O domínio do rentismo no governo Temer

Ricardo Dathein
Professor da Faculdade de Economia da UFRGS
O governo Temer propõe um Novo Regime Fiscal para o país, de longa duração, baseado em uma avaliação de que existe um problema fiscal estrutural. Busca-se neste artigo evidenciar que a dinâmica fiscal deve ser entendida a partir de outra concepção.
Qual a causa de déficits públicos? Uma ideia vulgar, usada pelos liberais, é a de que esse déficit provém do comportamento populista, gastador, de governos em geral de esquerda. No entanto, normalmente o que provoca o crescimento do déficit público e da dívida pública são crises econômicas ou o baixo crescimento. Veja-se pelos gráficos a seguir que no período entre 2003 e 2014 houve uma substancial melhora nas contas públicas. A piora atual começou em 2014, com a crise econômica. Não há, portanto, nenhum problema estrutural, mas sim conjuntural, cíclico. O endividamento e o déficit público no Brasil em 2014 estavam em níveis muito confortáveis, comparativamente a outros países e ao histórico nacional.
No período 2004-2014 houve um grande aumento de gastos públicos, incluindo as políticas sociais, e ao mesmo tempo ocorreu melhora das contas públicas (e isso apesar de todo o desperdício de recursos no governo Dilma 1 com subsídios e isenções fiscais para empresas, que resultou em fracasso). Esse desempenho fiscal resultou do aumento de receitas compatíveis, por conta do maior crescimento econômico em um contexto internacional favorável. No período anterior a 2003 houve substancial aumento da dívida pública, mesmo com um governo liberal. Isso deriva não de que o governo FHC fosse gastador, populista, mas de que a conjuntura internacional foi pior e porque esse governo adotava políticas que produziam menos crescimento. Portanto, o que determina piora ou melhora das contas públicas é o desempenho da economia, dependentes do contexto internacional e de opções de políticas.
Há um mito, portanto, de que finanças saudáveis dependem de agentes e governos responsáveis que usam teorias “racionais”. Uma questão que chama atenção é de que justo nos governos liberais ou com o uso de políticas liberais (como no governo Dilma 2) a situação fiscal piora. Isso ocorre não porque agentes liberais sejam mais gastadores ou irresponsáveis. A explicação é outra. A economia de mercado é inerentemente instável. Sem controle, ou gerida de forma liberal, essa característica se impõe plenamente. Essa dinâmica provoca crises cíclicas que tendem a ser mais profundas, justo pela inação do Estado, ou pior, pela ação pró-cíclica, como na gestão Levy. Essas crises produzem automaticamente (com a brusca queda de receitas) déficits crescentes, aumentando o endividamento. Ou então os governos passam a atuar com políticas anticíclicas, também aumentando o déficit em um primeiro momento.
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O argumento da crise estrutural é oportunista, buscando priorizar interesses do mercado. Em tese, as medidas do governo provocarão enormes superávits fiscais a partir do momento em que a economia voltar a crescer, pois parte-se de uma situação de “fundo do poço” em termos de receita. Uma questão que se coloca é o que será feito com os recursos não gastos. Os gastos sociais não são prioridade. O governo também não se propõe a aumentar investimentos, pois não há nenhum programa em vista nesse sentido. O que se propõe é que o setor privado assuma os investimentos a partir de concessões. O governo também não prometeu cortes de impostos, mas essa seria uma alternativa futura.
Como o capital financeiro e os interesses rentistas disseminados em toda a economia comandam a rationale da gestão federal, uma hipótese é de que as classes rentistas pretendem de apropriar desses recursos, via pagamento de juros sobre a dívida pública. Mas para isso é necessário que a dívida cresça muito, e que a taxa de juros baixe pouco e lentamente. Na realidade, quanto piores as finanças públicas, melhor para o capital financeiro, para suas rendas e para seu controle político.
Neste momento, por exemplo (assim como ocorreu no governo FHC, ver gráfico 1), há fortes movimentos no sentido de provocar grandes aumentos de endividamento público, de forma que o maior estoque gere grandes pagamentos futuros de juros, mesmo que a taxa de juros diminua. Essa lógica mostra a captura do Estado por parte do capital financeiro, o que também já ocorria nas gestões petistas, assim como sucede em todo o mundo.
Existe, portanto, uma contradição entre um discurso de austeridade e uma realidade e prática opostas. A realidade se impõem, e a prática oposta deriva de um comportamento oligárquico, antes que liberal. Nosso liberalismo é um mito. Os interesses rentistas não passam de interesses oligárquicos, com pretensões nobiliárias, daqueles que buscam viver de rendas, às custas do Estado, sem nada produzir.
Nosso capitalismo oligárquico busca, ao contrário do discurso e da teoria, eliminar o risco dos negócios. A teoria que coloca como instituições fundamentais para o desenvolvimento econômico as garantias dos contratos e os direitos de propriedade expressa essa concepção de capitalismo rentista, que exige a eliminação do risco para si, com sua assunção pelo Estado. Isso ocorre em sua plenitude para nosso capital financeiro, do qual os outros capitais são sócios: o Estado garante a remuneração dos capitais ociosos. Ou então aparece nas propostas de parcerias público-privadas e de privatizações, nas quais o Estado (ou melhor, a sociedade) deve assumir os eventuais prejuízos e os custos subsidiados de financiamento, enquanto o setor privado “assume” os lucros garantidos.
Essa concepção parte de uma visão radical de liberalismo, tão presente entre os gaúchos com seus fóruns liberais, de que o país se divide entre, de um lado, os indivíduos livres e, de outro, o Estado opressor. Portanto, esse Estado deve ser sempre combatido. Com isso justifica-se o saque. E a melhor forma de saque, com aparência de negócios, é o rentismo.
A partir disso tende-se a produzir um capitalismo cada vez mais avesso ao risco, cada vez mais dependente do Estado, cada vez mais necessitando de custos salariais baixos, cada vez menos inovador e produtivo. Em suma, trata-se do aprofundamento do subdesenvolvimento por parte de uma elite incapaz.

É mais do que hora de resistir

BENEDITO TADEU CÉSAR
15 de Setembro de 2016 – Estou em viagem fora do Brasil, acompanhando de longe os acontecimentos de ontem.
Não posso dizer que estou surpreso com a denúncia contra Lula, seus familiares e companheiros de partido e governo, pois eu já esperava que ela acontecesse, porque faz parte do teatro montado e do grande esquema para impedir que Lula (ou qualquer liderança que defenda seus mesmos princípios) se candidate em 2018.
Não obstante minha expectativa, fiquei estarrecido com o primarismo das denúncias e com a desfaçatez com que dois integrantes do Ministério Público ocupam o proscênio para destruir não apenas a reputação de pessoas honestas, mas também da própria instituição da qual fazem parte e o fazem com os holofotes da grande mídia sem que nenhum superior hierárquico ou qualquer ministro do STF os enquadrem.
Venho há mais de um ano afirmando em todos os cantos que o golpe em curso envolve a justiça e o ministério público brasileiros como instituição (já que não há reação articulada em seu interior), além, é claro, do parlamento e da grande mídia, todos irmanados no esforço de apagar as conquistas obtidas durante os governos petistas de Lula e Dilma para emancipar o país e promover a inserção social e cultural dos imensos segmentos sociais historicamente excluídos no Brasil.
Haverá ainda parcelas imparciais e que honrem os preceitos internacionais de Justiça no poder judiciário e no ministério público brasileiros?
Se há, por que não agem?
Se não agem, estão coonestando a ação de seus pares midiáticos ensandecidos pela caça ao petismo e às suas conquistas.
Se não agem, a população deve agir.
Desde John Lock, parlamentar e filósofo inglês do século XVII e que, por sinal, lançou as bases filosóficas (pasmem) do liberalismo, está consagrado internacionalmente o direito dos povos à insurgência civil.
É mais do que hora de resistir.

