Engajamento social hoje, 20 anos depois

Jorge Barcellos
Doutor em Educação
Completam-se no corrente ano, 20 anos da palestra de John Kenneth Galbraith (1908-2006) intitulada “O engajamento social hoje”.  Palestra inaugural sobre a política do senador canadense Keith Davey proferida pelo economista na Universidade de Toronto em 1997 foi publicada pelo Mais! no ano seguinte.  Passados vinte anos, a questão colocada pelo economista sobre as razões pelas quais os governos estão abandonando os pobres continua com grande atualidade.
Galbraith foi um dos mais importantes economistas do século XX e defensor da participação do Estado para regular o mercado ao lado de John Maynard Keynes (1883-1946). Ele se interessa em descrever a posição política e os objetivos dos socialmente engajados “onde quer que vivam e como sejam chamados”. Ser socialmente engajado significa, em primeiro lugar, no texto de Galbraith, uma posição de defesa dos mais pobres. Por esta razão sua análise é sobre papel que devem exercer os socialistas na França, os socialdemocratas na Alemanha, os trabalhistas na Grã-Bretanha e à época, no segundo governo Fernando Henrique Cardoso (1998-2002), o texto ilustrava o desejo da esquerda petista ainda não atingida pelo processo de corrosão do segundo governo Lula.
A colocação do problema de Galbraith sobre a responsabilidade dos governos frente aos pobres e o papel do intelectual cai como uma luva nos dias de hoje ”. Nesta época socialmente complexa e as vezes politicamente retrógrada, que posição devem assumir os socialmente engajados, e com que objetivo? ”. Galbraith não viveu para ver a ascensão de Donald Trump ou a emergência de Le Pen na França e veria com tristeza a política brasileira caracterizada pelo desmonte dos direitos sociais e por essa razão é rica as lições que tira de sua época para ilustrar a nossa.
Primeiro porque o sistema de mercado persiste como o sistema básico de produção de bens e serviços, hoje como há vinte anos atrás, como assinala o filósofo esloveno Slavoj Zizek, produz com tanta abundância que é possível enxergar sua imagem no imenso mundo do lixo que acumula “Nós, os socialmente engajados, não consideramos esse processo livre de imperfeiçoes”, assinala Galbraith, quer dizer, tanto em sua época como na atual, ainda que não há horizonte uma alternativa econômica, cabe ao intelectual a sua crítica do modelo de desenvolvimento.
Segundo, como Galbraith previu, a questão ambiental é o ponto de partida dos problemas do sistema de mercado já que os recursos naturais são cada vez mais escassos para todos. A sua previsão de que “a forte voz política que o sistema de mercado confere aos que possuem e administram o equipamento produtivo “ só se agudizou, isto é, determinados atores do sistema de mercado adquiriram cada vez mais forte voz política na década seguinte ampliou-se nos sucessivos processos de combate a corrupção, como o da Lava – Jato revelou.
Devemos aceitar a posição de Galbraith de que o sistema que está aí veio para ficar? Em parte não, se considerarmos que ainda há forças políticas sobreviventes que recusam o capitalismo como o diabo foge da cruz, herdeiros de uma tradição política de esquerda radical que comprovou que, ao menos na experiência brasileira, quando a esquerda busca apoio no mercado, ela perde sua natureza (vide o PT): Galbraith só podia falar do trabalhismo britânico em sua total aceitação, mas é possível falar do petismo brasileiro no mesmo sentido.
O ponto central do argumento de Galbraith vem em seguida: “a sobrevivência e a aceitação do moderno sistema de mercado foram, em grande medida, uma conquista dos socialmente engajados. Ele não teria sobrevivido sem nossas bem-sucedidas iniciativas civilizadoras”. O que isto significa? Para Galbraith, em sua forma original, o capitalismo é cruel e por isto é preciso que os sindicatos cumpram a sua função, a proteção aos trabalhadores e seus direitos “pensões para idosos, indenizações para os desempregados, assistência pública à saúde, habitação de baixo custo – uma rede de segurança, embora imperfeita, para os desafortunados “. Essa é ainda uma notável lição para avaliar os tempos que correm onde vemos o capitalismo em sua forma mais cruel ser adotada como política de estado: o fim de direitos dos trabalhadores, a reforma da previdência, a crise da rede de segurança propriamente dita no Brasil seriam a prova do fracasso do estado de bem-estar social, o contrário da visão de Galbraith, um sistema de mercado que está se tornando social e politicamente inaceitável a passos largos.
