Desdolarização começa no mercado do petróleo

A desdolarização, que atinge  a hegemonia dos Estados Unidos (EUA), foi um dos principais temas na recente reunião do grupo Brics, realizada na África do Sul. Um fato marcante nesse processo foi o restabelecimento das relações diplomáticas, em março de 2023, do Irã e Arábia Saudita. E para ira do governo dos EUA, acordo mediado pela China. Uma surpresa para muitos que aguardavam um acordo de restabelecimento de relações diplomáticas entre a Arábia Saudita e Israel mediado pelos EUA.

Uma détente foi alcançada com a reaproximação entre Riad e Teerã e mostra que uma coalizão contra o regime iraniano está ficando no passado. Além disso, demonstra a força diplomática de Pequim. 

Como complemento, Arábia Saudita e Irã, juntamente com Argentina, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos, vão participar do grupo Brics a partir de 2024. O comércio petrolífero deverá acelerar o processo de desdolarização, que será analisado  na próxima reunião do Brics, na Rússia.

Na reunião de Bretton Woods, EUA, em 1º de julho de 1944, com a aproximação do final de Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos conduziram as negociações para a construção de uma nova ordem mundial e, ao longo desta,  definiram sua moeda nacional, o dólar, como o padrão de referência internacional.

A dolarização deu seu passo inicial após as negociações na Conferência de Yalta (4 a 11 de fevereiro de 1945), quando o presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, se encontrou com o fundador do Reino da Arábia Saudita, rei Abn Saud, no dia 14 de fevereiro de 1945 no navio militar USS Quincy, próximo ao canal de Suez. Aprofundaram os termos do acordo de 1936, em que se definia a inserção exclusiva das empresas dos Estados Unidos dentro do reino, em troca da proteção militar norte-americana.  

Depois de algumas disputas diplomáticas com seus aliados, os Estados Unidos consolidaram sua presença na Arábia Saudita. Em 1946, as empresas norte-americanas entraram efetivamente na região para exploração de petróleo.

O que se garantiu foi a cotação em dólares do petróleo exportado a partir da Arábia Saudita, que se transformou no novo centro de gravidade da produção mundial. Grande parte dos países, que possuíam necessidades de importação de petróleo, foram compelidos a aderir ao dólar. Assim, tal movimento acabou por obrigar esses países a “precificarem” em dólares seus produtos de exportação, para viabilizar seu abastecimento de petróleo e seu comércio exterior em geral. Anos depois, outros membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) seguiram o exemplo, provocando o chamado  petrodólar.

Em 1948, a Arábia Saudita tornou-se foco dos estrategistas norte-americanos. Estados Unidos e Arábia Saudita estavam iniciando um relacionamento incomparável. Em outubro de 1950, o presidente Harry Truman escreveu uma carta ao rei Ibn Saud: “Desejo renovar a Vossa Majestade as garantias que já fizemos em várias ocasiões no passado, de que os Estados Unidos têm interesse na preservação, na independência e na integridade territorial da Arábia Saudita. Nenhuma ameaça ao seu reino poderia ocorrer que não fosse matéria de interesse imediato dos Estados Unidos.” Isso soava como uma garantia.

Sob um acordo de décadas, os EUA fornecem segurança à Arábia Saudita e, em troca, mantêm o acesso ao seu petróleo, que o reino troca por dólares, sustentando-o como moeda global.

As relações entre Riad e Washington esfriaram desde 2018, quando os EUA levantaram a suspeita de que o príncipe Mohammed Al Saud poderia ter ordenado o assassinato e esquartejamento do colunista saudita do Washington Post, Jamal Khashoggi. O príncipe herdeiro de 38 anos administra os assuntos do dia-a-dia do reino para seu pai, o rei Salman Al Saud, que tem 87 anos.

Hoje, os grandes produtores de petróleo que integram a OPEP não se restringem a vender somente em dólar, mas também em outras moedas consolidadas, tirando assim o “status” da moeda americana. Em agosto de 2018, a Venezuela declarou que iria precificar seu petróleo em euros, yuans e outras moedas.

Mudanças concretas já ocorrem este ano, em relação às políticas de produção de petróleo da região sem interferência dos Estados Unidos. A OPEP+, que compreende a Organização dos Países Exportadores de Petróleo e produtores de petróleo aliados, incluindo a Rússia, concordou em cortar a produção em cerca de 2% da demanda mundial de novembro até o final de 2023.

O dólar ainda vai liderar por um bom tempo como a principal moeda do comércio internacional. No primeiro trimestre de 2023, as reservas cambiais totais, conforme o Fundo Monetário Internacional (FMI), eram de US$ 12.039 bilhões. Desse total, US$ 6.508 bilhões foi reivindicado em dólares, US$ 2.204 bilhões em euros e US$ 288 bilhões em renminbi (yuans).

No entanto, o bloqueio das reservas do Banco da Rússia pelos países ocidentais, que atingiram US$ 643,2 bilhões pouco antes do início do conflito com a Ucrânia, em fevereiro do ano passado, foi repetidamente chamado por Moscou de “roubo”, alertando que viola o direito internacional. Os riscos não econômicos das transações em dólares americanos e dos ativos dolarizados tornaram-se evidentes para todos, especialmente para os bancos centrais.