Mauro Santayana: O Brasil e o perigoso jogo da História

MAURO SANTAYANA
RBA – (Versão estendida, sem redução para versão impressa) – Embora muita gente não o veja assim, o afastamento definitivo de Dilma Roussef da Presidência da República, em votação do Senado, por 61 a 20 votos,      no  final de agosto, é apenas mais uma etapa de um processo e de um embate muito mais sofisticado e complexo, em que está em jogo o controle do país nos próximos anos.
Desde que chegou ao poder, em 2003, o PT conseguiu a extraordinária proeza de fazer tudo errado, fazendo, ao mesmo tempo, paradoxalmente, quase tudo certo.
Livrou o país da dependência externa, pagando a dívida com o FMI, e acumulando 370 bilhões de dólares em reservas internacionais, que transformaram nosso país, de uma nação que passava o penico quando por aqui chegavam missões do Fundo Monetário Internacional, no que é, hoje – procurem por  mayor treasuries holders no Google – o quarto maior credor individual externo dos Estados Unidos.
E o fez, ao contrário do que dizem críticos mendazes, sem aumentar a dívida pública.
A Bruta, em 2002, era de 80% e hoje não chega a 70%.
A Líquida era, em 2002, de aproximadamente 60% e hoje está por volta de 35%.
Mas isso não veio ao caso.
Ajudou a criar milhões de empregos, fez milhões de casas populares, criou o Pronatec, o Ciências Sem Fronteiras e o FIES, fez dezenas de universidades e escolas técnicas federais e promoveu extraordinários avanços sociais.
Mas isso não veio ao caso.
Voltou a produzir e a construir, depois de décadas de estagnação e inatividade,  navios, ferrovias – vide aí a Norte-Sul, que já chegou a Anápolis – gigantescas usinas hidrelétricas (Belo Monte é a terceira maior do mundo) plataformas e refinarias de petróleo, mísseis ar-ar e de saturação, tanques, belonaves, submarinos, rifles de assalto, multiplicou o valor do salário mínimo e da renda per capita em dólares.
Mas isso não veio ao caso.
Porque o Partido dos Trabalhadores foi extraordinariamente incompetente em explicar, para a opinião pública, o que fez ou o que estava fazendo.
Se tinha um projeto para o país, e que medidas  faziam, coordenadamente, na economia, nas relações exteriores, na infraestrutura e na defesa, parte desse projeto.
Em vez de “bandeiras” nacionais, como a do fortalecimento do país no embate geopolítico com outras nações, que poderiam ter “amarrado” e explicado a criação do BRICS, os investimentos da Petrobras no pré-sal, a política para a África e a América Latina do BNDES, o rearmamento das Forças Armadas, os investimentos em educação e cultura, em um mesmo discurso, o PT limitou-se a investir em conceitos superficiais e taticamente frágeis, como, indiretamente, o do mero  crescimento econômico, fachada para as obras do PAC.
Na comunicação, o PT confiou mais na empatia do que na informação.
Mais na intuição, do que no planejamento.
Chamou, para estabelecer sua linha de comunicação, “marqueteiros” sem nenhuma afinidade com as causas defendidas pelo partido, e sem maior motivação do que a de acumular fortunas, que se dedicaram a produzir mensagens açucaradas, estabelecidas segundo uma estratégia eventual,  superficial, voltadas não para um esforço permanente de fortalecimento institucional da legenda e de seu suposto projeto de nação, mas apenas para alcançar  resultados eleitorais sazonais.
O Partido dos Trabalhadores teve mais de uma década para explicar, didaticamente, à população, as vantagens da Democracia, seus defeitos e qualidades, e sua relação de custo-benefício para os povos e as nações.
Não o fez.
Teve o mesmo tempo para estabelecer, institucionalmente, uma linha de comunicação, que explicasse, primeiro, a que tinha vindo, e os avanços e conquistas que estava obtendo para o país.
Como, por exemplo, a multiplicação do PIB em mais de quatro vezes, em dólar, desde o governo FHC – trágicos oito anos em que, segundo o Banco Mundial, o PIB e a renda per capita em dólares andaram para trás – que foram simplesmente ignorados.
Poderia ter divulgado, também, os 79 bilhões de dólares de Investimento Estrangeiro Direto dos últimos 12 meses, ou o aumento do superavit no comércio exterior, ou o fato de o real ter sido a moeda que mais se valorizou este ano no mundo, ou o crescimento da valorização do Bovespa desde o início de 2016, como exemplos de que o diabo não estava tão feio quanto parecia.
Mas também não o fez.
Sequer em seu discurso de defesa ao Senado – que deveria ter sido usado também para fazer uma análise do legado do PT para o país – Dilma Roussef tocou nestes números, para negar a situação de descalabro nacional imputada de forma permanente ao Partido dos Trabalhadores pela oposição, os internautas de direita e parte da mídia mais manipuladora e venal.
O PT dividiu-se, também, quando não deveria, e não estabeleceu uma estratégia clara, de longo prazo, que pudesse manter em andamento o projeto – de certa forma intuitivo – que pretendia implementar para o país.
O partido e suas lideranças foram reiteradamente advertidos de que ocorreria no Brasil o que aconteceu no Paraguai com Lugo – a presença aqui da mesma embaixadora norte-americana do golpe paraguaio era claramente indicativa disso.
De nada adiantou.
De que era preciso estabelecer uma defesa competente do governo e de seu projeto de país na internet – cujos principais portais foram desde 2013 praticamente abandonados à direita e à extrema-direita enquanto a esquerda, sem energia para se mobilizar, se recolhia ao monólogo, à vitimização e à lamentação vazia em grupos fechados e páginas do Facebook.
De nada adiantou.
Não se deu combate às excrescências que sobraram do governo Fernando Henrique, justamente no campo da corrupção, com a investigação de uma infinidade de escândalos anteriores, que poderia ter levado à cadeia bandidos antigos como os envolvidos agora, por indicação também de outros partidos, nos problemas da Petrobras.
E erros táticos imperdoáveis – não é possível que personagens como Dilma e Lindbergh continuem defendendo a Operação Lava-Jato, de público, em pleno julgamento do impeachment, quando essa operação parcial e seletiva foi justamente o principal fator na derrubada da Presidente da República.
Sob o mote de um republicanismo “inclusivo”, mas cego, criou-se um vasto ofidário, mostrando, mais uma vez, que o inferno – o próprio, não o dos outros – pode estar cheio de boas intenções.
Desse processo, nasceram uma nova classe média e uma plutocracia egoístas, conservadoras e “meritocráticas”, paridas no bojo da expansão econômica e do “aperfeiçoamento” administrativo, rapidamente entregues, devido à incompetência estratégica à qual nos referimos antes, de mão beijada, para adoção institucional pela direita.
Ampliaram-se a autonomia, o poder e as contratações do Ministério Público e da Polícia Federal, medidas elogiáveis, que poderiam em princípio funcionar muito bem em um país verdadeiramente democrático, mas que, no Brasil da desigualdade e da manipulação midiática, levaram à criação de uma nova casta – majoritariamente conservadora – de funcionários públicos educados em universidades privadas – também ideologicamente alinhadas com a direita – com financiamento do FIES e em cursinhos para concurseiros, que não tem nenhuma visão real do que é o país, a República ou a História, e acham – ao lado de jovens juízes – que devem mandar na Nação no lugar dos “políticos” e do povo que os elege.
Como consequência disso, há, hoje, uma batalha jurídica que está sendo travada, principalmente, no âmbito do Congresso Nacional, voltada para a aprovação de leis fascistas – disfarçadas, como sempre ocorre, historicamente, sob a bandeira da anti-corrupção, que, com a desculpa de combater a impunidade – em um país em que dezenas de milhares de presos, em alguns estados, a maioria deles, se encontra detido em condições animalescas sem julgamento ou acesso a advogado – pretende alterar a legislação e o código penal para restringir o direito à ampla defesa consubstanciado na Constituição, no sentido de se permitir a admissibilidade de provas ilícitas, de se restringir a possibilidade de se recorrer em liberdade, e de conspurcar os sagrados e civilizados princípios de que o ônus da prova cabe a quem está acusando e de que todo ser humano será considerado inocente até que seja efetiva e inequivocamente provada a sua culpa.
Batalha voltada, também, para expandir o poder corporativo dessa mesma plutocracia e seus muitos privilégios.
Enquanto isso, aguerrida, organizada, fartamente financiada por fontes brasileiras e do exterior, a direita – “apolítica”, “apartidiária”, fascista, violenta, hipócrita – deu, desde o início do processo de derrubada do PT do governo, um “show” de mobilização.
Colocou milhões de pessoas nas ruas.
E estabeleceu seu domínio sobre os espaços de comentários dos grandes portais e redes sociais – a imensa maioria das notícias já eram, desde 2013 pelo menos,  contra o governo do PT,  em um verdadeiro massacre midiático promovido pelos grandes órgãos de comunicação privados – estabelecendo uma espécie de discurso único que, embora baseado em premissas e paradigmas absolumente falsos, se impôs como sagrada verdade para boa parte da população.
Entre as principais lições dos últimos anos, vai ficar a de que a História é um perigoso jogo que não permite a presença de amadores.
Enganam-se aqueles que acham que o confronto expõe apenas a direita e a esquerda, ou o PT e o PSDB – que agora se assenhoreou do PMDB e dos partidos do baixo clero.
Muito mais grave é a guerra que se desenha – e que já começou, não se iludam – entre aqueles que atacam a política, os “políticos”, a democracia e o presidencialismo de coalizão – e aqueles que, por conveniência ou idealismo, serão chamados a mobilizar-se para defendê-los daqui até 2018 e além.
O futuro da República e da Nação será definido por esse embate.
E é o conjunto de erros e circunstâncias que vivemos até agora, e o que faremos a partir de agora, que poderá levar, ou não, para o Palácio do Planalto e o Parlamento, um governo fascista e autoritário em 2019.
Os opositores do PT  tiveram com o processo de afastamento de Dilma, iniciado ainda em 2013, à época da Copa do Mundo, uma vitória de Pirro.
A judicialização da política, a ascensão da Antipolítica e de uma plutocracia que acredita, piamente, que não precisa de votos, nem de maior legitimação do que sua condição de concursada para “consertar” o país e punir vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores, Presidentes da República, em defesa de “homens de bem” que desfilam com as cores da bandeira e com uniformes negros de inspiração nazista,  ajudará a sepultar, no lugar de aperfeiçoar, o regime presidencialista anteriormente vigente, e introduzirá um novo elemento, ilegítimo e espúrio, no universo político brasileiro, transformando-se em permanente ameaça para o funcionamento e a essência da Democracia.
Infelizmente, para o país e para a República, a permanência de Dilma no poder tornou-se, devido à irresponsabilidade da mídia e da oposição – vide as pautas bomba do ano passado – ao sucesso da estratégia de fabricação do consentimento levada a cabo pela direita e à incompetência política do Partido dos Trabalhadores – de tal forma insustentável, que, se ela voltasse, caminharíamos para uma situação de confronto em que o fascismo – como ocorreu em 1964, no Brasil, e, mais tarde, no Chile e na Argentina – ficaria – como já está ficando, de fato –  com todas as armas, e a esquerda, com todas as vítimas.
Nações e pessoas precisam aprender que, às vezes, é preciso saber dar um passo para trás para depois tentar avançar de novo.
É preciso resistir, mas com um projeto claro  para o país.
A corajosa defesa do governo Dilma por parte de grandes lideranças  da agricultura e da indústria brasileira, como os senadores Kátia Abreu, ex-Presidente da Confederação Nacional da Agricultura, e Armando Monteiro, ex-Presidente da Confederação Nacional da Indústria, mostram que não é impossível sonhar com uma aliança que una empresários e trabalhadores nacionalistas em torno de um projeto vigoroso e coordenado de desenvolvimento, que possa promover o fortalecimento do país, do ponto de vista econômico, militar e  geopolítico – é preciso preservar e concluir os programas concebidos e iniciados nos últimos anos, como o dos caças Gripen NG BR, o do submarino atômico nacional, o do cargueiro multipropósito KC-390, o dos tanques leves Guarani, o projeto de enriquecimento de urânio da Marinha – e evitar, ao mesmo tempo, a   abjeta entrega de nossas riquezas, como os principais poços do pré-sal, já descobertos, desenvolvidos e produzindo, aos   estrangeiros (até mesmo a estatais estrangeiras, como estão defendendo, em absurda contradição, parte de nossos privatistas de plantão).
A costura de uma aliança que evite a subordinação e o caos e a transformação do  país em uma nação fascista, na prática, em pouco mais de dois anos, deveria ser, daqui pra frente, a primeira missão de todo cidadão brasileiro – ou ao menos daqueles que tenham um mínimo de consciência e de informação – neste país assolado pelo ódio e pela mentira, a hipocrisia e a ignorância.
A divisão da Nação, a crescente radicalização e o isolamento antidemocrático das forças de esquerda – que devem combater esse isolamento também internamente e rapidamente se organizar sob outras legendas e outras condições – a fratura da sociedade nacional; a desqualificação da política e da democracia; só interessam àqueles que pretendem consolidar seu domínio sobre o nosso país, evitando que o Brasil fortaleça sua soberania e a sua sociedade, em todos os aspectos, e que venha a ocupar o lugar que lhe cabe no mundo, como quinta maior nação do planeta em população e território.
É preciso costurar uma ampla aliança nacional, que parta, primeiramente, do centro nacionalista – se não existir, é preciso criar-se um – suprapartidária, politicamente includente, equilibrada e conciliatória, que una militares nacionalistas da reserva – e eles existem, vide o Almirante Othon, por exemplo – empresários como Armando Monteiro e Kátia Abreu, técnicos e engenheiros desenvolvimentistas, grandes empresas de capital majoritariamente nacional e os trabalhadores, começando pelos de grandes estatais como a Petrobras, em torno de um projeto que possa evitar a descaracterização e a destruição da Democracia,  o estupro das liberdades democráticas e dos direitos individuais, o  pandemônio político e institucional e a “fascistização” do país, com a entrega de nossas riquezas e de nosso futuro aos ditames internacionais.
Vamos fazê-lo?

