Luiz de Miranda

Luiz de Miranda

Poeta nascido em Uruguaiana (RS) e já com mais de 48 anos de carreira literária, tem 41 livros publicados. Premiado em diversos países, tem uma carreira poética consagrada, onde se destacam as obras Quarteto dos Mistérios, Amor e Agonias, Trilogia do Azul, do Mar, da Madrugada e da Ventania, Trilogia da Casa de Deus, Canto de Sesmaria, e Nunca Mais Seremos os Mesmos. Miranda participou da luta armada contra a ditadura militar. foi preso em Uruguaiana, em 1969, e no Teatro de Arena, em Porto Alegre, em 1971. Mesmo caçado pela polícia política dos militares, participou em São Paulo de ações da resistência democrática.
Artefatos para cumprir a vida
I
Nasci em Uruguaiana
com todos os benefícios da memória
O rio Uruguai é o mar de infância
pendurando no rosto
a fuselagem de meus ossos
II
Quando indaguei
no transe das coisas íntimas
agora prendo nelas o tambor do meu desejoas fatias desprovidas destes dias
Quanto dói a lonjura
que fecha nossa infância
e mais se sabemos rompido
o caminho da lembrança
III
Onde tenho a injustiça
me detenho
não há entrave no meu canto
e canto (prova mais dura
de ser presente – não aparente)
o que resiste e sem demora
veste a roupa de sua hora
Para tanto
asilar as dores de cabeça
em carreiras
despedir dos relógios
a despedida
ser de resguardo
nos guardados
da esperança
Asilar o primeiro amor
o coração desabitado
e nesse arredo
suspender dos meses a solidão
arredar o medo
sem o segredo do transporte
ao visto vigiá-lo
como pedaço do próprio corpo
IV
Em todos os nortes e ventos
disponho os trastes inábeis
já auferi a vida outro trajeto
e abandono de vez
a ressaca dos domingos
Haverá quem pergunte
coisas mais solenes
haverá quem indague
no branco das camisas
nas gravatas e sapatos
minha altivez
Não isso não
a vida é corredor sem regresso
derivando derivando
aonde se abandona
o mofo do regime
V
Ah! uma canção
lonjura de pó
nas paredes que me cobrem
Tanta morte enfeixa
minha camisa de brim
que morrer faz a diferença
na distância
onde meu sonho se anuncia
Tanta morte equilibra no meu ombro
no lado esquerdo
onde escondo o pensamento
que viver é ir com todos
sem nunca se perder
VI
Na linha do horizonte
a justiça equilibra seu pronome
é deveras distante
é deveras enrolado ao falso de seu nome
nos documentos vigentes do sistema
A justiça é porto seguro
represa de vento
onde desembarcamos a vida
é porta operária
onde o tempo é arma acesa
e fantasma
VII
Onde tenho a injustiça
me detenho
Sou desembarcado
não por desejo
nos domicílios de mil novecentos
e setenta e dois
num abril que resseca minha idade
Sou desembarcado
e desde muito
teço junto aos irmãos
nova rede nova arma
Não exaspera minha descida
nesta hora
aprendi do caminho
como a serpente
o veneno de si mesma
Aprendi não de repente
a rebeldia elementar
e nos seus volumes cinzentos
fundei minha casa
Golpe a golpe
desmembramos o dia
o difícil instante
onde fundamos nossa casa
VIII
A vida é o trajeto vivo
cumpre movê-la
suspendendo nos dentes
o mal nascido
mas até amanhã
onde até dezembro
colocar a mão desprovida
o coração maduro que despencou?
O amor
ainda censurado
é permitido às palavras
nelas fazemos muradas e abrigos
em dia de boa paz
o roto amar da vida
Onde antes que a noite
permita todo seu pasmo
colocar o sal e a pólvora
e tristeza e as horas
roubadas dos relógios?
IX
Ah! canção para cumprir a vida
sempre adiada
artefato de sonho
para cobrir o que me falta
o que me resta
Todo o desigual
é uma distância sem perdão
e mofa em nossos olhos
 
In memoriam
A selva
salva
o peito
da bala.
A fala
da bala
estala
na selva.Fuzis carregados
carregam os homens
que morrem sem nome
no meio da mata.
Guerreiro
Guerrilha
Guerrilheiro
teu grito de selva repousa nas praias
teu gesto de luta dorme na história
Um homem sem pátria
dentro da noite arrasta
medalhas e glórias
da sala
sem bala
Coragem
couraça
da raça
A praça é livre
a selva é densa
não morre a crença
de um homem forte.
As garças já partiram
no sopro curvado do meio-dia
– quando um homem morria
O horror do mês presente
cospe dos montes frases de pedra
– quando um homem morria
A noite espreita o barraco
e a mulher grita o filho
– quando um homem morria
Cruzou a noite na ciranda estrelada
rumou para os campos do sem fim
na sua túnica de madrugada
levando no peito
um preito de luta
era Che Guevara que já não escuta
Fuzil
fusão
da mão
– em terra e sangue
Dormiu nos montes
e sob pontes
a terra seca comeu-lhe o rastro
a guerra louca comeu-lhe o corpo
Madrugada abriu seu manto
guerreiro abriu seu canto
madrugada já se foi
guerreiro também foi
num carro de boi
para a terra que Deus dará.
A morte é absoluta
em Che Guevara que já não escuta.
 
Ponto de Partida
A Alceu Valença
Não sonharei o impossível
nem aurora
a luz vem luzindo
sua desesperada agonia
o passado move
sua chuva de caspa e cinza
Não me queiram cordato
sou sempre o reverso
o horizonte inacabado
quando me julgam morto
renasço com os caídos e mato
para morrer de novo
à lucidez das palavras endurecidas
Alerta, neste quarto emprestado
à beira do coração
me sustento de miudezas
substantivos, verbos, adjetivos
complementos do cotidiano
e construo a esperança
como quem se salva
para salvar
Alerta na pampa
casa e coração
cinza no osso da dor
cinza no rosto do amor
arsenal da solidão
arreios da vida inteira
Não sonharei o impossível
revoa a angústia
como pássaro sem prumo
nossos mortos, nossa morte
escuro silêncio
espaço sem ar
desequilibrando no céu
o algodão das palavras
Desequilibrando no céu
as aves de pouso alto
o alarme geral
das armas e das canções
Desequilibrando, desequilibrando

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