A República e o mito de Floriano Peixoto

Trecho do livro A Espada de Floriano,

à venda na banca da ARI na Feira do Livro de Porto Alegre:

Na manhã de 15 de novembro de 1889 as tropas cercaram o Quartel-General onde o Conselho de Ministros  passara a noite reunido.
Assestaram metralhadoras e canhões leves contra o prédio e gritaram Vivas à República. O líder dos amotinados entrou a cavalo no pátio.
Desmontou, subiu as escadas e intimou todos a se retirarem para suas casas. O governo estava destituído.
Horas depois, o Imperador, ainda sem acreditar no que lhe dizem, recebe três emissários dos sediciosos. Ele e sua família deviam deixar o país naquele mesmo dia.
Herdeiro de um trono vitalício, desde os 15 anos,  Pedro II não representava mais nada.
O Império fundado por seu pai, ao declarar o Brasil independente de Portugal, há  66 anos, estava acabado. Daria lugar a uma República Federativa em que o poder seria conferido a um presidente através do voto popular e renovado periodicamente.
Não chegou a ser a revolução que poderia ter sido.  Depois do surto de radicalismo  jacobino dos primeiros anos, os grupos dominantes do regime imperial – os barões do café de São Paulo, os coronéis dos engenhos do Nordeste, os grandes charqueadores do Sul – se reorganizam e retomam o poder. Não foi contudo uma simples manobra, que muda na superfície para no final deixar tudo como sempre esteve.
Os ativistas republicanos expressavam as classes médias e proletárias que surgiam nas cidades com as mudanças na economia. Alguma coisa dessas novas forças e de seus interesses a nova situação teve que incorporar, até para assegurar a própria sobrevivência.
Até hoje se discute o que efetivamente mudou.  Ficou a pergunta que não esconde a frustração e o desencanto: os “ideais republicanos”, da igualdade, da fraternidade, da liberdade, a República do cidadão, dos direitos civis, do interesse público, a República dos sonhos de Silva Jardim, em que desvão da história se extraviou?.
As tentativas de resposta desdobram-se em inúmeras variantes e o resultado é que nenhuma delas explica, talvez, pelo simples fato de que as teorias nunca conseguem apreender a realidade inteira.
Deodoro, o chefe militar que proclamou a República, é um homem acossado pelas circunstâncias. Quase todos os participantes das reuniões na casa dele, nos dias anteriores ao golpe, registram sua relutância.
Até o último momento, ele queria apenas a deposição do Ministério e afastava a ideia de República. Relutou, depois, em aceitar a chefia do governo. Comanda o golpe, toma o poder mas não consegue sustentação e cai um ano depois de derrubar o imperador.
Floriano Peixoto, o vice que assumiu,  era um “soldado por instinto”, um dos heróis da Guerra do Paraguai que ainda estava na memória de todos. Vice de Deodoro, toma seu lugar e diz que seus inimigos são os inimigos da República. Consegue unir o Exército, ao mesmo tempo em que divide a Marinha, onde é maior a resistência.
Apoia-se nos Jacobinos e usa seu grande prestigio no meio militar para esmagar os movimentos armados que o desafiam.
Os jacobinos vão contribuir com o discurso que sustentará seu governo.
O Exército, que não apoiou o golpe de Deodoro, coloca-se inteiro ao lado de Floriano, quando ele diz que a República está em perigo. Muitos de seus oficiais mais valorosos deram a vida para cumprir a ordem de defender o novo regime a qualquer preço, como fez o coronel  Gomes Carneiro, que morreu defendendo a Lapa. Outros mataram friamente, como fez o coronel Moreira Cesar, que fuzilou 185 pessoas em Florianópolis.
Euclides da Cunha, que o chamou de “esfinge”, diz que Floriano foi um ditador que cresceu às avessas, “avultando no cenário político da pátria pela depressão que se escavara em seu entorno”.
Para Rui Barbosa, Floriano foi o sinônimo de militarismo. “O militarismo está para o Exército assim como o fanatismo para a religião, o charlatanismo para a ciência”, dizia.
Nelson Werneck Sodré, militar e historiador, diz que as forças  militares encarnadas por Floriano foram naquele momento “criadoras da vontade do povo”, “porta-vozes dos anseios populares”. O “Marechal de Ferro” pagaria até hoje, segundo Sodré, o crime de ter defendido as causas populares. “Quem deseja estudar-lhe a figura singular não encontra fontes idôneas, todas transmitem a imagem deformada, carregada de vícios morais e descomedimento…”
A interpretação de Sodré, intelectual de formação marxista, revela que a ditadura não é só um recurso da direita para impedir as mudanças, mas também um mito da esquerda que não descarta um regime de força, com apoio popular para acelerar as mudanças”.
Uma vez no poder, os militares republicanos relutaram em devolver aos civis. Achavam que o regime novo ainda não estava consolidado, precisava da proteção – das armas, subentendia-se. Mas não tiveram unidade para manter Floriano nem para encontrar um substituto para ele.
Quando todos pensam que Floriano vai resistir, ele vai para casa.
Ficou esse sentimento de que a ditadura republicana, inaugurada por Deodoro, continuada por Floriano, teve fim prematuro, “antes de completar sua obra”, que ainda hoje aparece no fundo de uma frustração geral com o projeto republicano.
Parece ter ficado como uma nostalgia na memória nacional, essa ideia de que nossas instituições republicanas, por terem uma incompletude original, são sempre frágeis enjambrações, que de tempos em tempos precisa da proteção das armas para não sucumbir.   .
O Floriano que conhecemos hoje ainda é “um homem cercado de sombras”. O certo é que depois dele, o imaginário popular não se livrou mais de ideia de que só uma ditadura militar pode salvar o Brasil.

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