da vítima.

Não adianta agora demonizar o chinês. Ele é apenas um intermediário. Todo mundo sabia que ele não tinha um tostão furado. O dinheiro usado por ele para estas manobras veio do fundo Matlin-Patterson. De quem é o fundo? De grandes companhias aéreas americanas e de fundos de pensões do primeiro mundo. É o tipo fundo-abutre, que se nutre de empresas mal das pernas, comprando-as por uma ninharia, para revendê-las com lucro.

Quando o chinês fez a proposta dos US$ 400 milhões, os credores e os empregados da Varig sentiram o cheiro do golpe.

Os credores temiam que se Chan comprasse não receberiam suas dívidas, os empregados sabiam que ficariam sem salários.

Foi aí que entrou na briga esta honrada instituição brasileira chamada Justiça.

Três juízes da Vara de Falências do Rio de Janeiro (escolhidos porque é lá que a Varig tinha sede) passaram a acompanhar um processo de recuperação judicial, novo nome da concordata, falência, quebradeira.

Era muita areia para três cabeças sem dinheiro, sem nenhum traquejo pros negócios e assoberbadas por milhares de outros processos.

Eles deveriam achar solução para o megacomplexosuperproblema que por 15 anos consumiu a inteligência nacional – e rápido, porque o chinês estava com sede.

Emergiu desta trinca o juiz Luiz Ayoub, agora uma celebridade nacional. Ele bolou a solução de leiloar a Varig pela melhor oferta. Seria um processo transparente. Chamou as TVs e comandou o show de martelo na mão.

Os empregados formaram um consórcio batizado TGV (Trabalhadores do Grupo Varig) e se apresentaram.

Como lastro usaram seus créditos trabalhistas, as contribuições no fundo Aerus, dinheiro do banco USB e apoio logístico da Lan Chile.

Veio o leilão. O chinês não fez nenhum movimento. Os empregados fizeram uma proposta e venceram.

Nas duas semanas entre a vitória e o pagamento o governo entrou no rolo, consumando uma intervenção no fundo Aerus – com a medida, ele tirou o lastro dos empregados.

O juiz anulou o leilão e fez outro. Quem se apresentou desta vez? Não precisa ser gênio da economia para saber que foi o chinês. S.o.z.i.n.h.o! Ele, que tinha oferecido US$ 400 milhões pela empresa (aquela proposta recusada), que não participara do primeiro leilão, ainda estava interessado.

Como é que ele sabia que os empregados iriam ganhar e depois perder? Mistérios vampirescos. Esperando quieto, entrou sozinho no segundo leilão e nem precisou pagar os US$ 400 milhões, bastou oferecer 24. E levou.

Até seu Otto deve se revirar na tumba.

Faxineiro que chegou à presidência previu o fim
Os mais antigos varigólogos dizem que a Varig só foi bem administrada no tempo do seu Otto. Otto Ernest Meier. O imigrante durão que trouxe um avião da Alemanha e plantou as raízes do império do ar, no Rio Grande do Sul, em 1927.

O negócio parecia ir bem. Vapt vupt, Otto perdeu tudo. Dizem historiadores gaúchos que ele tinha uma queda por Hitler e por isso o presidente Getúlio Vargas manobrou pra tirá-lo do comando. Empresários turbinados pelo dinheiro público do Rio Grande assumiram o controle da companhia em 1941.

Na escala de 1945 a Varig sem Otto estava quase quebrada. Como avião era novidade, o empresariado gaúcho optou por doar o que sobrou do patrimônio para os empregados, voltando-se outra vez para carnes e couros – bota visão nisso.

Sob inspiração do primeiro faxineiro, Ruben Martin Berta, alçado a top executivo, foi criada uma fundação para gerenciar a companhia. Era para ser uma inovação democrática, último passo antes e o mais parecido com a tomada do poder pelos trabalhadores.

A fundação nasceu sem oposição porque era uma titica. Ninguém poderia imaginar que ela cresceria a ponto de ser um rabo tão grande capaz de balançar o cachorro.

Berta profetizou que a Varig gerenciada pela fundação só poderia quebrar se e quando os empregados (que em tese a dirigiriam) quisessem – quando ele morreu, em 1966, ela foi rebatizada com seu nome, aqui abreviado para FRB.

O homem não imaginava que antes do colapso final o Brasil produziria Fernando Collor. Em 1990, o presidente abriu o mercado da aviação nas rotas internacionais, dando o primeiro golpe na Varig.

Em 91, ainda sem se dar por vencida, a empresa encomenda novos aviões da Boeing e tenta decolar. Veio a Guerra do Golfo e com ela disparam os preços do petróleo, pinta uma recessão.

Ela vende seus aviões para bancos e empresas que alugam aviões. Passa a pagar aluguel para o que antes fora seu – pode tal idéia?

Depois de Collor, Fernando Henrique botou o segundo prego no caixão, com sua desvalorização do Real de 1999.

Em 2001 a moribunda passou a sofrer concorrência da Gol no mercado interno. Foi justo o ano do atentado de 11 de setembro, paralisando o setor aéreo. As dívidas da Varig aumentaram, a pequena Gol sentiu menos o golpe e tomou-lhe a freguesia.

A FRB continuou viva, até porque ela só existe para proporcionar benefícios sociais aos empregados da Varig. Quando não mais o fizesse deveria ser extinta, conforme seus estatutos e a Lei das Fundações.

Pelo receituário neoliberal, a FRB representa o passado glorioso e o presente fracassado da Varig por ter administrado a empresa privada como sendo uma estatal ineficiente.

No mercado, seus administradores eram vistos como nadando em mordomias, enquanto geriam a empresa com incompetência, para dizer o mínimo.

Até a quebradeira, a FRB era um INSS com dinheiro. Tinha a cia aérea para gerenciar e tirar dela lucro para pagar benefícios médicos, suplementar aposentadorias e até financiar casa aos empregados.

Atenção para um erro comum: os empregados nunca foram donos da Varig. Não tinham cotas, nem ações. E também não eram donos da FRB. A fundação é que era dona de tudo. Os empregados eram apenas isto: empregados.

Sem patrão, quem mandou na Varig na era pós herr Otto? O Colégio Deliberante da FRB. E depois dele o Conselho Curador da FRB, escolhido pelo Colégio, que por sua vez indicava o Conselho. Complicado, né? Bem, é mais fácil explicar como a Santa Sé escolhe o colégio cardinalício e os papas, inclusive com a composição química da fumaça branca que avisa a escolha do novo pontífice.

Alheios às lutas pelo poder dentro do Colégio e do Conselho, alheios também aos atos da diretoria da Varig, os empregados tinham a vida garantida pela FRB – com promessa de amparo vitalício pelo seu fundo de pensões, o Aerus, fundo este resultado de aplicações financeiras das épocas de vacas gordas.

Por três décadas foi quase tão seguro e confortável ser da Varig quanto ser empregado do Banco do Brasil ou da Petrobras.

Entre os anos 80 e 90 a Varig entrou na zona de turbulência do setor aeronáutico internacional e começou a se…modernizar. Dividiu-se, criaram-se subsidiárias, empresas agregadas, afiliadas, associadas, formou-se um cipoal de controladas, vendidas e arrendadas, hangares e hotéis, tanta coisa que só com bússola para se saber aonde ela ia. E a FRB inchou mais do que repartição pública às vésperas de eleição.

Quando a Varig quebrou em março do ano passado, seus 11 mil empregados ficaram órfãos. Mais da metade deles até hoje não conseguiu voltar ao trabalho. Desde a quebradeira a Aerus está pagando os benefícios com vales.

O generoso fundo de pensão minguou, acabou sob intervenção do governo. Seu futuro tem a mesma segurança de uma caixa de fósforos vazia na sarjeta em dia de enxurrada – no fim de abril dezenas de pensionistas e aposentados que tiveram benefícios cortados realizaram uma maratona de protestos nos aeroportos Congonhas, Galeão e Salgado Filho.

Até a criação da CPI do Apagão, a Assembléia do Rio de Janeiro foi a única tribuna popular interessada no futuro da companhia aérea nascida no RS. Mas isso porque o Rio também tomou um calote da Varig. O estado pagou R$ 240 milhões em ICMS recolhido indevidamente para que a empresa continuasse operando e assim mantendo empregos na Cidade Maravilhosa. Aí ela quebrou, vendeu a parte boa e se mudou para São Paulo, num calote dentro do calote.

Os empregados que perderam as vagas sofreram também uma pequena humilhação: em entrevista a uma revista, os novos controladores disseram que só estavam levando para a nova Varig “aqueles empregados que tratavam bem os passageiros” – parece que dois em cada três da turma posta na rua só estava de uniforme para destratar viajantes.

A Varig quebrada e mudada para Sampa encolheu quase ao tamanho que tinha quando era comandada pelo faxineiro, que assim viu cumprida sua profecia: “Os empregados vão acabar com ela”.

Repórter do JÁ é Jornalista do Ano

Renan Antunes de Oliveira foi o maior vencedor e também a grande surpresa do Prêmio Press de Jornalismo entregue na noite desta terça-feira, 22 de novembro, em cerimônia no auditório Dante Barone da Assembléia Legislativa do Estado.

Nosso repórter, que curte momentos de “isolamento” nos EUA, foi agraciado como Jornalista do Ano, superando pesos-pesados da grande imprensa. Fato que não é inédito na sua conturbada carreira de jornalista independente como gosta de ser classificado. Assim também foi em 2004 quando recebeu no Rio de Janeiro o Prêmio Esso de Reportagem.

Renan concorreu com Farid Germano Filho, da Rádio Farroupilha, Giovani Grizotti, da Rádio Gaúcha, Luiz Fernando Veríssimo, de Zero Hora e Ribeiro Neto, da Rádio Band AM.

Na sua ausência, foi representado pela mamãe, dona Edith que, bastante emocionada, rasgou elogios ao filho. “O jornalismo sempre esteve presente na minha vida”, disse, ao lembrar seu outro bebê, também jornalista, Paulo Gerson Antunes de Oliveira. “Tenho orgulho do meu filho porque ele sempre escreve a verdade e mereceu muito ganhar esse prêmio”, afirmou num tom provocativo.

