Helen Lopes
O sol nem bem apareceu e Marco, 38 anos, índio e soropositivo, já recolheu a cama, embaixo da marquise na Ipiranga, quase esquina com a rua São Manoel, em frente ao Planetário.
“Levanto cedo, antes que venham incomodar”, esclarece. Medo da hostilidade de companheiros que, como ele dormem na rua, e, especialmente, da polícia.
O encontro matinal com os amigos, no bairro Cidade Baixa é sagrado. “Durante a tarde, vou ao grupo de hip-hop ou às reuniões do jornal”, pontua.
Fazer reportagens para o Boca de Rua ou criar canções com os músicos do Realidade de Rua são tentativas de recuperar a cidadania. Um comportamento comum entre habitantes de marquises e praças da capital.
Pelo menos é o que aponta a pesquisa Mundo da População de Rua realizada pela UFRGS, sob encomenda da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc).
O estudo, divulgado em 29 de maio, identificou 1.203 adultos perambulando pela cidade, número cinco vezes maior do que apontou o último censo, em 1995, quando 222 pessoas foram cadastradas. “É um número elevado, mas está dentro da média nacional”, minimiza a presidente da Fasc, Brizabel Rocha.
Marco se orgulha de ter sido um dos entrevistados e seu relato é uma ilustração da pesquisa. “Fazemos parte da sociedade, somos cidadãos e não lixo como disse o cara do governo”, rebela-se, fazendo referência às declarações polêmicas do subcomandante da Brigada Militar, coronel Paulo Mendes.
O perfil do anonimato
Mais de 80% dos sem-teto de Porto Alegre são homens, sabem ler e escrever e têm entre 25 e 44 anos. Passam grande parte do dia sozinhos e sobrevivem de bicos e de doações. “Corto grama, cuido de carro. Não posso pegar emprego fixo porque estou doente”, lamenta.
Ele não gosta de falar sobre a família e raramente vai à Lomba do Pinheiro encontrar algum parente. “A maioria diz que está na rua por ruptura familiar: maus tratos, desavenças, abandono, separação ou morte”, observa Brizabel. Falta de dinheiro e drogas também são caminhos para indigência, comprova a pesquisa.
Como Marco, muitos dos entrevistados estão na rua há pelo menos um ano. “Saí de casa há mais de três”, calcula.
Durante todo esse tempo, passou uma única noite em um albergue. Foi em fevereiro, traumatizado por um espancamento. “Eram três skatistas e me bateram até eu desmaiar. Fiquei tão mal que tive que ir pro pronto-socorro”, relata.
O mais comum, no entanto, é ser agredido pela polícia. Quase 70% dos entrevistados sofreram ataques e os principais agentes são os brigadianos. Outra agressão constante é o preconceito. “Olham pra você com desconfiança, com medo”.
Apesar da violência, 60% dos entrevistados preferem calçadas, praças, pontes e viadutos da cidade aos abrigos do poder público. Entre os motivos da recusa estão as regras, a dificuldade de acesso e a hostilidade interna. “Gosto do povo da rua, dos amigos e da liberdade”, justifica.
Área central concentra quase 80 % dos sem-teto
Executada entre novembro do ano passado e janeiro deste ano, a pesquisa mostra que metade dos moradores de rua está concentrada em três bairros: Centro (23%), Floresta (15,9%) e Menino Deus (11,7%). Seguidos por Cidade Baixa, Azenha e Bom Fim/Farroupilha, a área central da cidade reúne quase 80% dessa população.
“É nesse espaço que se encontram os principais serviços de atendimento, além da grande circulação de pessoas, comércio e serviços”, analisa Gehlen.
O sociólogo chama a atenção para o crescimento da população no Menino Deus e também na Independência, onde 11 pessoas foram abordadas. No bairro Moinhos de Vento, houve apenas um registro. “Isso não quer dizer que não haja sem-teto na região, a categoria diz respeito ao local onde eles foram entrevistados”, esclarece.
Diminui número de crianças nas ruas
Além dos adultos, a pesquisa da Fasc vai identificar crianças sem-teto e a população indígena, afrodescendente e quilombola que vive nas ruas. Até o final de junho, a Prefeitura deve divulgar a segunda parte do trabalho, que indica redução do número de menores nas ruas.
O coordenador adianta que o percentual deve ser 20% menor – em 2004, eram 600 crianças. “Essa diminuição é reflexo dos programas sociais, como o Bolsa Família, e também da melhoria de vida nas cidades da região metropolitana”, avalia Gehlen.
