Por Bruno Cobalchini Mattos
Gilberto Mendes, 50, é um senhor bem alinhado. Faz a barba toda semana, e sua camisa nunca está amassada ou para fora das calças. Para se proteger do frio, veste um casaco de couro que se estende até as canelas. A única coisa que parece destoar de seu traje é o boné preto que leva na cabeça. Quem o vê em uma esquina do bairro Santana fumando cigarro de palha dificilmente imagina que ele dorme ali mesmo, naquela calçada.
Nascido em Bagé, Gilberto mora em Porto Alegre desde os dois anos de idade. Fala devagar, tem bom vocabulário e se articula com facilidade. Diz que já fez muita coisa nessa vida. Vendeu quindim, fez chapeação numa oficina, fabricou cocada, teve um restaurante e foi proprietário de quatro caminhões de mudança.
Ele se emociona ao lembrar do passado. Cego de um olho devido a um acidente de carro, não consegue segurar as lágrimas. Hoje em dia, só tem um carrinho com o qual recolhe papelão e faz alguns fretes. A pequena carroça, que diz ter feito com as técnicas que aprendeu na oficina, tem um colchão no fundo e também serve de cama.
Eu quis saber como ele foi parar na rua. “Isso aí daria um livro”, ele responde. Insisto, mas não adianta. “A minha história não faz bem pras pessoas”, continua. “Eu conto um pouco pro pessoal aqui da rua e eles já ficam arrasados. Se tu não tem preparo psicológico, tu vai pra casa e fica pensando nisso, e o meu problema passa pra ti também. Então acho melhor que as pessoas não saibam mesmo. Mas uma coisa eu te digo: o olho que os outros põem pode estragar a tua vida”.
Por causa da idade e do porte físico (Gilberto é baixo, magro e pouco corpulento), ele só recolhe lixo nas redondezas. Ganha muito pouco com o trabalho de catador. “Hoje consegui tirar uns três e pouco. Isso não dá pra quase nada”. Os moradores da vizinhança ajudam com comida, mas mesmo assim não sobra.
“Esses tempos ofereceram pra comprar o meu carrinho, mas não adianta, se eu vender ele eu vou dormir aonde, no chão? Daí eu viro mendigo, e isso eu não quero. Eu não sou mendigo, eu sou reciclador. Tu logo vê que não sou um papeleiro normal. Eu sou de levantar a classe pra cima”, diz.
E é bom de papo, o Seu Beto. Ele conta que certa noite um morador de rua passou por ali e pediu uma corda emprestada. O homem queria se enforcar em uma árvore. Beto e outro morador de rua se sentaram com ele, e os três passaram a madrugada inteira conversando. Quando o sol saiu pela manhã, o homem se levantou, agradeceu e foi embora. Tinha desistido do suicídio.
Além dos cigarros de palha, o único vício de Beto é a cachaça, que ele diz tomar para criar coragem: “se tu tá na rua de noite, tem que se cuidar da surpresa. Uma vez eu não tomei cachaça antes de dormir e acordei de madrugada tremendo. Mas não era por causa da cachaça – era de medo. Então eu bebo pra ter coragem de brigar quando precisa”.
Conta que, antes de morar na rua, só bebia cerveja, e socialmente. Mudou para a cachaça por causa do preço. E jura que não usa mais nada. “A única droga que eu já usei foi maconha, quando tinha 27 anos. Mas eu parei aos 30, porque aquela vida não era pra mim”.
Uma das maiores dificuldades de Seu Beto é encontrar distração no seu tempo livre. Mas isso deve mudar. Alguns dias atrás ele encontrou um radinho no lixo, funcionando e com pilhas. Podendo ouvir as notícias, ele acha que as coisas vão ficar mais fáceis. “Se não eu fico aqui só pensando. Pensando num jeito de sair da rua, em como que eu vou resolver esse quebra-cabeça. E daí eu fico muito triste. Já tive depressão duas vezes por causa disso. A coisa é muito difícil”.
E ele quer ser tirado da rua? Pouco tempo atrás, um velho amigo passou ali e levou Beto para casa. Deixou ele tomar banho e lavar suas roupas. Prometeu que arranjava trabalho pra ele numa oficina de chapeação. Mas com uma condição: tinha que largar a cachaça. Beto não quis. “Quando tu toma uma garrafa inteira todo dia, tu não consegue parar assim. Tem que ser aos pouquinhos”, diz. Ele considera o amigo bem intencionado, mas reclama da opressão. “Não adianta me obrigar a fazer as coisas. Eu não sou comprado por comida – só pela boa conversa”.