Ao total foram 90 mil votos pela internet, o que incluiu voto popular e de profissionais da imprensa gaúcha. Só no voto popular foram 86 mil indicações totalizando 320 nomes diferentes nas 16 categorias do prêmio.

O Jornal JÁ ainda esteve entre os finalistas na categoria “Chargista/Gragista” com Fraga e com o mesmo Renan em “Repórter de Jornal/Revista”.

Os demais ganhadores

Repórter de Rádio- Camila Ferro (Rádio Pampa)
Repórter de TV- Eduarda Streb (RBS)
Repórter de Jornal/Revista- Flávio Pereira (O Sul) e Humberto Trezzi (Zero Hora)
Colunista de Jornal- Paulo Sant’Anna e Rosane de Oliveira (Zero Hora)
Comentarista de Televisão – Ana Amélia Lemos (RBS)
Apresentador de Televisão – Felipe Vieira (Band TV)
Apresentador de Rádio – Nando Gross (Rádio Gaúcha)
Jornalista de WEB – Diego Casagrande ( www.opiniaolivre.com.br )
Chargista/ grafista – Iotti (Zero Hora)
Repórter Fotográfico – Diego Vara (Correio do Povo)
Narrador esportivo – Marco Antônio Pereira (Rádio Gaúcha)
Plantão esportivo – Rogério Boelcke (Rádio Guaíba)
Destaque do Interior – Vinicius Schil (Rádio Soledade)
Prêmios Especiais
Troféu Ruy Carlos Ostermann de Comentarista de Rádio- João Garcia (Rádio Guaíba)
Troféu Milton Ferreti Jung de Locutor/Apresentador de Notícias – André Machado (Rádio Gaúcha)

Vítima inocenta skinheads presos

Renan Antunes de Oliveira

Uma das vítimas (cujo nome é mantido em sigilo a pedido da família) do ataque de skinheads a judeus na noite de 8 de maio num bar da Cidade Baixa, não reconheceu os quatro homens presos pela agressão.

Mais: ele disse que a polícia e algumas testemunhas preparadas por ela fabricaram depoimentos para incriminar os acusados apenas para “satisfazer as exigências de segurança da comunidade judaica”.

No incidente, um grupo de 11 skinheads atacou três jovens, E.N.S., R.F.M. e A.F.G., aparentemente escolhidos para a violência entre os fregueses do bar Pingüim porque usavam “kipá”, um chapéu de cerimônias religiosas judaicas.

Uma das vítimas recebeu quatro facadas, no baço, fígado e pulmões. Passou 30 dias internada no HPS e ainda se recupera de cirurgias reparatórias. As outras sofreram apenas ferimentos leves.
Dias depois do incidente, que teve repercussão nacional (ocorreu no dia em que se comemora a derrota do nazismo com o fim da Segunda Guerra Mundial), o Departamento de Polícia Metropolitana localizou, prendeu e indiciou quatro dos 11 skinheads por tentativa de homicídio qualificado, formação de quadrilha e crime racial – todos foram para o Presídio Central aguardar julgamento porque o crime é inafiançável.

Os acusados são Israel da Silva, 24 anos, Laureano Vieira Toscani, 20, Valmir Machado Jr, 26, e Leandro Braun, 26, apontado no inquérito como o mais violento do grupo – o sobrenome dele é, por coincidência, o mesmo da mulher de Hitler, Eva.

Punição por tabela
Na quarta-feira (3/8), às 17 horas, na sede do JÁ, um dos jovens atacados examinou fotos dos acusados, as mesmas usadas no inquérito policial para identificá-los. Ele disse que “nunca” viu três deles, Leandro, Laureano e Valmir. Do quarto, acha que pode ser um dos atacantes “porque tinha os olhos puxadinhos, parecidos com os deste cara”. Mas ressalvou: “Não tenho certeza se é o mesmo”.

Ele falou que não disse à polícia que aqueles eram os agressores. Como então ela chegou àquela conclusão? “Não chegou. Pegou os quatro porque já eram fichados”, disse a testemunha.
O delegado Paulo César Jardim, chefe das investigações, disse que “várias testemunhas identificaram os agressores”. Mas, outras testemunhas também garantem que nenhum dos quatro estava no local na hora da agressão.

Mais do informante do JÁ: “Conversei com um dos meus amigos (dos outros dois atacados) dias depois do ataque, e ele me confessou que “fez uma coisa errada”, mas que “desta vez iríamos pegar eles”, referindo-se aos skinheads. Eu entendi que era uma denúncia falsa, mas que atingira os propósitos” (de prender skinheads).

Três dos acusados apresentaram testemunhas de que estariam em outro lugar na hora dos fatos. Leandro estaria em Caxias, Valmir dando expediente numa danceteria. Laureano num churrasco com amigos. O Jornal JÁ verificou os testemunhos independentes e confirmou as versões.

Tanto a acusação como a defesa dos skinheads se dá exclusivamente através de testemunhas oculares. Sobre a confiabilidade delas é bom notar esta estatística do judiciário americano: de 160 condenações equivocadas, 75% foram obtidas com base em testemunhas visuais.

No mundo skinhead
Como a polícia concluiu que os quatro estavam no mesmo bando? Porque nos arquivos eles aparecem como acusados num mesmo inquérito de 2003. Mas em 2005 Israel, Leandro, Valmir e Laureano não poderiam estar juntos simplesmente porque eram rivais.

Na ocasião, para safar-se de acusações, Israel denunciou outros skinheads, ficando marcado pelo grupo. Tanto que no presídio, Israel está em ala separada, para evitar contato com os supostos amigos – eles só estiveram juntos em julho, quando foram apresentados à Justiça.

Um investigador que trabalha no caso afirma que não importa se os quatro acusados foram ou ainda são neonazistas: “O que queremos é intimidá-los e dar uma lição nestes quadros. Todos já estiveram envolvidos em ataques anteriores e escaparam da Justiça”.

Leia íntegra da reportagem na edição de agosto do Jornal JÁ Porto Alegre, que está nas bancas.

O prefeito do além

O guri pobre, franzino e mal alfabetizado se apresentou pro serviço obrigatório no quartel do 13º GAC, o poderoso Grupo de Artilharia de Campanha, em Cachoeira do Sul. Sua ambição era grande: manejar os canhões de 155 milímetros da guarnição, os maiores da América Latina.

“Mas bah, tchê, ouvi dizer que tu é bruxo…”, começa um oficial, disposto a dispensá-lo. O recruta Marlon Arator explica que é apenas médium, como se diz da pessoa que encarna o espírito de gente morta. Garante que isso não prejudicará o Exército e implora pra ser alistado.

A cena aconteceu há quase 10 anos. Aquele soldado ambicioso passou dois anos na tropa, lá dentro fez o supletivo, chegou a cabo-artilheiro. Sonho realizado, ele trocou a farda pelo uniforme de médico espírita, incorporando um certo doutor Suzzenn, espanhol morto em 1814 – e montou um terreiro mediúnico onde já recebeu 500 mil pessoas.

O Marlon “médico” acabou preso, condenado pela Justiça por exercício ilegal da profissão. Para livrar-se da pena buscou a imunidade na política: foi vereador com 23, deputado estadual com 26, já é tolerado pelo sistema. Aos 29, é o prefeito de Cachoeira. Prepara-se para ser senador aos 30, nas eleições do ano que vem.

Ele admite que boa parte de suas conquistas terrenas se deve aos espíritos. O Marlon médium elegeu-se deputado estadual pelo PFL fazendo votos em 303 dos 496 municípios gaúchos – muito além da cidade onde atuava, coisa que só conseguiu com a força do nome nos centros espíritas.

Ele fez por onde ajudando a si mesmo. Está rico. É um monte de coisas ao mesmo tempo. Exímio carateca, apicultor, tesoureiro do PFL regional, presidente nacional da juventude pefelista, criador de ovelhas, acadêmico de Direito, baterista esforçado, compositor de música gauchesca e romântica, cozinheiro aplicado, pai solteiro e dedicado, Don Juan assumido, escritor, mestre maçom, despachante jurídico e minerador de cromita – cada atividade dele renderia um opúsculo.

Como político ele não é um sujeito carismático. Seu traço mais marcante é a extrema afabilidade. Trata todo mundo com muita cordialidade, dá atenção ao interlocutor. Não tem ataques de fúria no gabinete, como acontece com alguns poderosos, nem quando está no terreiro, onde raramente levanta a voz. É um beijoqueiro. Aos pedidos extravagantes ou impossíveis, responde com “vamos ver”, passando a sensação de que pode resolver todos os problemas do mundo.

A última dele? Quer dinamizar a Capital Nacional do Arroz criando uma atração turística única na Terra: o Museu do Além, dedicado aos espíritos do outro mundo – e ao de Marlon Arator.
Encarnando o doutor Suzzenn
O centro espírita onde Marlon Arator atende milhares de pessoas não tem nome. Nem placas indicando sua localização – ele adota o perfil discreto para evitar espalhar ainda mais a imagem popular de curandeirismo. Mas, na cidade onde ele é prefeito, todo mundo sabe onde fica o centro.

O terreiro de curas está abrigado num decadente galpão industrial de uma fábrica de plásticos falida, na Volta da Charqueada, bairro na entrada de Cachoeira, cidade a 200 km a oeste de Porto Alegre, com 90 mil habitantes.

A atração é Marlon, um dos tops do espiritismo nacional, uma celebridade no circuito do além. Amigos e colaboradores gostam de compará-lo a Chico Xavier, o maior dos médiuns brasileiros, já morto.

Como médium ele encarna os espíritos do médico espanhol Suzzenn, e, com menos freqüência, do alemão Richard, este desencarnado em 1844. Os três atendem cerca de 5 mil pessoas por mês, de graça e com hora marcada: sábado das 8h30 às 12h, intervalo para o almoço, das 13h até o último paciente com ficha, às vezes noite adentro.

