LUIZ-OLYNTHO TELLES DA SILVA / Meu encontro com Moisés

Li, dia desses, que o risco de extirpar a corcova de um camelo, era o de que deixasse de ser camelo. Um preceito importante o qual, mesmo sem o conhecer, tenho seguido por toda a vida.

Na minha mulher, sua corcova era o tempo que tomava para se arrumar. Passava horas e horas se pintando e, depois, não saía de casa sem dar mais um retoque na maquiagem. No início, não tenho por que não dizer, isso me irritava um pouco. Gosto de ser pontual e, quando tinha de ir acompanhado, acabava chegando sempre um pouco atrasado nesses compromissos. Até que um dia escutei um colega, que em tom de brincadeira justificava a inexistência da mulher exatamente com a corcova de minha esposa. Elas mesmas se consideravam transparentes, dizia ele, e, se não colocassem meias de seda, uma boa camada de base no rosto, seguida de ruge, rímel e uma pintura nos lábios, ficavam invisíveis! Então fui me acalmando, deixando de reclamar e, reconhecendo que aquele momento, de tanta concentração e seriedade, teria que ter mesmo um grande valor para ela, deixei de me irritar e comecei a tirar proveito da situação. Aproveitava para ler algum artigo no jornal, do qual só havia lido as manchetes e, quando a saída era para alguma festa, relaxava tomando um uísque. Mas naquele dia foi demais.

Era minha primeira vez na Europa e o primeiro dia em Roma, onde havíamos chegado na noite do dia anterior. O hotel da Rua Cavour era muito bom, com quatro estrelas luminosas, uma varanda voltada para os fundos, da qual se podia apreciar boa parte da cidade, e um toucador que a deixara encantada. Era uma peça antiga, colocada ali, supus, para quebrar um pouco o moderno da decoração pós-reforma e estava muito bem. Com três espelhos, um central e dois laterais, móveis, que lhes permitiam dar a angulação precisa para melhor ajeitar detalhes de seu penteado. E lá estava ela – parecia –, preparando-se para deslumbrar a Cidade Eterna. Pelo modo como se preparava, ajeitando por sobre o toucador sua coleção de pós, pinturas, pincéis, escovas, batons e perfumes, não se podia esperar que aquilo fosse terminar logo, não seria assim no mais que aquele rostinho ficaria do seu gosto, ainda mais em Roma. Dei uma olhada nos jornais, os que não estavam em italiano, estavam em inglês, a vista da varanda não me chamava muito a atenção, e para um uísque era muito cedo. Antes do café da manhã, nunca! Pois resolvi sair para uma pequena caminhada. Evitava assim a ansiedade que começava a se infiltrar por entre os nervos.

Em frente ao hotel havia um muro alto e comprido, e, meio sem pensar, atravessei a rua, com pouco movimento naquela hora da manhã, para melhor observar o belo edifício do hotel em que nos hospedáramos. Em estilo neoclássico, com as suntuosas colunas fronteiriças a uma port-cochère, as portas e janelas encimadas de ventarolas em arco, formavam um todo, ao mesmo tempo imponente e agradável. Caminhava, um pouco distraído, talvez pensando no apropriado desse estilo para o conforto dos hóspedes, pois os espaços tendiam a ser sempre amplos, por certo consultando o relógio, de tanto em tanto, quando – acredito que pelo contraste entre o amplo que vinha ocupando meus devaneios –, reparei numa estreita abertura que apareceu no muro, de repente, dando lugar a uma escada que logo se alargava. Para onde subiriam aqueles degraus? Olhei para o relógio, perguntando-me se hoje seria diferente, se ela terminaria mais cedo seu toucado, mas não, decidi que não e deixei-me vencer pela curiosidade. Pois ao fim do curto túnel encontrei-me em um largo, completamente silencioso, sem viva alma. Seria pela hora? O frio seco de fevereiro estava bem agradável. Avistei um corredor de casas em uma rua terminando em curva e, à minha esquerda, por sobre o muro, uma igreja. Uma fachada simples, simples até demais se comparada com a de nosso hotel, porém cercada por uma alta grade de ferro. Ao aproximar-me, vi um portão apenas encostado e fui entrando. Com poucos passos alcancei a alta porta da Igreja, também entreaberta. Que custava? A sedução do toucador, com aqueles espelhos ajeitados, haveria de segurá-la por mais algum tempo. E entrei, no primeiro passo já deslumbrado com sua abóbada. Estava sustentada por colunas dóricas e decorada com um afresco multicolorido, no qual preponderavam os azuis cobrindo quase toda sua longa nave central. Lembro que era uma dessas pinturas com duas cenas, comuns no medievo, uma terrena e outra celeste. Caminhava por sua nave, apreciando os detalhes dos altares laterais, quando, quase ao alcançar o altar central, no lado direito uma estátua magnífica chamou-me a atenção. Representava um homem sentado, mas com a perna esquerda mais baixa, o pé esquerdo posto um pouco para trás, como se estivesse preparando-se para levantar, e, quem sabe, até já um pouco levantado, ou levantando, com umas pranchas sob o braço direito, como que arriscando a cair devido a um movimento brusco; um rosto forte, coberto por espessa barba, e um olhar penetrante a completavam. Não podia ser! Não podia acreditar que estivesse diante do Moisés! Seria uma réplica da obra de Miguel Ângelo?! Uma réplica da qual eu nunca ouvira falar? E resolvi dirigir-me ao altar principal para fazer o teste do olhar. Se ele me seguisse com os olhos, seria ele mesmo. E me seguiu. Não era uma cópia. Era a própria, a verdadeira escultura de Buonarrotti!

