MIRIAM GUSMÃO / O velho e o mar da pandemia

A incompetência brasileira para enfrentar a pandemia do coronavírus produz a singular necessidade de prolongamento infinito da quarentena dos mais vulneráveis. Tende a ser a quarentena mais longa do mundo, por conta de um país que não teve a capacidade de fechar temporariamente a economia e a vida social, a fim de frear a velocidade de transmissão do vírus e torná-lo controlável. Governos irresponsáveis, empresários gananciosos e um grande contingente de pessoas egoístas, que se aglomeram teimosamente em locais públicos e se recusam a usar a máscara de proteção, sustentam o quadro desolador. Dentre tantas características observáveis nesse contexto, a situação dos idosos vem à tona, tanto como atestado da sociedade injusta e decaída em que vivemos, quanto como possibilidade de alguma reflexão sobre a condição humana. É nesse sentido que tentamos descortinar, na incompletude deste breve texto, a condição de uma pessoa idosa que vive sozinha numa casa ou apartamento de uma cidade brasileira e que se encontra em tão prolongado isolamento social. Para isso, recorremos ao livro O velho e o mar, do escritor norte-americano Ernest Hemingway, situando a condição do idoso brasileiro na pandemia como análoga à do velho pescador Santiago, isolado na imensidão das águas.
Santiago havia sido um grande pescador, admirado pelos seus colegas contemporâneos e pelo seu assistente Manolín, que desde criança aprendia o ofício com ele. Contudo, no presente da narrativa, fazia 84 dias que Santiago não conseguia pescar um peixe sequer. Passou a ser motivo de chacota dos jovens pescadores locais e perdeu o assistente, já que a família de Manolín ordenara que ele fosse buscar o sustento, trabalhando com um profissional mais exitoso. Assim, Santiago lançou-se sozinho ao mar, e ao alto mar, em seu pequeno e desgastado barco. Enfrentando a fúria das águas, em absoluta solidão, com uma das mãos machucada, o velho falava sozinho, o que poderia parecer caduquice, ao senso comum, mas que era um monólogo – a conversa possível – e era puro pensamento sobre as marés da vida, os esforços, os infortúnios e o sonho de vencer. O velho inventava sua estratégia de resistência e sobrevivia, sem perder o objetivo de pescar, de superar o fracasso. Finalmente conseguiu capturar um peixe, mas foi um peixe enorme, gigante, realmente descomunal, que lhe exigiu redobrada habilidade, numa verdadeira luta de muitas e muitas horas. Conseguiu prender o peixe à embarcação e começou a se dirigir para a costa, mas os tubarões, pouco a pouco, devoraram sua presa e Santigo chegou à costa apenas com a carcaça do peixe presa ao barco. Atracou, enrolou as velas, colocou o mastro nos ombros e, com muita dificuldade pelo cansaço e o sofrimento do corpo, conseguiu chegar até a cabana humilde em que vivia, onde se jogou na cama rústica para dormir. Sobrou-lhe um amigo: Manolín veio com a caneca de café quente e com amparo, dizendo-lhe que gostaria de voltar a ser seu assistente, que ainda tinha muito o que aprender com ele. “Venceram-me, Manolín. A verdade é que me venceram”, disse o velho. E Manolin, que havia chorado de emoção quando buscou o café, tentou ajudar o amigo a ponderar: “O peixe não; o peixe não te venceu”.
Mesmo que Hemingway, já no ano de lançamento desse livro – 1952 – tenha insistido que sua narrativa não era uma metáfora da vida real e sim uma simples história de um pescador e o mar, a obra sugere, inevitavelmente, uma reflexão que a transcende. É o segredo dos grandes textos, em que a aparente simplicidade sabe abrigar densidade e profundidade. As narrativas excelentes, por abordarem questões fundamentais da vida humana, são obras permanentemente abertas e conversam com diferentes circunstâncias. Assim é que podemos pensar, a partir de O velho e o mar, a solidão de uma pessoa idosa, sozinha, no alto mar da pandemia do novo coronavírus. A chacota dos pescadores jovens diante da frustração do velho pescador, desconsiderando tudo o que ele tenha realizado no passado, transporta-nos para o preconceito com os idosos nos dias atuais, que tem assumido a forma de grosseira intolerância. São recorrentes nas redes sociais as gracinhas contra os velhos, as piadas de mau gosto e precária elaboração. Nas ruas e locais públicos das cidades, são frequentes os desaforos, os insultos, sempre usando pejorativamente a palavra velho(a). Muita gente já observou a cena de um idoso que, ao pagar uma conta numa lotérica e, eventualmente, reclamar de alguém que ali está tagarelando com a máscara no queixo ou no pescoço, ouvir como resposta uma frase usual: “Vai pra casa, véio”. Ou seja: os velhos que se recolham, que fiquem fechados em casa infinitamente, que sequer paguem contas ou deem uma pequena caminhada necessária à saúde, enquanto os mais novos usufruam de tudo o que bem entendam e descumpram as medidas sanitárias.