Marlon diz que sua capacidade mediúnica de curar pessoas não é um dom, mas “uma dívida” dos espíritos: “São eles que ligam do além para cá, eu nunca posso chamá-los”, explicou o prefeito, durante entrevista de duas horas e meia em seu gabinete, iniciada às 17 horas da sexta-feira 24 de junho.

A primeira vez em que os espíritos o tomaram ele ainda era criança: “Eu tinha uns três ou quatro anos”, lembra. “Eu avisei que meu tio tinha morrido antes que alguém na casa soubesse”.
O que parecia um dom virou tormento. A capacidade mediúnica dele foi sufocada pelos pais: “Eles eram muito católicos, não aceitavam aquilo, tinham medo, vergonha, impediram meu desenvolvimento”, diz, com alguma mágoa.

Aos 16 anos ele deixou a casa dos pais, agregados numa fazenda no distrito de Piquiri. Foi para Cachoeira, pro Exército, foi vendedor de vinhos e couros para se sustentar – bebeu nestas fontes de renda até abrir o terreiro.

Está tratando gente desde 1995, quando ainda estava no Exército. Contam que ele começou avisando ao comandante do 13º GAC “vá embora porque sua mulher está passando mal”. O oficial duvidou, mas quando chegou em casa encontrou a esposa enfartada.

Em 1999, quando a fama dele já começava a se espalhar pela campanha e chegava à Serra Gaúcha, o Conselho Regional de Medicina o processou por prática ilegal da profissão. Marlon foi condenado à cadeia e multa de R$ 18 mil. Preso na delegacia local por alguns dias, não chegou a ir para o presídio, salvo “por uma alma caridosa e agradecida”, por graças alcançadas, que pagou a multa por ele. Não se sabe o nome do doador.

Na cadeia, nova manifestação de seu poder. Um preso passou mal, sangrava muito. Chamaram médico, mas o homem nada conseguiu fazer para estancar o sangramento. Aí os carcereiros apelaram para Marlon, ele deu um stop na sangueira.

Naqueles dias de cárcere, cerca de 3 mil pessoas fizeram vigília por ele fora da delegacia. Ele saiu dela candidato a vereador pelo PFL: “Não sou político. Tanto que concorri pelo primeiro partido a me convidar. Hoje não preciso da Câmara de Vereadores (onde não tem bancada), acho que ela só é necessária em cidade se o prefeito rouba”.

Ele afirma que entrou na política “como uma maneira de conseguir imunidade contra as perseguições”. Vereador eleito, quase não assumiu por causa da condenação – mas os desembargadores do TRE acharam lá uma brecha na lei, ele manteve o mandato.

Imunidade definitiva ele conseguiu em 2002, quando foi eleito deputado estadual, o único do partido naquela eleição. Virou o interlocutor gaúcho de gente como o senador catarinense Jorge Bornhausen, passando a dar pitacos na política de gente grande e nos males terrenos.

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Um museu para os espíritos
O projeto de construir um museu para os espíritos é todinho da cabeça de Marlon. O prefeito procurou na internet. Não achando nada parecido, gostou da originalidade da própria idéia e foi em frente.

Ele deu o primeiro passo em março, nomeando para a função de museólogo municipal um ex-sócio, o representante comercial João Carlos Schneider Costa – os dois exploraram o apiário Megapólen, na década de 90.

João Carlos está empolgado com a obra: “O objetivo é nobre, vamos dar um novo tipo de consciência à população. Hoje as pessoas usam só a parte subrepitiliana do pensamento, vamos conseguir que elas usem o neocórtex”, diz.

O repórter não entende nada. Aí o diretor do museu explica com simplicidade que “estamos somatizando o acervo, ele terá coisas fora do físico”.

Ainda não dá para entender. Ele desiste de explicar: “Teremos um setor para UFOs”, exulta.

Costa não tem experiência prévia no ramo. Sente-se qualificado porque gosta do xamanismo – coisa de pajés guatemaltecos. Diz que “a obra vai ser uma coisa abrangente”. Que buscou viver “várias experiências” para se capacitar ao cargo. A última delas no mês passado, quando foi a um encontro meio secreto na Igreja de São Miguel “com um daimista do Acre, para tomar aquela bebida do Santo Daime”.

João Carlos acredita nos poderes mediúnicos do prefeito Marlon. Disse que notou isso “logo que o conheci, ainda no primeiro terreiro”. Na época, ele foi um assessor do homem, ajudando a organizar as filas de pacientes.

A iniciativa do prefeito pegou a massa de surpresa. Já é piada na cidade, mas empresários sérios enxergam algo bom na iniciativa. Comparável àquela da cidade de Roswell, nos Estados Unidos, um lugar perdido no deserto cujo marketing é todo baseado na suposta presença de ETs.

A sede do Museu do Além será no antigo engenho de arroz Roesch. É um prédio imponente que ocupa vários quarteirões no Centro, dado à cidade como pagamento de tributos depois que o negócio quebrou.

A outra iniciativa notável de Marlon já foi abortada: ele ensaiou colocar portões na cidade, para impedir a fuga de assaltantes. Desistiu da idéia depois que as estatísticas mostraram apenas dois assaltos a banco em 20 anos.

Um dia no pavilhão da encarnação

Marlon sobe num banquinho e fala para 500 pessoas. Veste um paletó escuro sobre a roupa branca de médico. Mãos no bolso, nenhum gesto teatral, voz sempre no mesmo tom. Não promete curas, nem pede dinheiro.

A platéia é de gente séria, atenta – e encapotada, por causa do frio de junho. Na primeira fila, senhoras do interior, de rosário na mão, e gente em cadeira de rodas. Nota-se muitas bengalas, muletas, mulheres com crianças de colo. Algumas pessoas choram, revelando dores à espera de alívio.

Aos que estão doentes Marlon ensina que “a cura depende de mudança”. Aí o papo engrena: “Quer mudar? Deixe a vida comum!”

Ele diz à  multidão que “o problema é o caminho da futilidade”. Cada um que está lá dentro é especial porque “tu não nasceste para ser mais um, mas sim para crescer” – o povão nem pisca.

Maior pecador
Um grupo de auxiliares se encarrega de manter o lugar silencioso para o papo. Marlon fala sozinho. Bate de leve nos que são “comuns”: “Estes vão seguir na trilha da evolução” – o que há de errado nisso? Aí ele aconselha o bom conselho: “Deixe a vida comum e chame para ti coisas superiores. Se tu quiseres o sucesso, te associa ao lado de coisas grandes”.

O médium admite que não pode “dar lição de moral, talvez eu seja o maior pecador” (do galpão lotado). Ele sai do campo moral e entra no físico: ensina que o organismo é uma engrenagem. Recomenda que as pessoas façam “xixi e cocô na hora certa”, exaltando a importância das funções fisiológicas. O aviso é dado várias vezes durante a palestra.

Uma pitada de filosofia própria: “Bem e mal somos nós que criamos”. Às vezes, ele divaga para o terreno das “dicotomias”. Uma delas ? “Compro comida, levo para casa, é bom para mim, mas ruim para os outros, isto é dicotomia”.

Um resumo do discurso marloniano: “Deus está acima de todos nós”, reconhece.

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Hora da encarnação
No fim do papo, Marlon se recolhe para uma saleta com aquele time de auxiliares. Tira o paletó e exibe o jaleco do doutor Suzzenn. A turma ora por ele. É seu momento de maior fragilidade – a hora da encarnação.

O homem treme, baba um pouco, assume um ar sonado e pronto: em segundos é tomado por um espírito. Depois, ele explicou como se sente naquelas horas: “Meu metabolismo diminui a freqüência, chego ao estado delta. O espírito controla meu corpo pela atividade elétrica dos átomos do monada, somada com a atividade elétrica da glândula pineal”.

O resultado é “uma preguiça tamanha e tanto sono que não vejo mais nada. Meu metabolismo se reduz das 9 às 13, porque o espírito não desincorpora para que eu vá ao banheiro” – reforçando a tese de ir ao banheiro na hora certa.

Os assessores conduzem Marlon-Suzzenn para o consultório no fundo do galpão. Ele atende numa mesa simples, com dois retratos de Jesus ao fundo, o da Virgem ao lado. Tem vaso com flores de plástico, uma bonequinha e um calendário da Gatorade compondo o cenário. Uma fila se forma e as pessoas começam a lhe pedir socorro.

Sem anestesia
O médium não faz nada de extraordinário quando está encarnado pelo espírito do médico morto. A voz de Marlon continua a mesma, seus gestos são só um pouco mais lentos – os assessores já conhecem as manhas e interpretam suas falas.

O atendimento é de um paciente por minuto. Ele toma o pulso, pergunta qual o mal, anota um horário e data qualquer num canhoto verde. Isto significa que a pessoa vai ser operada pelo espírito de Suzzen no dia e hora marcados.

Muita gente insiste em levar exames médicos, raio-x, coisas pras quais ele não dá bola. O paciente não precisa contar todo caso – supostamente porque Suzzenn já intuiu tudo o que era preciso.
Em alguns casos Marlon-Suzzen operam o paciente ali mesmo, sem anestesia, nem antissépticos. Dia 27, uma senhora gorda tinha um problema qualquer, resolvido com um talho de quatro centímetros na mão direita.

A operada foi posta numa maca no meio da multidão. O sangue ficou pingando no chão. A paciente não deu um pio. Dormiu alguns minutos, foi despertada pelos assistentes, recebeu um curativo e saiu satisfeita.

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Gente em transe
Ele já perdeu a conta das operações. Parou de fazê-las por causa das pressões do Conselho Regional de Medicina. Em momentos como o da senhora gorda o galpão assume ares de uma enfermaria improvisada do SUS. As pessoas deitam em camas, macas e até corredores, depois de tocadas por Marlon.

O salão mediúnico tem uma grande urna verde para as pessoas depositarem pedidos de curas. Dona Gemela Jonaelka e seu Alsino Speroto não puderam ir, mandaram bilhetes através de amigos – mas Suzzenn avisa que não gosta de tratar pessoas que não buscam a cura pessoalmente. O repórter entra na fila, entre dona Gemma, com um pé quebrado, e Diogo, um garoto aparentando muita saúde.