Freud, quando se dedicou ao Moisés, em uma obra da sua maturidade, também enfrentou dúvidas, parecidas com as minhas, dúvidas que tinham como fundo comum a questão da autenticidade. As dele eram sobre a origem do grande líder. Judeu ou egípcio? Primeiro, por não acreditar que seu nome derivasse do hebraico Mosheh. Não que Moisés, conforme o significado etimológico de seu nome, não tivesse sido tirado das águas – pois, afinal, quem não foi? –, mas sim porque não via motivo para uma princesa egípcia batizar uma criança, adotada como filho, com um nome hebraico, de escravos. Para o mestre vienense, a origem do nome era egípcia, derivada de Mose. Com o significado simples de criança, costumava vir acompanhando o nome de algum deus, como Amom-mose, Ptah-mose, com o significado de Amon-enquanto-criança, Ptah-enquanto-criança. E o importante é que, para Freud, essas dúvidas o levaram muito adiante em sua pesquisa sobre o libertador que fundou a religião dos hebreus.

Para mim, a dúvida ajudou a situar-me. Sendo autêntica, como a estátua havia sido esculpida para encimar o túmulo do Papa Júlio II, isso queria dizer que esse papa estava enterrado ali, naquela que era a sua Igreja, a igreja de sua família, da família dos Della Rovere, construída, ainda no quatrocento, para abrigar as correntes com as quais São Pedro estivera preso, primeiro em Jerusalém, depois na própria Roma. Depois, na mesma época em que o Brasil estava sendo descoberto, e o Cardeal Della Rovere eleito Papa, a Igreja fora toda reformada e as cadeias de São Pedro colocadas em um relicário sob o altar-mor da Basílica. E lá estavam elas. Já não havia mais dúvidas! Estava na Igreja de São Pedro em Vincoli, aquela era a legítima estátua de Moisés, ladeado por Raquel e Lea, e voltei para ver a escultura de perto. O relógio, inexorável, avançava, mas tinha de olhar o joelho de Moisés. A marca do perché no parla, não estava mais, mas estavam as Tábuas da Lei recém recebidas no Monte Sinai, logo após seu encontro com a Sarça Ardente, e estavam os dois cornos, discretos em meio à volumosa cabeleira. Freud, ao que tudo indica, não reparara em sua presença; provavelmente, tomou-os, como faziam os antigos, como uma natural representação dos raios divinos, pois em hebraico há uma similaridade entre as palavras chifres (queren) e raios de luz (qâran).

Seus olhos ainda me seguiam quando deixei a Igreja, triste e quase culpado de deixá-lo só, estático naquele silêncio. Mas, com minha esposa, a função corcova teria já cumprido seu efeito e terminado seu make-up. Não podia retardar-me nem mais um minuto. E, de fato, quando cheguei ao hotel, estava linda e resplendia, mas eu, eu levei um xingão por tê-la feito esperar.

