Golpe e religião

 
João Alberto Wohlfart
Com o golpe aplicado na Presidenta Dilma Rousseff e na caça às bruxas contra o ex-Presidente Lula e contra o PT, há um forte ingrediente religioso que nos ajuda a compreender o que está acontecendo. No Golpe militar de 1964 muitos bispos, padres e cristãos louvaram o ato como uma dádiva divina que salvaria o país do terror do Comunismo. Entre os golpes de 1964 e 2016 há um sutil diferença, pois naquele o inimigo absoluto era o Comunismo, enquanto neste os inimigos absolutos são Lula e o PT. Na caçada ao inimigo absoluto e na tipificação do demônio, a Religião exerce um papel fundamental inteligentemente empregado pelas classes dominantes que aplicaram o golpe.
A Religião é um fenômeno de muitas facetas, além do pluralismo religioso como uma das marcas de nosso tempo. Sabemos da forte presença da Igreja Católica na História do Brasil e da sua incidência decisiva na formação social e cultural do país. A História do Brasil e a formação do ethos cultural brasileiro tem a marca histórica do batismo cristão. Durante séculos, a presença do Catolicismo não tem nenhum aspecto crítico, mas a marca da cruz e da espada assinala a benção divina ao colonialismo, ao neocolonialismo, ao imperialismo, ao machismo, ao racismo e ao patrimonialismo. E é pelo batismo cristão que os índios e os negros não têm alma, são semisselvagens e não se prestam para as mais nobres castas católicas, tais como a santidade cristã e o sacerdócio.
Ao longo da história do Brasil a Religião Católica teve presença invisível e decidida para a afirmação e consolidação da sociedade patriarcal machista. A atual classe dominante deve agradecer à religião por tão grande dádiva e que contribuiu decididamente para inscrever no interior da sociedade brasileira tal estrutura. Tem tudo a ver a antinomia entre a casta sacerdotal cristã e a massa escrava com a atual casta do judiciário e o ódio da classe dominante da Democracia e do Povo. Durante os séculos de História Brasileira a Religião Cristã imprimiu na sociedade uma profunda convicção segundo a qual a estrutura social é formada a partir da vontade pura e soberana de Deus, portanto imutável. Em função desta influência, ainda não conseguimos quebrar o modelo social patriarca que se se formou historicamente segundo a vontade divina.
Durante o período da ditadura militar a postura da Igreja Católica muda radicalmente. Impulsionada pelo Concílio Vaticano II e pelas Conferências latino-americanas, formam-se significativas lideranças populares e a Igreja Católica passa a ocupar-se de temas como a transformação social, a justiça social, a reforma agrária, a presença na política, a dívida externa etc. Durante algumas décadas, a ação da Igreja foi inseparável da ação política da conscientização das massas diante das estruturas dominantes. Durante as décadas de 70, 80 e 90, a Igreja saiu da sacristia, não se preocupou tanto com a salvação das almas e vinculou a evangelização à ação de transformação social. Nestes tempos, a presença da Igreja teve um viés social, ético e político decisivos para a formação da consciência e politização das massas. Numa ação que teve como carro-chefe as comunidades eclesiais de base, os círculos bíblicos e a ação política, o catolicismo lançou profundamente as suas raízes na base social, o que criou as condições para um efetivo caminho de transformações sociais. Este processo teve como desdobramento político a fundação do PT e a eleição de Lula para a Presidência da República, em 2002. O trabalho de base também contribuiu para a abertura democrática do país e dos principais eventos que o constituíram.
As décadas de 70 e 80 foram especialmente férteis de uma base intelectual libertadora e emancipadora. Tiveram intensa efervescência a Teologia da Libertação, a Filosofia da Libertação, as Pedagogias Crítico Sociais e Dialéticas, em intelectuais como Paulo Freire e Ernani Maria Fiori expressam a fecundidade do período. Mas, dentro da Igreja Católica, aconteceu uma reviravolta radical na monarquia romana com a eleição de um patriarca polonês ao papado, quando chegou ao comando da Igreja Católica um polonês vindo da reação ao Comunismo. A ação deste Papa foi duríssima, no silenciamento de centenas de intelectuais católicos, no radical enfraquecimento do viés político da ação da Igreja, na romanização, na centralização e unificação da doutrina, na reviravolta ortodoxa e ultraconservadora da religião.
Entre os monarcas absolutistas João Paulo II e Bento XVI o catolicismo viveu quase 35 anos de ditadura, com a imbecilização e mediocrização de seus fiéis e a condenação de muitos de seus intelectuais. No Brasil, percebeu-se o progressivo enfraquecimento do viés político da evangelização da Igreja e a sua volta à grande disciplina e à sacristia. O modelo de Igreja construído por estes dois patriarcas contribuiu muito para desqualificar a ação política e para rotular autoritariamente os integrantes das esquerdas de comunistas. Nos últimos tempos os padres e os políticos comunistas quase desapareceram… Na atualidade, a presença da Igreja Católica na sociedade brasileira é caracterizada por um significativo grau de moralidade e credibilidade social, mas com insignificante presença no processo de transformação social.
O acentuado ritualismo litúrgico e devocionismo do catolicismo brasileiro cedeu espaço para as religiões neopentecostais repletas de fiéis. Isto é evidente e visível pela chamada bancada evangélica do congresso nacional e na inexistência de uma bancada católica no mesmo parlamento. O progressivo recolhimento católico nos espaços sagrados das sacristias e das igrejas corresponde com a ocupação destes mesmos espaços pela religiões neopentecostais atualmente presentes de forma intensiva nas bases sociais e nas instâncias políticas. Atualmente, estas religiões estão ramificadas nas instâncias políticas de todas as esferas da federação, em vários partidos políticos, em vários setores da economia e em vários órgãos estatais. Líderes religiosos são donos de meios de comunicação, fazendas, empresas, com incidência decisiva nos rumos da economia e da política. Preocupante é o viés ultraconservador que as religiões atualmente proporcionam para a sociedade, um ingrediente decisivo para o domínio neoliberal.