O médium toma o pulso do repórter: “Faça um check up para problemas reumáticos” – diagnóstico novo, até então fora de minha ficha médica. Marca uma cirurgia astral para segunda-feira. Na saída, um assessor surge e sussurra: “Nada de carne vermelha, nem bebidas. Depois da operação, evite sexo por três dias”.

Não ao sexo
O caso mais sério do dia é o de Mateus Rosa Barros, 13 anos, adiantado câncer linfático, precisando transplante.

O caso é grave. Mas Mateus não parece preocupado, acha que melhorou – é a sua segunda consulta com Marlon. Um assessor lhe dá a recomendação padrão: “Nada de carne vermelha, nem vinho, nem sexo”…

Na sessão da manhã do dia 27 estavam também a mamãe Luciana, 29 anos, com o menino Artur, 3 meses. Esperando duas horas na fila. Quem tá dodói ? É o guri. Caso grave? “Alergia ao frio” – nada que um bom cobertor não resolva.

O espírito desencarna perto do meio-dia, permitindo que Marlon vá almoçar. Ele reincorpora a uma da tarde. O médium jura que já tentou mudar a rotina, sem sucesso: “Não posso contrariar os espíritos”.

Menino pobre, médium rico

Os críticos do prefeito Marlon dizem que o homem enriqueceu com o centro espírita, lembrando que ele chegou pobre a Cachoeira, em 1994.

O médium tem uma fazenda de 200 hectares, com 400 ovelhas, avaliada em R$ 1,5 milhão. Construiu uma casa confortável na cidade, onde vive com os pais. E circula numa camionete turbinada que vale R$ 90 mil. Sua única jóia é um brinco de brilhante na orelha esquerda.

Ao contrário de políticos que dizem ter menos do que têm, Marlon parece ter menos do que diz. Semanas atrás ele anunciou ao local Jornal do Povo que é “dono do direito de lavra de uma riquíssima jazida de cromita”, recém descoberta em suas terras e já “avaliada em 10 milhões de dólares”.

Ele faz grandes planos: “Vou explorar a jazida com uma empresa estrangeira”, deixando escapar que foi “um geólogo americano” quem fez a tal avaliação.

A jazida dele vale no máximo R$ 20 mil, segundo técnicos do DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), ouvidos em Porto Alegre. O prefeito sequer tem o direto de lavra, só o de pesquisar. E pesquisar calcáreo.

A descoberta de uma jazida de cromita (para fazer aço inox ) por acaso, no meio do calcáreo, não seria suficiente para saber se ela pode ser explorada. Um estudo geológico levaria três anos. No estágio atual, seria como um garimpeiro encontrar um diamante na calçada e começar a esburacar a rua.

O anúncio pode ser entendido como uma tentativa de valorizar as terras e atrair investidores – antes que acabe em CPI é bom avisar que a lei impede a participação de uma autoridade em mineração.

Crise faz incorporar político
A primeira frase da entrevista do gabinete do prefeito é “não sou político”. Ele resmunga que tem dias em que politicar até lhe “dá desânimo”.

Difícil acreditar, de tanto que ele gosta do assunto. Parece que “incorpora” nele um dos fundadores do PFL, o ex-vice-presidente Aureliano Chaves: “Foi por causa dele que eu entrei para o liberalismo”.

E olhe as credenciais dele na política: vereador, deputado estadual, prefeito, vice do diretório gaúcho, presidente da juventude, tesoureiro do diretório nacional.

Marlon foi o único deputado eleito pelo PFL à Assembléia gaúcha em 2002. Ele se refestela na cadeira e conta com evidente satisfação as costuras que fez com o prefeito de Pelotas, Bernardo de Souza, e o de Porto Alegre, José Fogaça, para aumentar a bancada para três, sem votos.

Sem que ninguém lhe pergunte, oferece uma análise da crise desatada por Bob Jefferson: “Quer saber um segredinho? Dias atrás, no meio da crise, ouvi no rádio a leitura da carta de um militar da FAB que faz temer um certo movimento das Forças Armadas”.

Faz uma advertência: “Por muito menos do que está acontecendo agora, o Rio Grande fez a Revolução Farroupilha. Por muito menos caíram os presidentes do Equador e da Bolívia”.

De repente ele tem uma visão: “Se eu fosse o presidente do PFL iria levar uma mensagem a Lula. O presidente não é corrupto, mas está cercado por maus assessores. Diria pra ele que é hora de humildade”.

Política e mediunidade? “Não misturo as coisas. No meu centro espírita não tem propaganda de candidaturas” – verdade, pelo menos fora do calendário eleitoral.

Dicas de Nolram Rotara para Marlon Arator
Ele escreveu “Flamígera”, assinando como “Nolram Rotara”, seu nome às avessas. A obra contém tudo o que diz nas palestras. Na página 103: “Está errado relacionar a morte com o tombamento definitivo do corpo físico”.

Falando, Marlon parece bem concatenado. Eis uma coleção de frases soltas, tiradas de sua entrevista:

No início eu achei que a mediunidade era coisa da minha imaginação. Mas notei que meu organismo sente e decodifica sinais de voz. A voz do espírito é diferente da voz da imaginação.

O que me impulsiona é crer em Deus, por isso não cobro nada. Se fosse coisa da minha cabeça, cobrava 100 de cada um.

Os espíritos que encarnam em mim não estão nem aí se as pessoas não acreditarem neles. Quem quiser pensar que é maluquice, pode pensar.

O trabalho espiritual não sou eu que faço – ele é feito através de mim, com delicadeza, transparência e dedicação.

A política não fazia parte dos meus planos. Eu tinha aversão. Foi bom ser deputado para pararem de me perseguir, para ser respeitado, agora o médium em mim pode fazer muita coisa boa.

O PIB de Cachoeira? Não sei. Nosso orçamento é de R$ 50 milhões e está todo comprometido.

Me dou bem com o bispo da cidade. Os religiosos me encaram como um expurgo, como um trator. Se o Brasil não fosse religioso, o presidente Lula já teria caído.

Onde há religiosidade, há tolerância.

O sucesso tem a ver com a evolução e com a capacidade das pessoas. Hipócritas são os que pensam que não podemos usar a espiritualidade para nada, significa fazer um ostracismo da cultura, um assassinato do conhecimento.

O que seria do mundo se Buda fosse um grande investidor?  Ele daria certo em qualquer circunstância.

Tu seguiste o viés normal?

Não vais aproveitar com intensidade o teu conhecimento.

Não me acho um homem fiel. Não escondo de ninguém. A sinceridade precede a fidelidade.

O amor não pode ter a cultura do enclausuramento. Por isso não boto aliança no dedo. Tenho namorada, mas desejo outras onde elas estiverem. Uma vez por semana sou o melhor pai do mundo (para seu filho de cinco anos).

Chimarrão quente esfola e queima a mucosa do estômago.

Sofro de gastrite e me trato tomando Omeprazol.

Quero ser venerável (o último nível da maçonaria).

Faço frango ao molho de pêssego, costeleta de porco com champagne e espinhaço de ovelha ao molho de aspargo.

Receita para o sucesso que parece hipócrita:
1 – saber dividir inteligência, cultura e sabedoria
2 – ter conhecimento
3 – ter coragem de aplicar o conhecimento

A sorte não está num lugar estático.

ATUALIZAÇÃO EM JANEIRO DE 2009: Marlon Arator perdeu a reeleição à prefeitura e está sem mandato parlamentar. Continua em Cachoeira, atendendo em seu terreiro mediúnico.

Na balada da morte

Renan Antunes de Oliveira | Enviado especial do Jornal JÁ a Jacarta |

(NOTA DA REDAÇÃO: OS DOIS BRASILEIROS FORAM EXECUTADOS POR FUZILAMENTO EM 2015. )

Ainda não caiu a ficha do paranaense Rodrigo Muxfeldt Gularte, 32 anos, nem a do carioca Marco Archer Cardoso Moreira, 43, os dois brasileiros condenados à morte na Indonésia por tráfico de cocaína. Na quinta-feira 17, Marco perdeu o último apelo à Suprema Corte, dependendo agora de um improvável perdão presidencial para ser beneficiado com prisão perpétua. Na segunda 21 o presidente Lula pediu ao seu colega indonésio clemência em favor do condenado.

Durante quatro dias de entrevistas na cadeia de Tangerang, entre a quarta-feira 9 e o sábado 12, eles deram muitas gargalhadas relembrando suas aventuras. Os dois não estavam nem aí para a possibilidade de enfrentar o Criador, via pelotão de fuzilamento, ou passar o resto de suas vidas presos nos cafundós da Ásia. Se sentem como se tudo fosse apenas uma bad trip.

Eles confessaram ser traficantes tarimbados. E demonstraram, sim, algum arrependimento, mas só por ter embalado mal a droga que levavam em seus equipamentos esportivos, permitindo a descoberta pela polícia. Ela pegou Rodrigo com seis quilos escondidos em suas pranchas de surf, em 2004. E Marco com 15 na sua asa delta, em 2003.

Os dois homens que hoje dividem a mesma cadeia chegaram lá por trajetórias diferentes no mundo das drogas. Rodrigo foi mais usuário do que traficante, começou cheirando solvente aos 13 anos. Marco entrou no tráfico aos 17, já no topo da pirâmide, diretamente com os cartéis colombianos. Ambos fizeram várias viagens bem-sucedidas para muitos países, antes de se danarem no aeroporto da capital Jacarta, portão de entrada para se chegar na ilha de Bali, o paraíso dos pirados.

Os dois faziam parte de gangues diferentes. Na cadeia, formaram um laço instantâneo. Ficaram amigos ao ponto de dividir prato e colher. Suas afinidades: não terminaram os estudos, jamais trabalharam, sempre foram sustentados por outros, exploraram as famílias, viveram só pras baladas.

Proteção materna

As mães deles – mulheres sofridas, esperançosas e guerreiras – estão em campanha pela liberdade dos “garotos”, como elas e parte da imprensa tratam os dois barbados. Depois de gastarem os tubos com eles, estão raspando os cofres para resgatá-los. Na falta de uma boa causa além do incondicional amor de mãe, usam a bandeira do repúdio à pena de morte, de forte apelo na fatia esclarecida da humanidade.

