“Ponía el dedo en una llaga que demasiados deseaban disfrazar de cicatriz”.
Ariel Dorfman, La muerte y la doncella
O vigor de uma sociedade democrática está refletido na integridade de
suas instituições. A Universidade, instituição vocacionada para o exercício da
razão, não poderia abandoná-la neste momento por que passa nossa frágil
democracia. O motivo é simples: não há conhecimento fora da razão. E como
não há consciência fora do conhecimento, nem liberdade sem consciência, o
abandono da razão, tal como nos é solicitado por um governo que insta seu
povo a trabalhar sem pensar, nada mais é que a renúncia à liberdade. A
Universidade que abrir mão da razão, da consciência e da liberdade terá se
convertido em algo distinto de si mesma. Terá perdido a identidade.
Uma das marcas características dos regimes autoritários é a dissolução
de identidades. Essa dissolução está a serviço de outra igualmente perversa: a
dissolução da percepção das diferenças. Os incontáveis gestos políticos do atual
governo no sentido de eliminar uma série de programas destinados a diminuir
desigualdades sociais são a expressão manifesta de uma visão autoritária e
excludente, segundo a qual vivemos todos sob as mesmas condições. Não
vivemos. As condições de vida do operário que recebe vale-refeição ou do
professor que recebe o piso nacional não são iguais às de um banqueiro a quem
o Estado paga juros sobre juros, nem às do juiz que recebe auxílio-moradia do
mesmo Estado – que deveria proteger os vulneráveis. Um Governo que ignora
essas diferenças e as prioridades correspondentes, tratando a todos de igual
forma, não governa para o bem-estar social.
Neste momento da vida brasileira, em que o comando da nação foi
tomado de assalto por um grupo ativamente empenhado na promoção de um
retrocesso sem precedentes desde o restabelecimento de nossa democracia, nós,
professores do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul abaixo assinados, desejamos tornar público nosso mais absoluto repúdio ao
governo provisório, que se instalou a partir da derrubada de uma Presidenta
democraticamente eleita pelo voto popular.
A Universidade, ambiente sensível à rarefação das condições materiais e
morais para a experiência da razão, e de tudo que dela decorre como produto
social, não pode e não deve se calar diante de um governo que, por tudo a que
temos assistido, é o resultado de uma conspiração destinada a salvaguardar
interesses particulares, que nada têm a ver com aqueles que devem nortear os
rumos da nação brasileira. O silêncio da Universidade seria a renúncia a sua
identidade humanista, amparada no exercício da consciência e da cidadania e
comprometida com a defesa da pluralidade e da diversidade.
Ciente, e temeroso, do papel da Universidade, o governo provisório não
tem poupado esforços no sentido de atacar os avanços capitaneados pelo
ambiente acadêmico na esfera da ação social. Naquilo que afeta de modo mais
expressivo a sensibilidade daqueles que atuam na área de Letras, as extinções
dos Ministérios da Cultura e da Ciência, Tecnologia e Inovação são as facetas
mais evidentes de um projeto comprometido com o aniquilamento da ciência e
da cultura em suas acepções mais amplas. Vale mencionar ainda o
desmantelamento de importantes iniciativas do governo anterior, como a ampla
discussão com professores e pesquisadores em Educação sobre a Base Nacional
Comum Curricular, articulação fundamental entre governo e universidades na
busca da excelência de ensino no País. Outra frente comprometida com o atraso
tem sido a base parlamentar de apoio ao governo provisório, responsável pela
submissão de um conjunto de projetos de lei que ferem brutalmente a liberdade
de cátedra, numa evidente tentativa de tornar a escola e a academia espaços de
reprodução mecânica de conteúdos, incapazes de promover a formação de
cidadãos verdadeiramente inteligentes e críticos, tão inconvenientes aos
regimes autoritários, como o que ora se instala de modo ilegítimo na direção do
País.
Na visão dos professores que subscrevem este documento, o cenário
apenas esboçado neste manifesto é preocupante. Estamos vivendo um
momento crucial para a manutenção da democracia no Brasil, em que é
necessário refletir sobre os rumos que a nação começou a tomar a partir de uma
ruptura injustificável. As consequências do silêncio e da inação, neste momento,
podem custar caro à nossa democracia, que, apesar de suas fragilidades
inegáveis, vinha se consolidando como um espaço para o jogo negociado de
interesses dos atores que compõem a sociedade brasileira.
A deposição de uma Presidenta eleita, com base em um argumento
jurídico especioso, falacioso, capaz de incriminar a maior parte de nossos
gestores públicos, o subsequente desmonte de todas as políticas sociais de
atendimento às camadas menos favorecidas e as decisões que visaram à
desarticulação de ações de governo no campo da educação, ciência e cultura,
importantes para toda a sociedade, não deixam dúvida: o impeachment da
Presidenta Dilma Rousseff constituiu rompimento inaceitável, que urge
desfazermos, sob pena de permitirmos a perpetuação de um governo que, tanto
pelo método de ascensão quanto pelo ideário manifesto por suas ações, já
tornou evidente seu descompromisso com o bem-estar social, com a soberania
nacional e com a democracia.
Assinam este documento:
Ana Tettamanzy, Anamaria Welp, Ana Zandwais, Antonio Barros de Brito
Filho, Antonio Marcos Vieira Sanseverino, Arcanjo Pedro Briggmann, Beatriz
Gil, Carlos Augusto Bonifácio Leite, Carmem Luci da Costa Silva, Claudia
Luiza Caimi, Cleci Regina Bevilacqua, Cléo V. Altenhofen, Denise Regina de
Sales, Erica Foerthmann Schultz, Eunice Polonia, Gabriela Bulla, Gabriel de
Ávila Othero, Gerson Neumann, Ginia Maria de Oliveira Gomes, Homero
Vizeu Araújo, Ian Alexander, Ingrid Nancy Sturm, José Carlos Baracat Júnior,
Karina Lucena, Leonardo Antunes, Liliam Ramos da Silva, Lúcia Rottava,
Luciene Simões, Luisandro Mendes de Souza, Luís Augusto Fischer, Luíza
Milano, Márcia Montenegro Velho, Marcos Goldnadel, Maria Alice Kauer,
Maria Cristina Leandro Ferreira, Marta Ramos Oliveira, Natalia Labella,
Patrícia Chittoni Ramos Reuillard, Paulo Coimbra, Guedes, Rafael Brunhara,
Rita Teresinha Schmidt, Robert Ponge, Rosa Maria de Oliveira Graça, Rita
Lenira de Freitas Bittencourt, Sandra Loguércio, Sandro Rodrigues da Fonseca,
Sergio de Moura Menuzzi, Tanira Castro, Ubiratã Kickhöfel Alves, Valdir
Flores.