Ditadura golpista e apartheid social

João Alberto Wohlfart – Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de Filosofia no IFIBE.
O regime político ditatorial que o Brasil vive atualmente tem gravíssimas consequências sociais. Não restam dúvidas de que a chegada dos golpistas ao poder representa a ruptura da Constituição, a dissolução da Democracia e o fim do Estado de Direito. Está instalada uma ditadura jurídico/parlamentar/midiática com a finalidade de impor ao Brasil um projeto econômico que segue rigorosamente a cartilha neoliberal. Como consequência desta nova ditadura, é visível que se estabeleceu no Brasil uma cisão social radical a que podemos denominar de apartheid social.
Como ainda somos um modelo econômico capitalista, há em nossa sociedade uma elite dominante profundamente egoísta e concentradora de renda. Enquanto perdura o sistema capitalista de produção, o mundo estará cindido entre ricos e pobres, uma assimetria social distribuída em nível global e no interior dos países, particularmente de terceiro mundo. A elite burguesa capitalista não admite que os mais pobres ascendam socialmente e integrem os mais variados espaços da sociedade. A elite burguesa se considera dona do mundo diante da qual os mais pobres e as classes sociais excluídas são odiadas.
Durante os anos do governo Lula e o primeiro de Dilma houve o fenômeno jamais visto e imaginado no Brasil da ascensão social, quando milhões de miseráveis saíram da miséria e outros milhões entraram na classe média. Esta gigantesca massa historicamente excluída começou a aparecer nas praças, nas lojas e supermercados, nas Universidades, nos aviões, nas ruas das cidades, nos espaços de trabalho etc. Começaram a ocupar os mesmos espaços da elite dominante e concorrer com os seus privilégios.
Isto se torna ainda mais acentuado quando se trata de classes historicamente excluídas como os negros, os índios, as mulheres e grupos de outras opções sexuais. Além da divisão social provocada pelo modelo econômico capitalista, isto vem acrescido do racismo, como expressão de ódio e preconceito contra os negros e índios, do machismo, como o tradicional domínio do homem sobre a mulher. Estas formas de exclusão e rebaixamento ficam evidenciadas na configuração do governo golpista, que não tem mulheres e negros nos mais elevados escalões do governo.
O apartheid social brasileiro é protagonizado pela elite burguesa dominante. Isto fica visível quando, por exemplo, pais ricos ficam enfurecidos quando seus filhos são obrigados a estudar nas escolas e Universidades nas mesmas salas onde se encontram negros. Os ricos ficam enfurecidos quando se deparam com a infelicidade de sentar ao lado de um pobre no avião, que jamais deveria pisar nestes espaços. A burguesia dominante fica furiosa quando são antecipados pelos mais pobres nas filas dos bancos e atrasam os seus compromissos em função dos vagabundos que só atrapalham. A classe rica branca fica enfurecida porque espaços como o trabalho, o protagonismo social, a posse da riqueza são ameaçados de divisão em relação àqueles que mais são odiados. A classe dominante vive o ódio porque as “riquezas produzidas pelo suor de seu trabalho e pela sua capacidade de gerenciamento são destinadas a uma massa vagabunda que não trabalha”.
O apartheid social brasileiro fica visível em várias esferas, em várias áreas do saber e em múltiplas instâncias. Ainda não conseguimos avançar historicamente para que as distintas classes sociais tenham condições de convivência e de solidariedade. Em tempos de profunda crise econômica e política estas questões ficam explicitadas e se tornam claras como o dia. Para a sistêmica cisão social constituem forças determinantes a economia, a política e o judiciário. A economia capitalista é concentradora de renda com a cisão do mundo em ricos e pobres; a política atende aos interesses de uma minoria e o judiciário legitima o sistema econômico estabelecido. A atuação do judiciário é escandalosa porque se mostra seletiva, protege a direita política e criminaliza sistematicamente os movimentos sociais.