Luiz-Olyntho Telles da Silva (Marcelino Ramos, 1943) é psicanalista e escritor. Autor – na área da literatura – de Leituras, Incidentes em um ano bissexto, Iluminura turca e outras crônicas, Um elefante em Albany Street e Os Embaixadores. E-mail: lots@uol.com.br

MARCIUS CORTEZ / Tarso de Castro bebia no elmo

É necessário que se pense Tarso considerando seu currículo etílico. Ele parecia um fauno saltitante a exibir orgulhoso seu rosário de flores bordado por cândidas amadas. Foi fundo em busca do sol e da vodca matinal. As mulheres que amou queriam que o amanhecer de Tarso fosse temperado por risos cênicos e polêmicas honestas. Nasceu numa família de jornalistas em Passo Fundo, seguiu carreira em Porto Alegre, mudou-se para o Rio de Janeiro, assinou crônicas na Folha de São Paulo e conheceu a glória quando duelou com a obrigação de publicar o único hebdomadário fora da curva durante os anos de chumbo.

Mais do que apenas um solerte observador, ele foi o combustível do Pasquim quando publicou notáveis abundâncias sobre a cretinice e a burrice dos golpistas de 64.Para o amigo do cachorro engarrafado, bar é pátria. O que seria de Tarso sem o precioso líquido? Penso que não faria diferença. O contestador das bulas papais persistiria pois subitamente encilhava o cavalo para galopar por lampejos criativos.

Tarso não bebia para melhorar a humanidade. Ele possuía bússola própria e acalentava no íntimo um desmedido interesse pela realidade. Envolveu-se na loucura de entendê-la. Para isso mergulhou em altos conhecimentos dialéticos. Cacifava o inexplicável e abriu as asas para a fatalidade se alojar no seu jeito de ser (Glauber Rocha deu o apelido de Coração para a paixão de Candice Bergen).

Só o vi uma vez, na churrascaria Rodeio, no bairro dos Jardins, em São Paulo. O garanhão de Passo Fundo manteve-se fiel às suas escolhas. Duplou com Brizola até a última saideira. Formou uma galera de irmãos com direito a casos de amor e ódio momentâneo. Certa vez provou que era ruim de pontaria, envolvendo-se em rumorosa luta livre com o coleguinha Palmério Dória.

Sei que por pouco, muito pouco mesmo, o valentão das estâncias não assassinava o goleiro campeão do time juvenil do Payssandu Sport Club de Belém. O arqueiro precisou voar um mergulho salvador se estatelando no chão de olhos arregalados para o que restara da pesadona Remington, carroção duplo, toda de ferro ali a apenas alguns centímetros da sua cabeça. De relance, o papão do Curuzu do Norte viu na sua frente um sulista em transe sem acreditar no que acabara de fazer.

A boemia de Tarso prestou um grande serviço à velha e engomada imprensa brasileira. O Pasquim (1969-1991) produziu tiragens utópicas. Nos bons tempos bateu nos duzentões mil exemplares semanais. Era bala demais e o abominável terror encarregou-se de sair explodindo bancas de jornais. Não sobrou um exemplar a não ser a criatividade, a coragem e a memória.

Aos 49 anos, Tarso veio a óbito. “Coração” voltou para os pampas. Foi sepultado em Passo Fundo, cidade onde eu estive por duas semanas acompanhando a filmagem do comercial de uns dos “docinhos” da Monsanto. Me encantou o astral da gauchada no fim de tarde reunidos na praça principal. Ali até o próprio Rio Grande era objeto de comentários cabeludos. A turma espalhara que Tarso costumava baixar na praça. Todo elegante, bombachas coloridas, botas cano alto, esporas cintilantes, lenço vermeio no pescoço e a cuia na mão. Só que da bomba de Tarso transbordava um uísque milagroso.

Depois da pandemia, revisitarei Passo Fundo. Pretendo apertar a mão do filho da terra. Preciso dizer que Tarso soube usar as antenas transgressoras apontando-as para a democracia e o fim da desigualdade. Aposto que o autor de “79 quilos de músculos e fúria“ vai propor um brinde. Certamente ergueremos o elmo de prata, aquele que a Sua Majestade Rainha Vitória ofertou ao pinguço William Shakespeare.

Marcius Cortez é publicitário e escritor.