Desencontros antidemocráticos: de volta aos anos 60

Marilia Verissimo Veronese
Doutora em Psicologia Social pela PUCRS, Docente e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UNISINOS
Vivemos tempos tristes, de fragmentação e incompreensão mútuas. Tal qual no período do golpe de 64, brigas e desencontros entre familiares e amigos acontecem. Lembro de minhas primas mais velhas me contando dos desentendimentos entre nosso tio Alberto (simpatizante do integralismo, ultraconservador) e nosso tio Dirceu (pai delas), trabalhista e fervoroso brizolista, defensor da igualdade e da justiça social.
Há até uma passagem curiosa da época, na qual conta-se que correu um boato em Santo Ângelo-RS, no início da ditadura, que Brizola estaria escondido na casa de meu tio. A polícia invadiu o local fazendo uma busca e ele bradava “pois eu ficaria honrado se esse grande brasileiro estivesse aqui, mas ele não está…”, enquanto minha tia pedia desesperada que se calasse, ou poderia ser preso. Aliás, a parte progressista da família só não foi presa na Santo Ângelo de 1964 graças à intervenção de Dom Aloísio Lorscheider, bispo da igreja católica ligado à teologia da libertação. Eram outros tempos e eu nem era nascida ainda, mas imagino como seriam os almoços de domingo com esses dois tios discutindo…
Quem, como eu, nasceu durante a ditadura e só presenciou a luta contra ela, a campanha das Diretas Já, a constituinte de 1988, as conquistas (parciais, incompletas) que foram a duras penas adquiridas, por exemplo nas áreas da saúde e combate à miséria, encontra-se hoje pasmo, incrédulo.
Na manifestação do dia 31/8, gritávamos novamente “Diretas Já!”. Tive um déja vu. Aos 16 anos, em 1984, saí as ruas com esse brado. Apanhei da polícia a cavalo, de cassetete na cabeça, que batia a esmo em adolescentes de 15, 16 anos pedindo somente para votar pra presidente da república. Essa semana estou fazendo 49, próxima dos 50 e com uma filha de 20 anos, e respirando gás lacrimogêneo jogado sobre manifestantes enquanto a passeata ainda era plenamente pacífica. A tropa de choque provavelmente “defendia” a sede do governo gaúcho, sita na esquina da Ipiranga com a Érico Verissimo (para os não gaúchos entenderem, trata-se do prédio da RBS/Zero Hora). E novamente a juventude que me cercava bradava “Diretas Já”! Como pode? Como?
Porque a vida parece andar em círculos. A trajetória a humanidade é tudo, menos linear. Limito-me a comentar as últimas décadas.
Cada vez que um governo minimamente progressista e defensor dos interesses populares ascende ao poder executivo – e bota minimamente nisso! –, a plutocracia que rege os destinos desse país há 500 anos reage e começa a gritar e espernear. Boa parcela da mídia comercial de massa, única fonte de informação de muita gente, imediatamente acompanha, pois sempre viveu de concessões e favores dessa plutocracia, até estabelecer-se definitivamente como parte dela. O brado é sempre o mesmo: “Corrupção! Mar de lama!”. Carlos Lacerda é uma figura que se reproduz infinitamente no Brasil. O jornalista Juremir Machado costuma chamar os replicadores dessa ideia de “lacerdinhas”. Sim, bom apelido para gente que acredita em grotescas manipulações midiáticas, ou mesmo inventa suas próprias mentiras e distorções em sites proto-fascistas do tipo Revoltados on line e outros do mesmo feitio.
Jango foi deposto por um golpe civil-midiático-militar e os setores conservadores da sociedade brasileira aplaudiram. Veio uma ditadura que mentiu, torturou, matou, estuprou, endividou o país, exterminou índios e considerou “progresso” a destruição de biomas inteiros, a exemplo do estado do Mato Grosso. Precarizou o ensino público propositalmente e deixou um legado de desigualdade e injustiças. Há alguns anos, a Globo fez um ridículo “mea culpa”, lido no ar pelo boneco de cera William Bonner*. Aliás, fazendo um parêntesis, lembro desse golpista sendo entrevistado por Marilia Gabriela, declarando que a edição que o JN fez do discurso Collor x Lula em 1989 foi “muito corajosa”. Foi é manipuladora e eu a classificaria ainda como criminosa.
Voltando à vaca fria, a patética declaração pedia “desculpas pelo equívoco do apoio à ditadura militar”. Daqui a 50 anos, provavelmente outro boneco vai ler no ar um pedido de desculpas pelo apoio ao golpe de 2016… isso se algo não for feito antes no sentido de democratizar os veículos de comunicações no Brasil, pluralizando-os e retirando o controle de umas poucas famílias riquíssimas que contratam vassalos como Bonner. Segundo os artigos 220, 221 e 222 da Constituição Federal, bastaria regular a comunicação no país para proibir monopólios, propriedades cruzadas (de vários meios, várias mídias); era preciso regulamentar o capital que gere isso tudo e criar também TVs públicas, comunitárias, geridas pela sociedade civil. Não havendo meios de comunicação democráticos, a democracia é infalivelmente fraca e parcial. (Detalhe do § 2º do artigo 220 – “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Hahahaha!).
Em 2016 a situação foi um tanto distinta, guardando, contudo, algumas semelhanças com 1964. O projeto da plutocracia – arrocho salarial, exploração do trabalho, desmonte da CLT (o segundo governo Vargas foi um ótimo exemplo do que falo aqui), transferência de recursos públicos para os rentistas através do sistema da dívida pública – foi derrotado nas urnas em 2002, 2006, 2010 e 2014. Aí eles não aguentaram e começaram um movimento duro de desestabilização do governo Dilma, fraco em muitos pontos e tendo mesmo cometido erros políticos na relação com vários setores da sociedade. Tendo se abraçado ao diabo (Temerário e o resto da corja), tendo compactuado com a corrupção há séculos existente – embora Dilma individualmente tenha feito esforços notáveis para evitar sua continuidade, como a urgência das leis anticorrupção que enviou aos deputados, derrubada pelo congresso nacional mais corrupto dos últimos 30 anos -, esse governo não pode evitar a traição e o golpe “palaciano”, midiático-parlamentar, com ampla conivência do STF.
O sistema político apodreceu-se por dentro e no excelente artigo Reforma política: democracia ou plutocracia?**, Francisco Fonseca explica o caso: “distorções as mais distintas foram ocorrendo, tornando o sistema político um mosaico de perversidades: coligação nas eleições aos cargos proporcionais, que implica que o eleitor vote num partido/candidato e eleja outro, de outro partido; a lógica de que os partidos derrotados também governam, em razão da referida necessidade de maioria parlamentar a qualquer custo; a controversa desproporcionalidade da representação na Câmara dos Deputados; o estímulo ao personalismo na vida política, associado ao descrédito que o sistema político confere tanto ao subsistema de partidos como ao Parlamento (…).”
Foi tudo muito vergonhoso. A infâmia e o show de horrores que vimos em 17/4 e 30/8 deste ano nos mostraram que se encerrou um ciclo. Os plastificados e botoxados deputados e senadores – muitos deles denunciados por corrupção, sob investigação e tendo participado de áudios vazados como aquele no qual o corrupto Romero Jucá afirma: “Rapaz, a solução era botar o Michel. Aí parava a porra toda [Lava-Jato]” ***, com patéticos discursos mencionando Deus e a família, decretaram o impedimento. (Conferir a extensão do cinismo deles é possível nesta matéria aqui****)
A presidenta (sim, está correto e consta no dicionário da língua portuguesa), abandonada pela cúpula corrupta do seu próprio partido, manteve a dignidade e a cabeça erguida, pois não tinha crime do qual envergonhar-se, a não ser a inabilidade política. Mas não foi citada nem uma vez na Lava-jato, ao contrário de alguns dos parlamentares imundos que a impediram, campeões em denúncias de corrupção, muitos com bens já bloqueados pela justiça.
O ciclo ao qual me referi antes seria o iniciado em meados dos anos 80, pós-redemocratização, constituição de 1988 e relativo consenso em torno da ampliação de direitos, que havia inclusive, a duras penas, sobrevivido à fúria neoliberal dos anos FHC. Mas agora, a plutocracia ataca com tudo: exige desmanche da CLT, cortes de gastos sociais, precarização da saúde e educação públicas. Ainda mais do que jáestavam precarizadas! Há que pagar os juros e amortizações de uma dívida pública já paga mil vezes, há que transferir mais riqueza aos já muito ricos rentistas.
Novamente, parte da classe média é convencida que essa é a “saída da crise”. Inacreditavelmente, parte dela acredita que piorando a situação a situação melhorará mais adiante. E cortam-se programas que combatiam a miséria, que integravam os pobres à universidade, que permitiram alguma mínima mobilidade social. Que, diga-se de passagem, desagradam sobremaneira à plutocracia, pois no Brasil ela ainda é escravagista.
Diante de tudo isso, os que habitam a caverna de Platão contemporânea aplaudem o golpista Temer, o corrupto Jucá, a vitória do bandido Cunha, que certamente será “salvo” pelos coleguinhas (deu-lhes o impedimento de bandeja, por vingança*****), em cima do sofrimento de milhões de pobres e de trabalhadores, de seu cotidiano massacrante e semiescravo, sem oportunidades de mobilidade social minimamente equânimes. A igualdade de oportunidades, tão cara ao liberalismo clássico, aqui no Brasil é uma quimera da qual falsos “liberais” dão risada, evitando-a a qualquer custo há séculos.
Pessoas brigam com seus pares que têm uma perspectiva crítica na análise do processo. Estabelecem-se discussões semelhantes àquelas dos meus tios nos idos dos anos 60. Os que saíram às ruas para defender a plutocracia, de camisa verde e amarela, hoje fazem que não sabem de nada e ignoram – ou fingem ignorar – a ampla corrupção que ajudaram a manter intocada.
Os que sempre saíram às ruas pela democracia, agora saem novamente.  Pedem novas eleições. Os representantes da plutocracia nacional não querem nem ouvir falar, pois sabem-se rejeitados nas urnas. Melhor seguir manipulando, a mídia hegemônica ajuda e faz o serviço sujo.
Estamos mesmo precisando de grandes brasileiros como Leonel de Moura Brizola ou meu tio Dirceu Rodrigues. Este texto é em homenagem à sua memória. Mas, por ora, teremos nós mesmos que fazer a resistência e continuar a luta da democracia contra a plutocracia. Tentemos ser um pouco mais grandiosos também, com humildade e com muita força de vontade.
* https://www.youtube.com/watch?v=bABCjGS-_M4
** http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1843
***http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/2016/05/em-gravacao-juca-sugere-pacto-para-deter-lava-jato-diz-jornal.html
****Essa matéria ilustra bem a pusilanimidade e o escárnio da corja que votou “por deus e pela família”: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/redesocial/2016/04/1763233-um-sim-pelo-impeachment-para-a-mulher-um-afago-no-whatsapp-para-a-amante.shtml
*****http://www.tijolaco.com.br/blog/o-brasil-envergonhado-cunha-o-ladrao-vinga-se-de-dilma/
 
