A viagem de Saint Hilaire: Um olhar crítico sobre o Rio Grande do Sul

Selo Diario de SaiFrancisco Ribeiro

Na manhã do dia cinco de junho de 1820 o botânico e naturalista  francês Auguste de Saint-Hilaire cruzou o rio Mampituba (“o pai do frio”) e entrou na capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul.

Viajando numa carroça pelo litoral atravessou a fronteira e chegou a Montevidéu, de onde retornou completando um ano de viagem durante o qual  escreveu o melhor relato sobre a situação do Rio Grande do Sul naquele período.

Sob forma de diário, mas sem o tom intimista que caracteriza o gênero, Saint-Hilaire recolheu material que ultrapassava sua expertise como botânico.

Escreveu sobre usos e costumes, gentes, clima, acidentes geográficos, situação política e econômica, num momento em que a ocupação do território era incipiente, a população não ia além de 80 mil habitantes, dispersa em pequenos povoados.

Também teve um olhar crítico sobre a administração da capitania  sob o império portugues.

Castelo de La Turpiniére, onde nasceu Saint Hilaire

Auguste François César Prouvençal de Saint-Hilaire nasceu em 1779, em Orleães, França. Nobre, cresceu no Chateau de la Turpiniere, ao qual voltou para morrer em 1853.

Teve uma infância no Ancien Regime. Era adolescente na época do Terror (1793-1794), quando rolaram as cabeças dos antigos monarcas e, na sequência, dos principais líderes da Revolução Francesa, Danton e Robespierre.

Presenciou a ascensão e a queda de Napoleão I,  e a restauração dos Bourbons em 1815. Em meio a tudo isso estudou história natural, tornando-se botanista.  Algo vertiginoso.

Já era um homem maduro, próximo dos 40, quando chegou, em 1816, no Rio de Janeiro, na companhia do Duque de Luxemburgo, designado como embaixador na corte de D. João VI.

As relações entre França e Portugal caminhavam para a normalização, mas, por longo tempo, cairia sobre qualquer francês a desconfiança de ser um espião.

O que não impediu a Saint-Hilaire de obter as cartas de recomendação necessárias a peregrinar pelo Brasil como visitante oficial, recebendo por onde passasse a ajuda – transporte, comida, hospedagem – que precisasse.

Saint Hilaire fazia parte da nova leva de exploradores, os naturalistas, cujas observações, de cunho científico, passavam a concorrer com os relatos, muitas vezes de tom picarescos, dos primeiros aventureiros que, como Hans Staden, escreveram sobre o Brasil.

Saint- Hilaire, como Carl Friedrich Von Martius (naturalista, que percorreu o parte do Brasil no mesmo período que ele), ou John Mawe (minerador, viajou pelo Brasil entre 1807 e 1811), ou, posteriormente, Georg Heinrich von Langsdorff,  são, prioritariamente, cientistas.

E, como seus pares, Saint-Hilaire não se contentará em apenas coletar material para análises e futuras coleções de plantas e animais destinados aos museus naturais da Europa.

Do castelo ao pampa

Quando Saint-Hilaire cruzou o Mampituba, trazia consigo a experiência de quase quatro anos de viagens pelo interior do Brasil – Rio, Minas, Goiás, São Paulo, etc –, viajando a pé, de barco, de carroça ou no lombo de um cavalo.

Fez um trabalho científico minucioso, principalmente no que tange a herborização. Ao término de sua viagem obteve uma estupenda coleção e catalogação de sete mil espécies de plantas. Acervo que seria  entregue ao Museu de História Natural de Paris.

Quando chegou ao Rio Grande do Sul, Saint-Hilaire  também trazia as fadigas acumuladas pelas penosas viagens e o descontentamento com aqueles que o serviam: José Mariano, um tropeiro mestiço alugado em Ubá; Manoel, um negro-forro alugado em São Paulo, encarregado do trato, carga e descarga dos animais; e Firmiano, um índio botocudo, encarregado do transporte e do preparo das provisões.

Enfim, ao cruzar o Mampituba, Sain-Hilaire, como sugere, explicitamente, as anotações do seu diário, não está no seu melhor astral. Escreve:

“Esta viagem vai se tornando cada vez mais penosa, contribuindo para o esgotamento de minhas forças e de meu ânimo. A imagem de minha mãe apresenta-se sem cessar em meu espírito, e, sempre me encontro sem ter com que me distrair vejo-me cercado de pessoas descontentes”. (SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul.Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1974).

