Criança Feliz: uma nova condicionalidade para o programa Bolsa Família?

Fernanda Bittencourt Ribeiro – Antropóloga e professora universitária.
Foi lançado na quarta-feira, 5 de outubro, o programa Criança Feliz já descrito como o “mais ousado programa social” do governo federal pós-impeachment1. O programa está vinculado ao Ministério de desenvolvimento social e agrário e foi proposto por seu ministro Osmar Terra, médico e deputado federal pelo PMDB. Compilando as notícias veiculadas até o presente na web, e que trazem, sobretudo declarações do próprio ministro, sabe-se que se trata de um “programa de estimulação precoce para o desenvolvimento de habilidades e competências nos primeiros anos de vida”. Sua principal referência é o programa Primeira Infância Melhor (PIM) criado no Rio Grande do Sul em 2003, quando Osmar Terra foi secretário de saúde. Para coloca-lo em prática pretende-se contratar cerca de 80 mil pessoas com ensino médio para fazer o atendimento presencial aos filhos de beneficiários do programa Bolsa Família, o que equivaleria a 4 milhões de casas. Serão os chamados visitadores que farão visitas semanais ou quinzenais às famílias, para acompanhar o desenvolvimento das crianças e contribuir para que “tenham um futuro melhor e ajudem suas famílias a sair da pobreza”. Para dar início ao programa, em 2016, serão destinados 80 milhões de reais e a previsão é de que seu pleno funcionamento custe 2 bilhões de reais ao ano.
A intenção declarada do governo com o lançamento deste programa seria afastar a acusação de que não se preocupa com a área social. Para este fim a preocupação com as crianças é normalmente bastante eficiente, pois a infância como uma causa, parece estar acima de diferenças ideológicas ou visões de sociedade. No entanto, especialistas em políticas públicas começam a chamar atenção para algumas escolhas que dizem respeito ao programa. Conforme o Centro de Referências em Educação Integral, até recentemente, as políticas públicas destinadas a crianças de 0 a 3 anos convergiam para o Plano Nacional de Educação. Elas sustentavam-se na ideia de que, independentemente de classe social, as crianças nesta faixa etária têm direito à creche com professores qualificados e infraestrutura de qualidade. Como uma política intersetorial, a educação infantil estaria articulada a políticas de saúde e de assistência social. Alguns especialistas consultados para a reportagem Novas medidas alteram foco das políticas educativas para a primeira infância2 manifestam preocupação com a possibilidade de que esta lógica de intervenção, centrada na educação, esteja sendo substituída pela assistência social. Em reforço a esta hipótese citam o enfraquecimento do Proinfância (Programa Nacional de reestruturação e aquisição de equipamentos para a rede escolar pública de educação infantil) cuja continuidade estaria ameaçada pelo fim do repasse de verbas. A União Nacional dos Dirigentes Municipais de Ensino (Undime) prevê que a medida provisória 729, recentemente aprovada pelo senado federal, acarrete para muitas cidades, a redução de até 50% dos recursos destinados às creches e crie uma situação de instabilidade e imprevisibilidade quanto ao valor das verbas. Esta medida provisória diz respeito ao programa Brasil Carinhoso que repassa recursos para o funcionamento de creches que atendem, justamente, crianças cujos pais são beneficiários do Bolsa Família. Em acordo com a análise de Claudia Fonseca3 sobre dois “coletivos de pensamento” que disputam os rumos das políticas para a primeira infância, a orientação deste programa situa-se na perspectiva que prioriza a intervenção domiciliar com ênfase no estímulo cerebral, no lugar do reforço à qualificação profissional e a ampliação da oferta de creches que favorece a escolaridade e a inserção de mulheres no mercado de trabalho.