Dona Clarisse, de Rodrigo, mobiliza o Itamaraty para proteger o seu. Dona Carolina, de Marco, obteve da Câmara de Deputados o envio de um apelo de clemência ao parlamento indonésio. A proposta, do deputado Fernando Gabeira, foi aprovada em plenário com apenas um voto contra, do deputado Jair Bolsonaro, um ex-militar linha-dura que há décadas luta pela adoção da pena de morte no Brasil.

Os diplomatas brasileiros em Jacarta trabalham nos bastidores para reverter as sentenças. Estão confiantes que vai dar certo. Notam a moleza do sistema porque só um traficante foi executado até hoje, dos 30 condenados sob as duras leis antidrogas indonésias de 2000. Era um indiano pobretão.

Pela expectativa otimista deles será possível reduzir a pena de Rodrigo para prisão perpétua, em segunda instância, negociando em dinheiro uma redução maior ainda na terceira, para 20 anos, com soltura em sete, talvez 10 – é sabido que o Judiciário indonésio adota uma regra não-escrita de trocar tempo de encarceramento por uma pena pecunária.

Eles admitem que no caso de Marco, já sentenciado em última instância, vai ser mais difícil. Será preciso om perdão presidencial apenas para reduzir de pena de morte para prisão perpétua, e depois negociar a saída. É que ele se tornou uma causa célebre porque fugiu do aeroporto quando foi descoberto com a droga, protagonizando uma caçada policial acompanhada em rede nacional de tevê.

Os custos para dar jeitinho nas sentenças e as despesas para manter os dois em celas cinco estrelas podem chegar a quase 200 mil dólares por cabeça. Dona Clarisse tem até mais para salvar Rodrigo; dona Carolina anda passando o chapéu. O desenrosco deve ser demorado: na melhor das hipóteses seus garotos voltariam pra casa entrados em anos, um quarentão, outro cinqüentão.
Agora o quadro sinistro: o fuzilamento do indiano pobretão, ocorrido em fevereiro, sinaliza uma mudança perigosa para os sonhos de liberdade dos brasileiros – a de que só dinheiro já não adianta mais.

É que a execução saiu por insistência do general durão Togar Sianipar, chefe da agência antidrogas deles. O homem está ‘‘hukuman berta bagi pembana narkotik’’. É isso mesmo: punindo severamente o narcotráfico.

Togar prometeu livrar a Indonésia das drogas até 2015, combatendo também a corrupção do sistema judicial – fechando o balcão de negócios a diplomatas e criminosos. Togar foi quem mandou pintar aquele aviso do hukuman em letras garrafais no aeroporto de Jacarta. Seu plano é simples e brutal: fuzilar os traficantes que pisarem no país.

Marco e Rodrigo, em 2005, quando ainda posavam para uma foto com o carceceiro: não havia caído a ficha

“Morte aos cristãos”
O povão muçulmano o apóia. No tribunal, durante o primeiro julgamento de Rodrigo, em fevereiro, a platéia pedia ‘‘morte aos traficantes ocidentais cristãos’’, descrição na qual se encaixam os dois brasucas. O pedido da massa deixa o governo firme para rejeitar as campanhas internacionais por direitos humanos, livre de dúvidas existenciais sobre a pena de morte.

O modelo prende e mata já deu certo na política, em 1965, quando o país se dividia entre esquerda e direita. Em quatro meses, o presidente-general Suharto implantou o capitalismo fuzilando quase um milhão de comunistas.

Esta tradição não parece assustar os brasileiros sentenciados ao fuzilamento. Nos momentos de maior delírio eles já se enxergam, Marco em Ipanema e Rodrigo nas praias de Floripa, contando aos amigos como se livraram da fria.

Rodrigo sonha que políticos influentes amigos da mãe vão pressionar Lula para que ele interceda oficialmente a seu favor, pedindo clemência ao presidente indonésio. Marco anda tão avoado que até já encomendou de Casemiro, um amigo no Rio, o último modelo de asa-delta.

Paradoxalmente, a prisão é o momento de glória de suas vidas: “Somos os únicos entre 180 milhões de brasileiros”, diz Rodrigo, deslumbrado com a notoriedade obtida com o narcotráfico – cujo pico de audiência é entre jovens ricos praticantes de esportes radicais.

Eles acreditam nas chances de transformar o limão numa limonada. Estão com tudo pronto para botar um diário na internet. Planejam contratar videomakers para acompanhar seus dias. Negociam exclusividade na cobertura jornalística, começaram a escrever livros com a experiência.

Uma benção para os planos de libertação foi o tsunami que arrasou uma zona pobre da Indonésia: familiares e diplomatas contabilizam cada avião brasileiro de ajuda humanitária como um ponto para a futura negociação. O Itamaraty espera que os indonésios considerem isso na hora de analisar o pedido de clemência feito por Lula.

Mordomia na prisão

Enquanto esperam, os dois compram privilégios para viver como marajás na cadeia – ambos estão com o cordão umbilical ligado nas contas bancárias das mães: “Aqui é como numa pousada, muito legal, só que jogaram a chave fora”, diz Rodrigo, satisfeito, mesmo sendo acostumado ao conforto de sua suíte com sauna, na casa da família, em Curitiba. Marco também não resmunga, mas sente saudades dos apês na Holanda, EUA e Bali.

Enquanto os 1300 presos muçulmanos estão amontoados em 10 por jaula, cada um dos brasileiros tem sua cela. E elas estão equipadas com TV, ventilador, geladeira, forno elétrico, som pauleira. No jardim privativo criam pássaros, podam bonsais, alimentam os peixes do laguinho, cuidam da gata Tigrinha.

O serviço é excelente: presos pobres fazem a faxina, lavam as roupas deles, são garçons nas festas, cabeleireiros, pedicures. Os dois podem receber gente sem formalidades, todos os dias. Rodrigo já foi visitado pela família, pela namorada, a empresária carioca Adriana Andrade, e pelo parceirão Dimitri “Dimi” Papageorgiou.

Dimi é outro garotão com mais de 30, carioca de pais gregos, acusado de ser líder da quadrilha contratante do malfadado transporte das pranchas recheadas de coca. Apareceu na cadeia para ver seu mula Rodrigo, deu 2 milhões de rúpias para ele se virar, dinheirama que vale só 500 pilas. Mas agora Dimi não vai mais poder ajudar: ele foi preso, em fevereiro, pela Polícia Federal, no Brasil – aquelas rúpias dadas a Rodrigo poderão lhe fazer falta.

Marco recebeu a visita de amigos de Bali e de uma senhorita conhecida apenas como ‘Dragão de Komodo’, sua namorada indonésia. A moça também é sentenciada, está na área feminina da prisão. Dona Carolina já esteve com ele duas vezes, a última no niver, em outubro, quando deu uma festinha com brigadeiros e refris – depois, tirou uma soneca na cela do filho.

Dona ‘Carola’ é funcionária pública aposentada, superdescolada. Conquistou a simpatia dos carcereiros de Marco com seu ‘show do milhão’. Foi assim: cansada do assédio deles por dinheiro para cigarros, ela trocou 1 milhão de rúpias em notas de 10 mil (quase R$2,50) e saiu pelo pátio jogando as cédulas para o alto. Guardas e presos lutaram para recolher a mixaria.

Mais showtime na cadeia: os dois recebem suas visitas íntimas no sofá da sala do comandante. De vez em quando pinta um ecstasy. E nas noites quentes rola até um chopinho gelado, cortesia de um chefão local, preso no mesmo pavilhão. Lá, a balada não pára nunca.

A comida é tudo de bom. Marco tem curso de chef na Suíça, dá show na cozinha. Na semana passada seu cardápio incluía salmão, arroz à piemontesa, leite achocolatado com castanhas para sobremesa. O fornecedor dos alimentos é Dênis, um ex-preso tornado amigão. Ele pega a lista por celular e traz tudo fresco do Hypermart.

Quando o amigão está ocupado e a geladeira vazia, Marco chama a cobrar a mãe no Rio, que liga pra mãe de Rodrigo em Curitiba, que aciona a Embaixada, que despacha um chofer pra garantir o fome zero da dupla.

Como Tangerang é uma prisão provisória, nos arredores de Jacarta, Rodrigo e Marco estão como naquela piada da hora do recreio no inferno. O secretário do diabo pode anunciar o fim dos privilégios a qualquer momento. Pior do que o fogo será a transferência deles para o Carandiruzão de uma remota ilha no Sul, onde serão misturados com 10 mil presos muçulmanos: aí será bom começarem a rezar para Alá.


Sempre otimistas, já têm planos para tentar se refazer lá embaixo. Rodrigo bola um jeito de demonstrar sua habilidade em pesca submarina, para presentear peixes ao comandante da nova cadeia e conquistar sua amizade.

Difícil saber como é que lhe ocorreu uma ideia destas. Mas é fazendo planos absurdos como esse que eles passam os dias. As baladas da cadeia, o papo encorajador das famílias, o apoio dos diplomatas e a expectativa de que suas ações possam ficar impunes dão um tom surrealista pra todas conversas deles.

Num papo, Rodrigo revela sua crescente admiração pelo companheiro, já o acha até injustiçado. “Marco teve uma vida que merece ser filmada”, exalta, contando ter oferecido um roteiro sobre o amigo à cineasta curitibana Laurinha Dalcanale. “Ele fez coisas extraordinárias, incríveis.”

O repórter pede um exemplo de tal obra. “Ué, viajou pelo mundo todo, teve um monte de mulheres, foi nos lugares mais finos, comeu nos melhores restaurantes, tudo só no glamour, nunca usou uma arma, o cara é demais.”

Menos, Rodrigo. Menos.

Ele pára alguns segundos, reflete um pouco. Sai devagar do deslumbramento com as vantagens do narcotráfico sobre um emprego comum. Muda o tom e pede ajuda: “Por favor, brother, quando você for escrever, dê uma força, passe uma imagem positiva nossa, pra ajudar na campanha”.