 

Nota da Frente Gaúcha Escola sem Mordaça

A Frente Gaúcha Escola sem Mordaça repudia a censura ao programa Entrevista Coletiva com o cientista político Benedito Tadeu César, realizado pelos estudantes do curso de Jornalismo, na Rádio da UFRGS e que deveria ter ido ao ar no dia 08 de setembro, quinta feira, às 11h, mas que teve a sua veiculação suspensa. Esse episódio de cerceamento à liberdade de expressão não pode ser admitido em um veículo de comunicação de uma grande Universidade. Tal acontecimento é efeito do clima de medo e insegurança produzido pelo movimento que pretende incriminar docentes e estudantes pelos seus posicionamentos críticos diante da realidade. A Universidade reconheceu que o conteúdo do Programa não fere a legislação e autorizou que o Programa fosse ao ar às 14h da última sexta-feira, desculpando-se publicamente pelos transtornos. Diante desses acontecimentos, a Frente Gaúcha posiciona-se em defesa da livre manifestação do pensamento e da análise crítica necessários ao debate democrático nas instituições educativas.
 

Filosofia da Distribuição do Produto Social

Duílio de Avila Bêrni – Professor de economia política aposentado (UFSC e PUCRS). Co-autor de “Mesoeconomia” (Bookman, 2011) e “Teoria dos Jogos” (Saraiva, 2014).
Movido por indisfarçável sarcasmo, criei há um par de anos o que vim a batizar como “o primeiro teorema do PIB” que, singelamente, afirma que o PIB representa 100% do PIB. Não deixa de ser, já que vamos falar em filosofia econômica, um traço filosófico, na linha da afirmação originária da filosofia grega de que (A) é (A) e também que (A) (não é) (não-A). Um número expressivo de economistas, jornalistas e outros agentes societários desconhece meu truísmo por não ter clareza sobre a definição de valor adicionado. Fazendo algumas simplificações, como o domínio de uma tecnologia muito simples, omissão da luz do sol, da água da chuva, etc., a noção de valor adicionado resplandece, caso pensemos na semeadura feita pelas mulheres maias, quando plantavam, digamos, um quilo de grãos de milho e colhiam cinco. A diferença entre cinco quilos de produto e o quilo do insumo é o valor adicionado que se deixa medir por meio de três óticas de cálculo[1].
Uma vez que aceitemos a existência de um valor adicionado e três óticas de medi-lo, é seguro afirmar que todas elas devem conduzir ao mesmo resultado, o que, de maneira mordaz, leva-nos a sugerir a expansão daquele primeiro teorema: (P) é (Y) e também é (D), ou seja, o conceito de valor adicionado foi concebido de tal forma que podemos medi-lo usando as óticas do produto P, da renda Y e da despesa D. O produto é mensurado da forma sugerida (cinco quilos de milho menos um quilo de milho). A renda, que pode ser mensurada em quilos de milho, horas de trabalho, reais, ou qualquer outra unidade de conta, representa os rendimentos auferidos pelos trabalhadores e outros agentes, eufemisticamente designados por residual claimants (entre eles, a tributação indireta estabelecida pelo governo) que se encarregam de recolher o montante não apropriado pelos trabalhadores. Voltamos ao teorema fundamental: quando maior for a participação dos trabalhadores na renda, menor será o montante a ser “clamado” pelos não-trabalhadores, seja os capitalistas, seja a cobrança de impostos indiretos líquidos de subsídios pelo governo. Por fim, a despesa informa o destino daqueles cinco quilos, quanto foi absorvido para consumo final e quanto foi guardado para a semeadura do ano seguinte.
Em resumo, o produto P não encolhe quando é designado com o Y da renda ou aumenta, se for chamado de despesa D. Um exemplo ilustrativo desta incompreensão, e justificativa para estes esclarecimentos, é dado pelo segmento das classes empresariais e arautos emergentes das classes assalariadas. Eles consideram que o governo, ao ter seu tamanho mensurado pela ótica da renda (no caso a tributação indireta), é paquidérmico. Mas, ao medirem usando a ótica da despesa (gasto público), e se deparando com a falta de serviços públicos de qualidade, constatam um tamanho exíguo.
Pois então. Ao lado das drágeas da filosofia grega e seus corolários que acabamos de examinar, também estou citando em favor de meu teorema um dos mais sólidos pilares da formação da ciência econômica, David Ricardo. Para o consagrado economista britânico do século XIX, a economia política é a ciência devotada ao estudo da distribuição do excedente econômico entre as classes sociais. Com efeito, uma vez que o produto social representa 100% de si mesmo, temos bases sólidas para garantir sua coerência lógica, mas também para enfatizar que o problema central da economia política consiste em sua distribuição.
A distribuição dos resultados da ação econômica da sociedade, isto é, do valor adicionado, neste contexto, tem as regras que a condicionam e modificam ao longo do tempo. Assim, na sociedade primitiva, quem regulava a resposta à pergunta “para quem produzir” era o costume, com prioridade das necessidades dos guerreiros, por exemplo, sobre as dos escravos. Nas economias monetárias, consolidou-se o trio mercado-estado-comunidade como responsável pela criação de instituições mais ou menos adequadas ao enfrentamento das necessidades da sociedade. No mercado, entra em ação o mecanismo de preços, o estado é regido pela política, ao passo que a comunidade ajusta-se a consensos e dissensos voltados a proclamar a paz ou convocar para a guerra. Mesmo nas sociedades pré-capitalistas, articula-se um ciclo em que a distribuição dos resultados do esforço produtivo de homens e do emprego de bens de capital molda padrões de consumo que influenciam a estrutura produtiva responsável pela distribuição do produto social, que alimenta a circulação. Vejamos, entre as oito principais questões enumeradas por Joan Robinson e John Eatwell cuja resposta é objeto da filosofia econômica, quais são, direta ou indiretamente, as conexões distributivas.
A primeira delas indaga de onde provém a riqueza material. Os primeiros economistas ingleses fizeram uma analogia antropomórfica ao afirmar que a terra é a mãe e o trabalho, o pai. Hoje em dia, a terra é importante, claro, sem terra não há agricultura, e nem mesmo as bases territoriais das cidades. Todavia, principalmente em resposta à diversidade de bens materiais produzidos pelas indústrias química, metal-mecânica e eletro-eletrônica e pelos serviços, a agropecuária cedeu espaço na estrutura da produção.
As duas próximas questões cujas respostas vamos procurar tangenciar dizem respeito à origem do excedente econômico e do lucro. Vamos endereçar-nos a ela com a retomada do exemplo que usamos para fixar aquela noção intuitiva de valor adicionado: colheita menos sementes. Dada a existência prévia das sementes, a origem do excedente certamente é o trabalho, pois aquelas sementes não foram parar dentro de sulcos especialmente preparados para acolhê-las por mero acaso. Houve mão humana que lá as depositou. Mas o trabalho não é o único fator de produção usado na atividade lavoura, pois arados, adubos e água são igualmente importantes. Assim, o excedente possui uma origem visível, nomeadamente, o trabalho. Quanto ao lucro, estamos falando novamente em distribuição: um indivíduo ou um grupo apropria-se do chamado resíduo entre o total colhido de sementes e aquela fração absorvida pelos trabalhadores. Podemos imaginar casos em que esta apropriação é feita sem sobressaltos, mas também por meio de confisco.
