Crônica de dois golpes

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Céli Pinto*
A derrubada, mesmo provisória, da presidenta Dilma Rousseff no último dia 18 de maio encerrou o segundo ciclo de regime democrático no Brasil pós Estado Novo. O primeiro começou com a constituição de 1946 e terminou com um golpe de estado militar, que durou 24 anos até a promulgação da Constituição de 1988. O afastamento de Dilma tal como de Jango foi um golpe que rompeu com a ordem institucional.
É pouco crível que juízes, ministros do supremo e deputados acreditem no que repetem para a mídia, que não foi golpe porque o impeachment está previsto na constituição e todos os ritos estabelecidos pelo STF foram cumpridos. Ora, é a mesma coisa que condenar um inocente à 10 anos prisão sem conseguir lhe imputar nenhum crime real, mas porque quebrou acidentalmente a perna de um companheiro em um jogo de futebol , justificando a sentença porque o julgamento ocorreu dentro dos mais rígidos preceitos da lei, apenas com o detalhe de chamar sempre o acidente de crime.
Há uma ruptura sim, da ordem institucional. Poderia me alongar em outros detalhes de toda a ilegalidade que cercou o afastamento da Presidenta, mas não é este meu objetivo neste pequeno artigo. O que me proponho fazer é comparar as trajetórias dos dois golpes que interromperam períodos de democracia no Brasil, assinalando diferenças e semelhanças.
As instituições entre 1946-64 eram muito mais frágeis do que a do período de 1988-2016. Houve um avultado número de tentativas de golpe. Sem contar a tentativa que resultou na morte de Getúlio Vargas, houve a tentativa da UND de impedir a posse de Juscelino Kubitschek em 1955, alegando que ele não havia conseguido a maioria absoluta dos votos, o que não era exigência constitucional. Em 1956 e 1959 as famosas revoltas militares de Jacareacanga e Aragarças tentavam afastar o presidente da República. Em 1961 Jânio renunciou, o golpe só não aconteceu pela resistência de Brizola com a Campanha da Legalidade, pela falta de unidade no Exército e pela intervenção dos mediadores de sempre criando um parlamentarismo à brasileira para que o vice presidente de esquerda João Goulart fosse empossado na Presidência da República. Em 1963 o Brasil voltou ao presidencialismo, os partidos políticos, as forças sindicais, as ligas camponeses apontam para uma saída de esquerda para o desenvolvimento do país. Em 1964 militares, UND, parte da burguesia e da classe média associados aos interesses diretos os Estados Unidos na América Latina na época depõem o presidente e instaura-se o regime militar no Brasil, que escreveu uma página de pura vergonha na história do país.
No segundo período não houve solavancos na democracia. Eleições se sucederam, presidentes foram empossados sem nenhum problema até 2014. As instituições funcionavam bastante bem, as forças armadas estavam cumprindo sua missão institucional (diga-se de passagem até agora continuam a faze-lo). A única vez que um eleição presidencial foi questionada, lembrou Lacerda em 1955, quando o candidato Aécio Neves e seu partido entraram com uma ação no TSE pedindo uma auditoria na votação que dera vitória no segundo turno a Presidenta Dilma Rousseff em 2014. Aqui começa os primeiros passos do golpe, e novamente todos nós, e o candidato Neves inclusive, sabíamos que as eleições foram corretas, que o candidato de oposição havia perdido por 3.8% dos votos. Lacerda e sua UDN também sabiam que a eleição de JK em 1955 havia sido lícita.
O fato de termos agora instituições mais consolidadas, se comparadas as do primeiro período democrático, torna mais grave a situação atual, pois um golpe para se realizar não pode apenas colocar tanques nas ruas e prender meia dúzia de inimigos. O golpe tem de passar por dentro das instituições. Tem de corromper as instituições no sentido mais profundo desta palavra. Não se trata de corromper com sacos de dinheiro, pode até ter acontecido, mas a corrupção que importa é a corrupção moral, é a total falta de compromisso dos agentes públicos, eleitos ou não, com os deveres que devem cumprir e para os quais são regiamente pagos.
A corrupção moral associada a uma empáfia proto legalista talvez sejam as experiências mais ameaçadoras pelos quais os Estados modernos têm passado. E é isto que nos toca viver neste momento.
Há uma grande diferença ideológica entre os dois momentos democráticos em pauta. Entre 1946-1964 havia por um lado a Guerra Fria que tornava a ameaça do comunismo algo bastante crível. Principalmente após a Revolução em Cuba, havia o que temer por parte das classes dominantes e dos conservadores de todas as matizes no Brasil. Mas os governos que se sucederam no período estava longe de serem socialmente progressistas e lembrarem de qualquer sorte uma postura socialista e muito menos comunista. Além do PCB na clandestinidade o que havia de mais a esquerda era o PTB de Brizola com seu trabalhismo historicamente anti comunista. Apesar do país ter mudado sua feição econômica na década de 1950, a miséria absoluta, a pobreza, o analfabetismo, o latifúndio permaneceram onde estavam, sem nenhuma mudança, mesmo tímida.
Um Brasil com perspectivas mais progressistas começava a se delinear em 1963, quando Jango realmente assume a presidência com plenos poderes, após um plebiscito popular. A página do CEPDOC no item sobre a Trajetória política de Jango “ resume muito bem o conjunto de reformas: “Sob essa ampla denominação de “reformas de base” estava reunido um conjunto de iniciativas: as reformas bancária, fiscal, urbana, administrativa, agrária e universitária. Sustentava-se ainda a necessidade de estender o direito de voto aos analfabetos e às patentes subalternas das forças armadas, como marinheiros e os sargentos, e defendia-se medidas nacionalistas prevendo uma intervenção mais ampla do Estado na vida econômica e um maior controle dos investimentos estrangeiros no país, mediante a regulamentação das remessas de lucros para o exterior. (disponível em cpdoc.fgv.br acessado em 21.09/2016)
As amplas reformas propostas criaram as condições ótimas para o golpe, reuniram forças que até então haviam tido sucesso em travar qualquer avanço do Brasil em direção a um desenvolvimento mais igualitário por 24 anos.
É difícil comparar as reformas propagadas em 1964 com as transformações vividas pelo país neste segundo período democrático, entretanto, o significado delas são muito próximos.
Ao contrário do primeiro período, no segundo um partido de centro esquerda ganhou as eleições presidenciais 4 vezes, colocando na cadeira presidencial dois outsiders às elites brasileiras: um operário nordestino e uma mulher ex-guerrilheira. E isto não é pouca coisa, desde a Proclamação da República em 1889 todos os presidentes da república, sem exceção, eram homens que pertenciam às elites econômicas ou militares.
Nestes governos o Brasil saiu do mapa da fome da ONU como resultado de políticas de combate a miséria e a pobreza, milhões de pessoas tiveram acesso a emprego, a casa própria, a bens de consumo e a lazer, a mortalidade infantil diminuiu drasticamente, o número de vagas em universidades públicas ou pagas pelo governo em universidades privadas multiplicaram-se, políticas de cotas começam a pagar um dívida histórica com negros e indígenas, os diretos humanos, o direito das mulheres , da comunidades LGTB, dos quilombolas , dos negros começam a ser discutidos e vitórias importantes foram alcançadas.
Portanto, as classes dominantes e aos setores conservadores e reacionários da sociedade sentiram-se ameaçados, porque realmente estavam amaçados, um novo país estava se gestando, embora muito timidamente. Se em 1964 o golpe foi contra uma promessa de mudança, agora foi contra o que já havia mudado.
Os governos liderados por presidentes petistas não foram os melhores governos do mundo, o PT fez política da forma mais tradicional possível, para governar se aliou ao centrão da política brasileira e literalmente pagou para ter apoio. Os escândalos de corrupção se sucederam onde toda a classe política estava envolvida inclusive o PT. Mas a corrupção no Brasil sempre foi bote expiatório. É óbvio que o PT não podia ser corrupto, se não por qualidade moral, por esperteza política, pois os corruptos de sempre estavam só a espera do escorregão petista para dar a tacada final para o golpe.
Em 1964 não houve chances de retorno a legalidade, o golpe foi vitorioso e as consequências todos nós conhecemos e os mais velhos de nós sofremos diretamente. A pergunta agora é, conseguiremos evitar que o golpe em curso se estabilize como um novo governo? Esta é uma pergunta de resposta muito difícil. Talvez uma sociedade muito mobilizada, greves múltiplas, crises internas nas hostes golpistas, medidas impopulares do governo interino, pressão internacional deem uma chance para que se inaugure um terceiro período democracia no Brasil, com Dilma Rousseff ocupando o lugar que é seu pelo voto popular.
* Cientista Política e Profa do Dep de História da UFRGS

