Wisnik: “Os gaúchos são os galegos da América”

Geraldo Hasse
Os gaúchos são comparáveis aos galegos, cuja identidade oscila entre Espanha e Portugal. Com essa sacada o professor multimídia José Miguel Wisnik encerrou na tarde do sábado 3 de outubro o seminário Nós Outros Gaúchos, que durante cinco meses discutiu num dos auditórios da reitoria da UFRGS a dualidade lusoplatina dos habitantes do Rio Grande do Sul.
A platéia do encerramento, cerca de 100 pessoas, era majoritariamente feminina e com predominância do pessoal da psicologia, pois no sofá dos palestrantes estava a psicanalista Caterina Koltai, paulistana que afirma ter conhecido o Brasil – e os gaúchos, em particular — como exilada política na França a partir de 1968.
Ao contrário do esperado, Koltai se expôs muito pouco. Desculpando-se por “desconhecer os gaúchos”, leu um texto em que chamou a atenção para a atualidade dos refugiados como paradigma de uma nova era. “O refugiado não pertence ao novo lugar mas não quer ser assimilado a qualquer preço”, disse. Assim, esse pária permanece “estrangeiro”, ou seja, um estranho que é visto inicialmente como diferente mas pode ser apenas “excluído” ou se tornar um “inimigo”.
Segundo Koltai, o confronto eu x outro é uma realidade antiga que muda com o tempo. Na época do Império Romano, a palavra “estrangeiro” (que significava “não familiar”) era apenas um adjetivo. Somente muitos séculos depois, passou a ser também um substantivo. Sinal de que o problema se adensava.
No caso dos gaúchos, lembrou a ex-apátrida Koltai, a dualidade tem a ver com a existência da fronteira. “Uma identidade sempre se constrói em oposição a outra”, disse ela, salientando que “o imigrante transformou o indígena em estrangeiro”.  Depois, respondendo a uma questão, ela disse: “O fundamentalismo é uma doença da identidade: todos nós somos de alguma forma xenófobos — xenófobos ordinários –, mas cada discurso escolhe seu desafeto, o inimigo a ser destruído”.
O GÊNIO PAULISTA
José Miguel Wisnik abriu o peito, declarando-se paulista de São Vicente, filho de polaco paranaense e mãe mineira, casado com uma baiana, situação que lhe permitiu, desde cedo, compreender a diversidade brasileira. Quando chegou à Universidade de São Paulo, aos 18 anos, encontrou no curso de Letras muitos gaúchos que o surpreenderam pelo “letramento superior”, obtido em escolas particulares como o Colégio Anchieta (jesuítas) e em escolas públicas que receberam a influência do positivismo. Entre os colegas, citou Flavio Aguiar, Ligia Chiapini e Paulo Neves.
Essa realidade de 50 anos atrás mudou bastante. Para Wisnik, “o letramento superior do gaúcho vem sendo lavado” pela homogeneização do conteúdo dos meios de comunicação, que priorizam a sobrevivência comercial em detrimento da cultura. Disso resulta a busca de saídas na construção de uma mitologia superior. “O mito está num entrelugar” situado a meio caminho entre a realidade e ilusão.
Sem se dar conta de que citara involuntariamente o uruguaianense Tabajara Ruas, escritor e cineasta cujo trabalho se baseia na história mas realça os mitos gaúchos, Wisnik elogiou o livro O Gaucho de José de Alencar como uma obra “profunda psicanaliticamente”, mas preferiu comentar mais largamente o conto A Hora e a Vez de Augusto Matraga, no qual o mineiro Guimarães Rosa faz duelarem dois sujeitos terrivelmente envolvidos com os sentimentos de inveja e vingança.
O HARAQUIRI DE GETÚLIO
Citando o professor gaúcho Luis Augusto Fischer, que palestrara pela manhã e ocupava uma das poltronas do palco, ao lado de Sinara Robin, do departamento de Difusão Cultural da UFRGS, o professor paulista lembrou a importância do duelo como uma das marcas do homem do Sul. E acabou descambando para a política ao afirmar que Getúlio Vargas, com todas suas conhecidas ambigüidades, foi o único brasileiro até hoje a praticar um haraquiri político, capitalizando a morte como suprema cartada política.
Depois, Wisnik alongou-se ao falar dos cinco generais-presidentes, três deles nascidos no Rio Grande do Sul e todos eles alunos do Colégio Militar de Porto Alegre (onde também estudaram nobres figuras da literatura como Mário Quintana e do direito como Darcy Azambuja). E lembrou até do mando no futebol exercido por técnicos como João Saldanha, Dunga e Felipão. Mas, lembrou ele, o RS também tem figuras sóbrias, comedidas e moderadas como o próprio Mário Quintana, o compositor Lupicínio Rodrigues, o cronista Luis Fernando Veríssimo (“o melhor cronista do Brasil contemporâneo”) e o músico Vitor Ramil.
Wisnik concluiu assim: “O Rio Grande do Sul se coloca lugar à margem não devidamente compreendido pelo país. A integração malograda com o Brasil é compensada por uma integração com o Sul”, coisa muito bem captada pelo pelotense Vitor Ramil com sua Estética do Frio. Tudo isso se pode explicar porque “o Brasil é tão grande que, nele, qualquer um desaparece”.
Foi aí que o professor vicentino associou os gaúchos aos galegos. A Galícia, na Espanha, na fronteira de Portugal, está situada no que antigamente se chamada “finis terra”. O Rio Grande do Sul, de certa forma, também faz parte de um fim do mundo onde é preciso se apegar a mitos e amuletos capazes de fazer alguma diferença. Por exemplo: “O Rio Grande do Sul tem a vantagem cultural de estar no meio entre Rio e Buenos Aires.”
BRAVATA
Aparentemente escalado para fazer o papel de moderador na sessão de encerramento do seminário – à qual não compareceu o convidado uruguaio, historiador Gerardo Caetano Hargain –, o escritor Luis Augusto Fischer aproveitou para fazer duas ou três intervenções sarcásticas. Primeiro, ao afirmar que “o melhor escritor gaúcho de todos os tempos chama-se Jorge Luis Borges”. Segundo, ao sugerir que, em consideração a Gisele Bundchen e outras modelos, sugere-se inverter os versos finais do hino riograndense: em vez de “sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra”, cante-se “sirvam nossas modelos de façanha a toda terra”. Por fim, ele lembrou que, além da mania do duelo, os gaúchos tem outra marca: o hábito da bravata. Ou, seja, “do ridículo ao sublime, temos tudo”.

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