Por Bruno Cobalchini Mattos
Gilberto Mendes, 50, é um senhor bem alinhado. Faz a barba toda semana, e sua camisa nunca está amassada ou para fora das calças. Para se proteger do frio, veste um casaco de couro que se estende até as canelas. A única coisa que parece destoar de seu traje é o boné preto que leva na cabeça. Quem o vê em uma esquina do bairro Santana fumando cigarro de palha dificilmente imagina que ele dorme ali mesmo, naquela calçada.
Nascido em Bagé, Gilberto mora em Porto Alegre desde os dois anos de idade. Fala devagar, tem bom vocabulário e se articula com facilidade. Diz que já fez muita coisa nessa vida. Vendeu quindim, fez chapeação numa oficina, fabricou cocada, teve um restaurante e foi proprietário de quatro caminhões de mudança.
Ele se emociona ao lembrar do passado. Cego de um olho devido a um acidente de carro, não consegue segurar as lágrimas. Hoje em dia, só tem um carrinho com o qual recolhe papelão e faz alguns fretes. A pequena carroça, que diz ter feito com as técnicas que aprendeu na oficina, tem um colchão no fundo e também serve de cama.
Eu quis saber como ele foi parar na rua. “Isso aí daria um livro”, ele responde. Insisto, mas não adianta. “A minha história não faz bem pras pessoas”, continua. “Eu conto um pouco pro pessoal aqui da rua e eles já ficam arrasados. Se tu não tem preparo psicológico, tu vai pra casa e fica pensando nisso, e o meu problema passa pra ti também. Então acho melhor que as pessoas não saibam mesmo. Mas uma coisa eu te digo: o olho que os outros põem pode estragar a tua vida”.
Por causa da idade e do porte físico (Gilberto é baixo, magro e pouco corpulento), ele só recolhe lixo nas redondezas. Ganha muito pouco com o trabalho de catador. “Hoje consegui tirar uns três e pouco. Isso não dá pra quase nada”. Os moradores da vizinhança ajudam com comida, mas mesmo assim não sobra.
“Esses tempos ofereceram pra comprar o meu carrinho, mas não adianta, se eu vender ele eu vou dormir aonde, no chão? Daí eu viro mendigo, e isso eu não quero. Eu não sou mendigo, eu sou reciclador. Tu logo vê que não sou um papeleiro normal. Eu sou de levantar a classe pra cima”, diz.
E é bom de papo, o Seu Beto. Ele conta que certa noite um morador de rua passou por ali e pediu uma corda emprestada. O homem queria se enforcar em uma árvore. Beto e outro morador de rua se sentaram com ele, e os três passaram a madrugada inteira conversando. Quando o sol saiu pela manhã, o homem se levantou, agradeceu e foi embora. Tinha desistido do suicídio.
Além dos cigarros de palha, o único vício de Beto é a cachaça, que ele diz tomar para criar coragem: “se tu tá na rua de noite, tem que se cuidar da surpresa. Uma vez eu não tomei cachaça antes de dormir e acordei de madrugada tremendo. Mas não era por causa da cachaça – era de medo. Então eu bebo pra ter coragem de brigar quando precisa”.
Conta que, antes de morar na rua, só bebia cerveja, e socialmente. Mudou para a cachaça por causa do preço. E jura que não usa mais nada. “A única droga que eu já usei foi maconha, quando tinha 27 anos. Mas eu parei aos 30, porque aquela vida não era pra mim”.
Uma das maiores dificuldades de Seu Beto é encontrar distração no seu tempo livre. Mas isso deve mudar. Alguns dias atrás ele encontrou um radinho no lixo, funcionando e com pilhas. Podendo ouvir as notícias, ele acha que as coisas vão ficar mais fáceis. “Se não eu fico aqui só pensando. Pensando num jeito de sair da rua, em como que eu vou resolver esse quebra-cabeça. E daí eu fico muito triste. Já tive depressão duas vezes por causa disso. A coisa é muito difícil”.
E ele quer ser tirado da rua? Pouco tempo atrás, um velho amigo passou ali e levou Beto para casa. Deixou ele tomar banho e lavar suas roupas. Prometeu que arranjava trabalho pra ele numa oficina de chapeação. Mas com uma condição: tinha que largar a cachaça. Beto não quis. “Quando tu toma uma garrafa inteira todo dia, tu não consegue parar assim. Tem que ser aos pouquinhos”, diz. Ele considera o amigo bem intencionado, mas reclama da opressão. “Não adianta me obrigar a fazer as coisas. Eu não sou comprado por comida – só pela boa conversa”.
Pergunto para ele o que pretende fazer agora. “Eu vou dar um jeito de sair daqui, mas antes eu preciso ajeitar as coisas comigo. O pessoal da igreja também ofereceu ajuda, mas ainda não dá. O meu mundo quem faz sou eu. Não é que eu não acredite em Jesus. Eu acredito. Mas enquanto eu não tiver bem comigo mesmo, ninguém vai poder me ajudar”.