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Em 13 anos, número de sem-teto quadruplicou em Porto Alegre
Elmar Bones
Em 13 anos, o número de moradores de rua quadruplicou na capital. São 1203 adultos perambulando pela cidade, conforme pesquisa divulgada nesta quinta-feira, 29 de maio, pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc). O último levantamento, realizado em 1995, apontava aproximadamente 300 pessoas nessa situação.
O novo estudo da Prefeitura, executado pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, além de identificar os moradores de rua, mapeou os locais de maior incidência, revelou hábitos e o perfil socioeconômico dessa população.
“É um número elevado, mas está dentro da média nacional. Temos consciência da nossa responsabilidade e esse trabalho dará suporte aos programas sociais”, informa a presidente da Fasc, Brizabel Rocha. Para Brizabel, o resultado reflete a desagregação familiar. “A maioria dos entrevistados diz que está na rua por ruptura familiar, ou seja, maus tratos, desavenças, abandono, separação ou morte”.
O coordenador da pesquisa, professor Ivaldo Gehlen, concorda que o aumento não é exorbitante. “A capital é atrativa para todos. Não tem relação com êxodo rural, mas com a instalação de instituições públicas no centro da cidade”. O sociólogo reforça a necessidade de programas específicos e dá como exemplo a capital mineira, que foi pioneira em assistência aos sem-teto e hoje registra 900 pessoas em situação de rua, num universo de 2,5 milhões de habitantes – Porto Alegre tem cerca de 1,5 milhão.
Panorama
De acordo com o estudo, as atividades dos moradores de rua tendem a se concentrar em autônomas e de pouca estabilidade, como catar materiais recicláveis (22.9%), guardar e lavar carros (12,3%) e pedir (15%).
Quanto aos motivos de ida para as ruas, a grande maioria dos entrevistados (41,1%) atribui rupturas familiares – por maus tratos, desavenças, rejeições, falta de apoio, ameaças, abandono, por separação ou morte. Incluindo nesse tipo de justificativa problemas com bebidas alcoólicas, drogas ou tráfico na família, o percentual seria acrescido de 3,2%, chegando a um total de 44,3%.
A segunda razão mais referida, com um total de 22,8%, é a carência de condições materiais e financeiras, notadamente relativas ao desemprego e à busca de trabalho ou de alguma forma de renda ou auxílio (16,3%), seguida da perda da moradia (6,5%). Consumo de álcool, drogas ou fumo por parte do entrevistado aparece em terceiro lugar, com 12,1% das razões citadas.
A pesquisa faz parte de um estudo amplo, dividido em cinco segmentos. Além dos adultos em situação de rua, o trabalho irá identificar as crianças que moram na rua, a população indígena, afrodescendente e quilombola.
Dados:
– Metade dos moradores de rua foi encontrada em três bairros: Centro (23%); Floresta (15,9%) e Menino Deus (11,7);
– Mais da metade nasceu em Porto Alegre;
– Mais de 70% têm idade de até 44 anos;
– A maioria passa do dia sozinho;
– 11,6% estão nessa situação há menos de um ano;
– Quase a metade possui o ensino fundamental incompleto;
– 60% dessa população dorme cotidianamente em lugares considerados de risco e improvisados, enquanto 35,8% dormem em abrigos e albergues municipais ou conveniados com a prefeitura;
– 34,6% dizem receber doações em residências, restaurantes ou nas ruas;
– Um terço (29,1%) tem ganho mensal de até meio salário mínimo.
Programas
A Fasc apresentou uma lista de medidas que pretende desenvolver até o final do ano:
– Inclusão das pessoas em situação de rua no Cadastro Único de Assistência Social, para que possam ter acesso ao Programa Bolsa Família.
– Desenvolvimento do Programa de Reinserção na Atividade Produtiva.
– Construção do Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Crea) na região Centro de Porto Alegre.
– Ampliação do serviço ao migrante no Módulo Centro de Assistência Social
– Implantação do Sistema Único de Assistência Social, que prevê a instalação de cinco Creas nas regiões Centro, Glória, Leste e Lomba do Pinheiro para o segundo semestre de 2008 e na região Sul, em 2009, que farão abordagem e acompanhamento de pessoas adultas e crianças em situação de vulnerabilidade social
– Inserção ao trabalho por meio de Centros de Inclusão Produtiva, propostos inicialmente na região Leste e outro na região Glória.
– Adequação de espaços da Casa de Convivência, que faz o Serviço Social de Rua, na região Centro.
-Reforma do Albergue Municipal e da Casa de Convivência II. – Aquisição de bens de consumo para o Albergue Municipal e demais abrigos da população adulta
– Ampliação dos serviços do Programa de Saúde da Família Sem Domicílio na região Centro.
– Ampliação da equipe de redução de danos da Secretaria Municipal de Saúde que atua no Centro, nos espaços dos abrigos e albergues.