LUIZ-OLYNTHO TELLES DA SILVA / Nostalgia

Luiz-Olyntho Telles da Silva*

Ah! Quem não gostaria de voltar, navegando quiçá nos versos de Casemiro de Abreu, à infância querida, viajando no tempo com Wells, às origens do mundo, mas com o saber de agora, com a consciência que então não se tinha? Assistir ao Big Bang, bem protegido, é claro! (Embora não consiga acreditar que houvesse proteção para tanto. Sim, a explosão, originária da vida, teria sido também mortal.)

Quanto a mim, antes da pandemia, acreditava que só retornar a outros tempos, com Shakespeare, por exemplo, em uma tarde cinzenta, abrigado da garoa, lendo Virgílio e vendo Dido e Enéas também resguardando-se da chuva – eles em uma caverna, e assistindo à transformação em suas almas, proporcionada pela paixão –, já seria suficiente. Invisível na biblioteca do bardo, poderia testemunhar sua leitura da Eneida, o reconhecimento da pouca importância do cenário quando a paixão avassala tudo o mais. Sim, o chuvisco do qual se defendiam era um simples eufemismo para dizer da tempestade que lhes ia no coração. E Shakespeare começaria a escrever seu último romance. Um sonho. E se voltasse um pouco mais no tempo, em outro flashback, talvez pudesse ver que associações Virgílio teria deixado de anotar enquanto revia a desditada Dido abandonada por ordem dos deuses.

Queremos voltar para reencontrar bons tempos. E encontraríamos?

Odisseu, depois de dez anos pelo mundo, voltou para casa, para a mulher que supostamente o esperava, não ficou feliz e partiu novamente. Sua odisseia foi o nostos, origem etimológica de nossa nostalgia. Voltou para casa, mas encontrou-a tomada pelos pretendentes de Penélope, servidos por suas criadas, suas ovelhas e seus porcos, a esposa sem reconhecê-lo.

Menos ambicioso, acreditava ficar satisfeito se voltasse tão só àqueles dias em que o freguês sempre tinha razão! Porque agora – aliás, desde antes da pandemia (causada pelo Corona vírus Sars CoV-2), a exemplo dos viajantes que são tratados, legalmente, como potenciais ameaças sociais e examinados, antes de embarcar, com mais rigor do que ao bandido pego na rua, em flagrante –, os fregueses já não têm razão nenhuma. A tão sonhada igualdade – condição em que os direitos e as oportunidades de cada um seriam respeitados por todos –, transformou-se apenas em igual falta de respeito. Palavrões por todo o lado estão liberados; os jovens sabem mais que os velhos, nascem dentro de uma tecnologia de comunicação maravilhosa, mas que parece abolir toda a educação anterior, agora presumida como obsoleta. Se antes queríamos voltar a conviver com os dinossauros, mas em cabines de pressão controlada, hermeticamente fechadas e com ar condicionado a piacere, neste momento, atingidos por essa nova peste, trancados em casa, sentimos saudades até do tempo em que os vendedores nos tratavam mal. Se os relacionamentos, mediante uma boa tecnologia, pareciam mais fáceis e o outro, o semelhante, como objeto virtual, ficava lindo, agora vemos a falta que nos faz sua presença, seu abraço amigo.

Ah! Casemiro, como são belos os dias do despontar da existência! Respira a alma inocência como perfumes a flor.

 

Luiz-Olyntho Telles da Silva (Marcelino Ramos, 1943) é psicanalista e escritor. Autor – na área da literatura – de Incidentes em um ano bissexto, Iluminura turca e outras crônicas, Um elefante em Albany Street e Os Embaixadores. E-mail: lots@uol.com.br

 

MIRIAM GUSMÃO / A urgência de ressuscitar as palavras

As palavras estão mortas, ou melhor, “foram a óbito”, como rege o eufemismo que se tornou usual quando se fala em morte. Talvez não seja um momento propício para se pensar na morte das palavras, diante da dolorosa realidade de perda de milhares de seres humanos, eliminados por um vírus e pela negligência de péssimos governantes. Claro, essa é a morte que, no momento, exige-nos pensar e agir. No entanto, para pensar sobre problemas e agir para soluções, precisamos das palavras. Para compartilhar informações e conhecimentos, para interagir, para atenuar o peso destes dias e para projetar dias melhores, precisamos das palavras. E o que fazer, se já matamos as palavras e nem nos damos conta do incessante uso que fazemos dessas múmias, desses esqueletos inertes de discursos, dessas frases embalsamadas?