A quarta questão filosófica a que os economistas devem endereçar-se indaga se há algum princípio associado aos valores das mercadorias que expliquem as variações erráticas em seus preços. Todos nós observamos variações erráticas nos preços e nas quantidades das mercadorias. Lembremos os dias de chuva em que aparecem guarda-chuvas e sombrinhas e, mais recentemente, capas de plástico transparente, com preços bastante diversos dos vigentes nos dias ensolarados. Mas também volta e meia somos surpreendidos com um sobe-desce nos preços das hortaliças, um casaco de inverno vendido por R$ 400 em maio e por R$ 150 em novembro, e assim por diante. Todas as escolas do pensamento econômico parecem concordar que em geral o preço reflete os custos de produção das mercadorias acrescidos de uma margem de lucro, mas ele também pode variar se “está vendendo bem”. Mais ainda, todas as escolas admitem que o preço varia inversamente com a produtividade do trabalho. Há divergências apenas quanto ao nome a ser dado a estas regularidades. Uns atribuem-nos a maior disponibilidade do bem ou serviço por unidade de esforço, e outros falam na teoria do valor-trabalho, isto é, a convicção de que o valor das mercadorias reflete a quantidade média de trabalho socialmente necessário despendido em sua produção.
Nossa quinta questão problematiza o papel do dinheiro numa economia. Esta questão encontra-se tão arraigada em nosso cotidiano que raramente relutamos em aceitar pedacinhos de papel impresso pelo governo como pagamento de dívidas, ou caderninhos emitidos pelos bancos. E, mais surpreendente, os outros indivíduos também aceitam nossas cédulas monetárias e cheques. Esta questão tem diferentes respostas, dependendo do período de tempo escolhido para a reflexão. Obviamente houve momentos na história da humanidade quando não existia dinheiro, ainda que existisse divisão do trabalho. Mas foram a crescente divisão e especialização do trabalho que ampliaram a obtenção de excedente e, com ele, o volume de trocas entre produtores individuais. Das trocas, surgiu um denominador comum de valor, que começou a receber a forma de moedas metálicas pouco mais de meio milênio antes da era cristã. O crescimento das trocas foi requerendo novas formas de agilizar as transações, levando o dinheiro a experimentar crescente desmaterialização. Depois da disseminação do crédito, já na idade média, o dinheiro passou a ser representado por signos de papel lastreados em ouro. Mesmo essa correspondência foi perdendo substância para chegar ao que hoje se chama de moeda fiduciária. Assim, o dinheiro é aceito em virtude da confiança que nele depositam os agentes econômicos. Neste sentido, a função do dinheiro na economia associa-se a três propriedades: meio de troca, instrumento de pagamento e reserva de valor. Mas, mais que estas funções operacionais, ele tem outro papel muito mais basal e abstrato, qual seja, o de selar os arranjos institucionais que permitem que a atividade econômica seja desenvolvida sem sobressaltos.
Ao discutirmos a sexta questão central da filosofia econômica, nomeadameante, qual é a relação do rendimento monetário dos indivíduos com a riqueza total da sociedade?, precisamos deixar clara a diferença entre renda (ou rendimento monetário) e riqueza. A renda é uma variável fluxo, ou seja, nasce e se desenvolve durante um período de tempo, ao passo que a riqueza é um estoque criado por meio do trabalho em diversos períodos, sendo acumulada na forma de máquinas, equipamentos, instalações, joias, obras de arte, posse de metais preciosos, depósitos bancários em dinheiro, títulos, etc. Assim, infelizmente, uma sociedade rica pode não levar necessariamente ao bem-estar de todos os indivíduos, pois os rendimentos monetários de muitos deles chegam a ser muito baixos independentemente da riqueza do país. Alta riqueza pode produzir alta renda, mas alta renda não garante boa distribuição, e com isto, deixa à mostra visíveis diferenças nos padrões de consumo entre as famílias.
Nesta linha de argumentação, ressalte-se que o diferencial de renda entre pobres e ricos é o objeto da sétima questão formulada por Robinson e Eatwell: qual é a relação do rendimento monetário dos indivíduos com a riqueza total da sociedade? Trata-se do questionamento do grau de justiça social vigente em uma sociedade de enormes disparidades na riqueza e, principalmente, na renda. Neste caso, devemos retomar aquele brincalhão “primeiro teorema do PIB” de que falamos no início do artigo. O problema central que diferencia os indivíduos reside no processo de distribuição do produto social, o que ocorre anualmente, e qual será a fração destinada a aumentar o estoque de capital da economia, pela ampliação dos meios de produção ou mesmo retenção de metais preciosos, obras de arte, etc.
Esta questão sobre famílias ricas e pobres leva-nos a refletir sobre as unidades que não participam do aparato produtivo da sociedade, como os trabalhadores desempregados, os trabalhadores doentes ou deficientes, os jovens e os velhos. Parece meridiano que estes agentes não auferem rendimentos originários do mercado de trabalho e muitos deles tampouco recebem rendimentos do capital, na forma de juros sobre os montantes cedidos por empréstimo a outros agentes. Essa constatação evidencia a existência de outro nível de distribuição que não exclusivamente aquele associado aos mercados de fatores de produção. Ou seja, há pessoas – o número de ricos relativamente ao de pobres é muito maior – que não participam da geração do produto, mas o fazem na absorção da despesa.
Como oitava e última questão, a filosofia econômica, dada a constatação de crises periódicas que assolam o capitalismo desde pelo menos o início do século XIX, indaga se existe algum mecanismo endógeno ao funcionamento do sistema que garanta um nível de procura agregada capaz de manter homens e máquinas plenamente ocupados. Com ela, estamos problematizando a possibilidade de se evitar o desemprego dos trabalhadores. O que varia na forma de responder a oitava questão é o grau de aceitação por parte da sociedade da intervenção do governo na economia. Sem desconsiderar os desdobramentos políticos envolvidos, atemo-nos à visão dos economistas, destacando que uma parte considera que qualquer intervenção governamental no mercado é indesejável, por contraste a outro grupo que valoriza o planejamento econômico.
Na medida em que a questão do desemprego envolve um tema que pode fazer a diferença entre a autonomia e a subordinação do indivíduo ao status quo, vamos dedicar-lhe as reflexões finais deste artigo, ao considerar que a política econômica pode ser o instrumento de combatê-lo. Quando realizado com qualidade técnica e virtudes morais, o planejamento pode amenizar quedas no valor adicionado devidas às depressões, mas hoje sabemos que ele tem se mostrado incapaz de evitá-las completamente. A preocupação fundamental é se o capitalismo, em tendo sua autorregulação complementada pelo governo, pode oferecer um bom padrão de vida que resista a pressões descendentes. A questão central é desdobrada, levando-nos a indagar, primeiramente, se vale a pena nos preocuparmos em reduzir as flutuações cíclicas e, em tendo-a respondido afirmativamente, como “alisar” o ciclo econômico, impedindo que um vigoroso nível de emprego contamine os preços, ou seja, que não gere pressões inflacionárias.
Numa economia monetária, é evidente que as questões filosóficas que tratam da distribuição do valor adicionado rapidamente invadem o campo da política. E também há algumas verdades meridianas a elas associadas. A primeira indaga se, com a queda generalizada na produção durante as fases negativas do ciclo econômico, haverá algumas atividades que se dão melhor durante a crise, como os serviços de reparação e manutenção de equipamentos prestados às empresas. A segunda indaga o montante em que, caindo os lucros, haverá agentes que nele baseiam seu nível de consumo e que deverão reduzi-los. Por fim, a mais visível perdedora nestas circunstâncias é mesmo a classe trabalhadora que requer proteção especial que a compense pela sina de ser “livre de qualquer meio de produção”. Os mecanismos criados pelo estado voltados a defender seus rendimentos, como o seguro desemprego e, independente dele, a renda básica da cidadania, são indicadores do marco civilizatório que começou com a produção de excedentes alimentares, avançou para as economias monetárias e não pode terminar lugubremente sepultado pela ideologia neoliberal.
 