Estes períodos de chagrin (desgosto), como ele diria, volta e meia aparecem em seus relatos. Mas nada que o impeça de trabalhar, herborizar, como gosta de salientar.  Assim, ao passear pelos montes, Torres, admira cactáceas, um grande Eryngium, e entre bromelácias e arbustos, constata pela primeira vez na costa sul  a mirtácea chamada pitanga.

Mas, se prevalece sempre o lado botânico, naturalista, Saint-Hilaire também registra que em meio a magnífica e, então, desolada paisagem do litoral Norte – mar a leste, lagoas, serra geral, cordilheira, a oeste – vivem camponeses muito pobres, que moram em míseras cabanas, choupanas e palhoças.

Habitações onde o frio, a chuva e o vento entravam por todos os lados. Algumas beiravam a tal indigência que ele recusa a hospitalidade, seja para pernoitar (“mandar fazer o seu leito”), seja para partilhar a sopa que uma família consome sob uma esteira estendida no chão de terra.

Mas, por outro lado, constata que não falta comida. Há culturas de milho, trigo, feijão, algum algodão, e alguma cana-de-açúcar para fabricar aguardente. Não eram de ferro.

Também analisa que, devido à falta de recursos dos camponeses do litoral, o rebanho é em número inferior ao tamanho das pastagens.

Apesar dessas primeiras impressões, Saint-Hilaire logo constatará que a Capitania do Rio Grande do Sul é uma das mais ricas do Brasil. E seu astral melhora ao atingir os Campos de Viamão e, logo depois, chegar a Porto Alegre, que já era capital, mais ainda não tinha ganho o foro de cidade, que só viria a ocorrer em 1822.

Saint-Hilaire permaneceu mais de um mês em Porto Alegre e, se por um lado, a considera mais suja que o Rio de Janeiro, por outro, não deixa de ressaltar as suas belezas. Escreve:

“Os terrenos planos e cultivados que vi, logo ao chegar a Porto Alegre, ficam apertados entre o caminho novo (atual Voluntários da Pátria) e a colina na extremidade da qual se acha a cidade. Raros são os passeios tão encantadores como o do Caminho Novo, o qual lembra tudo quanto existe de mais agradável na Europa”. (SAINT-HILAIRE,  1974).

Foi o primeiro, dada confluência dos rios – Caí, Gravataí, Jacuí, Sinos – a denominar o Guaíba como lago.

Percebe também que acidade está cheia de construções novas, que tem um porto e um comércio efervescentes. Também nota que, apesar do frio, as casas não possuem aquecimento, lareiras.

Isso faz com que as pessoas, dentro de casa, mesmo vestindo pesados capotes, que tolhem seus movimentos, continuem a tremer de frio.

Como curiosidade, no seu diário, em quatro de julho de 1820, escreve que: […]”Há geada quase todas as noites e o Conde (Conde da Figueira, governador, na época) mandou juntar muito gelo para fazer sorvete”. (SAINT-HILAIRE, 1974).

Também é a partir de Porto Alegre que Saint-Hilaire começará a entender realmente a complexidade dos interesses políticos, econômicos e militares que envolvem a capitania.

Mapeia regiões e recolhe dados sobre a flora, a fauna, exportações e importações, contingentes militares. Primeiro, em sua jornada rumo a Montevidéu. Depois, em seu retorno, já em 1821, ao Rio Grande do Sul, percorrendo as Missões, voltando a Porto Alegre.

Neste percurso, próximo ao arroio Guaratapuitã (cercanias de Uruguaiana), em primeiro de fevereiro de 1821, ocorreu a incrível experiência de Saint-Hilaire ao consumir o mel da lechiguana.

Eis como é que ele conta a “viagem”: […] “avalio não ter tomado quantidade a duas colheradas. Senti logo uma dor no estômago, mais incômoda que forte e deitei-me em baixo da carruagem, com a cabeça apoiada sobre uma pasta do herbário, caindo em uma espécie de sonolência, durante a qual senti-me transportado aos espaços celestiais, ouvindo uma voz que gritava: “Ele não se perderá, há um anjo que o protege.” Nesse instante minha irmã veio buscar-me pela mão. Achava-se vestida de branco, com uma faixa ao redor do corpo e sua fisionomia trazia aparência de inexpressável calma e serenidade. Tomou-me pela mão, sem me olhar e sem proferir uma só palavra, e conduziu-me perante o tribunal de Deus. Lembrei-me das últimas palavras da parábola do Bom Pastor e acordei”. (SAINT-HILAIRE, 1974).