A crítica de Galbraith é sua recusa à corrente de pensamento que afirma que qualquer atividade econômica deve ser convertida ao mercado, transformado em universal, onde a privatização é uma “fé pública”, argumento que continua atual.  Galbraith diz taxativamente que a “a questão do privado x público não deve ser decidida em termos abstratos e teóricos; a decisão depende sobretudo dos méritos de cada caso especifico”. O argumento cai como uma luva nas iniciativas privatizantes dos governos Luis Fernando de Souza (Pezão) no Rio de Janeiro e José Ivo Sartori no Rio Grande do Sul e medidas de novos prefeitos, como Nelson Marquezan Jr em Porto Alegre. Tanto Pezão quanto Sartori, por exemplo, incluíram em seu pacote de entidades a serem extintas, fundações ligadas a pesquisa, como a FEE no RS e o CEPERJ, no RJ, enquanto Marquezan realizou uma reforma extinguindo secretarias e órgãos como a SMAM, além de manifestar o seu desejo pelo fim dos cobradores de ônibus. Para Galbraith, estas iniciativas esquecem o mérito de tais instituições amplamente defendidos na sociedade: como planejar políticas públicas sem dados confiáveis? Como extinguir órgãos de grande importância e propor a extinção de trabalhadores como os cobradores do transporte público sem precarizar as condições de segurança da população?
Como economista, a posição de Galbraith de crítica contundente ao sistema de mercado salta aos olhos: “o mercado não tem desempenho confiável”, o que significa que é um risco para a sociedade o fato de que ele passa da expansão à depressão em um curto espaço de tempo “gerando privação e desespero entre os mais vulneráveis”.  Daí a necessidade de intervenção do Estado para manter a economia em prosperidade e frear o ímpeto especulativo do mercado. Tanto no passado quanto hoje esta é uma questão de alta relevância, e de forma profética, dez anos antes de 2008, o economista avisava dos perigos da bolha do mercado de valores, dez anos antes da crise mundial.
Ter em mente o perigo dos excessos era, para Gaibraith, como monetarista, preocupar-se com o papel dos impostos e gastos e os comportamentos negativos do meio empresarial “o sistema é dados a excessos” dizia. Mas é possível formular que, também o Estado, nas mãos de financistas, é dado a excessos: não é o que se vê na política de privatizações do Rio Grande do Sul, este excesso de medidas de extinção de órgãos (FEE, TVE, entre outros) sob o argumento de redução de custos que está dilapidando o patrimônio gaúcho? Galbraith é enfático em defender medidas fiscais amplas e efetivas para promover o emprego porque seu foco não são os referenciais econômicos, mas o social, ele está preocupado com os efeitos das políticas públicas no campo social e vê neste tipo de medida um grande prejuízo social e fonte de aflição humana, numa palavra, o desemprego, e sugere, ao contrário, a promoção de “empregos públicos alternativos na recessão ou depressão”. Não é exatamente o contrário das políticas públicas em andamento no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, com suspensão de concursos públicos, demissões e sucateamento da máquina pública com consequente demissão de milhares de servidores?
Galbraith associa-se ao projeto keynesiano defendendo que, em épocas de recessão como a que vivemos, uma política de emprego garantida pelo governo como fundamental.  Seu lugar destinado ao intelectual é o da posição de crítica constante a partir de uma base (keynesianismo) comum. Ser socialmente engajado significa não apenas defender, à época, que o medo da inflação influenciasse excessivamente políticas públicas como ter coragem de revelar, com vinte anos de antecedência, uma estratégia que os governos teimam ainda hoje em esconder: “nos Estados Unidos esse objetivo [orçamento equilibrado] é no momento uma importante arma no ataque generalizado aos pobres”. Que o argumento do orçamento equilibrado seja questionado por um economista monetarista, já causa espanto: que ele defenda que o déficit fiscal temporário, ainda é mais surpreendente, é notável o quanto é possível, mesmo no interior do paradigma economicista, preservar o valor da defesa do social, o que não acontece atualmente nos gestores de politicas públicas.
Ainda que Galbraith estabeleça princípios para o engajamento político em economia, isto não significa a defesa do socialismo. Ele sabe que o sistema de mercado distribui desigualmente a riqueza e aceita isso: por isso além de um sistema de seguridade social para todos, Galbraith quer um imposto de renda progressivo porque os ricos sempre querem escapar de seus impostos e eles são necessários: ”não podemos esquecer o objetivo de uma distribuição de renda socialmente defensável: confortar os aflitos e afligir os confortados“. Não há nada que prove que avançamos nesse sentido: o governo atual em diversos níveis tende a ir na contramão desta afirmação: a nível federal, não reajusta a tabela do imposto de renda e vê os paraísos fiscais continuarem a receber fortunas dos políticos corruptos e parte do empresariado. A nível dos estados, as políticas públicas de venda da máquina pública reduzem mais empregos do que criam. Nunca fez sentido para aqueles com mais renda colaborarem com os mais pobres simplesmente porque a cultura de privilégios impera nos corações e mentes.