Então diga lá o que você vai fazer quando for solto: “Bota aí que eu quero trabalhar 10 anos pro governo dando palestras pra crianças sobre a roubada que é o tráfico”.
Ele diz e saboreia o efeito das palavras. Traga seu Marlboro, acaricia Tigrinha. Parece sério, joga a fumaça pra cima. Quando solta tudo, o corpo já está se chacoalhando. É que ele não conseguiu conter o riso.

“Vou sair dessa”

Seu último desejo: voar mais uma vez em São Conrado
Marco Archer já esperava ter a pena de morte confirmada no Supremo Tribunal indonésio, como ocorreu na quinta 17. Sua única esperança agora é um apelo do Itamaraty ao presidente indonésio por clemência. Isto lhe pouparia a vida, mas o deixaria para sempre na cadeia. A execução ainda pode demorar cinco anos.

Quem é Marco? Um carioca, com o apelido chinfrim de Curumim. Ele cresceu classe média na Ipanema dos ricos. Queria ser um deles. Em 80, aos 17 anos, foi à Colômbia disputar um campeonato de asa delta. Voltou campeão, mas mordido pela mosca azul do narcotráfico: sacou como ganhar dinheiro fácil.

“Alguém no hotel me deu uma caixa de fósforos com cocaína. Depois da primeira viagem, nunca fiz outra coisa na vida, tenho mais de mil gols”, exagera.
Ele conta que serviu de mula no Hawai, Nova York, Europa toda. “Fazia viagens rentáveis, ficava meses sem trabalhar.”

Na cadeia, Marco passa horas olhando fotos amassadas que guarda numa imunda pasta preta. São recuerdos de suas viagens, de belas mulheres, de carrões e barcos: “Não posso me queixar da vida que levei”.

Orgulha-se: “Nunca declarei imposto de renda, nem tive talão de cheque, não servi ao Exército. Só votei uma vez na vida. Foi no Collor, amigo da família”.

Com o dinheiro do tráfico, Curumim manteve apartamentos em três continentes, abertos pra patota da asa delta, do surf, da vida boa: “Nunca perguntaram de onde vinha meu dinheiro”.

Marco conta que saiu do Brasil para morar em Bali há 15 anos, “cansado de ver meu irmão (Sérgio) bater na minha mãe para obter dela dinheiro pras drogas”. O irmão morreu de overdose em 2000, mas a estas todas ele tinha tido seu infortúnio: em 1997 caiu da asa, sofreu várias fraturas.

Dali pra frente sua atividade de mula de drogas diminuiu, as contas de hospitais cresceram. Ficou quase dois anos sem andar, até conseguir se recuperar. Hoje anda com dificuldades, com as pernas cheias de pinos de metal.

Pra decolar outra vez na vida boa ele preparou aquele que seria seu último golpe, faturar 3 milhões e 500 mil dólares inundando Bali com cocaína.

Foi ao Peru, pegou 15 quilos com um fornecedor, por uma bagatela, cerca de 8 mil dólares o quilos (dinheiro que ele obteve com um chefão americano, com quem dividiria os lucros da operação).

Marco meteu a droga nos tubos de sua asa delta. Saiu de Iquitos, no Peru, para Manaus, pelos rios da Amazônia. “Eu me misturei com turistas americanos e nunca fui revistado”, gaba-se. De lá embarcou para Jacarta: “Tava tudo pronto pra ser a viagem da minha vida”.

No desembarque, mete o equipamento no raio x. A asa de Marco tinha cinco tubos, três de alumínio e dois de carbono. Este é mais rijo e impermeável aos raios: “Meu mundo caiu por causa de um guardinha desgraçado”.

Como foi: “O cara perguntou porque a foto do tubo saía preta. Eu respondi que era da natureza do carbono. Aí ele puxou um canivete, bateu no alumínio, fez tim tim, bateu no carbono, fez tom tom”.

O som revelou que o tubo estava carregado. Foi o fim de uma bem-sucedida carreira de 25 anos no narcotráfico.

Marco ainda conseguiu dar um desdobre nos guardas. Enquanto buscavam as ferramentas, ele se esgueirou para fora do aeroporto, pegou um prosaico táxi e sumiu – ajudado pelo fato de falar fluentemente a língua bahasa.

Estava com tudo pronto para escapar no iate de um amigo milionário, mas aí azar pouco é bobagem. Um passaporte frio que ele tinha foi queimado por um cúmplice que também fugia da polícia.

Depois de 15 dias pulando de ilha em ilha no arquipélago indonésio – estava tentando chegar ao Timor do Leste –, passou sua última noite em liberdade num barraco de pescador, em Lombok.
Acordou cercado por um esquadrão policial, armas apontadas. Suplicou em bahasa, tiveram misericórdia dele.

Na cadeia esperando a execução, procura levar seus dias na malandragem carioca, na maior paz com os carcereiros, sempre fazendo piadas, cozinhando-lhes pratos especiais.

Acabou pro Curumim? “Vou fazer tudo para continuar vivo e sair dessa”.

Nas drogas desde os treze

Rodrigo nasceu em Foz do Iguaçu. É neto de latifundiário produtor de soja, filho de mãe milionária, dona Clarisse. O pai é um médico gaúcho de Santana do Livramento, Rubens Borges Gularte.

Aos 13, já em Curitiba, Rodrigo começa nas drogas, cheirando solventes. “Era um garoto maravilhoso, a alegria da família, nunca levantou a voz”, isso é tudo o que a mãe lembra dele naquela época.

Com 18 é preso fumando baseado no parque Barigüi. O pai queria deixar que ele fosse processado. A mãe não concorda, suborna um delegado com mil dólares pra soltar o garoto: “Se fossem prender todos que fumam”, justificou dona Clarisse.

O garoto ganha seu primeiro carro. Bota amigos dentro e sai pela América Latina como um Che Guevara mauricinho, bebendo e se drogando. “Fiz cada loucura”, lembra.
Aos 20 Rodrigo era um rapaz de 1,84m, magrão, modos educados, cheio de namoradas. Teve um breve romance com a professora catarinense Maria do Rocio, 13 anos mais velha, fazendo Jimmy, hoje com 12, autista. Raramente via o filho: “Eu não estava preparado para a paternidade”, admite.

Rodrigo passa a viajar muito e pira total: “Em Marrocos, fumei o melhor haxixe”. No Peru: “Coca da pura”. Na Holanda: “Ecstasy de primeira”.

Aos 24, sai bêbado e drogado de uma festa. Bate o carro num táxi, tenta fugir, bate noutro, abandona tudo e corre pra casa da mãe. Ela dá uma volta na polícia, chama um médico, interna o garoto.

Na ficha de internação, o médico João Carlos anota: “Mostrou onipotência, estava depressivo”.

Nos anos seguintes a mãe fez de tudo para ele dar certo. Abre para Rodrigo uma creperia, em Curitiba. Não deu. Uma casa de massas, em Floripa. Não deu. Mandou pra fazenda. Não deu. Rodrigo vai estudar no Paraguai. Não deu. Ele se matricula na UFSC. Não deu.

Rodrigo começa no tráfico: “Fiz várias viagens à Europa só para trazer skunk”, confessa.

“Se ele fazia isso, não sei onde metia o dinheiro, porque nunca tinha um tostão”, rebate a mãe.

A prisão: “Os carinhas me deram as pranchas com cocaína dentro. Embarquei em Curitiba, onde o raio x é ruim, pra desembarcar em Jacarta”.

O narco também não deu certo
Agora ele se lamenta: “Só depois soube que os japoneses doaram um raio x potente pros indonésios, eles pegaram a droga”.

Rodrigo filosofa: “Meu erro foi a coca. O skunk é energia positiva, o ecstasy dá um barato legal, mas a cocaína é do mal”.

Um desabafo: “Se a parada tivesse dado certo eu estaria surfando em Bali, cercado de mulheres”.

Seu futuro: esperar as negociações do Itamaraty e tentar reduzir a pena em segunda instância.

Uma novidade: ele está namorando firme. Com uma menina indonésia, caixa de um supermercado, prima de um condenado. Ela entrou para visitar o parente, os dois se pegaram no olhar. Ele foi no primo, soltou um plá, consegui atrair a menina.

Ela vem uma vez por semana, Rodrigo dá uns amassos nela, na sala do comandante.

A tragédia de Felipe Klein

Renan Antunes de Oliveira

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Especial para o JÁ – Vencedor do Prêmio Esso de Jornalismo / 2004 – Reportagem

Na noite do sábado 17 de abril, um corpo de aparência incomum foi levado pela polícia ao necrotério da Avenida Ipiranga. Tinha duas protuberâncias esquisitas na testa. O médico-legista abriu o couro cabeludo, abaixou a pele até o nariz e se deparou com algo muito raro: dois chifres implantados na carne, feitos de teflon. Cada um era quase do tamanho de uma barra de chocolate Prestígio.

O cadáver estava todinho tatuado. Trazia argolas de metal nos genitais, mamilos, lábios, nariz e nas orelhas – e estas tinham orifícios da largura de um dedo.

felipe_klein2De entre os chifres saíam três pinos metálicos pontiagudos. A língua fora alterada: cortada ao meio e já cicatrizada, parecia a de um lagarto.
É claro que Felipe Augusto Klein, morto aos 20 anos, nem sempre teve uma aparência assim.

Nasceu uma criança saudável. Era o caçula dos cinco filhos do casal Lili e Odacir – o pai é um político influente, quatro vezes deputado federal, ministro de FHC e secretário estadual da Agricultura do governo Germano Rigotto.

Fotos de Felipe no álbum da família mostram a criança típica da classe privilegiada: um menino de cachinhos loiros, olhos azuis, bochechudo, limpo, bem vestido – e, às vezes, sorridente.
Foi na adolescência que ele começou a se mutilar com tatuagens, cirurgias e implantes. Pouco antes de morrer preparava-se para botar nas costas uma pele de lagarto e rasgar sulcos no rosto, para pintar neles uma máscara dos maoris, nativos da Nova Zelândia.

