Por Renan Antunes de Oliveira
Quase toda vez que entro apressado no Jornal JÁ tomo cuidado para não pisar em meu amigo Giovani de Souza Pereira, um self made mendigo de 22 anos, podre de drogado. Gio é morador de rua. Há quase 10 fixou residência na nossa, a Augusto Pestana.
Nos dias de bom tempo ele puxa seus roncos estirado na frente do portão da redação. Por alguma razão, prefere o lado ímpar da Augusto. Já deve ter dormido em cada centímetro de chão desde a esquina da avenida Venâncio Aires até o JJ, no número 133 da Augusto.
A gente nota que ele dorme melhor quando o sol está alto. Sabemos que no nosso pedaço ele também se sente mais seguro. Os vizinhos não se atreveriam a chutá-lo, coisa que acontece quando vai dormir sob alguma marquise e é despertado por seguranças de lojas.
Aconhegadinho em algum farrapo Gio ronrona enquanto se recupera das noitadas de crack e das baladas de maloqueiros – adiante eu conto como é intensa a vida social dos sem teto.
Ele é a pessoa mais conhecida do quarteirão. Não sei quem são meus vizinhos, eles não sabem quem sou eu, mas todos conhecemos Giovani – de uma certa forma, ele nos une.
Gio é um amigo que posso chamar de meu desde 2003. Isto porque quando eu entrei no JJ ele já era um veterano da casa – quero dizer, do lado de fora da casa.
Pouco antes da minha estréia nas páginas ele fazia por aqui um bico de entregador. Pena, tivemos que demiti-lo porque nossa contratação informal virou um problema trabalhista: seriamos multados por explorar trabalho infantil.
A idéia de dar trabalho pra ajudar Gio foi do Mariano, filho do patrão. Ele teve pena, queria tirar o menino da rua e das drogas. Mariano agora anda na Alemanha. Casou, tem uma filha pequena, tá lá cuidando dela – mas nosso Gio, adulto, continua na calçada.
Todos nós que ficamos temos boas intenções com ele. Todos nos compadecemos. Todos tentamos ajudar, de uma forma ou outra.
Anos atrás, uma senhora lá do fim da rua notou que ele andava meio abatido – era uma gonorréia, que ela se prontificou a tratar com antibióticos.
Socos e “roubo”
Um senhor notou um inchaço na boca e o levou ao dentista. Alguma coisa foi feita e hoje nada está doendo – o problema mais visível é a sujeira amarela e a falta do canino esquerdo. Tá partido ao meio. Foi quebrado a socos por um motorista de táxi do ponto do HPS. Normalmente o pessoal ali gosta dele, mas naquele dia alguns estavam furiosos porque acharam – erradamente – que ele tinha roubado o rádio de um carro.
No JJ tivemos vários debates de como ajudá-lo. Cada nova estagiária se comove ao vê-lo na calçada. De tanto vê-lo, elas se acostumam. Depois, acabam pulando por cima dele pra poder entrar – hay que perder a ternura e endurecer, senão ninguém entra na redação.
Todo novo repórter passa pela fase de pensar em entrevistá-lo, depois desiste – eles querem alguma coisa mais longe, mais aventurosa, menos doméstica.
Com o passar dos anos eu andei viajando. Passei um ano nos States. Morei meses no Rio, fui pra Amazônia, pra Curitiba, pra Sampa. Cada vez que voltava ao JJ tinha notícias de Gio. Ele estava por ali, todo dia, sempre dormindo na calçada.
Concluímos que ajudar Giovani seria tarefa pros órgãos assistenciais do governo. Telefonamos até pra caixa prego, sem sucesso. Procuramos burocratas de três partidos diferentes, nos níveis municipal, estadual, federal – por telefone é mais difícil conseguir alguma coisa do governo do que pedir qualquer coisa nos 0800 das multinacionais de telefonia celular.
Sugerimos as igrejas católica e evangélica. E fomos até na sinagoga da rua Henrique Dias. Neca, Gio firme na miséria, drogado e sujo, dormindo na calçada.
