Atenção: a ideologia de gênero já está no ministério interino!

foto FabiolaFabíola Rohden*
Quando o ministério do governo interino de Michel Temer foi anunciado, uma das primeiras reações foi quanto à ausência de mulheres, assim como também de negros ou integrantes de outras etnias e segmentos sociais que representassem a diversidade da população brasileira. O interessante é que nem foi preciso a academia ou os movimentos feministas chamarem a atenção para isto. Acredito que a escolha da composição e a ampla reação a ela podem ser avaliadas à luz do que é se dar conta das diferenças de gênero hoje em dia e de quem é capaz desta percepção.
Supostamente, segundo declarações posteriores, o privilégio aos homens não teria sido intencional. Isso quer dizer que os ministros interinos foram escolhidos “naturalmente” em função de suas posições no campo político, deixando evidente a desvinculação com a capacidade técnica. Se acreditamos nesta explicação, foi um fenômeno “natural” as mulheres terem sido ignoradas. Ou seja, o proponente do ministério não teria sequer se dado conta de que em pleno século XXI, nem que fosse por razões demagógicas e estratégias, seria inaceitável e até mesmo ridículo uma composição tão homogênea e avessa à diversidade. Inaceitável e ridículo porque em qualquer lugar do mundo contemporâneo que valorize a democracia e a igualdade, em qualquer documento envolvendo acordos e organismos internacionais emitido desde meados do século XX, a busca por representações mais plurais e igualitárias é imprescindível, inclusive para o reconhecimento da legitimidade de um governo. O que poderia então explicar esta espécie de cegueira, que impediu que durante as várias semanas de planejamento que antecederam a tomada do poder, esta questão não tivesse vindo à tona?
É difícil de acreditar que nenhum dos senhores envolvidos naquelas articulações não tivesse sequer um vago pressentimento de que o arranjo do grupo teria que ser pensado sob outros ângulos e que, por exemplo, a presença das mulheres deveria ser considerada. Em contraste, se pensamos na reação da imensa maioria das pessoas, o que vem à tona é o estranhamento. Algo parece estar errado quando se vê a foto da “posse” e os atos subsequentes só confirmaram as desconfianças iniciais. Tudo parece um tanto antigo, inadequado, ultrapassado ou, pior ainda, traz à cena uma nítida imagem de retrocesso.
Este incômodo parece revelador da época em que vivemos. E pode ser entendido por meio de dois caminhos. O primeiro diz respeito ao fato de que, se do lado de cima, do conforto da posição de quem está assumindo o poder sequer se notou que a ausência das mulheres seria um problema; do lado da imensa maioria da população, composta de pessoas necessariamente atentas às desigualdades, isto é escandaloso. Este é o lado de quem sente, percebe, se identifica e se solidariza diante de qualquer forma de discriminação e se posiciona sempre com ouvidos e olhos atentos a ações que reproduzam as desigualdades. Temos, portanto, em um plano, a suposta falta de percepção do problema; no outro, a vigilância constante, produzida e lapidada por séculos de exclusão.
https://www.facebook.com/midiaNINJA/videos/652647691560046/
O segundo caminho de compreensão sobre o incômodo se refere ao panorama de mudanças que foram sendo construídas mais amplamente na sociedade. Felizmente, apesar de todas as dificuldades e retrocessos constantes, a trajetória em direção à conquista do reconhecimento da diversidade em termos de gênero, de raça/etnia, de orientação sexual dentre outros aspectos, tem se mantido constante. Não há mais como fechar esta janela de percepção das desigualdades e de empenho na luta pela construção de uma sociedade mais justa. Frente à cegueira daqueles que se colocam acima dessas reivindicações, crescem os desejos, os compromissos e a capacidade de articulação de quem já vislumbrou um outro mundo possível.
Esta competência para perceber como as diferenças sociais, traduzidas em assimetrias de poder e injustiças, foram historicamente produzidas e continuam a ser perpetuadas é o que vem sendo chamado, em tom acusatório, de “ideologia de gênero”, por muitos daqueles que se arvoram detentores do poder. Este termo não é usado no campo acadêmico ou na fundamentação de projetos de intervenção bem fundamentados. Mas neste contexto a referência me parece adequada. Recorrendo à acepção mais geral do termo ideologia, trata-se do conjunto de crenças ou certezas culturais e políticas de um indivíduo ou grupo em determinado momento histórico. Pode-se dizer, então, que a “ideologia de gênero” assumida pelo governo interino reflete a crença ou a certeza de que não é necessário pensar ou considerar as diferenças entre os gêneros na nossa sociedade. Trata-se de uma certeza que é simplesmente assumida, neste caso, pela naturalização da ideia de que as mulheres e outros grupos não precisariam estar presentes no primeiro escalão do governo mas deveriam sim se manter alijados das decisões sobre os rumos do país. O problema, infelizmente para eles, é que em contraste à esta cegueira intencional, há muito tempo já se projetam os holofotes que nos obrigam, todos os dias, a perceber as diferenças. A presença das mulheres nas ruas não deixa dúvida sobre isso.
*Antropóloga
 

0 comentário em “Atenção: a ideologia de gênero já está no ministério interino!”

Deixe uma resposta