Em todos os âmbitos da comunicação humana, nos dias atuais, observamos o uso abusivo, esperto, gratuito e sem graça das palavras. É comum nos depararmos com textos pseudoacadêmicos, em que o entulho de citações gratuitas – muito além das necessárias e pertinentes, ou muito aquém de uma laboriosa revisão bibliográfica – substitui o que deveria ser uma real elaboração de ideias, capaz de contribuir minimamente com o conhecimento preexistente. Quem quiser percorrer os caminhos que, eventualmente, poderão nos levar à ressurreição das palavras, poderá escolher, por exemplo, o da desmontagem desses textos pernósticos de supostos intelectuais. É um exercício interessante, e até divertido, desconstruir textos vaidosos, pesados, enjoados, abarrotados de citações e carentes de conteúdo. Muitos deles são utilitários, pois servem de suporte a partidos políticos e, com frequência, asseguram a seus autores o status de referência teórica e, não raro, postos de assessoramento técnico. Cabe vasculhar o entulho de palavras e verificar o que, de fato, sobra de contribuição singular ao que já fora dito e citado.

O jornalismo – embora imprescindível desde sempre e mais ainda quando o governo desinforma – padece de clichês e simplificações, com raros trabalhos de investigação jornalística e de boa elaboração textual. As fontes das informações não variam muito e boa parte das notícias prende-se ao disse me disse de políticos e alguns economistas, sem contar o sensacionalismo e as aberrações. Os jornalistas destacados pelas empresas empregadoras, que lhes confiam postos de “colunistas” e “comentaristas” e o direito de “opinar” e “analisar”, não raro deleitam-se com a notoriedade e se ocupam de textos banais, de indisfarçável personalismo, de exercícios retóricos, ou de mera repetição de notícias já veiculadas, sem uma análise significativa. Assim é que um presidente da República, que não exerce minimamente o que o cargo exige, consegue pautar a imprensa todos os dias, bastando proferir qualquer frase absurda para merecer grande repercussão e “análises”. Quem quiser ir atrás da ressurreição das palavras no jornalismo, deverá demandar, como leitor, ouvinte ou telespectador, melhor qualidade no entulho de informações e comentários.

Os militantes políticos, com respeitáveis exceções, assim como os operadores das chamadas mídias alternativas, blogueiros e boa parte dos usuários de redes sociais, mergulhados num ativismo ininterrupto e nunca autoavaliado, colaboram diariamente com o entulho de palavras que já foram a óbito. É impressionante ver como considerável parte dos ativistas abriu mão de pensar e de se expressar por conta própria, restringindo-se ao repasse permanente de frases feitas, de juízos herdados e de expressões surradas que se tornam vazias. Todo o pensar e todo o dizer são extraídos de escaninhos, onde tudo está pronto para uso. As identidades, seja qual for a ideologia, estão moldadas em escaninhos contemporâneos. As pessoas se afirmam rigorosamente conforme os moldes e passam a repetir o que está moldado, assim como as frases para cada situação. E quem discordar receberá prontamente os adjetivos de ocasião, os rótulos prontos para uso, pois toda a etiquetagem já está feita e à disposição dos adeptos de cada causa. A enxurrada dos compartilhamentos de slogans e discursos clichês causa cansaço, embora seus agentes não detectem que provém dessa correnteza uma parte do desânimo que, volta e meia, os assalta, na situação já desalentadora de nossos dias. Quem quiser ressuscitar as palavras no ativismo político precisará ir atrás da capacidade crítica perdida, da cidadania atrofiada, da recuperação da autonomia necessária para fazer parte de uma causa sem ser engolido por estruturas e instâncias de poder.