Pergunto para ele o que pretende fazer agora. “Eu vou dar um jeito de sair daqui, mas antes eu preciso ajeitar as coisas comigo. O pessoal da igreja também ofereceu ajuda, mas ainda não dá. O meu mundo quem faz sou eu. Não é que eu não acredite em Jesus. Eu acredito. Mas enquanto eu não tiver bem comigo mesmo, ninguém vai poder me ajudar”.
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Giovani quer largar o crack
Por Renan Antunes de Oliveira
Quase toda vez que entro apressado no Jornal JÁ tomo cuidado para não pisar em meu amigo Giovani de Souza Pereira, um self made mendigo de 22 anos, podre de drogado. Gio é morador de rua. Há quase 10 fixou residência na nossa, a Augusto Pestana.
Nos dias de bom tempo ele puxa seus roncos estirado na frente do portão da redação. Por alguma razão, prefere o lado ímpar da Augusto. Já deve ter dormido em cada centímetro de chão desde a esquina da avenida Venâncio Aires até o JJ, no número 133 da Augusto.
A gente nota que ele dorme melhor quando o sol está alto. Sabemos que no nosso pedaço ele também se sente mais seguro. Os vizinhos não se atreveriam a chutá-lo, coisa que acontece quando vai dormir sob alguma marquise e é despertado por seguranças de lojas.
Aconhegadinho em algum farrapo Gio ronrona enquanto se recupera das noitadas de crack e das baladas de maloqueiros – adiante eu conto como é intensa a vida social dos sem teto.
Ele é a pessoa mais conhecida do quarteirão. Não sei quem são meus vizinhos, eles não sabem quem sou eu, mas todos conhecemos Giovani – de uma certa forma, ele nos une.
Gio é um amigo que posso chamar de meu desde 2003. Isto porque quando eu entrei no JJ ele já era um veterano da casa – quero dizer, do lado de fora da casa.
Pouco antes da minha estréia nas páginas ele fazia por aqui um bico de entregador. Pena, tivemos que demiti-lo porque nossa contratação informal virou um problema trabalhista: seriamos multados por explorar trabalho infantil.
A idéia de dar trabalho pra ajudar Gio foi do Mariano, filho do patrão. Ele teve pena, queria tirar o menino da rua e das drogas. Mariano agora anda na Alemanha. Casou, tem uma filha pequena, tá lá cuidando dela – mas nosso Gio, adulto, continua na calçada.
Todos nós que ficamos temos boas intenções com ele. Todos nos compadecemos. Todos tentamos ajudar, de uma forma ou outra.
Anos atrás, uma senhora lá do fim da rua notou que ele andava meio abatido – era uma gonorréia, que ela se prontificou a tratar com antibióticos.
Socos e “roubo”
Um senhor notou um inchaço na boca e o levou ao dentista. Alguma coisa foi feita e hoje nada está doendo – o problema mais visível é a sujeira amarela e a falta do canino esquerdo. Tá partido ao meio. Foi quebrado a socos por um motorista de táxi do ponto do HPS. Normalmente o pessoal ali gosta dele, mas naquele dia alguns estavam furiosos porque acharam – erradamente – que ele tinha roubado o rádio de um carro.
No JJ tivemos vários debates de como ajudá-lo. Cada nova estagiária se comove ao vê-lo na calçada. De tanto vê-lo, elas se acostumam. Depois, acabam pulando por cima dele pra poder entrar – hay que perder a ternura e endurecer, senão ninguém entra na redação.
Todo novo repórter passa pela fase de pensar em entrevistá-lo, depois desiste – eles querem alguma coisa mais longe, mais aventurosa, menos doméstica.
Com o passar dos anos eu andei viajando. Passei um ano nos States. Morei meses no Rio, fui pra Amazônia, pra Curitiba, pra Sampa. Cada vez que voltava ao JJ tinha notícias de Gio. Ele estava por ali, todo dia, sempre dormindo na calçada.