Por essa razão, a partir do pensamento de Galbraith, vemos que agimos justamente ao contrário do que se deveria com os recursos públicos, a todo o momento solicitado para financiar empresas privadas. Galbraith dá o exemplo notável – pela simplicidade – do que ocorria nos Estados Unidos, onde a televisão privada fora financiada por recursos públicos enquanto que as escolas públicas foram abandonadas; substitua televisão por sistema bancário e os efeitos será o mesmo no Brasil atua, a mesma anomalia que denunciava o economista. Galbraith reclama que em uma visita as universidades de sua formação em um estado rico e “BILHÕES DE RECURSOS eram para produções de televisão moralmente depravadas”, ora, as universidades americanas viviam exatamente como vivem agora as nossas, vítimas da política de corte de verbas. Defensor incontestável da educação, que deveria ser “disponível a todos”, isso nunca significou o paradigma de investimento somente na produtividade econômica – não é exatamente assim que é pensada a reforma do ensino médio no pais? – mas, ao contrário, simplesmente, para Galbraith o investimento do estado só pode ter um critério:  para aumento da “experiência de vida”.
Galbraith também criticou o ataque a Previdência que ocorreu durante dois anos nos Estados Unidos como “guerra dos influentes contra os pobres”. Sua posição de defesa dos mais pobres e crítica dos projetos de reforma é notável, é o que para ele define o intelectual socialmente engajado, o que inclui a defesa dos serviços públicos e segurança para os mais pobres. Essa agenda dos “socialmente engajados”, curiosamente, teve o mesmo efeito no Brasil para as classes médias que as políticas de bem-estar tiveram nos Estados Unidos: “como se poderia esperar, elas se tornaram mais conservadoras em suas atitudes e expressões públicas. ” Não foi exatamente a emergência de uma sociedade conservadora no Brasil o que vimos a partir dos movimentos de 2013? Não foi exatamente o cenário de uma classe média recentemente enriquecida resumida na cena do casal com a empregada doméstica nas ruas e que amplamente circulou nas redes sociais à época? “Agora eles veem a ajuda aos menos afortunados como uma ameaça a seus amplos e muitas vezes crescentes rendimentos”, afirma o economista. Não poderia estar mais certo do quadro brasileiro atual.
Aparentemente, a análise de Galbraith explica ainda hoje conflitos do desenvolvimento interno brasileiro, mas talvez seja de pouca serventia para a análise do contexto internacional, onde entendo que ocorram as maiores diferenças entre sua época e a atualidade.  Galbraith previa um cenário internacional onde as potencias econômicas estariam associadas não em bases econômicas, mas em defesa de uma política de proteção social e assistencial “a preocupação pelo bem-estar humano não termina nas fronteiras nacionais. Deve-se estender aos pobres de todo o planeta: fome, doença e morte são causas de sofrimento humano onde que sejam experimentadas”. Mas a realidade teima em contrariar as expectativas de Galbraith, principalmente com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e com a disparada da candidatura Le Pen na França: o pior do sofrimento ainda está por vir.
Nos Estados Unidos, uma extensa onda de manifestações já critica as medidas xenofóbicas do presidente americano, bem como o fim da política de assistência à saúde dos mais pobres. O sofrimento não decorre dos conflitos internos, como previa Galbraith, mas da defesa exasperada dos interesses do Estado-Nação: os EUA já autorizaram a construção de um muro com o México. Para Galbraith, tudo isso significa que os países dominantes ignoram de uma vez por todas o compromisso que devem ter para pôr fim aos conflitos, suas medidas, ao contrário, os incentivam. Nesse caminho, é justamente a instituição que Galbraith via como de maior valor para esse papel, as Nações Unidas, que é fragilizada, com cortes orçamentários anunciados entre as primeiras medidas do governo Trump. Para o economista, não poderia haver pior posição: o Estado Unido, como país rico, abriu mão definitivamente da obrigação absoluta de ajudar. O discurso da ajuda internacional foi finalmente substituído pelo discurso conservador que diz que não se deve ajudar aos outros, somente a nós mesmos. Não foi isso que reiteradamente Trump vem afirmando? O problema é que nesse caminho, perde-se os investimentos em educação dos EUA em outros países: ”no mundo inteiro não existe população alfabetizada que seja pobre; e não existe população analfabeta que não seja pobre”, diz Galbraith.
Galbraith acusa os processos de urbanização como os responsáveis pelos problemas de saúde e pelo papel do dinheiro no acesso aos serviços necessários; na civilização agrícola, diz, ao contrário, não havia desemprego e a assistência dava-se naturalmente. A urbanização faz nascer a necessidade de serviços públicos e ser “socialmente engajado” neste meio significa estar consciente dessas contradições e manter o compromisso com a defesa da mudança “Nós, e não eles[ os não engajados], estamos acompanhando a história. Mas também devemos estar conscientes de nosso papel”.
 
 

Deixe uma resposta