Seguiram-se vômitos, sustos, e chás para cortar o efeito.. Conforme informa, entre o consumo do mel, 10 da manhã, e a volta da “sobriedade”, ao pôr do sol, Saint-Hilaire viveu, avant la lettre, aquilo que se chamaria de bad trip.

Ou seja, não dá pra configurar um Saint-Hilaire “viajandão” pelo pampa, pois, no fundo, levou a experiência como uma espécie de envenenamento, com sequelas, e da qual custaria a se restabelecer.

De resto, muitas anotações interessantes nesses percursos da volta ao Rio Grande do Sul.

A fertilidade dos solos, capazes de produzir cereais em abundância, e frutas de clima temperado. E as pastagens que, mesmo inferiores às uruguaias, garantem uma carne de excelente qualidade e um “magnífico leite”.

Sua curiosidade em relação à economia da capitania faz com que, em Rio Grande, obtenha informações e liste as importações e as exportações dos anos logo anteriores aos de sua chegada, de 1816 a 1819.

Elas dão um bom quadro do movimento comercial da época. A capitania exportou: carne seca, sebo, graxa, crinas, barris de carne salgada, couros de bois, couros de égua, trigo.

E importou: sal, farinha de mandioca, arroz, açúcar, marmelada, doces e chocolates, café, chá, vinhos, aguardente, presunto, bacalhau, manteiga, queijos, fumo, tecidos, móveis e, claro, escravos.

Mas, se por um lado, e para a época, trata-se de uma economia pujante, por outro, sofre, segundo Saint-Hilaire, as mazelas de um governo incapaz de defender os interesses da capitania no que tange a cobrança de impostos, considerados excessivos, e os abusos de requisições, como animais, para as tropas.

Também ouve e registra queixas sobre a falta de infra-estrutura, estradas intransitáveis, e, principalmente, pontes: “Venho de terminar uma viagem de quase 600 léguas, em região sulcada de rios e é notável não ter encontrado uma só ponte. Em toda parte só encontro pirogas, e essas quase sempre em péssimo estado.” ( SAINT-HILAIRE, 1974).

O governo era incapaz, inclusive, de oferecer segurança e, daí, conforme testemunhos dados a Saint-Hilaire, o abandono de muitas estâncias pela desistência de alguns proprietários em reconstruir, pela terceira vez, benfeitorias destruídas por tropas regulares, espanhóis ou portuguesas, milícias, mercenários, índios, ou bando de gaúchos.

Todos, invariavelmente, nestas ações, “requisicionavam” o gado, cavalos e tudo que pudessem levar.

Enfim, as anotações de Saint Hilaire sobre todas as mazelas que envolvem a administração da capitania. E a relação da mesma com o poder central – mesmo depois de efetuada a independência do Brasil, em 1822, dão elementos para vislumbrar a gênese do descontentamento que fará eclodir, em 1835, a Revolução Farroupilha.

Entre a civilização e a barbárie

O Rio Grande do Sul que Saint-Hilaire conheceu era um espaço geográfico sujeito a guerra de fronteiras ainda não definidas.

Uma disputa  por terras que desde o século XVII conduzia ao engalfinhamento portugueses e espanhóis. E o conflito aumentou quando, depois de uma intervenção contra Artigas, comandada pelo general Lecor, em 1817, o governo português anexou a Banda Oriental, sob o nome de província Cisplatina, ao Brasil.

Assim, o Rio Grande do Sul no qual chegou Saint-Hilaire era uma praça de guerra, um grande acampamento militar em meio ao qual tentavam sobreviver – cada um de acordo com a condição a que estava sujeito – brancos, índios, negros e mestiços.

O que não era fácil apesar da abundância de carne e montaria.  O Rio Grande do Sul também já era habitado por “bárbaros” gaúchos, termo que na época designava seres marginais, associados a crimes, pilhagens. Muito longe da aura aventureira que lhes daria José Hernandez com o seu Martin Fierro.

O gaúcho de Saint-Hilaire não é um monarca das coxilhas, mas um bandido, ou, o mais simpático que consegue chegar, “um bandoleiro de melodrama”.

Preconceito que poderia ser estendido a maioria dos rio-grandenses e platinos que, numa escala social, colocavam o gaúcho abaixo do escravo que, pelo menos, tinha cotação de mercado, era um “bem”.

Já o gaudério tinha serventia, ocasionalmente, como peão, principalmente em épocas de rodeio, ou soldado provisório nas guerras de fronteira. Mais comumente, era tido como ladrão, conforme exemplifica este testemunho colhido por Saint-Hilaire: […] “Os animais de Itaruquem (estância) desapareceram quando os gaúchos entraram em São Nicolau”. (SAINT-HILAIRE, 1974).