0 comentário em “Crônica de dois golpes”

  1. 1. Se a Dilma realmente acreditasse em golpe, teria chamado as forças armadas. Se não chamou é porque sabe que foi um processo legal. Como diz Demétrio Magnoli, a narrativa do golpe é para manter a esquerda unida.
    2. Sobre o trabalhismo de Brizola ser anti comunista. Não resolve muito ser anti comunista e ao mesmo tempo pregar ações pró socialismo. Várias propostas dele acabavam em nacionalização da economia, o que significa anti liberalismo.
    3. A respeito de Jango, se não havia realmente perigo comunista no Brasil, havia nacionalismo, mentalidade anti mercado, o que provocaria a bagunça que Allende faria depois no Chile e Chávez e Maduro fizeram na Venezuela. Entre uma democracia que iria arruinar o país e os militares…
    4. Sobre avanços na área social: de que adianta um negro ter acesso à universidade sem preparo prévio num bom ensino básico? A universidade brasileira não forma filósofos, forma professores medíocres de filosofia e nem historiadores, e sim professores medíocres de história. Se nem quem estudou em boas escolas está sendo bem preparado, imagina o coitado da periferia.
    90% dos alunos de humanas é formado por gente sem a mínima erudição, cultura. O cara entra um Zé Ninguém sem diploma e sai um Zé Ninguém com diploma.
    Isto é enganar os pobres, não ajudá-los.
    Melhor seria o PT, em 13 anos de governo, ter melhorado o SUS, melhorado as escolas, construído escolas em bairros pobres, equipado as polícias etc. Isto beneficiaria a todos.
    O negro que entra por cotas não é o negro miserável, é o negro que já é mais ou menos classe média. É o cara que, mesmo sem cotas, já iria tirar mesmo uma nota boa no vestibular ou nos concursos. O negro pobre continua na m…

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