Concluímos que ajudar Giovani seria tarefa pros órgãos assistenciais do governo. Telefonamos até pra caixa prego, sem sucesso. Procuramos burocratas de três partidos diferentes, nos níveis municipal, estadual, federal – por telefone é mais difícil conseguir alguma coisa do governo do que pedir qualquer coisa nos 0800 das multinacionais de telefonia celular.
Sugerimos as igrejas católica e evangélica. E fomos até na sinagoga da rua Henrique Dias. Neca, Gio firme na miséria, drogado e sujo, dormindo na calçada.
Giovani parece ter sido um predestinado pra viver nas sarjetas, com vocação revelada cedo. Do pai ele nada lembra, nem o nome, só sabe que morreu. Era bugre. O filho herdou as feições, cor e tamanho. Até fazer oito vivia com a mãe numa casinha na Lomba do Pinheiro. Foi tirado da escola por ela “porque ele só ia lá para comer a merenda”.
Mãe e filho passavam o dia esmolando no Centro. Ele abria e fechava portas de táxis na frente do Guaspari – mas as gorjetas iam todas pra mamãe. “Ela não me dava dinheiro pra jogar fliperama”, conta ele, ainda parecendo revoltado. Fugiu dela e esmolou pra si mesmo.
começo aos 11
Foi pouco antes de fazer nove que ele começou sua carreira de self made mendigo. A primeira noite ao relento foi na Praça XV. Era frio, ele estava só de calça e camisa.
Nas drogas ele começou aos 11, cheirando solvente, o chamado loló. Foi uma fase difícil, porque sua turma de cheiradores de loló era perigosa – uns roubam dos outros para comprar a droga.
Um dia apareceu alguém do Conselho Tutelar e ele foi levado para o abrigo Miguel Dario, na Serraria. Fugiu de lá semanas depois. Uma vez a Brigada o pegou nas ruas e o mandou para outro abrigo, na Miguel Tostes. Fugiu em oito dias. Desde 1999 adotou e foi adotado pela vizinhança da Augusto Pestana. Às vezes, rola pela Redenção.
Depois da Era do Loló veio o Tempo da Maconha. Fumava todo dia. Pra comprar, fazia bico de flanelinha. Uma vez ele e uns amigos roubaram um depósito da UFRGS. Ele pegou uma TV, mas não conseguiu vendê-la porque foi preso antes.
Não puxou cana. Ganhou “liberdade assistida”, um privilégio para menores concedido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A assistente social do seu caso era dona Érica, ou “tia Érica’, como ele diz.
A prisão lhe rendeu uma ficha na polícia. É seu único documento. Cada vez que é pego num arrastão da Brigada diz o nome. Os brigadianos que por acaso ainda não o conheçam consultam seus computadores, encontrando sua ficha de ladrão em liberdade assistida.
O pessoal da lancheria do Marino não deixa mais ele assistir lá dentro os jogos do Inter, por causa do cheiro de suas roupas e porque supeitam que foi ele que arrombou as grades e roubou cigarros, tempos atrás.
Ele vive num prende e solta. Uma vez reclamou da brutalidade policial, mas aí levou uma coronhada forte no olho esquerdo que quase o perdeu. Estava tão sujo que nem o HPS quis tratá-lo. Foi consertado no postão da Vila Cruzeiro.
O máximo de grana que conseguiu juntar na vida foram 200 reais, na vez em que cuidou do estacionamento de uma churrascaria. Desde os 16, tudo o que ganha ele gasta com crack, a droga da hora, do mês, do ano, da vida dele – tem dias em que está um farrapo que mal pode andar.
Nos últimos tempos os moradores da rua notam que ele anda cada vez mais drogado, mais esfarrapado, mais imundo – tem gente apostando que qualquer dia morre de overdose.
Mas nem tudo está perdido. Saibam todos que ele tem planos de parar com as drogas.
Na terça 31 de março eu o chamei pra esta entrevista. Ele mandou dizer pelo lavador de carros que só viria se ganhasse um troco. Queria 10. Pro crack. Apareceu às 3 da tarde. Foi só entrar na sala pra gente sentir aquela murrinha.
Ele estava falante. Contou que passou a noite transando com uma moça conhecida como Mãe, moradora de rua como ele. O romance foi ali perto do Hospital de Clínicas e ele garante que usou camisinha: “Uma tia me ensinou a usar, tenho que me cuidar”.