Giovani parece ter sido um predestinado pra viver nas sarjetas, com vocação revelada cedo. Do pai ele nada lembra, nem o nome, só sabe que morreu. Era bugre. O filho herdou as feições, cor e tamanho. Até fazer oito vivia com a mãe numa casinha na Lomba do Pinheiro. Foi tirado da escola por ela “porque ele só ia lá para comer a merenda”.
Mãe e filho passavam o dia esmolando no Centro. Ele abria e fechava portas de táxis na frente do Guaspari – mas as gorjetas iam todas pra mamãe. “Ela não me dava dinheiro pra jogar fliperama”, conta ele, ainda parecendo revoltado. Fugiu dela e esmolou pra si mesmo.
começo aos 11
Foi pouco antes de fazer nove que ele começou sua carreira de self made mendigo. A primeira noite ao relento foi na Praça XV. Era frio, ele estava só de calça e camisa.
Nas drogas ele começou aos 11, cheirando solvente, o chamado loló. Foi uma fase difícil, porque sua turma de cheiradores de loló era perigosa – uns roubam dos outros para comprar a droga.
Um dia apareceu alguém do Conselho Tutelar e ele foi levado para o abrigo Miguel Dario, na Serraria. Fugiu de lá semanas depois. Uma vez a Brigada o pegou nas ruas e o mandou para outro abrigo, na Miguel Tostes. Fugiu em oito dias. Desde 1999 adotou e foi adotado pela vizinhança da Augusto Pestana. Às vezes, rola pela Redenção.
Depois da Era do Loló veio o Tempo da Maconha. Fumava todo dia. Pra comprar, fazia bico de flanelinha. Uma vez ele e uns amigos roubaram um depósito da UFRGS. Ele pegou uma TV, mas não conseguiu vendê-la porque foi preso antes.
Não puxou cana. Ganhou “liberdade assistida”, um privilégio para menores concedido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A assistente social do seu caso era dona Érica, ou “tia Érica’, como ele diz.
A prisão lhe rendeu uma ficha na polícia. É seu único documento. Cada vez que é pego num arrastão da Brigada diz o nome. Os brigadianos que por acaso ainda não o conheçam consultam seus computadores, encontrando sua ficha de ladrão em liberdade assistida.
O pessoal da lancheria do Marino não deixa mais ele assistir lá dentro os jogos do Inter, por causa do cheiro de suas roupas e porque supeitam que foi ele que arrombou as grades e roubou cigarros, tempos atrás.
Ele vive num prende e solta. Uma vez reclamou da brutalidade policial, mas aí levou uma coronhada forte no olho esquerdo que quase o perdeu. Estava tão sujo que nem o HPS quis tratá-lo. Foi consertado no postão da Vila Cruzeiro.
O máximo de grana que conseguiu juntar na vida foram 200 reais, na vez em que cuidou do estacionamento de uma churrascaria. Desde os 16, tudo o que ganha ele gasta com crack, a droga da hora, do mês, do ano, da vida dele – tem dias em que está um farrapo que mal pode andar.
Nos últimos tempos os moradores da rua notam que ele anda cada vez mais drogado, mais esfarrapado, mais imundo – tem gente apostando que qualquer dia morre de overdose.
Mas nem tudo está perdido. Saibam todos que ele tem planos de parar com as drogas.
Na terça 31 de março eu o chamei pra esta entrevista. Ele mandou dizer pelo lavador de carros que só viria se ganhasse um troco. Queria 10. Pro crack. Apareceu às 3 da tarde. Foi só entrar na sala pra gente sentir aquela murrinha.
Ele estava falante. Contou que passou a noite transando com uma moça conhecida como Mãe, moradora de rua como ele. O romance foi ali perto do Hospital de Clínicas e ele garante que usou camisinha: “Uma tia me ensinou a usar, tenho que me cuidar”.
Alguém duvidou deste cuidado, lembrando que corre a lenda de que ele é pai solteiro de uma menininha – ninguém nunca viu nem sabe quem é a mãe nem onde anda tal filha.
Ele insistiu que sim, usa camisinha. Afirmou que até os gays que o procuram para programas no Parque da Redenção exigem isso. Não, ele não se considera um michê, não como aqueles da Avenida José Bonifácio. Se diz autônomo. E que cobra 20 reais por sessão, depois das 10 da noite, nos matinhos do parque – a grana é pra comprar crack.
