A Cultura do estupro está no Congresso: bancadas conservadoras e os mitos ligados ao feminino

O risco de retrocesso de décadas que estamos vivendo nesse momento é imenso, preocupante e mesmo desesperador para quem, como eu, tem lutado para avançar ainda mais, e não ter de lutar pelo que já é e já foi conquistado. Fica muito claro como Ernst Bloch, o filósofo utópico ligado à escola de Frankfurt, tinha razão: “Junto a cada esperança, há sempre um caixão à espera”, dizia ele. O caixão carregado pelos machistas, misóginos, reacionários, moralistas, cínicos, tolos, inocentes úteis, todos descompromissados com os valores da justiça, da igualdade e da solidariedade.
Exemplo disso – em meio a uma enxurrada de exemplos, especialmente depois que o interino assumiu através de um golpe na democracia – é a posição da nova secretária das mulheres, Fátima Pelaes, do PMDB, convertida a uma religião conservadora desde um naufrágio no rio Amazonas, em 2002 (típico, aliás, que a pasta que já teve status de ministério “caia” de posição para uma secretaria “subordinada” a um ministério chefiado por homens). Ela apoia o Estatuto do Nascituro e brada, aos prantos, que “nasceu de um estupro”. Ela e sua mãe têm direito a viver como bem entenderem, a terem filhos concebidos no horror da violência, se assim o desejarem; qualquer pessoa tem direito de viver segundo suas crenças e disposições pessoais. Mas ela não tem o direito de impor tamanho retrocesso a quem quer que seja.
Além do Estatuto do Nascituro, estão em tramitação no Congresso Nacional outros projetos de lei que afetam diretamente a todas as mulheres do país. O PL 5069/2013, por exemplo, proposto pelo trevoso e sabidamente corrupto Eduardo Cunha, coloca obstáculos ao atendimento das vítimas de estupro nas instituições de saúde. Tal projeto obriga uma mulher agredida, fragilizada, violentada e machucada a primeiro ter de registrar boletim de ocorrência na delegacia, passar pelo exame de corpo delito para só então poder ter o direito a ser atendida em uma unidade de saúde! Estou falando de casos onde a interrupção da gravidez é legal, como nos casos de estupro, anencefalia do embrião ou risco de vida da grávida por condições de saúde desta. Por isso trata-se de um retrocesso, de tornar a legislação mais restritiva.
A concepção de mulher que está por trás desse tipo de formulação é misógina, pois a toma como potencial mentirosa, ladina e que tenta “enganar” as autoridades mentindo que foi violentada quando na verdade teria tido um “comportamento promíscuo” e “depravado” (como já li em um comentário nas redes sociais), além de descuidado, que resultou em gravidez. E o descuido é sempre dela, o homem que a engravidou sempre desaparece da equação.
A Lilith perigosa e demoníaca, ou a serpente pérfida do mal, são mitos que emprestam sentido a certas representações da mulher, até os dias atuais. O real, meus caros e caras, é arquetípico. Nessa perspectiva, existe uma estrutura psíquica universal, presente em qualquer lugar ou cultura, em diferentes contextos sociais. O que se repete são os conteúdos, uma vez que as formas mudam conforme variam as formações culturais. Carl Gustav Jung, o grande psicanalista, escreveu que partilhamos no inconsciente coletivo “imagens primordiais”, conteúdos recheados de sentidos que a humanidade desenvolveu em milhões de anos, e vamos acessá-las conforme nossas circunstâncias existenciais e pessoais. Essas imagens e figuras podem remeter a temas mitológicos, aparecer em contos e histórias, lendas populares e crenças: são os arquétipos.
Aparecem nas cartas do tarô, bem como estão presentes em nossos sonhos e devaneios. E sustentam nossas crenças: a morte é um arquétipo poderoso e assustador, e passamos a vida assombrados por ele. A santa, a ‘puta’, a virgem, a bruxa, a fada, a sereia (arquétipos ligados à figura feminina), o herói, o sábio, o ditador, o mago, o louco (ligados à masculina) etc. A lista de arquétipos é grande e cada um deles tem a sua carga e o seu poder. Talvez, em algum momento da vida, nos identifiquemos com muitos deles. Lembrando que, para Jung, todos têm uma dimensão feminina e uma masculina, pois no inconsciente do homem existe a presença da anima (o sentido feminino) e no inconsciente da mulher existe o animus (o sentido masculino), portanto os arquétipos todos nos habitam, independentemente do gênero sentido e praticado. Toda essa riqueza criativa determinou, aliás, sua ruptura com o mestre Freud, por incompatibilidade teórica!