[1] Ao lembrarmos que a distância entre o olho do leitor e a tela pode ser avaliada do olho para a tela e desta para o olho – duas óticas –, não ficaremos incomodados com as três óticas colocadas a serviço da ciência econômica.

Alguns pontos à sombra, autocrítica e alternativas

Guto Leite  – Professor de Literatura Brasileira (UFRGS), poeta e compositor, parte do coletivo Frente de Professores da Letras em Defesa da Democracia
De início esclareço o leitor que não vou tentar repetir as tão frequentes e imprescindíveis análises que vêm sendo feitas por historiadores, jornalistas, cientistas sociais, filósofos etc.[1]. Sou somente um professor de literatura e conto com a segurança desse lugar, recusando voos mais altos. Pretendo, contudo, indicar alguns aspectos da atual conjuntura que não têm surgido nos textos que leio ou novas facetas de aspectos comumente abordados, no intuito de tentar construir uma visão mais complexa do golpe de Estado, refletir um pouco sobre nossa posição e responsabilidade diante do ocorrido, como pessoas que pensam o processo, e aventar algumas saídas para recuperarmos as bases mínimas de um debate democrático.
Vale dizer, primeiramente, que mais uma vez, como no golpe de 64[2], a burguesia brasileira preferiu o conforto subordinado ao capital internacional aos riscos de uma disputa por maior autonomia decorrente de arranjo interno. Isso torna evidente que são muito estreitas as possibilidades de conciliação entre classes e do modo como foi feito até hoje no país, notadamente a partir do governo Lula, ficamos à mercê de uma reviravolta brutal que não só nos tome os direitos obtidos, mas avance no aumento da assimetria. CLT, Previdência, SUS, Enem; está tudo em jogo. O combate à corrupção e uma reforma política efetiva são alguns dos instrumentos que poderiam agir nessas relações em favor dos mais oprimidos, no entanto a elite brasileira está sempre atenta na manutenção de seus privilégios. Fica claro também que Dilma não errou mais ou menos do que outros presidentes, ou mais paradoxal do que isso, seu erro político foi certa intransigência a aspectos fisiológicos do Estado brasileiro. Em síntese: seu erro foi seu acerto, ou vice-versa. Não tão intransigente quanto a outras conciliações, como em relação ao agronegócio e às comunidades indígenas ao lucro dos bancos, ao defender autonomia do Ministério Público – afinal, ela não deve, nem Teme – ou bloquear as influências de Eduardo Cunha em Furnas, ela se tornou elemento estranho ao universo político nacional, cercando-se de aliados que não lhe bastaram no processo de impedimento. Que golpes de Estado passem por dentro da constituição cordial da República brasileira, também parece evidente na observação de quantos governos eleitos conseguiram completar seus mandatos. Fica, portanto, a dúvida se estamos falando do fim de um projeto de esquerda ou do fim de um projeto de República, já que alianças pragmáticas, sempre mais fortes do que oposições, demonstraram que mais cedo ou mais tarde fazem a serpente quebrar o ovo.
Diferente de 1964, no entanto, dessa vez o conluio externo-interno contava com a máquina da grande mídia para se impor, aliás, boa parte dela, formada justamente quando da flagrante obstrução autoritária anterior. Essa terceira perna midiática foi fundamental porque construía consensos e fazia querer a derrubada da presidenta, como publicidade política, ou simplesmente propaganda, aos moldes do que houve na Rússia, na Alemanha ou nos Estados Unidos em quadros semelhantes. Milhares de pobres diabos canarinhos foram às ruas achando que queriam estar ali e que falavam por si – uma parte desses experimentam agora aquela sensação conhecida de propaganda enganosa, constrangendo-se ou silenciando suas participações. Cabe acrescentar que o papel da mídia no golpe está ligado a, pelo menos, dois pontos importantes do Brasil pós-1985 e, também, do capitalismo, razoavelmente a partir do mesmo marco. No primeiro caso, parte da conta precisa ser paga pelo regime civil-empresarial-militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985, provocando transformações importantes no Ensino Básico, como também na composição geral do imaginário do brasileiro – houve tempo que em certos horários a Globo contava com Ibope de 100%![3]. Em geral, essa geração que hoje tem entre 20 e 50 anos, aproximadamente, portanto, formada entre a Reforma Educacional de 1971 e o Governo Fernando Henrique Cardoso, é pouco educada politicamente, nacionalista, familista e religiosa, facilmente influenciável por discursos que mobilizem esses valores, que se esquivem da realidade material para manipuláveis abstrações. No segundo caso, parte da ilusão contemporânea constrói-se por certa liberdade absoluta do sujeito diante do mercado, visto que esse mercado, ultrarramificado, se movimenta com bastante facilidade para atender às mais variadas demandas[4]. Assim, não basta dizer o que deve ser feito, mas é necessário que o consumidor, também das notícias, acredite ser autor e protagonista daquela ideia. Creio não ser necessário mergulhar nas relações entre narcisismo, superficialidade, espetáculo, fetichismo, falso gozo e angústia permanente para analisar os fogos de artifício ouvidos quando da grotesca sessão do Congresso de votação do impeachment[5].
Discriminados esses nós, avancemos um pouco pela dimensão internacional da intervenção em nossa democracia. Não hesito em dizer que há um duplo despiste sobre a palavra “impeachment”. Evidentemente não é impeachment. Não houve crime de responsabilidade e, se houve algum eventual equívoco da presidenta, ele não justifica a perda de mandato. Só canalhas, ingênuos ou ineptos defendem a tese de impedimento. Os senadores “julgaram” pela volta da impunidade, com o fim da Lava-Jato, e/ou por sinecuras para si ou para os seus, apoios eleitorais etc. Indo adiante, defendo, entretanto, que também a palavra “golpe” não é suficiente. Trata-se de um ataque do capital internacional, centrado nos EUA, às nossas riquezas, nomeadamente: Pré-sal, Aquífero Guarani, Amazônia, mercado consumidor, entre outros. Por isso, tampouco é golpe, mas “guerra”. A palavra mais precisa é guerra. Estamos assistindo à nova maneira de se fazer guerra a uma nação, modus operandi que já tinha sido testado com sucesso em nações menores – desestabilização, cooptação de agentes públicos do executivo, do legislativo e do judiciário, mudança conveniente de governo; tudo absolutamente “dentro dos ritos legais”. Se essa atualização do software da violência resulta de aumento de tecnologia ou de perda de uma hegemonia global clara por parte dos Estados Unidos, é um tanto cedo pra dizer. Mas vale a reflexão, novamente, de Chomsky, nos alertando de que os Estados podem conseguir impedir a ação das instituições em que resistem os modelos de servidão e escravidão do passado, as grandes corporações[6]. A metáfora do linguista é intrigante: de certa maneira o Estado nacional é uma jaula que nos protege da selva das corporações. Com o êxito do ataque, seremos explorados para a manutenção dos privilégios dos mais ricos em escala global – sendo um “país classe média”, digamos –, e internamente os mais pobres serão explorados primeiro para a manutenção dos privilégios da elite, mas, acreditem, também chegará a hora a classe média manobrada.
Como citei no parágrafo anterior, já toco no assunto: é nítido que a justiça brasileira – juízes, advogados e promotores –, da porta da cadeia ao STF, está aparelhada, sem nem mesmo precisarmos aludir ao treinamento de juízes e promotores nos EUA há alguns anos. Não é preciso que todos ajam tendenciosa ou politicamente. Aqueles que o fazem são numerosos o bastante para afirmarmos, angustiados, que atualmente não há justiça no Brasil. Pode parecer que não, mas a Constituição é algo bastante tênue e deve contar com uma confiança coletiva de que ela está sendo respeitada. Se vazam escutas telefônicas, fazem conduções coercitivas arbitrárias, manipulam depoimentos, alargam ou encurtam tempos de prisão conforme interesses específicos, que crimes realmente não podem ser praticados? Ou então: se há tamanha e notória impunidade de políticos e juízes, por que eu devo ser o único a seguir a lei? Não temos histórico de guerra civil – como vaticinou o Senador Requião há alguns dias –, mas a instabilidade que um regime de exceção provoca não é de se desprezar.
Por fim, o último aspecto que eu gostaria de comentar antes de algumas conclusões é que a parte progressista da comunidade internacional está atenta e preocupada com a ruptura na democracia brasileira. Se é possível essa intervenção no Brasil, com que nação não seria possível fazer o mesmo? Ou uma segunda pergunta: em que medida um ataque à democracia brasileira – a quarta maior do mundo em número de eleitores (oxalá tivéssemos o mesmo número de leitores!) – não coloca em risco a viabilidade da democracia no capitalismo moderno, isto é, desvela certa incongruência explícita entre capitalismo e democracia plena: não é desejável formar cidadãos emancipados numa sociedade que trabalha a partir de produtores e consumidores, afirmou Adorno há um pouco mais de quarenta anos; fazer pensar e fazer comprar seguem lógicas contraditórias. Complementarmente, com a operação do capital nacional e internacional na política, começa a se desenhar a sensação de que é mais importante meu poder de compra do que meu poder de voto, ou melhor, de que ao comprar é que estou realmente votando, estou votando nas marcas e empresas, já que governantes podem ser substituídos caso contrariem interesses do mundo do capital. A se verificar qual será o tamanho dessa perturbação no já turbulento sistema capitalista contemporâneo[7].
Espero ter conseguido apontar que, em certo sentido, não havia nada que pudéssemos, nós, ter feito, para evitar o colapso que se deu – alguém precisa bancar a crise sistêmica do final dos anos 2000 afinal! Mesmo para o governo Lula, a janela de realização era bastante exígua. Conheço alguns bastidores que indicam concessões importantes feitas pelo ex-presidente antes mesmo de seu primeiro mandato e daí dependeria de Lula ter efetuado uma guinada mais brusca e cirúrgica, amarrando firme a elite no financiamento do bem-estar social brasileiro, algo difícil de se exigir a posteriori. Os dois mandatos de Lula avançaram bastante dentro do modelo de que dispunham, ponto. Talvez, mas seria difícil, pudessem alterar aspectos estruturais desse modelo, ponto. Mas isso não significa que não haveria um ataque, talvez até mais violento, às riquezas brasileiras – desde o começo dos anos 2000 já sabíamos que grandes reservas deste século estavam por aqui. Em 2010, o governo Dilma herda todos esses imbróglios e sem contar com os quadros do PT para apoiá-la integralmente, como era o caso do Lula. Não tão amalucadamente, creio que Dilma tenha começado a perder a presidência antes mesmo do primeiro mandato, mas quando já se sabia de sua candidatura, ali por 2009, pela retidão, pela impossibilidade de fazer conchavos, pela intransigência à corrupção. Isolada, torna-se sacrificável para que se “delimite onde está”, como disse o Senador Jucá, em gravação.
Ao mesmo tempo, não dá para negar que o espelho em que não quisemos nos ver – televisionado desde o final de 2014, em sessões da Câmara, Senado, STF – é resultado de um abandono da cena política de estadistas preparados. Houve debandada de intelectuais, sindicalistas incorruptíveis, líderes populares etc. da arena democrática (sinal de esgotamento desse modelo?). Isso somado ao projeto de extermínio de lideranças à esquerda é que faz Eduardo Cunha ser considero um “gênio” político. Suas habilidades perversas são inquestionáveis, mas não seria o mesmo quadro com políticos da estatura de Brizola ou Ulysses Guimarães ainda em atividade. Se o que passou nos canais públicos é um inferno, o inferno somos nós, também em nosso recolhimento para outras áreas do debate público, como a universidade, os jornais etc.. Creio que seja imperativo retomarmos esses espaços de representação. Reclamar da qualidade de nossos políticos é antes reclamar de nossas escolhas.
Para além disso, me parece, cabe continuar fazendo política noutros espaços sim. Dentro dos limites éticos da profissão de cada um, abrir sempre a porta aos oprimidos, fechar sempre a porta aos opressores. Não é mais tempo de isonomia. Não há como haver um governo golpisto como o de Temer – entendo que pmdbista não quer ser chamado de golpista pelo “a” final, seguindo decorativo da legítima presidenta – com uma base plenamente libertária, democrática. E não se enganem: Temer é só o boneco vaidoso de interesses maiores, como o da grande mídia brasileira, do capital nacional, do capital internacional, como procurei demonstrar. Ser radical e revolucionário cotidianamente, fechando a porta para os de cima, abrindo a porta para os de baixo, desvelando as injustiças e assimetrias, promovendo cultura e educação, ocupando as ruas, as plenárias e os plenários, praticando a boa e velha desobediência civil. Estou com Guilherme Boulos, o golpe está apenas começando, e a luta também. Vamos à luta!
[1] Dentre várias boas leituras, sugiro duas recentes: “O golpe de Estado de 2016 no Brasil”, do cientista social Michael Löwy, e uma entrevista ao filósofo Anselm Jappe; ambas no blog da Boitempo.
[2] Acompanho a análise de Roberto Schwarz em “Cultura e política 1964-69”.
[3] Vale conferir o documentário Muito além do Cidadão Kane, de Simon Hartog.
[4] Sugiro o documentário “Requiem for the American Drem”, pela excelente síntese de nossos tempos feita por Noam Chomsky.
[5] Mas recomendo sempre as reflexões do psicanalista da USP, Christian Dunker, a respeito da composição do Brasil contemporâneo, especialmente em Mal-estar, sofrimento e sintoma.
[6] Também recomendo as relações aventadas por Paulo Arantes entre o modelo de servidão nazista dos campos de concentração e certas práticas neoliberais em “Sale boulot: uma janela sobre o mais colossal trabalho sujo da história”.
[7] Recomendo a leitura do artigo “Como vai acabar o capitalismo?”, do sociólogo Wolfgang Streeck, ou do livro 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono, do historiador da arte Jonathan Crary.