A estas leituras sobre a dimensão política dos modos de gestão da primeira infância, eu gostaria de agregar uma pergunta referente à especificidade do público-alvo deste programa e que a meu ver tem passado despercebida. A saber, as famílias beneficiárias do Bolsa Família. Minha pergunta é a seguinte: receber o benefício do Bolsa Família e ter crianças até três anos significará integrar compulsoriamente o Criança Feliz? Se assim for, é preciso considerar que este programa poderá significar também uma nova condicionalidade para o Bolsa Família. É isto mesmo? Não seria a primeira vez que o nome de Osmar Terra associa-se ao tema da compulsoriedade como modo de acesso a políticas públicas. É de sua autoria o projeto de lei que institui a internação compulsória dos usuários de drogas ilícitas, na contramão de outra perspectiva que vê na medida de internação uma alternativa individualizada e de exceção, jamais empregada de modo coletivo4. Em relação às designações “usuários de drogas ilícitas” ou “famílias que recebem o Bolsa Família” a compulsoriedade da internação ou da visita domiciliar indicam uma mesma tendência a tratar como um coletivo homogêneo, populações muito diversas. Quanto “as famílias que recebem o Bolsa Família” lembremos que participam de um programa de transferência de renda já condicionada à frequência escolar das crianças, ao cumprimento de cuidados básicos em saúde tais como o calendário de vacinação (para as crianças de zero a sete anos) e a agenda pré e pós-natal para as gestantes e nutrizes. O possível acréscimo de condicionalidade representado pelo Criança Feliz, se confirmado, estaria também na contracorrente da discussão travada internacionalmente acerca da dispensa de condicionalidades em programas de renda mínima. Esta posição é defendida pelos que entendem que a um direito não deve haver a imposição de contrapartidas. Mas, independentemente deste debate controverso, a visitação compulsória de famílias beneficiárias do Bolsa Família com crianças até três anos, a meu ver, coloca em evidência um estereótipo generalista sobre a incapacidade das famílias pobres (e mais precisamente das mães) de criarem e educarem seus filhos de forma adequada. Aliás, este estereótipo serve para explicar muitos de seus problemas, desde a dificuldade de alfabetização das crianças até a violência social e a própria condição de pobreza. A dimensão tutelar da participação compulsória também contraria o processo de autonomização e empoderamento das mulheres identificado por estudos qualitativos que jogam luz sobre as vidas das famílias participantes do programa Bolsa Família5. Em que pese uma grande variedade de arranjos e diferentes dinâmicas familiares, estes estudos ressaltam o caráter generalizado da precariedade das condições de moradia, dos equipamentos públicos com que se conta, inclusive daqueles relacionados às condicionalidades do próprio Bolsa Família, a escola e o posto de saúde. Ressalta-se também as grandes dificuldades enfrentadas pelas mulheres beneficiárias para ingressarem no mercado de trabalho. Como observa Mercedes Rabelo em sua tese de doutorado, todas estas condições são fatores que obstaculizam a ascensão social, causam desestímulo às crianças e contribuem para a reprodução da pobreza6.
primeirodamismo-recatado
Finalmente, uma das notícias sobre o novo programa acrescenta-lhe uma dimensão simbólica que merece ser observada à luz do foco na intervenção domiciliar e pedagógica que o caracteriza. A saber, que a primeira-dama (sim, esta denominação ainda está em uso) atuará como sua embaixadora junto aos municípios. Logo após ter lido esta notícia, deparei-me com a capa da revista Piauí do mês de setembro. Nela, Caio Borges retrata a nova família presidencial à moda anos 50 e com todos os seus ingredientes: uma família de classe média, nuclear, branca, heterossexual, na qual a esposa dedica-se ao lar, ao cuidado das crianças e espera, alegremente, seu marido provedor voltar do trabalho. A justificativa de um “auxiliar presidencial” para a escolha da primeira-dama para o cargo foi a de que “ela é mãe e tem todos os predicados para ajudar nesta área”7. Este argumento me fez lembrar a velha aliança entre o médico e a mãe que marcaram a assistência social na Europa do século 198 e que tanto influenciou o ideal de uma “maternidade educada” característico das iniciativas de proteção à infância na América Latina, sobretudo no início do século 209. Associar ao programa Criança Feliz a imagem de uma maternidade “bela, recatada e do lar” e condicionar o acesso a uma política de renda mínima à participação no programa, soa-me como uma nova velha forma de tutela das mulheres/mães pobres em nome de um suposto “bem estar infantil”.
[1] <fernandorodrigues.blogosfera.uol.com.br/2016/07/20/michel-temer-lanca-programa-crianca-feliz-ao-custo-de-r-2-bilhoes-ao-ano/>
[2]<educacaointegral.org.br/noticias/novas-medidas-alteram-foco-das-politicas-educativas-para-primeira-infancia/>
[3] FONSECA, Claudia.  Tecnologias globais de moralidade materna: as interseções entre ciência e política em programas “alternativos” de educação para a primeira infância. In: FONSECA, Claudia; ROHDEN, Fabíola; MACHADO; Paula Sandrine. Ciências na vida: antropologia da ciência em perspectiva. São Paulo: Terceiro Nome, 2012.
[4] A questão das drogas em perspectiva: uma entrevista com Taniele Rui, Maurício Fiore, Heitor Frúgoli Jr. e Bruno Ramos Gomes. Áskesis, v. 3, n. 1, 2014. p. 250-263 < http://neip.info/novo/wp-content/uploads/2015/04/entrevista-a-questao-das-drogas-com-taniele-rui-et-al-aeskesis-2014.pdf>
[5] Política & Trabalho, n. 38, 2013 <periodicos.ufpb.br/index.php/politicaetrabalho/issue/view/1249>. Dossiê 10 anos do Programa Bolsa Família.
[6] RABELO, Maria Mercedes. Redistribuição e reconhecimento no Programa Bolsa Família: a voz das beneficiárias. Porto Alegre, 2011. Tese de doutorado em Sociologia, PPGS/Ufrgs <lume.ufrgs.br/handle/10183/36059>.
[7] < brasilpost.com.br/2016/09/01/marcela-temer-area-social_n_11820852.html>.
[8] DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1986.
[9] ROJAS NOVOA, María Soledad. Relaciones de género, instituciones de poder: tensiones em el saber sobre la protección de la infancia en America (1910-1930) < http://cdsa.aacademica.org/000-038/652>.

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