Alguém duvidou deste cuidado, lembrando que corre a lenda de que ele é pai solteiro de uma menininha – ninguém nunca viu nem sabe quem é a mãe nem onde anda tal filha.
Ele insistiu que sim, usa camisinha. Afirmou que até os gays que o procuram para programas no Parque da Redenção exigem isso. Não, ele não se considera um michê, não como aqueles da Avenida José Bonifácio. Se diz autônomo. E que cobra 20 reais por sessão, depois das 10 da noite, nos matinhos do parque – a grana é pra comprar crack.
Ele tem um sonho na vida: ser eletricista. Fez um serviços para um tal Paulinho da Farmácia. Segurava a escada. O cara também deixou ele apertar alguns parafusos em tomadas – foi o suficiente para ele tomar gosto pela elétrica.
“Não votaria em ninguém”
Uma tia – tias são assistentes sociais e/ou alguma mulher que o ajude – se prontificou a levá-lo pruma clínica de desintoxicação qualquer dia destes.
Ele disse que pode ser, porque está cansado da vida que leva. Anda pensando em procurar tratamento médico. Está convencido que pode sair da droga quando quiser. E que durante o tratamento vai aprender a ser …eletricista: “Na clínica ensinam alguma coisa pra gente”.
Gio ainda acredita em si mesmo: “Não quero ser conhecido como o Giovani velho, drogado, rabugento, fedorento”.
Se votasse ? “Não votaria em ninguém”. Tem uma pequena divergência com dona Yeda, a quem cita nominalmente. Ele acha que ela botou policiamento demais contra os pobres: “A gente fica um montão de tempo preso no 9º (Batalhão da PM) levando porrada até um tenente sentir bondade e mandar a gente embora”. Magnânimo, ele pede moleza “não para mim, mas para o bem da cidade”.
Gio aceita tirar fotos no meio da rua. Não, ele não espera nada do pessoal do JJ. Nem do governo. Repete que qualquer dia vai pegar nojo da vida de drogado. E então, mudar.
Pede cinco reais, pro ajudar na dose de crack.
Fim da entrevista. São quatro da tarde. E lá vai Giovani às ruas, sujo e esfarrapado, só com cinco no bolso, mas cheio de confiança, repetindo a única lição que aprendeu nas calçadas: “Eu mesmo tenho que fazer por mim”.
Tem mais crianças na rua
PC de Lester
Uma equipe da Ufrgs fez uma pesquisa para a prefeitura, sobre moradores de rua. Começou em novembro do ano passado, estava tabulada e interpretada em maio, quando alguns dados preliminares estavam disponíveis (Já Bom Fim, ed.385 ).
O jornalismo passivo, no entanto, esperou pelo release, que a Fasc distribuiu em meados de junho, destacando a redução do número de menores e adolescentes em situação de rua na capital. Em 2004, na pesquisa anterior, eram 637 com idade até 18 anos vivendo na rua. Agora são 383.
Como todo o release, o da Fasc destacava o fato “positivo” da redução de menores, mas minimizava ou omitia outros mais importantes mas que seriam “negativos” para a prefeitura.
Por exemplo: o total de moradores de rua que em 1995 eram 222, agora são 1203 agora. E o mais grave: o número de crianças de até seis anos de idade vivendo nas ruas mais do que dobrou. Na pesquisa anterior representavam 8,3% do total na rua, agora chegaram a 19,7%.
Qual foi a manchete? “Censo aponta queda de 40% no número de menores de rua em Porto Alegre” . Feita sob medida para a campanha de Fogaça.
Uma história embaixo da marquise
Helen Lopes
O sol nem bem apareceu e Marco, 38 anos, índio e soropositivo, já recolheu a cama, embaixo da marquise na Ipiranga, quase esquina com a rua São Manoel, em frente ao Planetário.
“Levanto cedo, antes que venham incomodar”, esclarece. Medo da hostilidade de companheiros que, como ele dormem na rua, e, especialmente, da polícia.
O encontro matinal com os amigos, no bairro Cidade Baixa é sagrado. “Durante a tarde, vou ao grupo de hip-hop ou às reuniões do jornal”, pontua.
Fazer reportagens para o Boca de Rua ou criar canções com os músicos do Realidade de Rua são tentativas de recuperar a cidadania. Um comportamento comum entre habitantes de marquises e praças da capital.