Não se administra um Estado como uma padaria

Róber Iturriet Avila – Doutor em economia, diretor Sindical do SEMAPI, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
No segundo turno das eleições de outubro de 2014, os cidadãos gaúchos tinham duas opções para os rumos administrativos do estado do Rio Grande do Sul. Com mais informações ou menos das implicações de tal decisão sobre o seu próprio futuro, a maioria fez a sua escolha livremente.
Já no primeiro dia, o governador José Ivo Sartori sinalizou que o mote de sua administração seria o corte de gastos e a redução dos serviços públicos. Por trás deste modelo administrativo, existe a concepção de que o Estado deve ter o menor número de funções possíveis, deixando para o setor privado a resolução de muitos dos problemas da sociedade. Essa visão não é nova e tampouco específica do governo gaúcho atual. Seus pilares filosóficos datam do século XVIII, embora esse paradigma tenha ganhado nova roupagem após a década de 1980, sendo convencionalmente referido como “neoliberalismo”.
Os resultados de tais políticas têm sido quantificados na literatura internacional e nos principais organismos multilaterais do mundo: ampliação expressiva das desigualdades, perda de direitos, descompasso entre variação salarial e produtividade do trabalho, ampliação significativa da participação do 1% mais rico na renda, ao passo que reduz a participação dos salários. Além disso, cabe destacar a sedimentação do desejo de um estado policialesco dos grupos de renda mais elevados das sociedades que não enxergam que parte da violência tem relação com a perda dos direitos e das funções públicas dos Estados.
O início da administração do governo Sartori foi nesta linha: redução de gastos públicos e das funções do Estado. Cortes de salários, intenção de fechar fundações e estímulo indireto para que os funcionários do estado se exonerem e se desloquem para o setor privado.
Muitos dos quadros da administração pública são compostos por pessoas de alto nível de qualificação. Cabe a pergunta: é racional que os melhores quadros da sociedade deixem de servir à coletividade?
Na área da segurança, houve o fim do pagamento das horas extras, fim do abono de R$ 1,5 mil que os policiais militares aposentáveis recebiam para continuar na ativa, além do congelamento das promoções e do cancelamento das nomeações de novos policiais. Desnecessário gastar argumentos sobre o desestímulo que o parcelamento de salários provoca.
O resultado disso foi que em 2015, 2.247 policiais civis e militares se aposentaram ou se exoneraram, 48% mais do que em 2014. No primeiro semestre de 2016, 1.287 policiais militares se aposentaram e estima-se que chegue a 3 mil até o final do ano. Não é preciso tratar o resultado dessa política sobre a violência no Rio Grande do Sul.
Ainda no pano de fundo ideológico dessa visão está a ideia de reduzir outras funções públicas e utilizar a “crise” nas áreas cruciais da administração para justificar a liquidação de setores tidos, a esta altura de calamidade, como “menos urgentes”.
Por trás desse prisma, há um desinteresse nos segmentos de renda mais elevada da sociedade em financiar os serviços públicos, até porque eles não precisam deles, os quais têm servido para redistribuir a renda desde a década de 1940 nos principais países do mundo.
O discurso raso que referenda essa visão de Estado é bem palatável a quem é leigo em economia e em política: “assim como na sua família, o Estado não pode gastar mais do que arrecada”. Essa é uma visão simplória, rasteira e quando não ingênua, tem má fé. Administrar um estado não é o mesmo que administrar o orçamento doméstico, menos comparável ainda a administrar uma padaria.
Não apenas porque o gasto do governo faz parte do PIB e é a principal variável capaz de reverter um quadro de recessivo, o qual é caracterizado pela redução dos gastos de todos os demais agentes. Mas também porque muitas das funções do Estado dizem respeito a elementos fundamentais da vida minimamente pacífica em sociedade, como a segurança pública, mas também o reequilíbrio distributivo e o estímulo à vida produtiva e saudável dos cidadãos. Um dos argumentos simplórios bastante utilizados pelo discurso neoliberal é que caso o governo tenha déficit, a confiança do empresário reduz e a credibilidade do governo cai. Ora, o empresário decide com base em suas vendas e não a partir do déficit/superávit dos governos. Com demanda em queda, o investimento privado caminha no mesmo sentido. A redução da despesa pública apenas agrava o ciclo recessivo. Isso quer dizer: o parcelamento dos salários dos professores afeta o comércio de Porto Alegre.
Os próximos passos do governo gaúcho são bastante previsíveis: será “necessário” extinguir órgãos públicos e vender o patrimônio para que haja recursos para investir em segurança e educação. Frente a um quadro de colapso nos serviços gaúchos, a sociedade facilmente referendará essa visão equivocada, rasteira, simplista e ardilosa. Está planejado, não sejamos ingênuos!
Os resultados futuros serão aqueles já observados por organismos internacionais e por intelectuais que têm maior profundidade na compreensão de questões tão complexas: elevação da desigualdade e estado policial para reprimir revoltas dos crescentes excluídos.
É triste ver que o estado do Rio Grande do Sul e agora também o Brasil caminham na direção de resolver problemas sérios e estruturais com discursos simplórios e repletos de má fé.
 