Ele tem um sonho na vida: ser eletricista. Fez um serviços para um tal Paulinho da Farmácia. Segurava a escada. O cara também deixou ele apertar alguns parafusos em tomadas – foi o suficiente para ele tomar gosto pela elétrica.
“Não votaria em ninguém”
Uma tia – tias são assistentes sociais e/ou alguma mulher que o ajude – se prontificou a levá-lo pruma clínica de desintoxicação qualquer dia destes.
Ele disse que pode ser, porque está cansado da vida que leva. Anda pensando em procurar tratamento médico. Está convencido que pode sair da droga quando quiser. E que durante o tratamento vai aprender a ser …eletricista: “Na clínica ensinam alguma coisa pra gente”.
Gio ainda acredita em si mesmo: “Não quero ser conhecido como o Giovani velho, drogado, rabugento, fedorento”.
Se votasse ? “Não votaria em ninguém”. Tem uma pequena divergência com dona Yeda, a quem cita nominalmente. Ele acha que ela botou policiamento demais contra os pobres: “A gente fica um montão de tempo preso no 9º (Batalhão da PM) levando porrada até um tenente sentir bondade e mandar a gente embora”. Magnânimo, ele pede moleza “não para mim, mas para o bem da cidade”.
Gio aceita tirar fotos no meio da rua. Não, ele não espera nada do pessoal do JJ. Nem do governo. Repete que qualquer dia vai pegar nojo da vida de drogado. E então, mudar.
Pede cinco reais, pro ajudar na dose de crack.
Fim da entrevista. São quatro da tarde. E lá vai Giovani às ruas, sujo e esfarrapado, só com cinco no bolso, mas cheio de confiança, repetindo a única lição que aprendeu nas calçadas: “Eu mesmo tenho que fazer por mim”.
Isso é jornalismo!
parabens pela materia,isso e jornalismo.
Haha, esse Giovani.. conheço desde que ele chegou na rua. E me pede grana sempre , mas eu nunca dou (não vão querer que eu dê, também, né..). Legal a matéria. Gostei de saber da vida do guri.
Infelismente, é apenas + 1 fato registrado!
Imagine quantos milhões de giovani está perdido nesse mundo.
Só por DEUS!
PARABÉNS PELA REPORTAGEM!
PARABÉNS POR ESTA REPORTAGEM! E POR ESTES QUE OLHARAM PELO GIAN QUE DEUS ABENÇOE. SOU DE PELOTAS MAS HJ ESTOU AQUI EM STA CATARINA FAZ 5 MESES TENHO UM FILHO DEPENDENTE QUIMICO FUGIU PARA PELOTAS .GOSTARIA DE SABER UMA CLINICA QUE FOSSE PARA MAOIR DE IDADE .SEI QUE TEM UMAS QUE QUANDO O DEPENDENTE TEM MESES DE CARTEIRA O INSS PASSA PARA A CLINICA .PQ AQUI NAUM ESTOU CONSEQUINDO ACHAR NADA .OBRIGADA SE ME RETORNARES
Muito boa prosa!
parabens!!!
mas enfelismente,nosso pais esta deste geito.
Parabéns! Mto boa a matéria
gostei da matéria. um relato detalhado das pessoas que sofrem com a invisibilidade social neste pais.
A iniiciativa de voces é louvável mas deveriam denunciar a brigada militar ao ministeerio publico pois eles não podem levar as pessoas para o batalhão, para isto tem a polic ia civil com policiais formados em direito, enquanto que a brigada parece continuar exclusivamente “força policial” tentando resolver desta maneira agressiva os problemas dos comerciantes da rua.
Parabéns pela matéria. Já faz muito tempo que não leio algo que me faz pensar que,, quando vejo mendigo na rua, vou para o outro lado da calçada. Lembrei também de minha mãe que quando viva e morando na Paula Gomes, tinha seus três “fregueses” de café da manhã. Não batiam na porta que fica na calçada, porque sabiam que ela traria seus cafés com pão e manteiga sem que pedissem.