Pelo menos é o que aponta a pesquisa Mundo da População de Rua realizada pela UFRGS, sob encomenda da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc).
O estudo, divulgado em 29 de maio, identificou 1.203 adultos perambulando pela cidade, número cinco vezes maior do que apontou o último censo, em 1995, quando 222 pessoas foram cadastradas. “É um número elevado, mas está dentro da média nacional”, minimiza a presidente da Fasc, Brizabel Rocha.
Marco se orgulha de ter sido um dos entrevistados e seu relato é uma ilustração da pesquisa. “Fazemos parte da sociedade, somos cidadãos e não lixo como disse o cara do governo”, rebela-se, fazendo referência às declarações polêmicas do subcomandante da Brigada Militar, coronel Paulo Mendes.
O perfil do anonimato
Mais de 80% dos sem-teto de Porto Alegre são homens, sabem ler e escrever e têm entre 25 e 44 anos. Passam grande parte do dia sozinhos e sobrevivem de bicos e de doações. “Corto grama, cuido de carro. Não posso pegar emprego fixo porque estou doente”, lamenta.
Ele não gosta de falar sobre a família e raramente vai à Lomba do Pinheiro encontrar algum parente. “A maioria diz que está na rua por ruptura familiar: maus tratos, desavenças, abandono, separação ou morte”, observa Brizabel. Falta de dinheiro e drogas também são caminhos para indigência, comprova a pesquisa.
Como Marco, muitos dos entrevistados estão na rua há pelo menos um ano. “Saí de casa há mais de três”, calcula.
Durante todo esse tempo, passou uma única noite em um albergue. Foi em fevereiro, traumatizado por um espancamento. “Eram três skatistas e me bateram até eu desmaiar. Fiquei tão mal que tive que ir pro pronto-socorro”, relata.
O mais comum, no entanto, é ser agredido pela polícia. Quase 70% dos entrevistados sofreram ataques e os principais agentes são os brigadianos. Outra agressão constante é o preconceito. “Olham pra você com desconfiança, com medo”.
Apesar da violência, 60% dos entrevistados preferem calçadas, praças, pontes e viadutos da cidade aos abrigos do poder público. Entre os motivos da recusa estão as regras, a dificuldade de acesso e a hostilidade interna. “Gosto do povo da rua, dos amigos e da liberdade”, justifica.
Área central concentra quase 80 % dos sem-teto
Executada entre novembro do ano passado e janeiro deste ano, a pesquisa mostra que metade dos moradores de rua está concentrada em três bairros: Centro (23%), Floresta (15,9%) e Menino Deus (11,7%). Seguidos por Cidade Baixa, Azenha e Bom Fim/Farroupilha, a área central da cidade reúne quase 80% dessa população.
“É nesse espaço que se encontram os principais serviços de atendimento, além da grande circulação de pessoas, comércio e serviços”, analisa Gehlen.
O sociólogo chama a atenção para o crescimento da população no Menino Deus e também na Independência, onde 11 pessoas foram abordadas. No bairro Moinhos de Vento, houve apenas um registro. “Isso não quer dizer que não haja sem-teto na região, a categoria diz respeito ao local onde eles foram entrevistados”, esclarece.
Diminui número de crianças nas ruas
Além dos adultos, a pesquisa da Fasc vai identificar crianças sem-teto e a população indígena, afrodescendente e quilombola que vive nas ruas. Até o final de junho, a Prefeitura deve divulgar a segunda parte do trabalho, que indica redução do número de menores nas ruas.
O coordenador adianta que o percentual deve ser 20% menor – em 2004, eram 600 crianças. “Essa diminuição é reflexo dos programas sociais, como o Bolsa Família, e também da melhoria de vida nas cidades da região metropolitana”, avalia Gehlen.
Em 13 anos, número de sem-teto quadruplicou em Porto Alegre
Elmar Bones
Em 13 anos, o número de moradores de rua quadruplicou na capital. São 1203 adultos perambulando pela cidade, conforme pesquisa divulgada nesta quinta-feira, 29 de maio, pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc). O último levantamento, realizado em 1995, apontava aproximadamente 300 pessoas nessa situação.
O novo estudo da Prefeitura, executado pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, além de identificar os moradores de rua, mapeou os locais de maior incidência, revelou hábitos e o perfil socioeconômico dessa população.
