LUIZ-OLINTHO/O retorno da Peste

Luiz-Olyntho Telles da Silva

A pandemia pegou-me de surpresa. Não que ela tivesse surgido de repente, não. Sabe como é, você vê o mal, ao longe, e pensa que não tem nada a ver consigo, porém, quando menos espera, ele está forçando sua porta e nós sem saber como nos defendermos de um inimigo invisível.

Quando a epidemia surgiu, lá no Oriente, não parecia grande coisa. Aquele pessoal estava acostumado ao uso de máscaras. O ar de suas cidades, diziam-nos, era tão poluído que o uso de proteção, para andar na rua, era praticamente obrigatório. Então, usar máscara para proteger-se de um vírus de gripe não tinha nada de extraordinário. Mas eis que, como uma onda, seguindo o caminho do retorno de Marco Polo, quando esteve na China, o vírus alcança a Itália, desde o calcanhar até os grandes lagos, onde prolifera a indústria da moda, e transforma-se em um tsunami alagando toda a Europa.

O horror tomava conta do Velho Mundo. Uma angústia começa a apertar nosso peito. Os amigos que moram aí, como estariam? As notícias, em sua maioria, eram alarmantes, embora o contato telefônico com os parentes fosse mais tranquilizador: frente ao assombroso número de mortos, proclamado pelas as notícias, o sofrimento de um filho que estava lá, de um pai ou um irmão em viagem de férias, devia-se apenas ao confinamento. Mas eis que uns conterrâneos, regressando de uma festa de casamento, em Miami, aterrissaram na Bahia doentes, contaminados. O vírus chinês chegara ao Brasil e, em poucos dias, a pandemia começava a devorar também os gaúchos.

Embora, pela idade, esteja no grupo de risco, pessoalmente, não me considero um velho. Acredito que esta questão etária tenha muito de subjetivo. Não basta contar as voltas ao redor do sol. Aliás, quando penso em quanto tempo ainda tenho de vida, costumava encontrar um limite na idade em que meu pai faleceu, e pensava nos anos que tinha pela frente, até alcançá-lo, nos seus setenta e cinco anos; mas agora, com essa ameaça iminente, já não consigo pensar em anos. Cada mal-estar, cada dorzinha de garganta, mesmo sem febre, leva-me a contar os dias de incubação deste Sars CoV-2. E, passando as dores, quando voltam, recomeço a contagem dos últimos dias. Assim, já não sei como contar a idade. Ora não sei se alcançarei meu pai, o que antes parecia muito certo, ora tendo a acreditar que já o ultrapassei, mas a verdade é que tenho pensado muito nele.

Embora fosse bem humorado, com um olhar especial para ver o lado engraçado das coisas, meu pai não era de falar muito sobre sua vida. Participou em duas revoluções e nunca disse uma palavra sobre isso. Uma única vez ouvi, de um camarada de caserna dele, em uma visita breve a nossa casa, que ele era muito rápido em montar e desmontar uma metralhadora INA. Mas, dele mesmo, nunca ouvi nada. Contudo, uma vez, já não lembro o motivo, contou-me que, ainda menino, ficara muito chocado ao ver, durante a Gripe Espanhola, as pessoas jogarem os cadáveres dos mortos da família em uma carroça que ia passando pela rua, de casa em casa. Talvez tivesse aí começado a preocupar-se com a morte. Sua curta descrição calou-me fundo. Até hoje, quando lembro esse episódio, ainda visualizo a carroça, com todos os seus detalhes: o carroceiro, fazendo as vezes de Caronte, num canto triste, de quem reza, repetindo os nomes dos bois, Vai Barroso, vai Pitanga, enquanto, com uma vara na mão, ia fustigando os animais presos à canga pelas cravelhas, as madeiras de cabreúva, já sem cor, mas ainda perfumadas, os ferros enferrujados das travas e a portinhola de trás aberta, as rodas enormes, da altura da carroça, rangendo no duro eixo de ipê, como se chorassem pelos cadáveres empilhados, uns por cima dos outros, indo alguns enrolados em mortalhas, outros na última camisola. Por certo não era a melhor imagem para alguém introduzir-se no tema, embora eu não saiba se há uma imagem que, para isso, seja melhor do que outra. Papai não tinha boas lembranças da morte e, se dela não fugia, não a procurava. Lembro de sua frase repetida quando havia velório: – Quem não é visto, não é lembrado! E não ia. Nas minhas entranhas algo apertava. Pontadas de medo, diziam-me. Acredito ter herdado um pouco desse medo e, confesso, os velórios sempre me deixam muito triste.

Foi então que me veio à lembrança este antigo conto sufi: é a história de um homem que, caminhando nos arredodres de Bagdá, encontrou-se, de repente, com a Peste e, logo após recuperar-se do susto, perguntou-lhe:

– Onde você vai?

A Peste respondeu-lhe, tão rápida quanto cáustica:

– Vou a Bagdá matar dez mil pessoas.

Dias depois, ambos voltaram a encontrar-se no caminho e o homem, indignado, queixa-se de ter sido enganado:

– Dissestes-me que ias matar dez mil pessoas e matastes quarenta mil!

– Não, disse a Peste. Matei só dez mil, como prometido, os demais morreram de medo.

 

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