Entretanto, a prática de roubo de gado ou, eufemisticamente, “requisições”, era comum entre tropas (invasoras, rebeldes, ou legalistas), ou milícias que em troca, ofereciam vales que dificilmente eram pagos.

Na verdade, nenhum grupo social ou étnico fica imune ao julgamento e preconceitos de Saint Hilaire, embora, muitas vezes, se contradiga.

Os primeiros, logo na chegada, a colocar sob sua mira são índios,  em Torres, num agrupamento de índios, prisioneiros, tomados a Artigas, e que seriam empregados na construção de um forte.

Eles eram:[…] “todos baixos, têm o peito de largura exagerada, os cabelos negros e lisos, o pescoço curto e uma fisionomia verdadeiramente ignóbil” (SAINT-HILAIRE, 1974).

Entretanto, logo em seguida, escreve que o alferes encarregado deles fez um “elogio de sua docilidade” (SAINT-HILAIRE, 1974). Meses depois, diante de um índio guaicuru percebe: […] “algo de nobre em sua fisionomia” (SAINT-HILAIRE, 1974).

Este desprezo em relação aos índios será recorrente em todo o livro. Mas, nada se compara ao julgamento que faz das índias. Para ele, são “feias, sem pudor, sem brio”, oferecendo-se aos homens que o acompanhavam.

Também, acrescenta, transmitem doenças venéreas. E, sobretudo, ociosas; […] “Não as vi fazer nada além de andar a toa e dormir” (SAINT-HILAIRE, 1974). E ele registra um dos dizeres da época: “As índias diziam que se entregavam aos homens de sua raça por dever, aos brancos por interesse e aos pretos por prazer” (SAINT-HILAIRE, 1974).

Saint Hilaire atribui a degeneração moral e material dos índios guaranis a destruição das missões: […]”Depois da saída dos Jesuítas os índios das Missões ficaram entregues aos soldados e homens corrompidos, vivendo atualmente de pilhagem, no meio das desordens da guerra, não sendo de admirar se suas mulheres não mais conheçam o pudor” (SAINT-HILAIRE, 1974)

Saint-Hilaire também se  apega a ideia de que o principal problema dos índios, e nisso, segundo ele, inferiores aos negros, é sua falta de “noção de futuro”, apegando-se unicamente ao presente.

Vê-os como crianças, seduzidos por doces, como a garapa da cana fornecida pelos padres. Assim como a música, agora também utilizadas pelo militares para engajá-los nas tropas. E nisso, chama a atenção, no período, o enorme contingente de soldados índios envolvidos em combates nos dois lados da fronteira.

Contudo, em relação às índias, não se trata propriamente de misoginia. Ele é mais simpático em relação ao mulherio local, portuguesas, ou de origem, que, se não chegam a ter o charme das francesas, não se escondem, como em outras províncias do interior do Brasil, diante dos homens.

É interessante a descrição que faz de um grupo de senhoras num baile, em Rio Grande:[…] “Têm os olhos e os cabelos negros, e em geral belo porte e boa cor, porém, destituídas de graça, de atrativos dados pela educação, que as mulheres deste País não recebem”. (SAINT-HILAIRE, 1974).

Vale ressaltar o acento que dá sobre a falta de educação para meninas.

Tem um trato diferenciado em relação aos negros. Primeiro, como seres de segunda ordem. São comuns as expressões como: casa para negros, roupas para negros, um negro me trouxe isto ou aquilo.

Depois, valoriza-os em relação aos negros de outras províncias: […] “não há, creio, em todo o Brasil, lugar onde os escravos sejam mais felizes que nesta capitania […] os senhores tratam-nos com menos desprezo […] o escravo come carne a vontade, não é mal vestido, não anda a pé e sua principal  ocupação consiste em galopar pelos campos, cousa mais sadia que fatigante” (SAINT-HILAIRE, 1974).

Também valoriza os negros como grupo étnico: […] “quase todos os escravos do Barão (José Egídio, barão de Santo Ângelo) são negros-minas, tribo bem superior a todas as outras, por sua inteligência, fidelidade e amor ao trabalho”. (SAINT-HILAIRE, 1974).

Mas percebe a verdadeira relação, simples mercadoria, noutra situação, trágica, testemunha, ao ser içado do rio o corpo, cadáver, de um negro que se afogara, e ver o patrão gritor: [..] “Ah, meu dinheiro! Meu dinheiro! Que me custa tanto a ganhar”. (SAINT-HILAIRE, 1974).