E os usuários das redes sociais, que desperdiçam tecnologias potencialmente proveitosas e prazerosas para a comunicação interpessoal, poderiam também se ocupar um pouco da tentativa de ressuscitar as palavras. Muitas vezes devem estar cansados, transitando pelos sarcófagos dos insultos e intolerâncias, dos debates sem conhecimento dos assuntos, das críticas em Português precário, das opiniões sem qualquer reflexão, das repetições de postagens prontas, da gratuidade de palavras mortas. Carregar palavras mortas, interagir com palavras mortas, deixar-se soterrar por palavras mortas, significa também estar morto como sujeito do discurso. Este texto traz, desde o início, uma singela proposta para reflexão: a possibilidade de alguma ressurreição das palavras e dos sujeitos dos discursos. E uma das vias para buscar, na vida prosaica, no cotidiano, a ressurreição das palavras poderá ser a recuperação da capacidade de contar uma boa história. Contar, em texto singular, em texto próprio, oral ou escrito, uma história interessante, é recuperar-se como sujeito do discurso, é ressuscitar-se. É também possibilitar a ressurreição do interlocutor, que, inevitavelmente, no ato de ouvir ou ler, vai recriando a história, preenchendo seus não-ditos, salpicando-a com as luzes de sua imaginação ou de sua memória.

Contar uma boa história, não necessariamente dentro de um gênero literário reconhecido, mas contar simplesmente uma história interessante, uma cena presenciada na rua ou em algum lugar qualquer (pois boas cenas existem; basta saber observar), um evento do passado, uma experiência vivida, um acontecimento do dia anterior, um fato inusitado, real ou imaginário. Contar boas histórias para não morrer. Foi assim que Sherazade, a memorável contadora de histórias de As mil e uma noites, conseguiu evitar que o sultão Shariar a matasse. (Essa narrativa milenar e de muitos autores anônimos do mundo árabe transita no Ocidente, como um clássico, desde o início do século XVIII, com muitas traduções, e já está em PDF na Internet). Saber contar histórias, para viver e para que as palavras vivam. E rechear a narrativa com boas descrições, como as descrições encantatórias de As cidades invisíveis, do escritor Ítalo Calvino (CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990). Nesse livro, o viajante Marco Polo dá conta das cidades por ele visitadas para o conquistador, Kublai Khan, imperador dos tártaros, que nem conhecia seu imenso império. Reais ou imaginárias, as cidades descritas, com riqueza de detalhes, por Marco Polo, encantam o imperador.

Não faz muito tempo, se pensarmos numa linha de tempo histórico, que ainda era comum sentar em casa, à noite, para ouvir as boas histórias que os mais velhos contavam aos mais novos. Sim, os mais velhos, por terem vivido mais tempo, tinham boas histórias para contar. E os mais novos aprendiam a arte de contar histórias, de uma maneira natural. Difícil era ir para o quarto dormir, se os relatos tinham sido de assombrações! Também era um momento muito aguardado o da chegada de um parente, que vinha da cidade natal para uma estada de alguns dias ou meses. O que mais se aguardava eram as histórias que esse parente trazia consigo e sabia contá-las, criando uma atmosfera mágica na casa. Todo o peso do cotidiano desaparecia, ou se ausentava um pouco, com a leveza das interações em torno das boas histórias compartilhadas. Quem sabe seja possível, nestes dias de palavras que foram a óbito, de entulho de frases feitas, de discursos pernósticos, de tagarelice sem graça, ressuscitarmo-nos como sujeitos de nosso discurso e ressuscitarmos as palavras, em afetuosa interação com os outros, contando e ouvindo boas histórias…

*Miriam Gusmão é professora aposentada e jornalista.

LUIZ-OLINTHO/O retorno da Peste

Luiz-Olyntho Telles da Silva

A pandemia pegou-me de surpresa. Não que ela tivesse surgido de repente, não. Sabe como é, você vê o mal, ao longe, e pensa que não tem nada a ver consigo, porém, quando menos espera, ele está forçando sua porta e nós sem saber como nos defendermos de um inimigo invisível.

Quando a epidemia surgiu, lá no Oriente, não parecia grande coisa. Aquele pessoal estava acostumado ao uso de máscaras. O ar de suas cidades, diziam-nos, era tão poluído que o uso de proteção, para andar na rua, era praticamente obrigatório. Então, usar máscara para proteger-se de um vírus de gripe não tinha nada de extraordinário. Mas eis que, como uma onda, seguindo o caminho do retorno de Marco Polo, quando esteve na China, o vírus alcança a Itália, desde o calcanhar até os grandes lagos, onde prolifera a indústria da moda, e transforma-se em um tsunami alagando toda a Europa.