A ramificação da religiões para dentro da sociedade, na atualidade, é comparável com a circulação do sangue por todas as partes do corpo. Talvez, na atual configuração da conjuntura brasileira, a religião não é um componente da superestrutura da estrutura econômica, como pretendia Marx, mas infraestrutura da estrutura social e econômica. Ela proporciona uma visão ultraconservadora necessária para a legitimação do modelo econômico neoliberal e dos interesses econômicos das elites que mandam no país. A religião não proporciona uma visão de mundo sistematizada e uma intelectualidade esclarecida, mas estende a santidade sacerdotal às castas do judiciário, do ministério público federal, das câmaras federal e estaduais e em todas as esferas da política. Passa decisivamente pela religião a formação de uma casta social autodenominada “homens de bem”, uma classe de perfeitos que se inspiram na bíblica e na “justiça”, para se justificar diante da sociedade.
Numa situação paradoxal diante da sociedade secularizada, a forte incidência religiosa resulta na formação de uma casta sacerdotal social, de homens perfeitos e de bem, e condena ao ostracismo uma grande maioria social. Neste universo encontram-se os negros, os índios, o MST, os trabalhadores, os homoafetivos, as mulheres, os nordestinos etc. Com facilidade, estas classes se transformam em réus dos procedimentos tipicamente judiciais e as suas organizações são criminalizadas. Com o golpe, como os parâmetros de Justiça e de Direito foram jogados na lata de lixo, sobrou uma casta sacerdotal que condena os infratores, destacadamente os de esquerda e os comunistas.
Na atualidade, a tendência religiosa neopentecostal não apenas caracteriza uma determinada confissão religiosa, mas ela está infiltrada em todas as religiões. Como a pregação está baseada na prosperidade material, e como no Brasil houve uma significativa ascensão social, estas religiões encontram um terreno fértil para a seu desejado sucesso na sociedade. A prosperidade material que aconteceu nos últimos anos não é dada aos governos que promoveram as políticas para que isto fosse possível, mas muitos acham que é uma dádiva divina. Por outro lado, a Igreja Católica, mesmo presente em todo o território nacional, atualmente não tem força para fomentar um processo efetivo de transformação social.
Está muito claro que a ditadura que vivemos atualmente é muito pior que aquela que se instaurou em 1964. Dentre as muitas diferenças, uma nos parece fundamental. É claro que naquele contexto os religiosos católicos apoiaram o golpe como uma dádiva divina e como uma vitória contra o grande demônio do comunismo. Mas expressivas lideranças católicas se deram conta da farsa, denunciaram a ditadura e implantaram uma intensa força popular para a conquista da liberdade. Na ditadura atual, contrariamente, o conjunto das religiões se transformou na grande aliada. As forças mais conservadoras do país estabeleceram o casamento entre os seguidores da bíblia e o neoliberalismo, entre religião e capital, entre homens de bem e a direita raivosa.
No atual contexto do golpe não há vozes proféticas provenientes das religiões, especialmente da católica. Grande parte dos católicos não têm consciência esclarecida dos fatos e louvam os golpistas, repetindo, em grande intensidade, o discurso dos meios de comunicação. Como foi perdida completamente a base social crítica dos anos 70 e 80, e com ela o viés político do catolicismo, os cristãos estão perdidos e mediocrizados no senso comum religioso e na ignorância política. Na contramão da sociedade secularizada, que se torna indiferente à religião e a critica como uma espécie de alienação social, encontramo-nos numa sociedade profundamente religiosa que usa o sentimento religioso como uma poderosa ferramenta para encobrir a lógica capitalista de exploração.
O fenômeno religioso em geral, e nela se incluem todas as religiões, têm influência decisiva na formação da “moralidade” social. É o moralismo dos homens de bem, dos homens perfeitos, dos moralizadores da sociedade, contra os condenados sociais. O nome destes condenados não precisa ser colocado aqui, que pode ser resumido na larga base social dos historicamente excluídos. Alguns eventos que envolvem o golpe, dentre os quais o fatídico 17 de abril quando o nome de Deus foi amplamente invocado, mostram que a nossa sociedade é historicamente teocrática. A histórica estrutura teocrática da sociedade é legitimadora do patriarcalismo, do neocolonialismo, do machismo, do escravagismo, do imperialismo capitalista, do maniqueísmo social. Na atualidade, há poucos sinais na religião que apontam para a sua potencialidade humanizadora, crítica e transformadora, mas ela sempre é usada para sustentar ditaduras e encobrir formas de exploração. No Brasil da história e da atualidade, há uma radical proximidade entre a intensa religiosidade e o estrutural patriarcalismo.
Ao ver claramente o papel que a religião está exercendo no atual contexto de golpe e de ditadura, nada mais significativo que invocar o conhecido ditado proferido pelo velho filósofo Karl Marx: “a religião é o ópio do povo”. Está claro que no contexto atual nenhuma religião está focada na libertação e na transformação social, como a Igreja Católica nos anos 70 e 80. O tipo de consciência religiosa e de fé das religiões atuais nada mais representa que uma legitimação do golpe e do projeto ditatorial que vivemos. O misticismo religioso é o que o sistema econômico e os ditadores precisam para silenciar o povo e legitimar os seus interesses.

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