“É um número elevado, mas está dentro da média nacional. Temos consciência da nossa responsabilidade e esse trabalho dará suporte aos programas sociais”, informa a presidente da Fasc, Brizabel Rocha. Para Brizabel, o resultado reflete a desagregação familiar. “A maioria dos entrevistados diz que está na rua por ruptura familiar, ou seja, maus tratos, desavenças, abandono, separação ou morte”.
O coordenador da pesquisa, professor Ivaldo Gehlen, concorda que o aumento não é exorbitante. “A capital é atrativa para todos. Não tem relação com êxodo rural, mas com a instalação de instituições públicas no centro da cidade”. O sociólogo reforça a necessidade de programas específicos e dá como exemplo a capital mineira, que foi pioneira em assistência aos sem-teto e hoje registra 900 pessoas em situação de rua, num universo de 2,5 milhões de habitantes – Porto Alegre tem cerca de 1,5 milhão.
Panorama
De acordo com o estudo, as atividades dos moradores de rua tendem a se concentrar em autônomas e de pouca estabilidade, como catar materiais recicláveis (22.9%), guardar e lavar carros (12,3%) e pedir (15%).
Quanto aos motivos de ida para as ruas, a grande maioria dos entrevistados (41,1%) atribui rupturas familiares – por maus tratos, desavenças, rejeições, falta de apoio, ameaças, abandono, por separação ou morte. Incluindo nesse tipo de justificativa problemas com bebidas alcoólicas, drogas ou tráfico na família, o percentual seria acrescido de 3,2%, chegando a um total de 44,3%.
A segunda razão mais referida, com um total de 22,8%, é a carência de condições materiais e financeiras, notadamente relativas ao desemprego e à busca de trabalho ou de alguma forma de renda ou auxílio (16,3%), seguida da perda da moradia (6,5%). Consumo de álcool, drogas ou fumo por parte do entrevistado aparece em terceiro lugar, com 12,1% das razões citadas.
A pesquisa faz parte de um estudo amplo, dividido em cinco segmentos. Além dos adultos em situação de rua, o trabalho irá identificar as crianças que moram na rua, a população indígena, afrodescendente e quilombola.
Dados:
– Metade dos moradores de rua foi encontrada em três bairros: Centro (23%); Floresta (15,9%) e Menino Deus (11,7);
– Mais da metade nasceu em Porto Alegre;
– Mais de 70% têm idade de até 44 anos;
– A maioria passa do dia sozinho;
– 11,6% estão nessa situação há menos de um ano;
– Quase a metade possui o ensino fundamental incompleto;
– 60% dessa população dorme cotidianamente em lugares considerados de risco e improvisados, enquanto 35,8% dormem em abrigos e albergues municipais ou conveniados com a prefeitura;
– 34,6% dizem receber doações em residências, restaurantes ou nas ruas;
– Um terço (29,1%) tem ganho mensal de até meio salário mínimo.
Programas
A Fasc apresentou uma lista de medidas que pretende desenvolver até o final do ano:
– Inclusão das pessoas em situação de rua no Cadastro Único de Assistência Social, para que possam ter acesso ao Programa Bolsa Família.
– Desenvolvimento do Programa de Reinserção na Atividade Produtiva.
– Construção do Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Crea) na região Centro de Porto Alegre.
– Ampliação do serviço ao migrante no Módulo Centro de Assistência Social
– Implantação do Sistema Único de Assistência Social, que prevê a instalação de cinco Creas nas regiões Centro, Glória, Leste e Lomba do Pinheiro para o segundo semestre de 2008 e na região Sul, em 2009, que farão abordagem e acompanhamento de pessoas adultas e crianças em situação de vulnerabilidade social
– Inserção ao trabalho por meio de Centros de Inclusão Produtiva, propostos inicialmente na região Leste e outro na região Glória.
– Adequação de espaços da Casa de Convivência, que faz o Serviço Social de Rua, na região Centro.
-Reforma do Albergue Municipal e da Casa de Convivência II. – Aquisição de bens de consumo para o Albergue Municipal e demais abrigos da população adulta
– Ampliação dos serviços do Programa de Saúde da Família Sem Domicílio na região Centro.
– Ampliação da equipe de redução de danos da Secretaria Municipal de Saúde que atua no Centro, nos espaços dos abrigos e albergues.