Nos últimos tempos assistimos fatos e eventos que apontam para os interesses de uma pequena elite, em detrimento da grande população que tende a ser reduzida a uma massa informe e a uma força indiferenciada de trabalho. Quando em Universidades públicas é discutida a Democracia, as Instituições de Ensino Superior são objeto de repressões e de restrições jurídicas, quando uma sociedade democrática proporciona plena autonomia para realizar este tipo de discussão. Práticas radicalmente antidemocráticas de divisão social dizem respeito à criminalização dos movimentos sociais e à condenação de suas lideranças. Nas periferias de nossas cidades os negros e pobres ainda são objeto direto de perseguição policial, de cassetete, de prisão e de fuzilamento seletivo. Um modelo político ditatorial como o nosso não tolera manifestações democráticas, reprime movimentos sociais e enche as cadeias de gente oriunda do universo da exclusão social.
A recente ocupação das escolas pelos alunos reforça a constatação da cisão social. Percebem o descalabro e o descaso com a educação, ocupam as escolas e o que lhes espera é a punição policial. A justiça pune e prende as lideranças populares, as lideranças de forças políticas de esquerda e inviabilizam o aprofundamento da Democracia. A justiça sustenta e protege um pequeno mundo social altamente elitizado, em detrimento da população que lhe foi negada a Democracia e rasgada a Constituição.
O governo ilegítimo erigido pelo golpe branco é uma síntese de todas as expressões históricas de machismo, racismo, patriarcalismo, patrimonialismo, criacionismo, sexismo, autoritarismo, xenofobismo etc. Estes preconceitos sociais que atravessam a história brasileira retornaram com toda a força e estão presentes em todos os recantos da sociedade, quando teriam que ter sido superados com o advento do novo milênio. A sociedade está sistematicamente dominada por estas expressões protagonizadas por homens de bem, por brancos ricos, pela burguesia capitalista, por moralizadores do bem e por visões ultraconservadoras de mundo, de política e de religião. Vivemos um momento histórico no qual os ismos aqui citados ressuscitam com toda a força e são amplamente suscitados pela ditadura golpista, pelo judiciário, pela mídia e pela grande elite econômica.
O apartheid social que vivemos atualmente é expresso no ódio social. Vivemos numa cultura de ódio e de intolerância radical. São objeto de ódio os negros que totalizam mais da metade da população brasileira. São objeto de ódio os índios outrora considerados pelos mesmos brancos religiosos homens de bem como selvagens e sem alma. São objeto de ódio as classes mais pobres rotuladas de vagabundos. Expressão de ódio sistêmico é o preconceito seletivo contra os nordestinos simplesmente rotulados de “vagabundos”. A pretensão de separar a Região Sul do resto do país é consequência da pretendida supremacia cultural e machismo. São objeto de ódio os estudantes e as suas organizações são reprimidas em meios judiciais simplesmente porque lutam por uma educação mais qualificada. São objeto de ódio os partidos políticos de esquerda e as suas lideranças, simplesmente porque proporcionaram uma sociedade mais democrática e porque promoveram uma inclusão social mínima. Os ataques midiáticos e judiciários são muito conhecidos.
O governo golpista que usurpou o poder por meio do golpe legitimado pelo judiciário, pelo legislativo federal, pela grande mídia, pelo grande empresariado e por grandes corporações transnacionais tem como consequência uma cisão social jamais vista. O golpismo não tem nenhuma sintonia com os negros, índios, mulheres, trabalhadores, movimentos sociais, movimentos estudantis etc. A tendência atual é de que o ódio, a xenofobia e a mixofobia se intensificam e se disseminam pela sociedade inteira. O resultado disto seria uma estrutura social formada pela burguesia isolada nas instâncias políticas, nas propriedades particulares, nos negócios econômicos e a grande ralé objeto de ódio e exclusão social.
A classe especialmente treinada para disseminar ódio na sociedade não está apenas em Brasília ou nos grandes centros de atividade econômica. Não são apenas os brancos, ricos, machos e barrigudos que integram as três esferas da república, mas estão presentes na base social. Eles vêm revestidos da condição de homens de bem, moralmente corretos, fiéis à bíblia e aos preceitos religiosos, são ricos pela graça de Deus e por seus próprios méritos, mas profundamente odiosos ao condenar os de outra cor e condição como criminosos, vagabundos, baderneiros, etc.
 

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