Em sua curta vida Felipe radicalizou em ‘body modification’, a expressão inglesa dos adeptos de mudanças corporais. Nos últimos três anos, todo mês gravou alguma figura nova no corpo, ou se aplicou algum piercing. Para combater as dores provocadas por agulhas e bisturis ele se automedicava.

As dores físicas eram fichinha se comparadas ao espírito atormentado de Felipe. A mãe, as duas últimas namoradas e os dois amigos mais próximos o descreveram como um jovem patologicamente sensível a tudo que o rodeava – e em especial, ao alcoolismo do pai.

‘Eu não sou desse mundo’ era sua frase predileta. Felipe disse que se sentia assim para dona Lili, para Helena, seu grande amor, para Karen, sua última namorada, para Cristiano e Xande, dois tatuadores tão amigos que cada um segurou uma alça do caixão, e para Virgínia, uma amiga que foi ao enterro chorar com a família.

Não dá para saber quando foi que ele começou a se sentir desse jeito. A mãe contou que ‘cedo’ a família percebeu nele ‘alguma coisa diferente’. Por isso, ‘desde pequeno recebeu tratamento psicológico’. Nos dois últimos anos esteve ‘sob o controle de um psiquiatra’.

Os médicos diagnosticaram um mal que surge na adolescência. O ‘transtorno afetivo bipolar’, ou ‘psicose maníaco-depressiva’. Felipe vivia na gangorra entre depressão e euforia, quase sempre no lado da baixa. Era tratado com um coquetel de antidepressivos.

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Na literatura médica, a origem do mal é incerta. Pode ser genética, ou despertada por um trauma. O certo é que ‘ele nunca foi uma criança feliz’, afirmou a mãe. Ela não sabe explicar como, entre seus cinco filhos, apenas Felipe teve a sina. ‘O mundo dele era seu quarto e seus bichos, não gostava de jogar futebol, nem de sair’.

Felipe passou a infância em Brasília, onde seu divertimento era colecionar gnomos, seres imaginários de uma lenda nórdica. Na adolescência, já em Porto Alegre, onde terminou o secundário no Colégio Sevigné, aumentaram seus sintomas depressivos.

Por alguns meses fez parte da tribo urbana dos góticos, jovens que se vestem de negro, assumem um ar deprê e desprezam o resto da sociedade – mas se afastou deles porque o pessoal o considerava excessivamente… gótico.

Quando saiu dessa tribo de humanos, ele se voltou mais ainda para seus bichos. Passava dias trancado no confortável quarto que ocupava no amplo apê da família, no edifício El Greco, onde morava com a mãe, uma tia e mais de 20 animais.

Minizôo
No seu minizôo tinha gatos com pedigree, cobras importadas, filhotes de jacaré, tartarugas e lagartos. ‘Ele gostava mais de animais do que de gente’, contou Helena, citando outra frase ouvida dele. Tal paixão o levou a estudar Veterinária na Ulbra, mas logo se desinteressou.

Paixão permanente só por tattoos. A primeira ele fez aos 11, levado pela mãe. Era um sol, na coxa direita. Na adolescência evoluiu de tatuagens inocentes para figuras demoníacas e implantes radicais – já então contrariando os pais.

Pesquisando na internet, Felipe virou autoridade em body modification. Quando começou a fazer experiências no próprio corpo ele apareceu na RBS TV, demonstrando as técnicas. Vaidoso, cortejou cineastas para tentar exibir seu visual em filmes. Já na fase da modification total suas imagens acabaram exibidas ao grande público, mas no Ratinho, numa comparação grotesca com um porco.

Seu visual o transformou numa celebridade na web. No pequeno círculo dos tatuadores ele chegou a jurado de competições internacionais.

Quem o conhecia sabia que era determinado e não temia a dor. Ele mesmo se aplicava alguns piercings, aquelas argolas metálicas que usava no corpo, cuja fixação é um pequeno suplício.


Quando botava na cabeça que faria alguma modification ia em frente. Foi dele próprio a idéia dos chifres. ‘Eu tentei dissuadi-lo dizendo que um dia ele se arrependeria e que então seria doloroso retirá-los, mas ele não ouvia ninguém’, lembrou dona Lili.

Com a decisão tomada, ele estudou os passos da operação em livros de Medicina. Depois, orientou o tatuador que fez a cirurgia.

Nos últimos meses Felipe alimentou a bizarra fantasia de se transformar num animal como aqueles que amava – a idéia era virar um lagarto, aplicando sob a pele das costas bolinhas de silicone que lhe dariam um aspecto enrugado. A língua já estava pronta, dividida numa operação feita por um dentista de Taquara.

No final de março Felipe anunciou a meta de implantar a máscara maori e virar lagarto, coisas que o deixariam irreconhecível. Ninguém duvidou da possibilidade. Mas era tarde. Ninguém pôde mais fazer coisa alguma por ele, exceto assistir sua dolorosa renúncia à humanidade.

Polícia não consegue depoimento do pai
A primeira pessoa a ver Felipe morto foi Tadeu, porteiro do edifício Palácio, onde morava Odacir Klein. Ele contou que estava no saguão quando ouviu ‘um grito e um baque’. Caminhou até o muro que dá para o edifício Santa Maria e viu o corpo do rapaz estatelado no depósito de lixo do prédio vizinho.

Eram 18h56min do sábado 17 de abril. Tadeu chamou a polícia.

Quase três meses depois, a polícia ainda não tinha concluído o inquérito para apurar se Felipe se atirou, ou caiu, ou foi jogado do apto 903, o quarto e sala do pai no nono andar do Palácio, no 888 da Duque de Caxias.

Só pai e filho estavam no apartamento na hora da morte – e o pai não deu depoimento. Alguns jornais divulgaram que alguém vira Felipe no parapeito momentos antes da queda. Tal testemunha confirmaria suicídio, mas ela nunca existiu.

Quem esteve muito próximo da cena, mas também nada viu, foi Lucas, um estudante que mora no oitavo andar do prédio vizinho, quase janela com janela com o apê onde estava Felipe. Ele apenas ouviu o mesmo grito e baque escutados pelo porteiro.

Por determinação superior, a investigação da morte de Felipe não foi para a delegacia do bairro, como sempre acontece com cidadãos comuns, mas sim para a especializada em homicídios.

O delegado Márcio Zachello, encarregado do inquérito, disse que ‘a investigação contempla todas as possibilidades’, mas trabalha mais com a hipótese de suicídio. Ele promete concluir a apuração ‘em breve’. Três são as principais evidências de suicídio. A primeira é que o corpo de Felipe foi encontrado a 11 metros de distância do prédio do Palácio, sinalizando que ele teria tomado impulso.

A segunda foi a constatação de que o pai estava quase inconsciente na hora da tragédia, bêbado demais para qualquer ação violenta. Examinado pelo Departamento Médico-Legal, ele tinha 26 decigramas de álcool por litro de sangue, numa escala onde seis é o limite legal da embriaguês.

A terceira é o depoimento da namorada, a estudante Karen, 20 anos. Ela disse às autoridades que os dois tinham um pacto de suicídio. Karen desistiu da idéia quando eles discordaram sobre formas indolores de morrer – Felipe gostava de se flagelar.

Ainda faltam duas peças para a conclusão do inquérito. O laudo da perícia feita no local pelo Instituto de Criminalística e o depoimento do pai. Ele já disse a familiares e amigos que não se lembra de nada do ocorrido naquela noite.

Filho cuidava de Odacir
Era Felipe quem cuidava do pai quando este bebia demais. ‘Meu filho se preocupava com o que pudesse acontecer com Odacir’, contou dona Lili. ‘Ele sempre tentava protegê-lo’.

O drama do alcoolismo foi vivido em segredo pela família durante anos, até ser exposto em rede nacional de TV, em 1996. Odacir, então ministro dos Transportes, voltava de uma festa com o filho mais velho, Fabrício, quando este atropelou e matou um operário, em Brasília. Os dois fugiram sem prestar socorro à vítima, mas alguém anotou a placa do carro e eles foram descobertos. O ministro estava embriagado. Com a repercussão do caso ele renunciou ao cargo.

No últimos anos Odacir fez vários tratamentos, alternando períodos ruins com outros de sobriedade. No ano passado, se separou da mulher e foi viver na mesma rua, a um quarteirão. Quando estava em dia ruim, assessores levavam documentos oficiais para que ele os assinasse em casa.

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Última hora
Passava das 5 da tarde daquele sábado quando Felipe saiu do apê da mãe, atravessou a Praça da Matriz e caminhou até o do pai. Àquela hora a família sabia que Odacir estava alcoolizado – e o filho cumpriria pela última vez a tarefa de cuidar dele.

‘Quando meu filho saiu eu fiquei rezando o terço libertário. Pedi a Jesus para proteger e libertar os dois’, disse dona Lili – ela não derramou uma lágrima sequer durante 40 minutos de entrevista, numa manhã de junho.

Felipe chegou no edifício do pai e o esperou no saguão. Odacir apareceu pouco antes da seis, cambaleando. Caiu no portão. O zelador Gérson e o porteiro Tadeu tiveram que carregá-lo.
Os dois levaram Odacir para o elevador. Na curta viagem, Gérson notou que ele se contorceu de dor, provocada por um forte beliscão que Felipe lhe aplicara nas costas.

‘Eu disse para ele parar de judiar do doutor Odacir’, contou Gérson. Felipe rebateu: ‘Ele só nos faz passar vergonha’. A frase do rapaz com o rosto desfigurado soou estranha para o zelador: ‘Vinda de quem vinha, parecia piada, mas notei que ele estava muito nervoso e fiquei quieto’.

No apê, Felipe ordenou que os dois atirassem o pai no chão, mas Gérson não aceitou: ‘Mandei ele abrir a bicama da sala e o deixamos ali’.

felipe_klein8.jpgO que aconteceu depois não teve testemunhas. Vizinhos ouviram pai e filho discutindo, gritos abafados por portas fechadas. Às 18h56, a queda.