Contudo, foi numa estância nas charqueadas que Saint-Hilaire testemunhou uma das cenas mais tristes da escravidão no Brasil:

“Há sempre na sala um pequeno negro de 10 a 12 anos, cuja função é ir chamar os outros escravos, servir água e prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz que esta criança. Nunca se assenta, jamais sorri, em tempo algum brinca! Passa a vida tristemente encostado à parede e é frequentemente maltratado pelos filhos do dono. A noite chega-lhe o sono, e, quando não há ninguém na sala, cai de joelhos para poder dormir. Não é esta a casa a única que usa esse impiedoso sistema: ele é frequente em outras” (SAINT-HILAIRE, 1974).

Se tem compaixão por um escravo e, também, apesar do desprezo, da sorte dos índios, Saint-Hilaire não deixa de ter um senso de meritocracia.

Assim, se louva o português, ou de origem lusa, ou europeu em geral, que, mesmo de baixa extração, enriquece pela iniciativa e senso de economia, faz o mesmo com índios, negros e mulatos que, apesar de todas as adversidades, souberam, através de esforço próprio, alçar-se muito além de sua condição humilde, seja ocupando cargos de oficiais militares, seja na aquisição de propriedades.

Sinal que, apesar de membro da aristocracia do Ancien Regime, não ficou imune a revolução burguesa que se operava.

Mas, talvez devido a falta de noção de pompa e circunstância, não poupa a elite local: […] “Os habitantes desta Capitania são ricos e não ambicionam senão o aumento dessa riqueza. Tal fortuna, entretanto, pouco contribui para o conforto de suas existências; nutrem-se mal e não conhecem diversões. Os momentos de lazer são dedicados ao jogo ou as intriguinhas de aldeia. Na maior parte são ignorantes e sem educação; como não recebem nenhuma instrução moral e honra agem sempre de má fé em seus negócios”. (SAINT-HILAIRE, 1974).

Como pode reparar, a pompa, elite ou não, dos rio-grandenses, estava na prataria que adornavam peças de montaria, arreios, esporas, etc.

Legado

Aristocrata, Saint-Hilaire era seguidor de uma ideologia que preconizava uma hierarquia de raças, que seria utilizada ao longo do século XIX na política colonial européia, legitimando, em nome de uma “missão civilizatória”, a ocupação de terras na África, na Ásia, em detrimento das populações autóctones, assim como ocorreu na América.

Seu livro, hoje, devido as considerações preconceituosas – sobre índios, negros, mestiços, americanos em geral – pode ser considerado como racista.

Também seria taxado de machista pelas considerações que faz sobre as mulheres e até misógino, caso das índias. Enfim, um diário cheio de declarações politicamente incorretas, destinado ao índex dos bem pensantes, e o autor no rol dos não frequentáveis.

Também se deve considerar que o diário sobre a viagem ao Rio Grande do Sul foi publicado postumamente. Ou seja, ele teve mais de 30 anos para rever, acrescentar, cortar, ou alterar seus escritos. Parece que não fez nada disso. Ou seja, não abdicou de nenhum dos seus preconceitos.

Porém, restringido aos valores e preconceitos do seu tempo, e na forma como descreveu a sua viagem, misturando observações de cunho científico a confissões de ordem pessoal, Viagem ao Rio Grande do Sul, fora os diversos aportes históricos de dados sociais, culturais e econômicos já citados, mostra um universo em transição, de fronteiras não delineadas, de conflitos de interesses, onde se digladiam brancos, portugueses, ou de origem, espanhóis, ou de origem, índios, negros, e mestiços, representados pelos “bárbaros” gaúchos, lutando por espaços ou liberdade.

Um farto material para pesquisas de caráter histórico e científico, e também para ficcionistas diante de um contexto onde, se havia muita miséria, também havia muita aventura, e homens que se nutriam somente de carne, muitas vezes sem sal. Saint-Hilaire, como previra, talvez tenha sentido muita saudade (nostalgie) desses “desertos”, como eram denominadas as regiões onde não havia cristãos.

2 comentários em “A viagem de Saint Hilaire: Um olhar crítico sobre o Rio Grande do Sul”

  1. Li o livro há uns 10 anos. Muito interessante a tradução do Taquaryense Adroaldo Mesquita da Costa.
    A questão do preconceito e misoginia são simplesmente produtos da época. O bom é que externou o que sentia, nao mentiu.
    Estou relendo a obra neste justo momento.

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