Natural de Florianópolis (SC, 1945), formado na UFRGS em Direito, 1969, participou ativamente da militância estudantil. Escritor de romances, poesias e memórias, com vinte e três livros publicados, participou de mais de cinquenta coletâneas no Brasil e no exterior. Membro da AP (Ação Popular), esteve preso durante meses na OBAN (Operação Bandeirantes) e no DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social), em São Paulo, seguindo posteriormente ao exílio. Foi vendedor de livros, editor, professor e redator de discursos. Seu romance “Olhos Azuis – Ao Sul do Efêmero” (2009) -, foi contemplado com o Prêmio Internacional de Literatura, concedido pela UBE (União Brasileira de Escritores).
Desterro
Desterro cumpriu-me
e cumpriu-se.
O rio começava atrás de casa
(como eu),
e foi embora – afluentes.
Vento sul, Campo do Manejo, Rita
Maria, Rio da Avenida, Miramar,
bala queimada, Catecipes, Praia do Muller,
procissão do Senhor Morto, Cine Rox,
gibis, Grupo Escolar Dias Velho,
Chico Barriga D’Água, paixão camuflada pela menina
da Rua de Cima – ela nunca soube.)
Só enuncio: acumulo – sobrecarregado.
O rio foi embora.
Casa demolida, mãe na soleira da porta, pitanga no
quintal, regata na Baía Sul, matracas, turíbulos, trapiche da
Praia de Fora, gaita-de-boca, groselha, tainha frita,
fogão de lenha, beliches, pé de amora.
Perdeu-se o rio: não sei do seu delta.
Perdi-me: tiro certeiro na gaivota.
A rua pequena, era a maior do mundo – coração.
Desterro inunda-me:
outrora/agora.
Masmorras
Clandestinidades, fugas na boca da noite
Dormir cada dia num lugar
Pensões, pulgas, esconderijos, dinheiro contado, pratos
[feitos, uma pinga para o consolo provisório.
Palavras apenas – e foi na carne que doeu.
Tudo já foi ditado, mastigado, expelido.
Foi?
O Primeiro Interrogatório.
O Segundo Interrogatório.
O Quarto Interrogatório.
O Décimo-Quinto Interrogatório
(De manhã, de tarde, à meia-noite, às quatro da
[madrugada).
Choques elétricos, pau de arara, “cadeira do dragão”,
[“telefones”, palmatórias.
O verso de T.S.Eliot na cabeça:
“As palavras se movem, a música se move
Apenas no tempo: mas aquilo que apenas vive
Pode apenas morrer. As palavras após a fala, alcançam
[o repouso. (…)
O corpo: não.
Um bafo de morte na soleira da porta.
(O processo, a burocracia, togas pretas, auditorias, fardas.)
E um dia ir embora para plagas não conhecidas
Um dia, voltamos.
(Só restará o oblívio Alguém se lembrará?)
Exílio
Um Atlântico nesta separação:
batido coração segue as ondas de maio.
Desterros além da anistia,
para lá dos poderes.
Velas ao vento,
não bastam os selos,
a escrita crispada.
Queria os sinais da tua pele,
vacinas, umidades, penugens,
pêlos perdidos no mapa do corpo,
o olhar suplicante, soluços.
Jornadas:
missas de sétimo-dia,
retratos arcaicos.
Outro exílio:
sem batidas na boca da noite, armas, fardas, medos,
clandestinidades.
Sol neste retorno:
casa, guarda-chuva no porão, caneca de barro,
álbuns, abraço agregador,
cheiro de pão, gosto de café,
o amanhã junta os o dois nós da memória,
um menino e o seu outro: estou melhor feito vinho velho.
Pai
Meu pai cavalgava
abraçado à sua dor oculta.
No crepúsculo: só – na soleira da porta,
cadeira de balanço, boina, olhar azul.
Antes do assobio da Inelutável
foi para a montanha.
Como um elefante em despedida
quis morrer sozinho.
Quando chegar a hora
farei como meu pai:
subirei a montanha,
Madona
Senhora das horas inconclusas
Senhora do torto parto
do porto inalcançável
Madona da ânsia infinita
vã peregrinação
Senhora do desassossego
Conceda-me o bálsamo do olvido
passagem silenciosa
travessia sem medo
Senhora do inútil tempo – que continua queimando
Senhora da veloz juventude
Madona de todas as velhices
Outorga-me o estatuto da ausência
Planalto
O Planalto é sempre –
nós é que passamos.
Ulisses, oráculo, reaparece
(num tempo que não quer profetas),
Penelópe só tece dúvidas, eclipsado o sagrado:
mercantis propósitos – só.
O Planalto é sempre
– nós é que passamos.
A memória: nossa matéria
– como lidar com tanto esquecimento?
Carece preparar os rituais de retorno:
suado feixe de
carnes/emoções?
(Qual a sua forma?)
Aqui irrompeu o pranto,
não a redenção.
Expulsos do paraíso: vagamos.
Rebanhos eletrônicos, restos de pompa,
retóricas cartorárias, tecnocratas com dentes de ouro
[– e celulares de última geração.
O Planalto é sempre
– nós é que passamos.
Mas cansou-me o pranto:
O sol inunda esta manhã
pão quente, cheiro de café torrado,
o poema arranca algo do efêmero,
fundo-me no esquecimento
(Também somos feitos daquilo que perdemos.)
Deus faz que me esquece:
depois reaparece.
Hiroshima
Na manhã dominical,
a bomba de Hiroshima,
a bomba,
tão clara,
exata,
cirúrgica.
Bomba geométrica,
certeira.
A bomba vem do céu,
mas não é ave.
A bomba vem de cima,
mas não é Deus.
Desce fumegante,
a bomba não negocia,
a bomba não conversa,
célere, impositiva,
acerta o alvo, cai,
a bomba queima, a bomba dissolve,
a bomba dilacera.
Alguém nasce no ano em que ela cai,
e pensa naquele 1945:
a surpresa daqueles milhares de olhos,
à espera do lúdico no matinal domingo,
parques, igrejas, passeios, visitas familiares,
percebendo – sem tempo para a reflexão –
a chegada da não-ave,
emissária de Tanatos,
que cai, cai,
na paisagem limpa (cogumelos atômicos).
Homem diante do mar
Homem diante do mar
(instância interrogativa).
Precária caravela.
E finita: a vida
Trapiche:
o homem só contempla
(desembarcado).
No estatuto da memória:
ele se interroga, nunca mais a ação.
No porto: a rapariga rosada estendeu um lenço.
Limo: foram-se a juventude, o trapiche, a rapariga, o lenço.
(Mátria: sou apenas um homem diante do mar.)
Desterro: instante convertido em sempre.
O homem desembarcado só pode viver de memória:
[diante do mar.