Mas voltando ao nosso assunto, muitos mitos são tomados como definidores reais das mulheres, em sociedades conservadoras que tentam avançar nas transformações culturais emancipatórias e voltadas à igualdade. A Lilith ladina e perigosa, que “seduz” o “pobre” homem que cai nos seus encantos… ela é um demônio ligado à noite e aos ventos, nas tradições judaica e islâmica, tida também como a primeira mulher de Adão, inclusive sendo acusada de ser a serpente que levou Eva a comer a maçã (mas mesmo Eva, feita de uma costela, mais dócil e dependente, leva a pecha de ter desencaminhado Adão…). A prostituta usável, mas pouco confiável e descartável; a “mulher de Atenas”, Amélia que tudo suporta calada (esta foi cantada por Chico Buarque); a mãe santificada, assexuada e que é puro afeto, doação e nutrição: nomeie aqui seu arquétipo feminino predileto!
As religiões são todas povoadas de mitos e arquétipos, e não há a princípio nada de mal nisso; mas começa a haver quando elas se misturam com a política e se infiltram no Estado. Por isso o Estado tem de ser laico, ou seja, assegurar a liberdade de crença e prática religiosa, mas ele mesmo não pode ter nada a ver com religião! Nenhuma crença baseada em religião deve se misturar na gestão do Estado. Este precisa assegurar serviços básicos como saúde, educação, assistência social e segurança, todos baseados em critérios humanitários, filosóficos (bioéticos), científicos e políticos.
Portanto, para embasar políticas voltadas à saúde da mulher, há que levar em consideração campos como a epidemiologia, a psicologia e demais ciências sociais, a medicina, a enfermagem etc. Jamais arquétipos religiosos tomados como realidade política, isso é o mais completo absurdo e fere o princípio da laicidade do Estado. Este é uma instituição política, no sentido de gestão da Polis, a sociedade que regula e gere. Cidadãs e cidadãos precisam participar dessa gestão na esfera pública democrática, eleger seus representantes para câmaras, conselhos e senados, em todos os níveis, controlando como esses legislam e implementam políticas públicas que beneficiem a população. Esta é sua obrigação, aliás; o resto é obscurantismo, ignorância e fanatismo, sendo impostos de cima para baixo em uma sociedade aturdida – como a nossa hoje.
A mulher agredida e estuprada precisa ser acolhida com competência, humanidade, respeito e se possível carinho (algo que ela vai precisar), mas se impossível, apenas os três primeiros itens serão suficientes. Projetos no sentido contrário têm o meu mais completo repúdio e irei às ruas contra eles tantas vezes quantas forem necessárias, até derrubá-los. Nossas antepassadas sufragistas comeram o pão que o diabo amassou nas ruas, com a polícia misógina em cima delas; não vamos ter medo agora que as coisas já avançaram um pouco. Pouco mesmo, deviam ter avançado muito mais, mas pelo menos hoje temos mais respaldo das leis (e da intelectualidade que não desistiu de melhorar o mundo).
São cinco mil mulheres mortas por ano, treze por dia, segundo dados da cartilha lançada pelo PSOL “A Luta das Mulheres Muda o Mundo”, publicação da Assembleia Legislativa de Porto Alegre (disponível aqui). A cada três horas uma mulher é estuprada no Brasil. Muitas vítimas não denunciam por medo, vergonha, solidão… Um crime sempre sem testemunhas, se a palavra da vítima não vale nada, tende a ser cada vez menos denunciado e mais subnotificado, levando à impunidade que o retroalimenta. Ou seja: esses projetos misóginos são mais um crime contra as mulheres no Brasil. Convido a todos e todas, para dizermos NÃO! Para gritarmos em uníssono, BASTA DE VIOLÊNCIA! Nos encontramos nas ruas e nas redes, espero vocês por lá.

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