O horror tomava conta do Velho Mundo. Uma angústia começa a apertar nosso peito. Os amigos que moram aí, como estariam? As notícias, em sua maioria, eram alarmantes, embora o contato telefônico com os parentes fosse mais tranquilizador: frente ao assombroso número de mortos, proclamado pelas as notícias, o sofrimento de um filho que estava lá, de um pai ou um irmão em viagem de férias, devia-se apenas ao confinamento. Mas eis que uns conterrâneos, regressando de uma festa de casamento, em Miami, aterrissaram na Bahia doentes, contaminados. O vírus chinês chegara ao Brasil e, em poucos dias, a pandemia começava a devorar também os gaúchos.

Embora, pela idade, esteja no grupo de risco, pessoalmente, não me considero um velho. Acredito que esta questão etária tenha muito de subjetivo. Não basta contar as voltas ao redor do sol. Aliás, quando penso em quanto tempo ainda tenho de vida, costumava encontrar um limite na idade em que meu pai faleceu, e pensava nos anos que tinha pela frente, até alcançá-lo, nos seus setenta e cinco anos; mas agora, com essa ameaça iminente, já não consigo pensar em anos. Cada mal-estar, cada dorzinha de garganta, mesmo sem febre, leva-me a contar os dias de incubação deste Sars CoV-2. E, passando as dores, quando voltam, recomeço a contagem dos últimos dias. Assim, já não sei como contar a idade. Ora não sei se alcançarei meu pai, o que antes parecia muito certo, ora tendo a acreditar que já o ultrapassei, mas a verdade é que tenho pensado muito nele.

Embora fosse bem humorado, com um olhar especial para ver o lado engraçado das coisas, meu pai não era de falar muito sobre sua vida. Participou em duas revoluções e nunca disse uma palavra sobre isso. Uma única vez ouvi, de um camarada de caserna dele, em uma visita breve a nossa casa, que ele era muito rápido em montar e desmontar uma metralhadora INA. Mas, dele mesmo, nunca ouvi nada. Contudo, uma vez, já não lembro o motivo, contou-me que, ainda menino, ficara muito chocado ao ver, durante a Gripe Espanhola, as pessoas jogarem os cadáveres dos mortos da família em uma carroça que ia passando pela rua, de casa em casa. Talvez tivesse aí começado a preocupar-se com a morte. Sua curta descrição calou-me fundo. Até hoje, quando lembro esse episódio, ainda visualizo a carroça, com todos os seus detalhes: o carroceiro, fazendo as vezes de Caronte, num canto triste, de quem reza, repetindo os nomes dos bois, Vai Barroso, vai Pitanga, enquanto, com uma vara na mão, ia fustigando os animais presos à canga pelas cravelhas, as madeiras de cabreúva, já sem cor, mas ainda perfumadas, os ferros enferrujados das travas e a portinhola de trás aberta, as rodas enormes, da altura da carroça, rangendo no duro eixo de ipê, como se chorassem pelos cadáveres empilhados, uns por cima dos outros, indo alguns enrolados em mortalhas, outros na última camisola. Por certo não era a melhor imagem para alguém introduzir-se no tema, embora eu não saiba se há uma imagem que, para isso, seja melhor do que outra. Papai não tinha boas lembranças da morte e, se dela não fugia, não a procurava. Lembro de sua frase repetida quando havia velório: – Quem não é visto, não é lembrado! E não ia. Nas minhas entranhas algo apertava. Pontadas de medo, diziam-me. Acredito ter herdado um pouco desse medo e, confesso, os velórios sempre me deixam muito triste.

Foi então que me veio à lembrança este antigo conto sufi: é a história de um homem que, caminhando nos arredodres de Bagdá, encontrou-se, de repente, com a Peste e, logo após recuperar-se do susto, perguntou-lhe:

– Onde você vai?

A Peste respondeu-lhe, tão rápida quanto cáustica:

– Vou a Bagdá matar dez mil pessoas.

Dias depois, ambos voltaram a encontrar-se no caminho e o homem, indignado, queixa-se de ter sido enganado:

– Dissestes-me que ias matar dez mil pessoas e matastes quarenta mil!

– Não, disse a Peste. Matei só dez mil, como prometido, os demais morreram de medo.