A polícia chegou logo depois. Odacir aparece sem camisa nas fotos do inquérito, descabelado. Num relatório do SAMU os paramédicos atestaram que ele estava ‘com hálito etílico, fala arrastada e movimentos desorientados’, mas sem ferimentos, exceto pequenos arranhões.

Uma parente passou pela rua, viu o rebuliço, ouviu o zum zum zum e correu para a casa de dona Lili – ainda sem saber quem tinha morrido. ‘Eu pensei que tinha sido o Odacir’, disse depois dona Lili. ‘Quando entrei na sala e o vi de pé, entendi que era Felipe’.

Ela ainda teve coragem para ir à janela e olhar para baixo. O filho estava de bruços, com as pernas quebradas, os pés torcidos para fora e os braços abertos em cruz.

Serenidade
felipe_klein4.jpgDona Lili disse que já temia que o filho se matasse e mostrou dois sinais: ‘Uma semana antes ele me deu uns óculos que eu gostava e distribuiu os bichos’. Tutankamon, o gato persa preferido, e Corn Snake, uma cobra americana, foram para o amigo Xande, tatuador em Camaquã.

A mãe disse que agora se sente serena porque ‘ele sempre teve tudo o que queria, toda a ajuda que precisava. Não adiantou. Acho que ele estava muito avançado para nós, noutra dimensão’.
Ela buscou apoio num grupo de pessoas que também perderam parentes: ‘Com eles a gente pode falar, explicar e entender tudo’.

Dona Lili e o resto da família decidiram armar uma barreira de silêncio. Todos temem que o incidente possa prejudicar a candidatura do irmão Fabrício à Câmara de Vereadores.
Recuperado do choque, Odacir retomou o trabalho, até viajou para a China na comitiva do governador. A tragédia uniu outra vez Lili e Odacir – ele voltou para casa, nunca mais pisou no apê onde Felipe morreu.

Rebeldia no enterro
Felipe fez parte de um grupo gótico freqüentador do estúdio Tattoo Company, da rua Duque. A musa do pessoal era a pintora Sílvia Motosi, uma Frida Kahlo dos pampas, cujos trabalhos estão expostos este mês na Usina do Gasômetro – amiga de Felipe, tatuada no mesmo estúdio e pelo mesmo tatuador, ela se matou em 2002, do mesmo jeito: saltando da janela do apê da família.

Quando menino Felipe era como um mascote da turma, composta por gente bem mais velha. Na adolescência era cliente compulsivo. Finalmente, quando já estava todo tatuado, virou garoto-propaganda da casa. O pessoal de lá elogiava muito seu visual – ele se sentia estimulado e ia cada vez mais fundo.

felipe_klein9.jpgUm tatuador do estúdio era seu confidente. Quando não estava se tatuando, Felipe aparecia com amigos para quem oferecia os serviços do estúdio. Por algum tempo a mesma turma se reuniu no atelier da arquiteta Roberta, uma notável na tribo, para discussões sobre body modification, universo gótico e a arte da tatuagem, considerada por eles ‘tão efêmera quanto a vida’.

Ainda adolescente ele serviu de modelo num calendário gótico. Na última página Felipe exibe o corpo com a palavra ‘alone’ (sozinho), enquanto abraça a arquiteta – ela hoje tem 32 anos, vive na Áustria.

Uma série de fotos feitas pela produtora de moda Marion Velasco, com a participação de modelo Priscila Burman, é emblemática do visual chocante de Felipe mesmo antes do implante de chifres.
Seu corpo estava coberto por tatuagens aparentemente sem sentido. A mais dramática era uma face demoníaca no peito. Exibia cemitérios, dragões, flores, máscaras, frases completas – uma delas, em alemão, dizia ‘solidão para sempre’.

Para quem se sentia sozinho em vida, Felipe teve um enterro superconcorrido. Com a presença do governador Germano Rigotto, do senador Pedro Simon e até de adversários políticos do pai, como o ex-governador Alceu Collares, a cerimônia acabou atraindo centenas de pessoas e muitos jornalistas – foi tudo, menos discreta.

Os amigos do lado gótico dele não gostaram de ver tantos políticos no velório. Virgínia contou que um grupo de tatuadores, ela junto, ‘se posicionou entre o caixão e os políticos durante alguns minutos, tenho certeza que Felipe gostaria do que fizemos para protegê-lo’.

As diferenças entre família e tatuadores apareceram também no convite para enterro, com dois textos. Um falando que o menino foi acolhido por Jesus e Maria. O outro dizendo que ‘no mundo de Felipe não pode haver maldade’. Houve um pequeno momento de constrangimento entre as duas turmas, episódio relatado por Virginia. A irmã dele, Fernanda, estava fazendo um agradecimento público aos tatuadores, dizendo ‘vocês eram sua verdadeira família’, quando foi brecada pela mãe: ‘Não filha, ele nos amava, nós é que éramos sua família’ – dona Lili falou com a autoridade de quem mais o conhecia.

Felipe levou consigo algumas de suas bizarrices. No dedo anular direito, um anel em forma de esqueleto. No pescoço, uma corrente com seu inseparável bisturi. Virgínia meteu um broche no caixão, em sinal de amizade eterna. Karen, a última namorada, botou uma vaquinha nas mãos dele, certa de que seu amor só estaria feliz na companhia de algum animal.

Felipe foi enterrado no cemitério São Miguel e Almas. Virgínia reclamou da aparência prosaica do túmulo, queria ‘alguma coisa medieval’, que ela julgava seria mais ao gosto gótico do morto.

A tumba acabou adornada por um singelo bibelô de gesso, com a figura de um anjo montado num escorpião. A mãe mandou gravar uma frase na lápide, citando o martírio de Jesus no Calvário: ‘Nos precedestes na luz’.

Amor no Rio de Janeiro foi raro momento de paz
Felipe conheceu o amor. Foi em outubro de 2001, numa convenção de tatuadores, em São Paulo. Aos 18 anos, branquelo e magro, 1m80 e ombros largos, ele atraiu Helena, sete anos mais velha, branquela e cheinha, 1m66. Ela só se aproximou dele dias depois, no protocolo jovem: via email.

Já em Porto Alegre, ele respondeu dizendo que também a tinha notado. Pediu uma imagem para conferir. E gostou da mulher que não fazia o tipo deprê. Carioca criada no Leblon, filha de uma professora de Literatura Francesa e formada em Publicidade, ela trabalhava numa produtora de filmes.

Superocupada, só teve tempo de vir a Porto Alegre na virada de 2002. Na noite de Ano Novo os dois ficaram. Ela jura que ‘foi um sonho’.

Helena se disse atraída ‘porque ele era muito bonito antes das modificações’, além de ser ‘mais sério do que muita gente mais velha’. Ela o achou então ‘longe de ser deprê’ e que seu figurino ‘era menos extremo’. No carnaval Felipe foi pro Rio.

Por alguns dias Helena ia trabalhar com Felipe a tiracolo. Ele ficava rolando nas locações, esperando pelo tempo livre dela. Os dois tomavam muito sorvete na lanchonete Chaika, em Ipanema. Ela engordou alguns quilinhos, ele não, ela acha que é porque ele ‘era magro de ruim’.

Helena estava apaixonada. Elogiou Felipe como ‘tudo, menos um amador’. Ela topou mudar-se para Porto Alegre. Em março de 2002, veio morar com ele, a mãe, a tia e a bicharada dele. ‘Foi um tempo legal. A gente via desenhos animados, assistia filmes sobre Medicina no Discovery. Às vezes, ele inventava coisas na cozinha, era bom em massas’, recorda a moça.

O relacionamento foi crescendo e as diferenças aparecendo. Helena: ‘Ele dizia que queria ser cada vez menos humano. Sentia ódio da raça humana. Detestava pessoas gananciosas e as que buscam notoriedade’. A ex-namorada lembra que ‘uma coisa muito dele era sofrer quando via gente fazendo coisas ruins, uns passando por cima de outros para aparecer’. Ela dizia ‘esquece isso, vamos nos divertir’, mas parece que ele ‘não era disso, levava as coisas até o fim’.

Mais Helena: ‘Eu acho que é por isso que ele se matou. Ele queria ser o menos humano, mas ao mesmo tempo encarava todos os problemas. Se você encara, como é que vai sobreviver ? O suicida é aquele que não vê uma saída. E Felipe era assim’.

Ela disse que ele demonstrava ‘grande preocupação com o pai. Quando ele sofria suas crises de alcoolismo, Felipe era o mais prestativo. Tomava a iniciativa de ajudá-lo, mas na volta se via que ele sofria. Ficava quieto num canto, muito triste’.

Num momento de depressão Felipe disse a Helena que gostaria de ser internado. ‘O psiquiatra não concordou e receitou Lexotan’, conta a ex-namorada. Depois de um ano trancada no quarto com Felipe, ela foi embora: ‘Nenhuma história de amor dura para sempre’ e ‘eu precisava trabalhar’ foram suas razões.

Nos primeiros meses separados ele foi muito ciumento. ‘Eu passei a ficar em casa, no Rio, para não desagradá-lo. Mas depois ele entendeu e me disse para desencanar, não queria nada ruim assim no nosso relacionamento’.

Felipe também seguiu adiante. No início, queixou-se para Cristiano da separação. Depois arrumou outra namorada, mas reclamava que ela ‘pegava no pé por picuinhas’. Não queria ficar sozinho e seu lema passou a ser ‘antes mal acompanhado do que só’. Nunca escondeu sua paixão e a falta que Helena lhe fazia.

Depois da morte, Helena foi chamada pela família – ela não o vira durante a fase final de modificações corporais. Um carro oficial foi esperá-la no aeroporto e o enterro atrasado para sua chegada.

Virgínia disse que a viu no caixão, serena, repetindo baixinho para o morto, com ternura: ‘Me desculpe. Se eu não tivesse ido embora você ainda estaria vivo’.
Agora é tarde, Felipe Augusto foi na frente. Nos precedeu na luz.

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Prêmio Esso entre vaias e aplausos | Post/entrevista no Observatório da Imprensa sobre a entrega do Prêmio Esso de Jornalismo à Renan Oliveira e ao Já