O descumprimento das medidas sanitárias por pessoas jovens e de meia idade, que são as que, via de regra, aparecem nas fotografias e filmagens de locais de aglomeração, impõe o prolongamento do confinamento das pessoas de grupos de risco, em especial os idosos. É a irresponsabilidade de uns penalizando outros, numa sociedade em que o egoísmo impera e onde a empatia faz parte de um discurso vazio. Assim como o velho Santiago, na solidão do alto mar, vivia a incerteza dos dias vindouros, os velhos do mar da pandemia no Brasil, sozinhos em suas quarentenas, vivem a dolorosa incerteza, sem saber até quando perdurará essa situação. Todos os prognósticos do tão falado “achatamento da curva” do monitoramento dos contágios foram sucessivamente descartados e não há uma perspectiva confiável quanto a alguma data para que as portas possam ser abertas e os convívios possam ser retomados com segurança.
Como o sol que queimava a pele indefesa de Santiago, ou os ventos que fustigavam seu rosto, as notícias e análises que colocam os velhos de hoje como estorvo, como despesa insuportável da Previdência Social, açoitam seus ouvidos e sua alma. Eles sabem que é pura injustiça e ingratidão, pois trabalharam a vida toda e descontaram de seus vencimentos as contribuições que hoje compõem sua geralmente parca aposentadoria. E muitos desses velhos ainda ajudam, com boa parte desses diminutos vencimentos, filhos desempregados ou netos. Como o prenúncio de morte que os tubarões, rondando o barco, representavam para Santiago, os critérios “técnicos” para uso dos insuficientes respiradores nos hospitais lotados são prenúncios de morte para os velhos da quarentena. Os foliões dos bares, das praias, dos parques, das festas nos casarões, os agentes das aglomerações, terão a primazia, serão os escolhidos para viver, por serem mais jovens e pela ausência de comorbidades. Ninguém saberá das riquezas das trajetórias dos velhos da pandemia, do que fizeram e aconteceram, do que lutaram, do que superaram, do que ajudaram, do que cresceram, do que criaram, do que sonharam, do que ainda aguardavam. Seus anos de vida respondem a quesitos de descarte, são pontos negativos. As marcas da genética e das vivências em seus corpos nada mais são do que comorbidades. A consciência de estar na última etapa da vida, inerente à velhice, que pode ser uma consciência relativamente serena, que pode fazer parte dos pensamentos e sentimentos maduros, é abalada pela possibilidade de um vírus mal combatido abreviar essa fase de modo abrupto.
Mas há muitos velhos na quarentena a buscarem força interior que possa suplantar a maré ruim. Há velhos que leem, que escrevem, que meditam, que cozinham, ou que regam plantas, ou que pintam, ou que moldam, ou que costuram, ou que criam objetos e que transformam sua casa em redoma que os possa salvar das hostilidades. Há velhos que ainda cantam; doces vozes que, às vezes, permeiam, quase inaudíveis, o concreto das cidades. O velho Santiago não cantava mais, desde que ficara sozinho no mar. Ele apenas tecia seu monólogo interior e, por vezes, falava alto. Não lembrava desde quando adquirira o hábito de falar em voz alta consigo mesmo, mas achava que era desde que deixara de contar com a companhia do amigo Manolín. Deve haver muitos velhos falando consigo mesmo nas quarentenas das cidades do Brasil. Deve haver muitos que deixaram de cantar e que deixaram de sorrir. Santiago mencionou que seu barco não tinha os rádios de comunicação dos barcos das pessoas de posses. Hoje as facilidades de comunicação das modernas tecnologias não estão acessíveis para alguns velhos, num país tão desigual como o Brasil, mas principalmente não são muito usadas por boa parte dos familiares que poderiam atenuar a solidão dos velhos no mar da pandemia. Nada parecido com as sociedades primitivas, em que os anciãos eram encarados como sábios e conselheiros, respeitados e queridos por todos. Nesta sociedade hostil de nossos dias, sorte do velho que tiver um amigo como Manolín, a aguardar por ele e a enconrajá-lo a seguir, após a longa quarentena. Sorte do velho que venha a ouvir alguém dizer-lhe que ainda tem muito a aprender com ele, mesmo que seus esforços, suas façanhas e o gigantesco produto de seu dedicado trabalho saiam em carcaça do mar da pandemia.

*Miriam Gusmão é professora aposentada e jornalista.

 

3 comentários em “MIRIAM GUSMÃO / O velho e o mar da pandemia”

  1. Que belo Texto, Miriam, sensível, denso e objetivo, a altura da obra de Hemingway. Uma semana antes de chegar aos 66 anos, me sinto um pouco um Santiago, acossado pelos tubarões de uma sociedade cada dia mais sem noção e desprovida de valores dignos.

  2. Quando li “O velho e o mar”, na minha juventude, não tive a capacidade enxergar os dramas subjetivos que tão bem expuseste e tampouco a sensibilidade de traçar analogias como talentosamente nos revelastes… Isso é claro tem haver com a qualidade do texto, mas também com a riqueza do universo subjetivo e intelectual do leitor… parabéns Miriam Gusmão!

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