Manifesto Frente Gaúcha Escola Sem Mordaça

A Frente Gaúcha Escola sem Mordaça, composta por entidades representativas de educadores e educadoras, estudantes, comunidade escolar, profissionais atuantes na cultura, na pesquisa, na comunicação, no direito, em ações comunitárias e por movimentos sociais, constitui-se como um espaço coletivo suprapartidário e plural, em defesa da democracia e da justiça social, repudiando os projetos de lei Escola sem Partido, a terceirização e a privatização da Educação Pública.
A Frente considera fundamental o processo de escolarização da população brasileira, intensificado a partir da democratização do país, e posiciona-se em defesa das conquistas dos movimentos sociais inscritas na Constituição Federal de 1988 e na legislação subsequente, e que visam reparar um processo histórico socialmente excludente, bem como prevenir a violação aos direitos humanos.
A Frente defende a manutenção e o respeito à Constituição Federal, que em seu Art. 5º garante a liberdade de expressão e no Art. 206 estabelece, dentre outros, os seguintes princípios para a Educação no país: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino. Defende-se também o cumprimento integral do Art. 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que prevê que “a criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho”. Além disso, propõe a consolidação de processos educacionais democráticos que incluem:

  • a liberdade de expressão dos professores, dos servidores e dos estudantes no ambiente escolar e no espaço público;
  • o estudo de temas relacionados às desigualdades socioeconômicas, à sustentabilidade socioambiental e às violações dos direitos humanos, tais como as discriminações e violências étnico-raciais e de gênero;
  • a implantação e a ampliação de políticas de ações afirmativas para a promoção da equidade étnico-racial e de gênero nas instituições de ensino e na sociedade;
  • o oferecimento de matérias científicas associadas à saúde sexual e reprodutiva, bem como à evolução biológica, de forma a promover o conhecimento necessário à sustentabilidade socioambiental e à transformação de uma realidade desigual, injusta e excludente;
  • uma escola pública, gratuita e laica, bem equipada e com equipe profissional capaz de promover o desenvolvimento pleno dos educandos, aprendizagens, acesso ao patrimônio científico-cultural e tecnológico, bem como o exercício pleno da cidadania;
  • a constituição de ambiente de respeito mútuo e de promoção de relações interpessoais de confiança visando a saúde nas instituições educacionais;
  • a gestão democrática das instituições de ensino por meio de eleição das equipes diretivas pelas comunidades de professores, servidores, estudantes e seus responsáveis.

A Frente Gaúcha Escola sem Mordaça adere à luta da Frente Nacional Escola sem Mordaça, que repudia e solicita o arquivamento de projetos de lei no Senado Federal e na Câmara dos Deputados, protocolados por defensores do Movimento Escola sem Partido:  Projeto de Lei nº 7.180/2014 (e demais projetos a ele apensados) e do  Projeto de Lei do Senado nº 193/2016; Projeto de Lei nº 1.411/2015, que tipifica assédio ideológico. Na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, a Frente Gaúcha Escola sem Mordaça solicita o arquivamento do  Projeto de Lei nº 190/2015, que representa no Estado o programa Escola sem Partido; solicita também o arquivamento dos projetos municipais correlatos.
Tais projetos de lei, inconstitucionais, buscam produzir uma escola sem reflexão crítica sobre a realidade, impedir a formação para a cidadania e a liberdade de expressão no exercício profissional, incentivando a delação anônima de professores por estudantes e familiares e a coação por meio de notificações extrajudiciais, que ameaçam os docentes com processos de perda do direito ao exercício profissional, perda patrimonial e prisão. Esses projetos pretendem constituir uma única forma de pensar, impedindo a pluralidade de ideias própria à educação pública.
EDUCAÇÃO PLURAL NA CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA
 

Legalidade e legitimidade

Gilmar Zampieri – Filósofo e Professor
Pensa melhor quem melhor distingue. Quem generaliza e confunde, se engambela e gira em círculo sem direção. A distinção é a festa do pensamento. Onde o senso comum vê como igual, o pensador precisa socorrê-lo e ajudá-lo a ver melhor. Não é pecado pensar. Pecado é errar e fazer o mal por banalidade e por preguiça de pensamento. Viver não é preciso, distinguir é preciso..!
Penso aqui na confusão que incorremos constantemente ao identificar legal com legítimo, legal com justo, legal com ético. Os legalistas, positivistas e fundamentalistas talvez não aceitem, mas o que a lei diz, nem sempre é o que deve ser feito.
O que dá legitimidade a uma norma legal e positiva é a conexão que ela tem com uma norma moral. Só o que uma comunidade histórica real considerar moral, pode ser legítimo legalmente. A lei Maria da Penha, por exemplo, que protege a vítima da violência doméstica e pune o violento, a meu ver, é legal e legítima porque não há como não considerar que não seja boa para toda a sociedade. O trabalho livre, não escravizado, com correspondente pagamento na forma de salário e com todos os encargos sociais e todos os direitos conquistados pelo trabalhador, por exemplo, férias e décimo terceiro salário, são legais e são legítimos. Sem entrar no mérito se o valor do salário mínimo é justo, pois aí talvez a discussão seja exatamente o contrário. É bom que se diga, de passagem, que o bom, o justo e o legítimo não são conceitos unívocos e sem ambigüidades e até imprecisões. Talvez, por isso, os legalistas prefiram a letra fria da lei acreditando que o justo é o que a lei determina e ponto.
Sabemos, contudo, que nem sempre o legal é justo e legítimo. O caso de Antígona é paradigmático. Antígona é o nome de um livro de Sófocles, o mesmo autor que escreveu Édipo Rei e Édipo em Colono. Antígona é uma personagem que dá nome ao livro. Ela é filha de Édipo com Jocasta. Édipo é filho de Laio e Jocasta. Édipo mata o pai (Laio) e casa com a mãe (Jocasta) e tem quatro filhos com a própria mãe. Uma das duas filhas é Antígona. Quando Édipo descobre que a tragédia acontecida em Atenas foi por sua causa, por ter matado o pai e casado com a mãe, ele vaza os próprios olhos e as filhas (Antígona e Ismênia) o levam para fora da cidade. A mãe e esposa de Édipo, Jocasta, se suicida ao saber que ela tinha sido esposa do próprio filho e com ele tinha tido quatro filhos.
Em Tebas permanecem os dois irmãos de Antígona (Etéocles<https://pt.wikipedia.org/wiki/Et%C3%A9ocles> e Polinice<https://pt.wikipedia.org/wiki/Polinice>). Depois da saída de Édipo quem assume o reino de Tebas é Creonte. Creonte envolto em guerras internas determina em um edito que todos os que lutarem contra seu reino e forem mortos, serão jogados à beira do caminho aos abutres, sem sepultura.
Os dois irmãos de Antígona eram de posições políticas diferentes. Um lutava ao lado do rei e outro contra. Numa batalha um mata o outro. Um recebe honrarias militares e funerais dignos. Outro é jogado ao ar livre na beira da estrada. Antígona não aceita o edito do rei e recolhe o corpo do irmão jogado na lixeira na beira do caminho e lhe dá sepultura com ritos fúnebres condizentes. O rei Creonte descobre o feito de Antígona e a chama para o palácio para lhe dar o castigo correspondente por ter transgredido o edito do rei. O castigo é a morte. O filho de Creonte que era apaixonado por Antígona tentou intervir e dissuadir o pai de executar a lei, mas foi em vão. Então se mata. A mulher de Creonte, vendo o filho morto, também se suicida. Tragédia total.
Na defesa que Antígona faz do ato de ter tirado o irmão da sarjeta e lhe dado sepultura ela diz que o que fizera foi por obediência a uma lei superior a lei dos homens, isto é, ela fez o que fez por causa da lei divina, da tradição, o que hoje chamamos voz da consciência ética. Por obediência a ética, desobedece a lei jurídica. Antígona não reconhece legitimidade na lei, no edito, do rei Creonte e em nome de outra lei, mostra a não legitimação da lei positiva. Nem sempre o legal é moral. Nem sempre o legal é legítimo.
O impeachment é legal, mas é ilegítimo, injusto e imoral. Se, pelos menos, reconhecessem que vazar os próprios olhos seria uma atitude digna, mas não. Hipócritas e sepulcros caiados julgam sem serem julgados. Hoje, temos um novo governo e um poder legal, mas ilegítimo e imoral. O que dá legitimidade a um governo democrático é o voto popular. Golpe nenhum pode ser legítimo. Pode ser legal, mas não é legítimo.